Acessibilidade / Reportar erro

Funcionalidade burocrática nas universidades federais: conflito em tempos de mudança

DOCUMENTOS E DEBATES

Funcionalidade burocrática nas universidades federais: conflito em tempos de mudança

Euripedes Falcão Vieira; Marcelo Milano Falcão Vieira

INTRODUÇÃO

As Universidades Federais Brasileiras vêm sob análise crítica há mais de três décadas. Em 1968, após anos de discussão, o então Conselho Federal de Educação elaborou um conjunto de recomendações a mudanças estruturais e organizacionais que se transformaram na Lei 5540. Foi uma tentativa de modernizar estruturas desatualizadas que operacionalizavam uma organização multifuncional complexa e burocrática nas áreas administrativa e acadêmica. As Universidades Federais, da forma como estão estruturadas, se tornaram instituições retardatárias em relação aos avanços em políticas de ensino, sistemas organizacionais, estratégias de ação e flexibilidade curricular. Mais de três décadas se passaram e a atual crise da universidade pública federal retrata os mesmos problemas, acrescidos de novos componentes pelo maior dimensionamento que o tempo viria, naturalmente, aagregar. É sabido que as universidades públicas são instituições recalcitrantes à mudança e muito rarefeitas à inovação, embora representem de per si o lugar onde, por objetivos fins, se gera conhecimento e inovação. Contraditoriamente, as universidades públicas, além da transmissão do conhecimento à formação profissional, respondem por cerca de 90% da pesquisa científica nacional. Contudo, esse dado pode ter significância apenas quantitativa, pois será necessário analisar qualitativamente o que é produzido e qual a contribuição que agrega ao campo da ciência e aos superiores interesses nacionais. Sem contar que a geração de novas tecnologias vem se deslocando das universidades federais para instituições de caráter não universitário e laboratórios de empresas privadas, principalmente.

As Universidades Federais representam atualmente menos de 5% do universo das Instituições de Ensino Superior no Brasil, o que, na realidade, configura um amplo processo de privatização do ensino superior. Ora, se o indicador de 60% da produção científica nacional é das universidades federais pode-se, com grande constrangimento aos interesses nacionais, constatar a fragilidade do campo da pesquisa científica no país. Basta verificar o número de novas instituições de ensino superior e de pesquisa acrescidas ao universo já existente nas últimas décadas, e também os limites orçamentários impostos à expansão das atividades de ensino, pesquisa e extensão nas Universidades Federais, para se ter idéia do pouco que se avançou nesta importante vanguarda do desenvolvimento nacional.

Uma situação que desde logo chama a atenção é a grande resistência da instituição universitária federal à mudança. Não se trata de uma realidade apenas nacional, pois vários analistas, críticos, sociólogos e outros têm levantado a discussão sobre a perenidade das estruturas universitárias, mesmo em países desenvolvidos. Contudo, as universidades federais brasileiras primam por estruturas organizacionais extremamente burocráticas tanto no campo administrativo como no campo acadêmico. Administrativamente, é crescente o processo de alargamento da faixa de atividades meio, com desdobramento de funções, hierarquização excessiva na movimentação das demandas de serviços e dos processos decisórios. Na área acadêmica a multiplicidade estrutural estabelece uma ampla nomenclatura de órgãos - faculdades, institutos, centros, departamentos, escolas, colégios, decanatos, núcleos e comissões - quase sempre repetindo funções, conflitando decisões e ampliando a burocratização no interior da atividade fim. As estruturas organizacionais altamente complexas, pesadas pelo quantitativo de órgãos, lentas na movimentação das demandas pelo excesso de normas e pouco eficientes pela hierarquização burocrática acabam, invariavelmente, em perda do impulso à eficiência. Por conseqüência, consagra-se um cenário de baixa energia funcional, alimentando a entropia que desgasta, que corrói o sistema organizacional e compromete, conseqüentemente, a qualidade do desempenho.

As três dimensões da atividade acadêmica universitária - ensino, pesquisa e extensão - vêm se tornado reféns de um processo burocrático incontrolável, submetido a normas e dependências muitas vezes desnecessárias produzidas pelas estruturas piramidais de apoio. Nos setores mais dinâmicos da sociedade, as estruturas burocráticas piramidais estão no fim, em rápido processo de substituição por outras mais flexíveis, mais abertas e mais horizontais na hierarquia e na movimentação dos fluxos de demandas e decisões. A complexidade estrutural e organizacional das universidades federais conduz a distorções com a plena identidade das funções de ensino, pesquisa e extensão. A pesquisa e a extensão são quase sempre complementos da atividade de ensino e não funções programáticas com personalidade acadêmica própria. A atividade de pesquisa se desenvolve por ação complementar dos docentes, em ambientes de ensino e de caracterização muito individualizada. Os ambientes de pesquisa que identificam um nível elevado e próprio a essa atividade acadêmica são raros. E nesse sentido, a estrutura departamental é altamente negativa por alocar num mesmo ambiente, e sem definições claras, as três funções básicas da universidade. O mesmo ocorre com a extensão, um campo de alta indefinição e impropriedades, fazendo parte da vala comum de atividades departamentais. O departamento é, insofismável e claramente, um órgão estanque, burocrático e corporativo por excelência. Pesquisadores de elite têm procurado fugir aos condicionamentos departamentais, organizando-se em núcleos de ação científica, conectando, por meio de projetos específicos, diretamente, com as agências de financiamento públicas ou não.

A visão explicitada acima não decorre de uma realidade imutável. Ao contrário, a realidade é dinâmica, evolui e se transforma. Na verdade, a sociedade se transforma pela inovação permanente, produzindo dinamicamente novas realidades. A crise não está, pois, na realidade e sim nos nossos mapas cognitivos que muitas vezes não têm a percepção das mudanças ou, o que é pior, as rejeitam. Aí está sem dúvida, o grande impasse no processo de mudança nas universidades públicas. Não há a vontade de mudar, ao contrário, há resistência explícita e velada quando se levanta qualquer cogitação de transformar as realidades arcaicas que dominam as instituições federais de ensino superior. Pode-se identificar três razões principais a esse comportamento: o medo à mudança, os interesses pessoais e a proteção corporativa. A mudança trás inovação e essa gera um sentimento de medo àqueles que já estão dominados por ambientes de trabalho altamente conservadores, os interesses pessoais estão referidos a possíveis perdas de status em nichos de poder localizados, e a proteção corporativa é a cumplicidade grupal.

