INTRODUÇÃO
A hipovitaminose A, ou Deficiência de Vitamina A (DVA), é considerada um grave problema de saúde pública, sendo uma das mais importantes deficiências nutricionais dos países em desenvolvimento1. Trata-se de uma condição que afeta aproximadamente 190 milhões de crianças pré-escolares (com menos de sete anos de idade) no mundo2 e 17,4% das crianças brasileiras menores de cinco anos de idade3.
A deficiência de vitamina A primária, causada pelo consumo insuficiente da vitamina, comumente representando um estado de "fome oculta", manifesta-se de forma subclínica e sem indícios evidentes3. Uma vez que a vitamina A participa de processos fisiológicos primordiais ao organismo, especialmente aqueles relacionados à visão, integridade tecidual e sistema imunológico, sua deficiência em pré-escolares pode prejudicar o aprendizado e o desenvolvimento2 - 4.
Para reduzir e controlar a DVA infantil o Ministério da Saúde brasileiro instituiu o Programa Nacional de Suplementação de Vitamina4, que a distribui gratuitamente nas Unidades Básicas de Saúde do Sistema Único de Saúde (SUS). A profilaxia da DVA é proposta a partir da suplementação de megadoses de vitamina A, ministradas semestralmente. O calendário ideal é de uma dose de 100.000 UI (600 µg de retinol) para crianças de 6 a 11 meses e, dos 12 aos 59 meses, uma dose de 2000 UI (1200 µg de retinol) a cada 6 meses4.
Embora a necessidade de vitamina A varie de acordo com a fase da vida e fatores como ingestão de lipídeos e exposição a doenças - parasitoses intestinais, diarreias decorrentes etc. -, a dose provida pelo programa de suplementação atinge a recomendada para crianças em idade pré-escolar4 - 6. Porém, a abrangência do mesmo ainda é baixa, atingindo apenas 40% dos pré-escolares brasileiros3. Na análise dos dados regionalizados do Programa Nacional de Suplementação de Vitamina no ano de 2013, o estado de Minas Gerais apresentou cobertura de 51,21 e 6,04% das crianças de seis a 59 meses de idade para a primeira e segunda dose, respectivamente7.
O incentivo do consumo de alimentos ricos em vitamina A é importante para prevenir a DVA4, especialmente considerando-se que o consumo desse nutriente por pré-escolares de diferentes regiões do País é inferior ao necessário8 - 11. Essa inadequação do consumo é condicionada por fatores culturais, tais como hábitos alimentares, preferências individuais e familiares e por fatores socioeconômicos que afetam a capacidade de escolha e compra desses alimentos. Assim, no intuito de contribuir para o conhecimento dos hábitos alimentares de brasileiros pré-escolares de diferentes regiões que possam levar à DVA, investigou-se, no presente estudo, o hábito de consumo de alimentos fontes de vitamina A por pré-escolares da zona rural de Montes Claros (MG).
MÉTODOS
Trata-se de um estudo transversal realizado com 337 pré-escolares com idade média de 48,3 (±11,4) meses e matriculados nas escolas da rede pública municipal na área rural da cidade de Montes Claros (MG), Brasil. A população urbana do município está estimada em 344.427 habitantes e a rural em 17.488 habitantes12.
De acordo com o senso escolar de 2013, o município possui 15 escolas em zona rural que atendem 514 crianças com idade entre 24 e 59 meses13. Para este estudo o procedimento de amostragem foi do tipo aleatório simples, a partir da lista de alunos enviada por cada escola. Estimou-se a participação de no mínimo 278 crianças, considerando os seguintes critérios para o cálculo amostral: número total de alunos, nível de confiança de 95%, um erro amostral de 4% e a prevalência de deficiência de vitamina A de 50%.
A coleta de dados foi realizada por duas acadêmicas de Nutrição devidamente treinadas e calibradas. Os dados das crianças foram fornecidos pelos responsáveis através de entrevistas realizadas no primeiro semestre de 2014 em horário de reuniões de pais.
