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Comentários - Uma apreciação sobre o desenvolvimento dos estudos em estratégia no Brasil sob a inspiração de Hafsi e Martinet

An overview of the development of studies in strategy in Brazil inspired by Hafsi and Martinet

DOCUMENTOS E DEBATES

Comentários - Uma apreciação sobre o desenvolvimento dos estudos em estratégia no Brasil sob a inspiração de Hafsi e Martinet

An overview of the development of studies in strategy in Brazil inspired by Hafsi and Martinet

Luiz Paulo Bignetti* * Endereço: Avenida Unisinos, 950, São Leopoldo/RS, 93022-000. E-mail: bignetti@unisinos.br

Ph.D. em Administração pela École des Hautes Études Commerciales (HEC) de Montreal, Canadá. Professor do PPGA/UNISINOS, São Leopoldo/RS, Brasil

A análise de Hafsi e Martinet sobre a evolução do domínio da estratégia se desvincula das apreciações tradicionais por sua visão histórica, integradora e crítica. Os autores seguramente despontam como os mais expressivos pesquisadores adeptos da escola francófona do management stratégique e representam uma forte tradição no ensino e na pesquisa de estratégia na França e no Canadá. A publicação pela RAC do artigo mais recente desses autores enseja a oportunidade para uma reflexão alternativa sobre a teoria e a prática no campo da estratégia, cujo desenvolvimento quase sempre foi vinculado a uma linhagem anglo-saxônica.

Partindo da análise histórica dos estudos sobre estratégia - o que faz lembrar as aulas extremamente interessantes e de grande conteúdo do Professor Hafsi - o artigo desemboca em algumas questões essenciais. Por exemplo, tendo em vista os cerca de cinqüenta anos de desenvolvimento, de que forma o campo está hoje (des)estruturado? Em outras palavras, continua-se a encarar a estratégia como um bastão de cego, tateando-se teorias e práticas, num processo de tentativa e erro, em círculos, e sem direcionamento firme e qualificado? Ou há um punhado de conceitos convergentes e associados e um crescimento acentuado dos conhecimentos?

Evidentemente, é possível proceder a uma análise do desenvolvimento da estratégia das organizações e mostrar os ciclos, os períodos e as modas que surgiram ao longo do tempo. Hafsi e Martinet, no artigo em discussão, percorrem a trajetória e traçam essa evolução, atendo-se especialmente ao papel desempenhado pelos precursores da Harvard Business School e pelos modelos de Andrews e Ansoff. Encerram a avaliação histórica discutindo as dificuldades da aplicação dos estudos sobre estratégia e o fracasso da ciência em face da prática da gestão.

Antes deles, Allouche e Schmidt (1995) descreveram, em capítulos, as diferentes fases desse percurso: dos pioneiros ao triunfo do academicismo (até os anos 60); a erupção das empresas de consultoria e o triunfo das matrizes (durante os anos 60); a análise da concorrência e a exacerbação da competição (anos 70); a fascinação pelo modelo japonês e pela tecnologia (início dos anos 80); o reino efêmero dos gurus e da gestão de recursos humanos (final dos anos 80); e a gestão da crise e o resistível retorno da razão (final do século). Atualmente, talvez, uma nova fase esteja em curso: a influência da complexidade e a redução do horizonte temporal.

Allouche e Schmidt (1995) consideram ainda que as primeiras décadas do desenvolvimento dos estudos em estratégia se caracterizaram pela supremacia de um modelo racional, enquanto as duas últimas presenciaram o surgimento do irracional ou de um excesso de paixão. Citam, ainda, um dos autores do artigo em discussão, Alain-Charles Martinet, que afirma estar hoje presente um "componente nevrálgico do discurso sobre a estratégia" (Martinet como citado em Allouche & Schmidt, 1995, p. 3) que, segundo eles, surge da turbulência (da economia mundial), da novidade (da inovação e da tecnologia), da complexidade (do número de variáveis pertinentes que cresce mais rápido que a capacidade de tratamento da informação) e da angústia (ou seja, da perda de sentido das sociedades industriais que se amplifica com a redução da previsibilidade). O próprio Martinet (2001), ao descrever o desenvolvimento da estratégia, constata o seu afastamento dos esforços de síntese. Propugna por uma inflexão dos estudos no sentido da busca por práticas de in-disciplina, pelo retorno ao terreno e pela retomada de uma perspectiva holística.