A presente atualidade é invadida todo momento por um descomunal volume de informação. Mas não é somente a quantidade da informação que deve merecer atenção especial no processo de mudança. Há outra variável importante representada pela evolução no conteúdo dos conhecimentos, responsável pela derrubada e construção de conceitos, já não mais em condições de transição, mas como razão intervalar entre uma dominância de comportamento e outra. Nas estruturas organizacionais mais flexíveis a necessidade de uma nova forma de gestão, a gestão do conhecimento, aplicável em ampla conectividade sistêmica, tornou obsoleta a gestão baseada em estruturas departamentais, de acentuado estancamento funcional. As redes cibernéticas eliminam, rapidamente, grande parte da complexidade sistêmica do construto organizacional.

É compreensível que as organizações públicas, por peculiaridades próprias e pela subordinação a normas e legislação condicionante, não acompanhassem as grandes mudanças estruturais e de gestão que ganharam impulso a partir dos anos 90, no final do século XX. Quando a revolução do conhecimento, as tecnologias da informação e os modelos de flexibilidade organizacional começaram a ser introduzidos nos grandes organismos empresariais, o setor público, brasileiro, especificamente, manteve-se alheio, dominado por corporativismos paralisantes numa disposição comportamental retardatária. Poucos órgãos públicos, e com grande atraso, se modernizaram introduzindo plenamente as novas tecnologias da informação, da gestão do conhecimento e das estratégias mais adequadas aos objetivos institucionais. Entre as instituições públicas brasileiras as mais recalcitrantes, as mais impermeáveis e as mais retardatárias às mudanças são de longe as universidades federais. Há no ar uma retórica de mudança, da construção de uma nova universidade para o século XXI. Todavia, não há efetivamente como mudar o comportamento, a qualidade do desempenho e o alcance social da instituição universitária brasileira se não se começar a mudança pelas estruturas arcaicas, carregadas de órgãos burocráticos que ampliam e consagram poderes na atividade meio, em detrimento da expansão, da qualidade e da funcionalidade interdisciplinar nas atividades fins.

As universidades federais de todos os portes, em diferentes escalas, tornaram-se instituições altamente complexas, de ampla multiplicidade orgânica e de poderes segmentados. A complexidade da estrutura organizacional dificulta a eficiência da gestão e a eficácia dos procedimentos; a multiplicidade orgânica, desdobramento da complexidade estrutural, burocratiza o sistema funcional que é regulado por alentado corpo de normas. Uma conseqüência imediata da multiplicidade orgânica é a diversidade de nichos de poder, muitas vezes conflitantes e personalizados.

Outra dificuldade que repercute no complexo organismo das universidades federais, pelo grande número de atores envolvidos, é a da grande disparidade de qualificação de desempenho dos recursos humanos. O sistema passa a gerar energias diferenciadas dentro de um contexto do qual a sociedade, mantenedora do caráter público e gratuito, exige qualidade de desempenho. Dependendo da maior ou menor participação qualitativa dos atores nos diversos setores de ação, o resultado final do desempenho poderá apresentar grandes variações entre as instituições federais de ensino superior. A ausência de uma política bem estabelecida e rigorosamente observada de avaliação de desempenho pessoal na área de apoio e, igualmente, na área fim, essa, particularmente, responsável pela gestão do conhecimento que está sendo agregado aos formandos, é um fator determinante de qualidade. A perda de impulso da instituição leva não só à caracterização do enfraquecimento da universidade federal pública e gratuita como, conseqüentemente, a danos no processo formativo de seu produto mais eloqüente, o profissional formado e colocado à disposição da sociedade. O exame nacional de cursos atesta essa realidade. A perda de impulso institucional enfraquece também as áreas de extensão e pesquisa; a extensão de relevante ação social e a pesquisa do mais alto interesse ao desenvolvimento nacional.

As análises do ambiente burocrático das universidades federais, das disfunções de poder na estrutura do sistema e da multiplicidade dos meios de apoio à atividade fim colocam questões de grande atualidade, sem às quais não será possível formular a visão de mudança a ser equacionada no tempo-espaço da pós-modernidade. A atividade de apoio é indispensável ao melhor desempenho da atividade fim, mas essa também precisa de reestruturações e atualizações.Vieira e Vieira (2003) apresentam uma ampla análise e sugestões sobre este assunto. Uma atividade de apoio pós-burocrática, certamente contribuirá qualitativamente ao desempenho da atividade fim, reestruturada e renovada em seus princípios básicos.

AMBIENTE BUROCRÁTICO

A burocracia como forma de estruturação e funcionamento das organizações privadas aperfeiçoou-se, expandiu-se e ganhou nova dimensão de poder durante a era industrial, particularmente, com a evolução dos grandes organismos industriais a partir da segunda metade do século XIX. A ampliação das fronteiras do consumo, não só para atender às necessidades básicas de populações em rápido crescimento, como para dimensionar a escala do processo de desenvolvimento das nações industrializadas, impulsionou a massificação da produção, introduziu e aperfeiçoou a ideologia consumista; essa, que, afinal, se tornaria o fator determinante à expansão do capitalismo industrial. Rapidamente se desenvolveriam grandes corporações e complexos industriais à fabricação dos bens objetos da atividade fim e também de variada rede de componentes e técnicas de apoio.As superestruturas então montadas dariam, igualmente, força de expansão e multiplicação ao campo organizacional dos serviços burocráticos.

Os ambientes burocráticos estabelecidos à qualificação do desempenho produtivo, à execução dos serviços internos e às relações externas dos grandes complexos industriais do século passado baseavam-se numa racionalidade própria à época. Max Weber pontificou a racionalidade como formal no sentido de garantir, por normas e métodos, o grau de eficiência das organizações. Contudo, a disseminação do aparelho burocrático seguiu o que Hall (1984) diferenciou em horizontalidade, verticalidade/hierarquia e dispersão espacial. A horizontalidade na abordagem de Hall (1984) é, na verdade, uma horizontalidade de multiplicação de meios, aumentando a densidade burocrática das organizações; o atual sentido horizontal é referenciado à movimentação cibernética dos fluxos de demandas e decisões, em teia hierárquica enxuta. O formato de horizontalidade divisionária está fortemente presente nas organizações públicas brasileiras, muito particularmente, nas universidades federais. A verticalidade/hierarquia é conseqüência natural da complexidade horizontal - multiplicação de órgãos - ampliando as subordinações decisórias e, portanto, estabelecendo uma rede de nichos de poder. A complexidade sistêmica que se estabelece torna lento e pouco eficiente o desempenho organizacional. O terceiro nível pontuado por Hall (1984), a dispersão espacial, refere-se aos arranjos hierárquicos espacialmente desconcentrados, também uma característica marcante nas universidades federais.