As entrevistas foram pautadas em um formulário estruturado dividido em três seções, as quais compreendiam: descrição dos dados socioeconômicos, informações sobre o recebimento da suplementação de vitamina A suprida pelo governo e o Questionário de Frequência Alimentar (QFA) para detecção do hábito de consumo de fontes de vitamina A.
Para caracterização sociodemográfica e econômica da amostra, levantaram-se dados sobre idade e sexo da criança, escolaridade da mãe (dividido entre fundamental completo ou menos e ensino médio incompleto ou mais), atividade remunerada materna, número de moradores no domicílio (incluindo a criança), renda mensal da família, tipo de moradia, tipo de construção do domicílio, disponibilidade de água e fonte, esgotamento sanitário e coleta de lixo. O registro de recebimento de suplementação de vitamina A provida pelo governo era confirmado pelos dados do cartão e/ou caderneta de saúde das crianças, cujos pais foram instruídos a apresentar na reunião escolar.
O Questionário de Frequência Alimentar utilizado para detecção do hábito de consumo de fontes de vitamina A foi o baseado na proposta do International Vitamin A Consultative Group (IVACG). Esse instrumento semiquantitativo é validado para o estudo de crianças e utilizado em pesquisas semelhantes à presente14. O QFA não é um medidor direto do consumo de determinado alimento, mas permite estimar o hábito de consumo (raro/inexistente, mensal, semanal e diário) de alimentos específicos, predizendo a relação dieta-doença. No presente estudo, o QFA avaliou o consumo de alimentos fonte de vitamina A que foram citados pelos entrevistados.
Estes foram classificados como fontes de alto, moderado ou baixo teor de vitamina A de acordo com os níveis de retinol descritos pelo IVACG15. Tabelas específicas de Fontes de Carotenoides16 e Composição de Alimentos17 foram também usadas para classificação dos alimentos citados nas entrevistas e não listados pelo IVACG. Dessa forma, consideraram-se com alto teor de vitamina A aqueles com mais de 1.200 ug-ER; teor moderado aqueles com 100 a 1.199 ug-ER; e baixo teor aqueles com menos de 100 ug-ER. Considerando-se as particularidades de erros alimentares para a faixa etária estudada, registrou-se também o consumo de guloseimas (refrigerantes, biscoitos, doces e salgadinhos).
Os dados do questionário foram lançados em um banco de dados no programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS Inc., Chicago, Ilinois, Estados Unidos) e tratados através da estatística descritiva, com cálculo de frequências e percentuais. Para análise dos mesmos, os pré-escolares foram subdivididos em dois grupos: aqueles que consumiam alimentos que representavam fontes moderadas e altas de vitamina A diariamente e aqueles que não consumiam. Assim, a investigação dos fatores associados ao consumo habitual de fontes dessa vitamina foi feita comparando-se ambos os grupos.
A associação entre o consumo habitual de alimentos fontes de vitamina A entre os pré-escoalres e as variáveis explicativas foi investigada com base na Razão de Prevalência (RP), calculada pelo modelo de regressão de Poisson com variância robusta, e seu intervalo de confiança a 95%. As associações significativas até o nível de 20% (p<0,02) na análise bruta foram incluídas num modelo de análise múltipla visando controlar possíveis fatores de confundimento. Adotou-se o nível crítico de 5% (p<0,05) para assumir as associações como estatisticamente significantes, no modelo final.
O estudo foi aprovado e apoiado pela Secretaria Municipal de Educação de Montes Claros e conduzido dentro dos preceitos éticos estabelecidos na Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde sobre pesquisas com seres humanos. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob o Parecer nº 530.598/14. Por se tratar da avaliação de menores de idade, todos os responsáveis assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
RESULTADOS
Das 337 crianças, 51,9% eram do sexo feminino e 71,5% eram pardas. A Tabela 1 mostra os dados das variáveis sociodemográficas. Considerando os responsáveis respondentes, 83,4% eram mães. Em relação à escolaridade, 59,3% informou ter até o ensino fundamental completo ou incompleto e a maioria (75,1%) vivia com um companheiro. Quanto à renda familiar, mais da metade dos respondentes possuía até um salário mínimo e era beneficiária do programa Bolsa Família. No tocante às condições de infraestrutura de moradia, observou-se que 57,6% das casas era provida de água tratada, porém, 77,4% não tinha acesso à rede de esgoto e 52,2% à coleta pública de lixo. Quase todas as casas (99,1%) tinham rede elétrica. Em relação à suplementação de vitamina A apenas cerca de metade das crianças (51,0%) recebeu mais que quatro doses de suplementação.