De qualquer forma que a evolução seja considerada, o campo da estratégia - seja nos seus domínios da organização, seja na academia - findou por apresentar, segundo Hafsi e Martinet, algumas dicotomias ou tensões: a simplificação que contrasta com a complexidade, a objetivação e a especialização que limitam a compreensão do todo, a obsessão por resultados financeiros que impede a reflexão, o domínio cartesiano que elimina a integração, a retórica que substitui a ação e, finalmente, a transformação da estratégia puramente em técnicas que dispensam a ciência. Há, assim, um distanciamento entre academia e organização, entre teoria e prática.

Na organização, a pressão por resultados, advinda da necessidade de lucros crescentes e de retornos consideráveis aos acionistas, conduz os tomadores de decisão a optarem por medidas de curto prazo e por técnicas afastadas de uma formulação teórica adequada. A estratégia se distancia de uma perspectiva de longo prazo, de uma visão integradora, e se torna um conjunto de atividades baseadas em tentativa e erro. A retórica tende a substituir a reflexão, o discurso tenta explicar o erro. Ademais, os fins acabam por justificar os meios e as estratégias empregadas podem pender para um imediatismo, como dizem os autores, amoral: "... os dirigentes abdicam de suas responsabilidades e se transformam em agentes obedientes que colocam em aplicação normas gerais de rentabilidade geralmente em detrimento da saúde a longo prazo da empresa e do simples bom senso".

Se a questão se volta para a academia e, especialmente, para os estudos sobre estratégia, não seria a situação análoga? Os acadêmicos não estariam acometidos dos mesmos males atribuídos aos executivos? Não estaria o campo sendo povoado por teorias ad hoc, por febres passageiras, por estudos superficiais? Não seriam os pesquisadores também reféns de uma pressão por resultados, advinda de um sistema que valoriza a produção numérica e desconsidera a qualidade? Não estariam eles comprometidos com o curto prazo - o próximo artigo - e não com uma linha coerente de pesquisa, com o aprofundamento dos estudos e com o avanço do conhecimento? Parafraseando os autores: "Estariam os pesquisadores abdicando de suas responsabilidades e transformando-se em agentes obedientes que colocam em aplicação normas gerais de produção científica geralmente em detrimento da saúde de longo prazo da ciência e do simples bom senso?". Estariam pesquisadores e executivos no mesmo barco e sem controlar o timão? O artigo de Hafsi e Martinet possibilita que se abra uma discussão sobre os estudos de estratégia e que se aborde, primordialmente, a situação da pesquisa no Brasil.

No que se refere à consistência teórica do campo, uma análise dos trabalhos publicados nos últimos dez anos no Brasil (Bignetti, Cappra, & Thomas, 2007; Bignetti & Paiva, 2002) não mostra, pelo menos em nível conceitual, uma diversificação acentuada de teorias. As cinco vertentes ressaltadas por Hafsi e Martinet - a economia industrial, a visão baseada em recursos, as teorias organizacionais, o institucionalismo e o empreendedorismo - podem também ser consideradas como as mais relevantes. Abordam-se aqui, particularmente, as quatro primeiras.