Esse cenário, dominante nas grandes e complexas organizações industriais começou a ser desfeito a partir dos anos 90, no final do século XX. As tecnologias da informação com suporte nos avanços da microeletrônica conduziram a mudanças estruturais, organizacionais e de gestão no campo empresarial. Rapidamente as grandes empresas, multinacionais em primeiro plano, adotariam programas de reestruturação organizacional que iriam culminar, no decênio, em duas realidades bem explícitas: as organizações dariam ênfase às atividades centradas no objeto fim, abrindo caminho à terceirização de componentes e apoio técnico; e iniciar-se-ia o desmonte das complexas estruturas burocráticas e piramidais de serviço. Começa, então, o tempo da pós-modernidade, com destaque à flexibilidade organizacional, à racionalidade formal pós-burocrática, às novas relações entre estratégia e estrutura, ao tempo-espaço cibernético e aos novos conceitos de gestão, poder, horizontalidade, eficácia e desempenho de qualidade.

Se o ambiente organizacional mudou radicalmente no âmbito das empresas privadas, o mesmo não ocorreu no campo organizacional público. Particularizando, nas universidades federais o que se vê é um cenário do passado, uma impermeabilidade à mudança, à perda de impulso e o irracionalismo funcional. A capacidade de renovar-se, de inovar suas estruturas e se auto-avaliar se tornariam impossibilidades lógicas a partir do pressuposto conservador, da "perenidade" e da "aversão à mudança", como bem acentuou Santos (2001a, p.187).A funcionalidade burocrática das universidades federais é recorrente a duas concepções contrapostas às organizações privadas. A primeira é a concepção institucionalista de órgão público, dominada pela multiplicidade orgânica e a unifuncionalidade de agentes executores sob a observância de uma racionalidade formal expansiva em regras, ordenamentos, normas e leis que modelam os aparelhos burocráticos do serviço público. A segunda é a relação meio-fim. Nas empresas, a forma de organização do trabalho na atividade meio - burocracia - procura alcançar o máximo de eficiência em todas as relações que sublimem o objeto fim. Isso significa que há uma indissociabilidade meio-fim, uma cumplicidade inseparável das várias ações em torno da gestão de resultados. O objeto final da atividade não pode ser comprometido pela ineficiência, complexidade, lentidão e irracionalismo de métodos na movimentação dos fluxos de demandas na área de apoio e na de eficácia decisória. Enfim, há um padrão de produtividade - variável de acordo com os níveis tecnológicos adotados - que dimensiona a funcionalidade produtiva das empresas. No serviço público, no entanto, essa cumplicidade fica comprometida por corporativismos que oferecem grande resistência a formatos estruturais que assegurem uma relação adequada entre estrutura e estratégia, bem como à introdução de novos métodos de gestão e de aplicação sistêmica da variável tecnológica; essas são, afinal, variáveis indispensáveis à mudança e à inovação, instrumentos de atualização e dinamização do funcionamento das organizações. Dellagnelo e Machado-da-Silva (2000, p.25) destacam que tecnologia, estrutura e cultura são categorias analíticas básicas no estudo de formas organizacionais.

Nos órgãos públicos o padrão de funcionalidade burocrática tem identidade própria. O sujeito da ação funcional, individual ou coletivamente, é um agente do poder público, tanto na atividade meio como na atividade fim. O poder público é uma instituição representativa da sociedade, em nome da qual exerce uma administração regida por leis, normas, regulamentos e códigos de conduta. Não raras vezes, no âmbito comportamental, a noção de poder público assume uma certa indefinição conceitual, carregada de subjetividades à medida de atribuições e responsabilidades. O poder público se exerce a partir de um aparelhamento burocrático e, nele, de servidores com prerrogativas funcionais públicas. O comportamento individual ou coletivo no âmbito das organizações públicas é regido por um princípio geral weberiano "das competências oficiais fixas, ordenadas, de forma geral, mediante regras, leis ou regulamentos administrativos" (Weber, 1999, p.198, v.2). A forma de comportamento dos atores envolvidos na dinâmica burocrática, administrativa e acadêmica, das universidades federais se reporta, em grande parte, às competências distribuídas e amparadas no sistema normativo instituído. O poder público que se desdobra numa seqüência de poderes delegados, nas múltiplas instâncias hierárquicas gera, conseqüentemente, autoridades meramente burocráticas. Os conflitos de competência e desempenho resultam muitas vezes do confronto da autoridade burocrática com uma forma de comportamento não desejada, porém amparada em normas, regras e leis.

É reconhecível a tendência à burocratização no serviço público. Nem sempre, porém, ela está associada a necessidades específicas de ampliação dos serviços de apoio. Em muitos casos, trata-se de nítido desdobramento de tarefas, principalmente, quando em determinadas áreas de serviço se pratica a funcionalidade personalizada de cargos e obrigações estabelecidas por normas. O caráter restrito da atividade funcional, especificada e definida nos próprios processos seletivos, contribui para dimensionar quantitativamente a ação burocrática. Nas universidades federais o problema se agrava com a dispersão espacial, configurando, claramente, um modelo de divisão horizontal dos órgãos de apoio à atividade acadêmica, ela própria estruturada em complexo formato organizacional. Universidades estruturadas em faculdades, centros, institutos, decanatos, departamentos, escolas, colégios, comissões, coordenações, núcleos e outras formas funcionais tendem naturalmente a se constituir em organismos burocráticos de grande densidade e dispersão de poder. Qualquer tentativa de mudança no sentido de simplificar, agilizar, desburocratizar e racionalizar tais complexos organizacionais enfrenta forte resistência interna.