Quanto ao consumo de fontes dessa vitamina, o único alimento de alto teor citado foi cenoura cozida. Os de teor moderado foram abóbora, acerola, cenoura crua, couve (folha), manga, margarina e ovo de galinha; já os de baixo teor foram abacate, alface, banana, caju, farinha de mandioca, goiaba, laranja, leite de vaca (em pó ou in natura), mandioca, mamão, melancia, milho, peixe e tomate.
A análise do consumo de alimentos fontes de vitamina A (Tabela 2) revelou que 86,4% dos pré-escolares consumiam cenoura com frequência predominantemente semanal. Dentre os itens de teor moderado da vitamina, a cenoura crua e a couve foram os menos consumidos; em termos de consumo diário, a manga foi o mais ingerido e, no que diz respeito ao consumo semanal, o ovo de galinha e a abóbora foram os mais citados. Dentre os itens de baixo teor de vitamina A destacaram-se laranja, banana e leite. Em contrapartida, o consumo diário de balas e doces ofertados aos pré-escolares pelos familiares superou 45,0%, e o consumo semanal de refrigerantes e salgadinhos industrializados foi maior que 85,0% (Tabela 3). Assim, a ingestão média de vitamina A diária calculada foi 349,29 µg (de 30,60 µg a
765,59 µg) entre os pré-escolares e identificou-se que 78,9% (n=266) apresentaram indicativos de baixo hábito de consumo da mesma5.
Na Tabela 4 são apresentados os resultados da análise bivariada para testar associações entre consumo de alimentos fontes de vitamina A e as características da população. O hábito de consumo dessas fontes, inferido pelo QFA, foi considerado alto/moderado para apenas 75 dos pré-escolares e baixo para 262 deles. As variáveis "renda" e "consumo de guloseimas" foram selecionadas para compor o modelo múltiplo para baixo consumo de alimentos fontes de vitamina A em pré-escolares. Na análise múltipla, as variáveis "baixa renda" e "consumo diário de guloseimas" se mantiveram associadas ao baixo hábito de consumo de fontes da vitamina pelos pré-escolares.
DISCUSSÃO
O diagnóstico dietético por meio do uso do QFA tem sido utilizado como indicador de risco nutricional de populações, uma vez que as informações dietéticas fornecem subsídios para a identificação de comportamentos e hábitos alimentares. A interpretação dos dados obtidos por esse tipo de instrumento servem mais para indicar um risco nutricional relacionado à carência ou ao excesso alimentar do que para diagnosticá-lo, pois o consumo é um indicador indireto do estado nutricional18. Além disso, as necessidades individuais de nutrientes podem se diferenciar substancialmente das recomendações diárias18. Apesar disso, a elevada prevalência de doenças associadas à dieta, presente tanto em países desenvolvidos como nos em desenvolvimento, justifica o investimento nesse tipo de pesquisa.
Com base no manual de suplementação de vitamina A do governo, as crianças da faixa etária estudada deveriam receber pelo menos uma dose da suplementação até os 12 meses e outras 8 doses até os 59 meses de idade4. Os participantes deste estudo tinham registros desatualizados e, embora uma boa parte tivesse a primeira dose documentada, a continuidade do tratamento não foi constatada, corroborando com outro estudo19. As crianças avaliadas tinham idade média de 48 meses e apenas 51% havia recebido mais que 4 doses da suplementação, quando deveriam ter recebido, em média, 7 doses.