O predomínio da economia industrial tem-se mantido por longo tempo na análise estratégica. De fato, durante a conferência da Association Internationale de Management Stratégique, AIMS, de 1995, em Montreal, Richard Déry, colega de Taïeb Hafsi, já apresentava um trabalho sobre a estruturação do campo da estratégia, indicando que Porter era o autor da obra mais citada no Strategic Management Journal, com o seu já clássico Estratégia Competitiva. Desde aquela época, a predominância de Porter tem-se mantido, e seus conceitos são utilizados primordialmente na formulação e na postura estratégicas. No Brasil, em dez anos de acompanhamento, Porter continua sistematicamente à frente dos demais referenciados.

Atualmente, há uma crescente aplicação dos conceitos emanados pela Visão Baseada em Recursos [VBR], evidenciada pelo número de citações de autores que abraçam essa corrente (Hamel, Prahalad, Wernerfeldt, Barney, Grant, entre outros). Ao concentrar-se nas competências internas, a VBR traz em seu bojo algumas teorias organizacionais no desafio de entender como os recursos podem ser mobilizados para gerar maior competitividade. Há, entretanto, um nó ainda não totalmente desfeito: de que forma alinhar competências individuais e competências organizacionais? A clivagem entre ambas parece ser um obstáculo - e grande desafio - para a vinculação entre estratégia e estudos organizacionais.

Também o novo institucionalismo tem encontrado abrigo nos estudos de estratégia e duas alternativas teóricas se apresentam para as pesquisas sobre institucionalização: considerar o contexto como instituição ou considerar a organização como instituição (Zucker, 1987). No primeiro caso, os processos de institucionalização se vinculam ao poder coercitivo da sociedade e do Estado, que formam o contexto institucional, favorecendo o isomorfismo (DiMaggio & Powel, 1991). No segundo caso, a institucionalização se desdobra através dos grupos intra-organizacionais e dos processos internos que formam o campo organizacional. Tolbert e Zucker (1999, pp. 206-210) descrevem os processos inerentes à institucionalização de práticas e comportamentos como um conjunto seqüencial de habitualização, objetificação e sedimentação.

Uma análise dos aportes teóricos trazidos para os estudos estratégicos, portanto, tende a indicar basicamente dois caminhos ou duas formas distintas de abordagem. De um lado, levando em conta a existência de uma interação ambiente-organização, a economia industrial e o institucionalismo, em sua concepção macro, são as alternativas teóricas mais prováveis. De outro, numa abordagem mais interna à organização, se entrelaçam a VBR, o neo-institucionalismo, em sua concepção micro, e os estudos organizacionais sobre estrutura, processo, mudança, cultura e inovação. Mesmo assim, especialmente quando se procura entender a estratégia como processo, como a expressão de comunidade de pessoas ou como fio condutor (Hafsi & Toulouse, 1996), algumas lacunas teóricas ainda restam e talvez possam ser preenchidas, especialmente por meio de contribuições advindas principalmente das ciências sociais e das ciências humanas. O potencial de desenvolvimento dos estudos sobre estratégia pode encontrar-se, justamente, nas possíveis conciliações entre concepções teóricas distintas e entre as duas formas de abordagem.

Os estudos sobre estratégia no Brasil, excetuada a presença e os trabalhos de alguns expoentes acadêmicos, ainda é campo em formação, mas que atrai cada ano novos adeptos: nos eventos promovidos pela ANPAD em 2007 mais de mil trabalhos foram submetidos à avaliação nos dois encontros realizados. Esse fluxo é, em grande parte, conseqüência da expansão da pós-graduação; a tendência é que o número de pesquisadores continue aumentando nos próximos anos. Tendo em vista, portanto, os aprofundamentos teóricos ainda possíveis e o crescimento no número de pesquisadores, os estudos de estratégia no Brasil tendem a se intensificar. No entanto, aproveitando as provocações trazidas por Hafsi e Martinet, este parece ser o momento para que dois aspectos sejam ressaltados, servindo como pano de fundo para uma discussão mais aprofundada.