A reestruturação das universidades federais em modelos organizacionais mais simples, flexíveis e de ampla interatividade sistêmica na área de apoio, por meio de redes cibernéticas, é um imperativo da pós-modernidade. A esse imperativo as universidades federais não poderão fugir ou protelar por muito mais tempo, sob pena de danos irreparáveis à condição de instituições públicas, gratuitas, de qualidade e de legitimidade no desempenho das funções de ensino, pesquisa e extensão. A definição de áreas de especialização, a distribuição espacial estratégica e a escala de grandeza às universidades federais são outras medidas fundamentais à modernização do sistema organizacional, do aparelho burocrático e à eficácia no desempenho das atividades acadêmicas.

PODER E DISFUNÇÃO DO PODER

Poder público é uma instituição jurídica, estatal, representativa da sociedade organizada e uma forma de expressar a autoridade de comando que dela emerge em seus três grandes níveis: federal, estadual e municipal. Os poderes públicos são as formas de comandar os diversos aspectos da ordem social em escalas de independência ou interdependência, mas sempre articulados entre si no respeito às leis, normas e regulamentos estabelecidos. O poder público, no sentido mais amplo de comando e dependência, é um poder burocrático, normativo, instalado e executado de acordo a preceitos estabelecidos em leis e regulamentos. A autoridade no poder burocrático público tem, contudo, uma razão de periodicidade, em função de mandatos eletivos ou de provimento de cargos nas hierarquias internas das instituições públicas. Em todas as instâncias do poder público a autoridade se reveste sempre do caráter burocrático da ação e é exercida com suporte nas prerrogativas que a legislação define.

Nos grandes e complexos organismos públicos, entre eles, particularmente, as universidades federais, o poder se distribui pela multiplicidade orgânica da estrutura organizacional, em hierarquias verticais de comando, e nas quais se exerce a autoridade burocrática pública. Em diferentes escalas de grandeza, a maior ou menor complexidade estrutural da instituição universitária define o poder, a autoridade e as disfunções lógicas do poder. A distribuição do poder é orgânica e hierarquizada de acordo com a estrutura organizacional adotada. A autoridade emana do exercício do poder, caracterizando um comando instituído responsável pela aplicação normativa nas ações desencadeadas. A disfunção do poder é conseqüência do excesso divisional da estrutura, da multiunivocidade e de poderes paralelos que emergem no interior da organização. Colocando-se o poder como categoria analítica no complexo estrutural das universidades federais, claramente visíveis se tornam questões relativas à sua distribuição, ao exercício da autoridade emanada e às disfunções lógicas imanentes.

A distribuição do poder em estruturas complexas segue uma rede densamente ramificada, na qual se destacam pontos de maior ou menor concentração de força decisória. A escala divisional na organização das atividades administrativas e acadêmicas determina a dispersão do poder na coluna decisória principal e na lateralidade da teia de nichos formada. Conquanto o sistema de poder como todo seja altamente concentrado e centralizado em poucos núcleos, há subjetivações de poder na extensão burocrática da estrutura. São poderes representativos, vinculados em fluxos que se movimentam verticalmente, nos dois sentidos, às instâncias decisórias de percurso. Desses núcleos de poder emana o princípio da autoridade burocrática, de comando segundo dispositivos normativos estabelecidos. Os baixos limites decisórios da autoridade burocrática faz com que as demandas e decisões se movimentem muito além do necessário. Quase sempre o poder de decisão, seja individualizado ou colegiado, está muito distante do ambiente que gerou a demanda, quer conflituosa ou não. O percurso, longo e demorado, na cadeia burocrática das universidades federais enfrenta, ainda, o problema da desconcentração espacial, tão típica dos campi universitários. Os déficits operacionais se fazem sentir, naturalmente, no grau de eficiência do sistema e na eficácia dos procedimentos, além de alimentar disfunções de poder sempre que se superpõem atribuições e mesmo pela grande carga de subjetividades provocadas pela razão multívoca dos interesses em jogo.

O exercício da autoridade emanada do sistema de poder nos complexos organismos das universidades federais tem um caráter eminentemente burocrático. As decisões que se impõem pela natureza das atividades acadêmicas se transformam, quase sempre, em processos vinculados à teia estrutural por onde se movimentam as demandas. Há uma dependência seqüenciada na hierarquização vertical que empurra o processo à frente, distanciando-o do ponto de origem e alongando o tempo da decisão. Há que se distinguir dois tipos de manifestação de autoridade nas universidades federais: a individual e a coletiva, ambas de caráter formal. A individual é representada por ato com suporte à luz do entendimento gerado pela própria natureza do cargo ou função, pela observância e/ou interpretação da base de normas. A autoridade coletiva é emanada dos órgãos colegiados que decidem sobre pendências, conflitos ou consultas e, também, pela criação de novas normas a serem observadas. As chefias e a docência exercitam os dois tipos de autoridade sempre que são induzidas a se manifestar sobre os ritos e as demandas naturais do sistema acadêmico. A força da manifestação de autoridade individual está muito condicionada aos níveis de personalidade, de conhecimento, de conduta e de admiração infundida. Podem gerar concordância imediata ou discordância tácita ou conflituosa. As decisões colegiadas são repassadas aos órgãos executivos responsáveis por suas observâncias na forma de autoridade burocrática, formal, investida.

Dependendo da estrutura organizacional da instituição, maior ou menor grau de complexidade, a autoridade burocrática pode transparecer uma força de decisão mais incisiva ou mais dispersiva. Em estruturas simplificadas onde o poder de decisão é mais direto - descentralização dos comandos - os princípios de autoridade nos processos decisórios passam a ser exercidos com menor escala burocrática e, conseqüentemente, com mais agilidade e eficácia. Na contraposição - estruturas complexas - tem-se a situação inversa, de perda de eficiência e eficácia, pois as decisões pessoais ou colegiadas se movimentamdemasiadamente pelas teias da hierarquização burocrática. É fácil concluir que nesse último caso, situação dominante nas universidades federais, a funcionalidade burocrática produz uma baixa energia sistêmica, comprometendo a qualidade dos procedimentos e a possibilidade de introdução de uma racionalidade pós-burocrática.