A falha identificada no fornecimento de suplementação é preocupante, especialmente frente ao baixo consumo que a comunidade estudada faz de alimentos fonte de vitamina A. Esse resultado chama a atenção visto que a cobertura do programa de suplementação ainda é um desafio em algumas regiões do País7. Deve-se considerar, ainda, que o estudo foi conduzido em zona rural, cujo acesso aos serviços de saúde pode ser difícil em razão da distância. Além disso, as áreas rurais brasileiras muitas vezes apresentam piores indicadores de renda, saneamento básico e níveis de escolaridade, o que os torna susceptíveis a DVA8 , 9. Esse resultado sugere que outros estudos sejam conduzidos na comparação de DVA entre as populações urbana e rural.
Tabela 1. Caracterização sociodemográfica e suplementação de vitamina A de pré-escolares de zona rural (n=337). Montes Claros (MG), 2014.

Tabela 2. Frequência do consumo de alimentos com alto, moderado e baixo teor de vitamina A entre pré-escolares de zona rural. Montes Claros (MG), 2014.

Tabela 3. Frequência do consumo de guloseimas entre os pré-escolares de zona rural. Montes Claros (MG), 2014.

Tabela 4. Análises bivariada e múltipla de associação entre as variáveis estudadas e o consumo habitual de alimentos fontes de vitamina A entre pré-escolares de zona rural. Montes Claros (MG), 2014.

Nota: RP: Razão de Prevalência; IC95%: Intervalo de 95% de Confiança.
O Questionário de Frequência Alimentar mostrou a escolha de alimentos de alta disponibilidade na região, especialmente frutas como manga, tomate, laranja e banana. Desses, apenas a manga tem teor moderado de vitamina A. Oconsumo de cenoura cozida, que seria a mais rica fonte de vitamina A dentre os itens listados, parece não ser suficiente para suprir a necessidade das crianças visto que praticamente 80% da população mostrou indicativos de baixo consumo desse nutriente. Deve-se ressaltar a associação da falta de hábito de alimentos fonte de vitamina A com o alto consumo de guloseimas. Considerando-se a faixa etária estudada, esse resultado é preocupante visto sugerir que alimentos saudáveis, fonte de vários nutrientes, são substituídos nas refeições por alimentos pobres em termos nutricionais. Esse padrão segue uma tendência mundial de aumento de consumo de alimentos ricos em lipídeos e açúcares por crianças20.
A carência de micronutrientes, em especial de vitamina A, pode resultar de práticas alimentares inadequadas, que por sua vez são comumente influenciadas por condições econômicas e culturais8 - 31 , 41. Isso foi confirmado no presente estudo, o qual mostrou que famílias de menor renda tinham piores hábitos de consumo de fontes desse nutriente. O quadro poderia ser atenuado com medidas simples como a inserção de alimentos regionais fontes da vitamina, de elevado valor nutritivo, baixo custo e fácil disponibilidade na merenda escolar22. Porém, como mostra uma pesquisa realizada na região metropolitana de Belo Horizonte (MG), esses alimentos ainda são pouco consumidos por pré-escolares por uma questão de falta de hábito25. Esses dados também foram evidenciados no presente estudo, onde as crianças avaliadas mostraram não consumir, de maneira frequente, alimentos fontes de carotenoides disponíveis na região. O consumo insuficiente de legumes e vegetais, padrão alimentar comum entre pré-escolares24 , 25, afeta o aporte de micronutrientes, em especial o de vitamina A, podendo influenciar negativamente na reação do sistema imunológico das crianças a infecções9 , 10. Programas de Educação Nutricional voltados à remodelação dos hábitos alimentares seriam uma alternativa para prevenção e controle da DVA26.
CONCLUSÃO
Conclui-se que as crianças avaliadas têm, além de falha no recebimento da suplementação de vitamina A provida pelo governo, baixo hábito de consumo de alimentos fonte desse nutriente. Os resultados sugerem que a ingestão de guloseimas e a baixa renda estejam associados ao baixo hábito de consumo de alimentos fonte de vitamina A. Sugere-se o desenvolvimento de um Programa de Educação Nutricional para o incentivo ao consumo desses alimentos na comunidade. Além de ser uma eficiente forma de prevenção de carências nutricionais, esse tipo de intervenção produz resultados positivos duradouros, uma vez que a formação de hábitos saudáveis desde a infância contribui para a promoção da saúde na vida adulta.