Em primeiro lugar, apesar das convergências teóricas apontadas anteriormente, o que se observa através dos trabalhos publicados no Brasil é uma dominação anglo-saxônica evidente e a inexistência de um corpo teórico consistente e contextualizado que conduza a uma orientação (ou escola) brasileira de estratégia. Como resultado, a aplicação de modelos exógenos afasta a academia da realidade das empresas e separa, cada vez mais, a teoria da prática. O discurso se volta principalmente para o encantamento representado pelas grandes corporações e esquece a realidade de milhares de pequenas e médias empresas que se defrontam com desafios globais.

Em segundo lugar, e aqui reside o ponto essencial para discussão, a forte regulação a que estão submetidos os programas de pós-graduação - e os pesquisadores a eles vinculados - pode representar uma ameaça ao avanço dos conhecimentos e ao desenvolvimento de uma forte base conceitual em estratégia. Assim como, segundo Hafsi e Martinet, os tomadores de decisão estão comprometidos com resultados financeiros e submetidos a uma lógica de maximização, os acadêmicos estão permanentemente pressionados a publicar artigos e são avaliados por critérios unicamente quantitativos. O funcionamento dos programas de pós-graduação é regulado por normas de excelência: composição do corpo docente, número de publicações por docente, produção discente, número de orientandos por docente, tempo médio de duração de mestrados e doutorados etc. Valoriza-se, assim, cada vez mais a produção imediata, em detrimento de uma análise mais elaborada e de uma crítica mais profunda. O tipo ideal parece ser o pesquisador puro, como se as ciências da gestão se identificassem com a física teórica ou com a biologia molecular.

Ademais, promove-se a propagação do conhecimento explícito e desconsidera-se a socialização, a disseminação do conhecimento tácito e a aprendizagem pelo exemplo. Serão, no futuro, negligenciados os espaços de discussão e de reflexão, como a sala de aula? O dedicado mestre, o excelente professor, o palestrante entusiasmado e o conselheiro paciente estarão todos em extinção? E serão eles substituídos por pesquisadores robotizados, verdadeiras máquinas de publicar? Se o futuro dos estudos de estratégia é promissor, o desafio é enorme e estimulante.

  • Allouche, J., & Schmidt, G. (1995). Les outils de la décision stratégique Paris: Éditions la Découverte.
  • Bignetti, L. P., Cappra, C. M., & Thomas, E. (2007, June). La recherche dans le domaine de la stratégie au Brésil: bilan et défis à l'aube du XXI siècle. Table Ronde. Conférence Internationale de Management Stratégique, Montreal, Canada, 16.
  • Bignetti, L. P., & Paiva, E. L. (2002). Ora (direis) ouvir estrelas: estudo das citações de autores de estratégia na produção acadêmica brasileira. Revista de Administração Contemporânea, 6(1), 105-125.
  • DiMaggio, P. J., & Powell, W. W. (1991). Introduction. In W. W. Powell & P. J. DiMaggio (Eds.). The new institucionalism in organizational analysis (pp. 1-38). Chicago: The University of Chicago Press.
  • Hafsi, T., & Toulouse, J. M. (1996). La stratégie des organisations: une synthèse Montréal: Les Éditions Transcontinental.
  • Martinet, A-C. (2001). Épistémologie de la connaissance praticable: exigences et vertus de l'indiscipline. In A. David, A. Hatchuwel, & Laufer, R. (Coords.). Les nouvelles fondations des sciences de gestion: élements d'épistémologie de la recherche en management Paris: FNEGE.
  • Tolbert, P. S., & Zucker, L. G. (1999). A institucionalização da teoria institucional. In S. R.Clegg, C. Hardy, & W. R. Nord (Eds.). Handbook de estudos organizacionais (Vol. 1, pp. 196-219). São Paulo: Atlas.
  • Zucker, L. (1987). Institutional theories of organization. Annual Review of Sociology, 13(1), 443-464.
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    Endereço: Avenida Unisinos, 950, São Leopoldo/RS, 93022-000. E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Out 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2008
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