As disfunções do poder têm uma natureza lógica sempre que se perde a coesão do poder, a densidade do comando e se erguem razões contestatórias baseadas na subjetividade das interpretações normativas e na presunção de direitos. A disfunção de poder ocorre predominantemente nas complexas estruturas organizacionais onde o controle de qualidade nas atividades dos diversos níveis de organização enfraquece e, conseqüentemente, a personalização individual ou grupal se faz sentir na cadeia de comando. São rupturas, clivagens e distanciamento que produzem elementos da cultura burocrática expansiva e ao mesmo tempo recalcitrante à mudança. A hierarquização do poder tomada no sentido de cima para baixo reduz o exercício de autoridade formal nos diferentes segmentos da estrutura burocrática. Com esse viés o sistema é sobrecarregado com fluxos de demandas em sentido contrário, passando por várias estações burocráticas. Nas estruturas muito segmentadas a autoridade formal decisória fica extremamente limitada, na verdade, ela se torna parcial em diversos momentos, se encaminhando quase sempre ao topo da pirâmide do poder. Daft (2002, p.415) identificou o mesmo problema nas estruturas mais complexas de empresas ao afirmar que "o conceito de autoridade formal está relacionado com o poder, porém seu alcance é mais restrito (...) a autoridade existe ao longo da cadeia formal de comando e as posições no topo da hierarquia são investidas de mais autoridade formal do que as posições na base da hierarquia". Essa condição é própria, e ocorre, dominantemente, na multiplicidade orgânica das estruturas administrativas e acadêmicas das universidades federais. Mesmo as decisões de demandas pela autoridade formal colegiada ou individualizada, ainda que com suporte normativo, são repassadas, burocraticamente, às instâncias superiores de poder. Portanto, não basta distribuir o poder na cadeia hierárquica de comando; é preciso, também, legitimar a autoridade que dele emana na composição hierárquica da estrutura. Se a estrutura organizacional for de modelo simplificado, a distribuição do poder o será igualmente; e se o poder for descentralizado maior será o grau de autoridade formal na instância decisória próxima da origem das demandas. As possibilidades de disfunções do poder, portanto, se reduzem à medida que a autoridade formal e próxima incorpora a responsabilidade da decisão e por ela responderá diante do corpo de leis e normas, e mesmo perante instâncias superiores; essas, em estruturas simplificadas e conectadas, interagem rapidamente na nova dimensão de tempo-espaço informatizada. Outra característica das disfunções do poder está na intermediação assumida, e de legitimidade presumida, dos representantes das categorias funcionais e dos grupos corporativos. Nesses casos, as demandas envolvem apenas interesses pontuados dos servidores, docentes ou não, embora, não seja incomum o envolvimento dos alunos, mesmo que o processo de demanda não venha, concretamente, agregar qualidade ao ensino, à pesquisa e à extensão. A forma mais aguda de disfunção do poder é o corporativismo, modo de ação grupal na defesa de interesses pessoais restritos. O corporativismo pode ser considerado uma disfunção de poder à medida que impõe posições, estabelece enfrentamentos e cria um corpo de resistência dentro do sistema burocrático. O corporativismo se manifesta mais intensamente nas estruturas estanques, do tipo departamental, onde interesses pessoais e grupais se sobrepõem aos institucionais. Não se deve confundir, contudo, corporativismo com o associativismo representativo de categorias funcionais, quando legitimado, em defesa de direitos amparados em leis, normas e regulamentos.

MULTIPLICIDADE DOS MEIOS

As universidades federais, públicas e gratuitas, têm suas estratégias e metas como todas as demais organizações. As organizações empresariais trabalham com a meta de alta produtividade para alcançar o mote principal que é a lucratividade; as organizações sociais buscam alcançar a meta de bem-estar às camadas mais inferiorizadas da sociedade; a organização jurídica se estrutura e tem como meta fundamental distribuir justiça segundo os códigos e normas de conduta estabelecidas; a organização política estabelece os princípios de funcionamento dos poderes públicos, com a meta primordial de representatividade democrática, consagrando os princípios da liberdade, da segurança social, econômica e da justa distribuição da riqueza nacional. As universidades federais são instituídas, no âmbito do poder público, para, por meio de estratégias de ação, atingir as metas de realizar o ensino superior, desenvolver a pesquisa científica e tecnológica e atuar diretamente na sociedade com os programas de extensão. As estratégias de ação e as metas estabelecidas para implementá-las atendem à objetivação do fim ao qual se destina a organização universitária.

As metas definem uma missão a ser atendida, legitimando a instituição universitária perante a sociedade que a mantém. As organizações universitárias federais já foram praticamente detentoras da hegemonia do ensino superior e da pesquisa. Hoje, o ensino superior está privatizado na sua quase totalidade, pois as instituições federais de ensino superior representam menos de 5% da capacidade acadêmica instalada e também apenas cerca de 15% das matrículas na graduação. Na geração de tecnologia as universidades federais tiveram perdas maiores, cedendo espaço aos centros de pesquisa tecnológica das empresas, universidades privadas e de outros órgãos públicos que promovem parcerias com empresas, como é o caso do Centro de Excelência em Tecnologia Eletrônica Avançada - Ceitec/RS e o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Física que integra o Parque Tecnológico da PUC/RS (Tecnopuc), para citar apenas dois exemplos recentes. Dimensionando os parâmetros têm-se que as IFES representam apenas 5% do universo acadêmico nacional e produzem 60% do conhecimento científico do país. Essa realidade induz à avaliação de que a geração de conhecimento científico nas universidades federais é significativa e insignificante ao mesmo tempo. Mas o mais importante nessa análise é que também na pesquisa científica as universidades federais vêm perdendo espaço a outras instituições públicas, universidades privadas e laboratórios de empresas privadas. Por outro lado é preciso avaliar a efetiva contribuição da pesquisa universitária federal ao campo da ciência, à aplicação do conhecimento científico em tecnologia e à geração do grande produto de mercado atual que é o conhecimento e a tecnologia em suas formas mais avançadas. Não há dúvida, diante de uma realidade alarmante, incluindo outras variáveis não analisadas neste trabalho, que as universidades federais acumulam grandes perdas de hegemonia na trilogia do ensino superior, o que permite a contestação crescente em setores da sociedade sobre a legitimidadeuniversitária federal pública e gratuita. É verdade que hegemonia na presente atualidade não é mais uma exclusividade diante das diversas fontes de geração do conhecimento científico e tecnológico; o sentido aqui considerado é o da predominância do mérito e da excelência na ação acadêmica. Porém, a perda de legitimidade pode significar desconfiança da sociedade, a grande mantenedora das universidades federais; esse valor não pode ser perdido, ao contrário, tem de se firmar em escala crescente por meio do desempenho de qualidade.

A estrutura e a organização condicionam o desempenho das universidades federais. Estratégias e metas por outro ângulo analítico condicionam a estrutura organizacional, produzindo uma dinâmica de ações mais ou menos burocrática, dependendo da variável tamanho. O paradigma da mudança transporta a idéia de desempenho de qualidade e, nela, as premissas de inovação, eficiência, eficácia, fluidez e racionalidade. A idéia de desempenho de qualidade está intimamente associada aos dois pressupostos mais elevados da atividade universitária: o mérito e a excelência acadêmica.

A multiplicidade dos meios para que a instituição universitária federal cumpra a objetivação de seus fins - ensino, pesquisa, extensão - cresceu por desdobramentosda cultura burocrática dominante. À medida da expansão acadêmica, o organismo funcional-burocrático cresceu, multiplicou-se, criou teias e vinculações que, progressivamente, foram assumindo uma faixa cada vez mais larga nas atividades institucionais. Se a estrutura adota o sistema departamental, as possibilidades de ampliação do sistema ou agregação a ele de outras formas orgânicas, como colégios, escolas, núcleos, são maiores. Em alguns casos, no interesse desta análise, verificou-se em instituições federais de ensino superior o dobro de departamentos em relação aos cursos ministrados. Na verdade, a estrutura departamental foi se desviando de sua conceituação original em direção a interesses individuais ou corporativos. Os desdobramentos burocráticos ocorrem na organização dos serviços administrativos em diversos segmentos da instituição. Nas pró-reitorias, nas superintendências, nas faculdades, nos centros, nos institutos, nos departamentos, enfim, em todos os formatos estruturais e organizacionais das atividades se agrega, se vincula, se desdobra, sempre no sentido da expansão, o que conduz à multiplicação dos meios. Mesmo considerando a inadequada organização espacial na maioria dos campi universitários, ainda assim a multiplicidade de meios pode ser simplificada a partir de uma reestruturação dimensional/espacial e um projeto organizacional que atenda a vanguarda das inovações tecnológicas e de gestão.

O TEMPO DA MUDANÇA

Toda mudança pode gerar conflito nas diferentes dimensões das relações humanas. Nas organizações, onde coexistem interesses, opiniões, metas e valores interagindo, tanto mais intenso se torna o conflito, quanto maior for a complexidade da estrutura, o tamanho e o tempo da perenidade. A presente atualidade é um tempo de mudança, de passagem de uma modernidade à outra, de novos valores expressos em símbolos e significados, de novas formas comportamentais, enfim, de novos paradigmas a conduzirem a sociedade pelo caminho da inovação científica e da geração de tecnologias avançadas. Produz-se, com a mudança, a necessidade de renovação dos códigos de conduta no amplo espectro dos ordenamentos sociais. A mudança estrutural produz novos enlaces organizacionais, afetando as relações e as interações de atores atuantes em ambientes de longa perenidade e, portanto, de natureza conservadora. O conflito não deve ser tomado necessariamente como fator negativo, à medida que ele possa, por meio da discussão e do debate, construir novas realidades ou aperfeiçoar o contexto da mudança. O conflito negativo está na resistência à mudança, seja por receio à inovação, seja por interesses corporativos. No mundo dos novos símbolos, "o poder simbólico é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica" (Bourdieu, 2001, p.9).É precisamente isso, pois os novos signos, símbolos e valores da pós-modernidade estão estabelecendo uma nova ordem baseada no conhecimento e na informação. É bom lembrar que conhecimento e informação sempre balizaram modernidades anteriores. O que se constrói em uma modernidade tem sempre um caráter de inovação e de suporte a novos avanços. Quando tais avanços configuram uma nova ordem paradigmática pode-se, como na presente atualidade, considerá-la uma época de pós-modernidade. A época é uma temporalidade referenciada a eventos de mudança, tendo, portanto, um caráter transitório. Como afirma Santos (2001b, p.74) "só a partir da modernidade é possível transcender a modernidade", ou seja, a base é sempre um conhecimento já adquirido e susceptível de gerar outro conhecimento.

Tempo de mudança é tempo de nova realidade. É tempo também de conflito.O conflito que se gera no processo de mudança confronta uma realidade que já se esgotou com outra que introduz novos paradigmas. De certo modo, o conflito estabelece a fronteira entre estruturas, idéias e comportamentos evanescentes de um lado e, de outro, o novo ideário que se ergue pelo avanço do conhecimento. Nada, pois, em termos de organização pode ser considerado imarcescível, imutável e despojado de caráter inovador. Porém, é realista admitir as grandes dificuldades em se desencadear um processo de mudança em estruturas complexas e burocráticas de grande poder normativo. No caso das universidades federais se acresce a variável analítica quantitativa, cuja significação não pode ser desconsiderada. O número de atores envolvidos diretamente - professores, técnicos, agentes administrativos, alunos - mais a diversidade de funções a elas atribuídas, a dispersão espacial, a necessidade sempre presente de expansão física e formativa e todo um universo de relações externas com segmentos na sociedade as tornam formas organizacionais muito particularizadas. Estruturas universitárias que abrigam interesses internos numa escala de 5.000 a 30.000 atores, envolvidos em múltiplas funções, são verdadeiramente mundos de singularidade muito própria. Contudo, nada justifica a perenidade estrutural e organizativa exatamente no lócus do saber, da criação científica e tecnológica. A mudança na estrutura e na funcionalidade burocrática das universidades federais deveria ser o ponto central do conflito, a partir da idéia permanente de modernização e não a ação de resistência em favor do conservadorismo já sob forte exclusão temporal.

Nas universidades federais a questão estrutural se configura em torno do ambiente acadêmico; mas há, inegavelmente, um segmento administrativo de apoio à objetivação institucional de viés expansivo, burocrático e normativo ao qual são conferidas prerrogativas de poder. Estruturas acadêmicas e estruturas administrativas são partes de uma mesma ação institucional de natureza formativa e investigadora, porém, muitas vezes é difícil a interação sistêmica pela própria complexidade organizacional. Forma-se, ao natural, uma dualidade conceitual onde deveria reinar a unicidade. O caráter dual, a hierarquização excessiva e as inadequações nas grades curriculares acabam por comprometer alguns parâmetros da excelência acadêmica, como as relações professor/funcionário, aluno/professor, funcionário/aluno. A conseqüência imediata das distorções funcionais reveladas nos parâmetros indicados é o elevado custo aluno nas universidades federais. A organização acadêmica racional dentro de estruturas simplificadas, incluindo o planejamento curricular em formato aberto contribuirá decisivamente ao tempo da mudança. Vê-se, pois, que não basta mudar a estrutura se a organização interna a ela não se adequar. Daí decorre a necessidade de serem desenvolvidos modelos que contemplem a visão acadêmica estratégica, nos quais os segmentos organizacionais de apoio e de foco institucional, a interação sistêmica entre eles, a coordenação horizontal e o nível de abertura à movimentação dos fluxos de demandas representem uma mudança efetiva e de resultados.

A interação aberta se processa entre os ambientes externo e interno, convergindo para o foco institucional, representado pelas estratégias e metas desenvolvidas para o ensino, a pesquisa e a extensão. Na Figura 1 mostram-se os três níveis de interação e, claramente, evidencia-se a necessidade de se legitimar junto à sociedade o desempenho acadêmico de qualidade na formação profissional, na geração de conhecimento e nas práticas de extensão. O ambiente externo colocado como parte da interconectividade do sistema aberto é o reconhecimento pleno de que a universidade federal, pública e gratuita, é uma ordenação social, portanto, parte indissolúvel da sociedade e seus interesses coletivos.


Todo tempo é tempo de mudança. Para que ela se efetive continuamente como processo instalado algumas definições são fundamentais: mudança de comportamento dos atores em relação às estratégias e metas da instituição; projeto organizacional identificado com a simplicidade estrutural; utilização de tecnologias eletrônicas de ponta; cenário pós-burocrático às ações de apoio; sistema de avaliação para o controle do desempenho de qualidade, gestão voltada a novos valores. Fica claro que se está trabalhando com um campo intelectual produtor de relações autônomas e imediatamente visíveis (Bourdieu, 2001), sem, contudo, seguir o caminho de um reducionismo condicionante. O sentido da mudança é, na verdade, um tempus fugit do pensamento referenciado ao conservadorismo instalado nas organizações. A fronteira do tempo entre duas concepções de gestão e estruturação organizacional pode representar a ruptura conceitual da funcionalidade das organizações e assim entrar na nova modernidade ou, então, ao contrário, o campo acadêmico se pereniza na burocracia, na normalização e no corporativismo.

Só a mudança pode recuperar o que já foi perdido em termos de hegemonia e legitimidade das instituições federais de ensino superior. No universo do ensino superior brasileiro, amplamente dominado por instituições particulares, algumas delas, ainda poucas, é verdade, com estratégias e metas bem definidas, voltadas à pesquisa, as perdas no espaço acadêmico por parte das universidades federais podem se tornar concretamente um dilema existencial. Há atrasos e perdas. Os atrasos são estruturais e organizacionais e as perdas estão na dimensão do desempenho de qualidade. No lado dos atrasos, estão as estruturas altamente complexas, lerdas, pouco eficientes e de baixa produtividade operacional; no outro, as perdas, se materializam nos comportamentos recalcitrantes, na evasão da qualidade docente, na desatualização dos planos curriculares e na fragilidade do sistema de avaliação. O lado da fronteira representativa da perenidade se identifica com a afirmativa de Durkheim, a do conformismo lógico, "uma concepção homogênea do tempo, do espaço, do número, da causa, que torna possível a concordância entre as inteligências" (Durkheim apud Bourdieu, 2001, p.9). No cenário conformista do tempo e das idéias a mudança chega como agente de conflito, de ruptura com o existente, criando reações repulsivas e cumplicidades inovadoras. As reações repulsivas partem da rotinização (Giddens, 1989, p.48), pela qual "a rotina faz parte da continuidade da personalidade dos agentes, à medida em que percorre os caminhos das atividades cotidianas, e das instituições da sociedade, às quais só o são mediante sua contínua reprodução". As cumplicidades inovadoras se formam por vínculos entre os agentes da ação acadêmica identificados com o tempo da mudança, a flexibilidade das estruturas organizacionais, a capacidade criativa do conhecimento pela transcendência entre ciência normal e a ciência revolucionária (Kuhn, 1970).

O espaço de conflito entre conservadores e inovadores é mais um mundo de silêncio acadêmico do que de argumentação, o que retarda as possibilidades concretas de mudanças institucionais. Os enfrentamentos à mudança se deparam não só com o eloqüente silêncio da maioria muitas vezes apenas presumida, com a falta de vontade do poder dominante e das barreiras impostas pela legislação. A grande dificuldade à instalação de um tempo de mudança está precisamente na quebra da inércia funcional diante das variáveis já apontadas, mas, principalmente, pela ausência de mobilização da comunidade acadêmica a ser superada por um comando de visão estratégica. Considerando que o planejamento estratégico é um plano de ação para os ambientes internos e externos, capaz de posicionar a universidade federal no cenário de alta qualidade acadêmica, pode-se avaliar a premência de se construir a nova realidade universitária pública e gratuita.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O mundo acadêmico brasileiro, como já foi dito, é dominado pelas instituições particulares de ensino superior, entre elas algumas já atingindo níveis elevados de qualidade no ensino e na produção científica. Em outras instituições públicas não universitárias e laboratórios de empresas privadas os avanços nas práticas de pesquisa científica e tecnológica vem ganhando novos espaços e consolidando um reconhecimento meritório. O cenário institucional superior brasileiro tende a rápido crescimento na ordem administrativa privada em vista dos baixos investimentos do setor público, principalmente, o federal. Nas poucas universidades federais há alguns paradoxos bem explícitos. O primeiro é o elevado custo operacional em face das arcaicas e complexas estruturas organizacionais; o segundo é a perda de espaço na atualização curricular; o terceiro o superdimensionamento de algumas universidades; o quarto a proximidade espacial; o quinto a incompreensível repetição de cursos entre universidade locais ou regionais próximas. Acrescente-se, ainda, problemas relacionados à dependência administrativa pública, submetida à copiosa legislação, a ausência de gestão autônoma, a rotatividade docente e a isonomia salarial.

Inegavelmente, as universidades federais, mesmo com tantos problemas acumulados, ainda ostentam um status acadêmico privilegiado pela gratuidade e pelo padrão formativo, bem como nos programas de pós-graduação e pesquisa. Contudo, é inegável, positivamente, o avanço de universidades particulares na qualificação de suas atividades. Muitas estão se tornando centros de pesquisa e selecionando pessoal docente preferentemente pós-graduado. Avanços significativos no ensino, na pesquisa e na extensão tem marcado o caminho de universidades de várias dependências jurídicas, contrastando com o passado nitidamente comercial, ainda que se possa atribuir a um grande número de instituições particulares desempenhos menos meritórios. A pós-modernidade é o tempo da diversidade e, assim, acolhe com salutar esperança o avanço positivo das instituições de ensino e pesquisa privadas. Entretanto, não se pode aceitar que, por sua natureza pública, as universidades federais fiquem condenadas ao atraso administrativo e gerencial que, seguramente, acabará por afetar seu desempenho acadêmico.

O que ressalta no foco analítico deste trabalho é a necessidade urgente de tomada de decisão por parte das universidades federais em conjunto com o Ministério da Educação, no sentido de admitir a chegada do tempo da mudança. Protelar a mudança e a inovação nas universidades federais é empurrá-las no sentido contrário ao tempo futuro, perenizando-as num passado cada vez mais distante dos padrões de funcionalidade que lhes garantam parcelas significativas de hegemonia e de legitimidade, únicas identificações capazes de justificá-las como instituições públicas, gratuitas e de qualidade, perante a sociedade que, afinal, as mantém.

A mobilização das comunidades universitárias às mudanças estruturais, organizacionais, acadêmicas e, principalmente, de comportamento - passando de uma cultura burocrática à outra pós-burocrática - é o grande passo no caminho da reestruturação. A mudança partirá de uma premissa básica: simplificar, e a partir dela estabelecer nova ordem funcional, menos burocrática, mais flexível, mais ágil, mais eficiente, mais racional e, no conjunto, com melhor desempenho de qualidade. Embora cada universidade federal deva iniciar seu próprio processo de reestruturação, grupos de trabalho interinstitucionais e interministeriais constituiriam a dimensão nacional à necessidade de mudança e de inovação. Em 20 de outubro de 2003 foi instituído, por Decreto presidencial, o Grupo de Trabalho Interministerial, sob a coordenação do Ministério da Educação, encarregado de apresentar um plano de ação visando a reestruturação das Instituições Federais de Ensino Superior.

A distribuição das universidades federais a serem criadas no futuro, a distribuição dos cursos entre elas e as atuais, resguardados os interesses regionais, as áreas de excelência, a personalização da pesquisa científica e tecnológica, os critérios a não vulgarização dos cursos de pós-graduação e os incentivos à qualidade docente são prioridades consideradas imediatas. Estruturas, estratégias e metas formam o conjunto do que é preciso mudar em conformidade com a presente atualidade. A partir desses três pressupostos se desencadeiam as demais ações de objetivação e subjetivação das atividades universitárias. Cultura, princípios éticos e valores morais que se desenvolveram ao longo da história da universidade pública brasileira são de difícil abordagem, pois o serviço público ainda contempla formas de comportamento retardatárias ao tempo da mudança e da inovação. Delas derivam quase sempre concepções subjetivas inadequadas de entendimento do que é público, e do que deve, objetivamente, atender aos mais elevados interesses coletivos e nacionais. Esse é irrefutavelmente um grande impasse ao se iniciar o processo de mudança!

Euripedes Falcão Vieira, é Doutor em Geografia pela Universidad Del Salvador, Buenos Aires e Bacharel em Ciências Políticas e Econômicas. Foi Reitor da Fundação Universidade Federal do Rio Grande. Educador Emérito do Rio Grande do Sul; Mérito Educacional da FURG; Mérito Comunitário; Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Suas áreas de interesse em pesquisa são geoestratégia dos espaços econômicos, poder e gestão do território, estrutura e gestão de instituições de ensino superior.

Endereço: Rua General Portinho, 35/903, Rio Grande, RS, Brasil, CEP 96200-210. E-mail: falcaovieira@vetorial.net

Marcelo Milano Falcão Vieira, é Ph.D. em Administração pela University of Edinburgh, Escócia. Professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (EBAPE/FGV). Pesquisador do CNPq e coordenador do grupo de pesquisa Observatório da Realidade Organizacional. Suas áreas de interesse em pesquisa são influência do poder e do ambiente institucional na estruturação das organizações, formação e estruturação de campos organizacionais e dinâmica de setores organizacionais.

Endereço: Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas/FGV-EBAPE, Praia de Botafogo, 190, 5º Andar, Sala 530, Botafogo, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, CEP 22250-900. E-mail: mmfv@fgv.br

  • BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Russel, 2001.
  • DELLAGNELO, E. L.; MACHADO-DA-SILVA, C. L. Novas formas organizacionais: onde se encontram as evidências empíricas de ruptura com o modelo burocrático de organizações? Organizações & Sociedade, v. 7, n. 19, p. 19-34, 2000.
  • DAFT, R. L. Organizações: teoria e projeto. São Paulo: Thomson/Pioneira, 2002.
  • GIDDENS, A. A constituição da sociedade São Paulo: Martins Fontes, 1989.
  • HALL, R. Organizações: estrutura e processos. Rio de Janeiro: Prentice-Hall do Brasil, 1984.
  • KUHN, T. The structure of scientific revolutions Chicago: University Chicago Press, 1970.
  • SANTOS, B. S. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez Editora, 2001a.
  • SANTOS, B. S. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez Editora, 2001b.
  • VIEIRA, E. F.; VIEIRA, M. M. F. Estrutura organizacional e gestão do desempenho nas universidades federais brasileiras. Revista de Administração Pública, v. 37, n. 4, p. 899-920, 2003.
  • WEBER, M. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Editora da UNB, v. 2, 1999.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Mar 2009
  • Data do Fascículo
    Jun 2004
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração Av. Pedro Taques, 294,, 87030-008, Maringá/PR, Brasil, Tel. (55 44) 98826-2467 - Curitiba - PR - Brazil
E-mail: rac@anpad.org.br