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Réplica 1 - formar docentes: em que medida a Pós-Graduação cumpre esta missão?

Preparing teachers: how far does Post-Graduation aid this mission?

DOCUMENTOS E DEBATES

Réplica 1 - formar docentes: em que medida a Pós-Graduação cumpre esta missão?

Preparing teachers: how far does Post-Graduation aid this mission?

Antonio Virgílio Bittencourt BastosI, * * Endereço: Antonio Virgílio Bittencourt Bastos ; Emmanuel Zaguri TourinhoII; Oswaldo Hajime YamamotoIII; Paulo Rogério Meira MenandroIV

IUniversidade Federal da Bahia - NPGA/UFBA, Salvador, BA, Brasil. E-mail: antoniovirgiliobastos@gmail.com

IIUniversidade Federal do Pará - UFPA, Belém, PA, Brasil. E-mail: tourinho@ufpa.br

IIIUniversidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, Natal, RN, Brasil. E-mail: ohy@uol.com.br

IVUniversidade Federal do Espírito Santo - UFES, Vitória, ES, Brasil. E-mail: paulomenandro@uol.com.br

A expressiva expansão do ensino nas últimas décadas, em todos os níveis, é o pano de fundo para a atual discussão da qualificação do professor como um dos desafios centrais da educação brasileira. Cremos ser consensual o reconhecimento de que a superação dos baixos indicadores da qualidade da educação exige a revisão do papel que o docente desempenha neste processo, no escopo de melhor capacitá-lo. São ainda enormes as lacunas de formação docente em todos os níveis de ensino. Importa rever as suas condições de trabalho, aqui entendidas de forma ampla e que inclui o justo reconhecimento da sua importância no conjunto de processos que conduzem à melhoria da educação e à superação de entraves para o desenvolvimento econômico e social do país. Afinal, como bem assinalam Meyer e Barbosa (2006, p. 1),

o trabalho docente se insere na essência da atividade acadêmica, e ele é considerado elemento-chave para o sucesso de qualquer curso ou programa acadêmico a ponto de se afirmar que a qualidade de uma instituição de educação superior é medida pelo mérito do seu corpo docente.

No que concerne à formação para a docência na educação superior, a meta de alcançá-la com bom padrão de qualidade está presente desde a criação da CAPES, em 1951, como Campanha Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.Os meios pelos quais, desde então se tem buscado tal formação na pós-graduação stricto sensu são diversos, sendo o estágio docente apenas uma das estratégias empregadas, notadamente a partir dos anos noventa do século passado. A atenção contemporânea ao tema da educação, porém, possibilita novo cenário para a discussão da formação para a docência, também nesse nível.

A formação do professor é questão não só de grande complexidade e importância como de elevada centralidade, quando o desafio de melhorar a qualidade da educação no Brasil se torna item prioritário da própria agenda política, não só de especialistas, mas da própria sociedade. Trata-se, certamente, de uma questão transversal e cujos problemas podem ser discutidos em todos os níveis de ensino; a formação de docentes, para atuar desde o ensino básico até a pós-graduação, apesar de singularidades inevitáveis, apresenta um núcleo básico de dificuldades que cercam a aquisição, manutenção e desenvolvimento de competências nucleares, que definem a atuação docente e que diferenciam este papel ocupacional. Também nos parece amplamente disseminada a convicção de que ser professor não significa apenas ter bom domínio de um campo de conhecimento e, em decorrência, que não basta colocar um expert em sala de aula, para que ele seja efetivo professor, cumprindo as expectativas que dele se esperam em termos de assegurar ou propiciar contextos efetivos de aprendizagem para os seus alunos.

A discussão sobre a especificidade da formação docente está na base de grandes debates sobre as licenciaturas em geral, especialmente no tocante à forma fragmentada, dividida, com que ocorre: por um lado, a ampliação do conhecimento em um domínio específico e, por outro lado, o desenvolvimento de conhecimentos, habilidades ou competências para ensinar. Uma dificuldade parecida pode ser encontrada, quando se pensa na formação dos mestres para os nossos programas de pós-graduação, agora sob o aparente paradoxo ou a suposta incompatibilidade entre a formação do pesquisador e do professor, o que corresponde, em alguma medida, à dicotomia acima referida. Hoje, não se cogita da possibilidade de que alguém, sem amplo domínio do seu campo de conhecimento possa ter desempenho que o caracterize como bom professor, mas não necessariamente um jovem pesquisador egresso da pós-graduação, mesmo tendo excelente formação metodológica e notável conhecimento da área, seja bom professor de forma automática.

Temos, portanto, uma questão de grande relevância, que desafia docentes, pesquisadores, gestores, formuladores de políticas educacionais e agências - como conciliar, no âmbito de um programa de pós-graduação as missões de formar pesquisadores e docentes simultaneamente. Como lidar, de forma articulada, com esses dois eixos de competências que, quando unidos, potenciam o bom desempenho dos nossos egressos da pós-graduação? É esta a questão geral que está na base do trabalho 'Estágio Docência: um Estudo no Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal de Lavras'. Evidente que seu recorte é bastante mais limitado; mas, ao estudar o estágio docente em uma instituição específica e no âmbito de um programa de pós-graduação, o texto articula-se com as questões mais amplas que podem ser sintetizadas em duas principais vertentes: a primeira, já referida, sobre o processo de formar um professor, com ênfase em que experiências se tornam importantes, para que este papel possa ser desempenhado com elevado padrão de qualidade. Estamos diante de competências que podem ser desenvolvidas? Que estratégias pedagógicas são as mais adequadas para desenvolvê-las? A prática de sala de aula, sob forma de estágio, é suficiente para se formar um docente que irá atuar no ensino superior? A segunda vertente se refere ao papel da nossa pós-graduação, especialmente à paradoxal concepção, segundo a qual são impossíveis os dois objetivos, ao mesmo tempo: formar docentes e formar pesquisadores. Em que medida estes dois objetivos devem competir entre si? Será possível, no escopo da nossa atual pós-graduação e do seu sistema de avaliação, atender simultaneamente a ambos? Que caminhos se abrem nesta direção?

Nestes dois principais eixos serão estruturadas as reflexões e problematizações que surgem da leitura do trabalho em questão.

Que Significa ser Docente Universitário e como Desenvolver suas Competências Centrais?

Pachane e Pereira (2004) afirmam que é comum, quando se fala em formação de professores, pensar-se no processo de formação para a docência na educação básica (ensino fundamental e, no máximo, médio). Dificilmente, ao se tratar de formação de professores, se amplia a abrangência do tema para a formação de professores universitários, como se a formação específica para o ensino nesse nível fosse algo supérfluo, ou mesmo, desnecessário. É fato que muitos dos docentes universitários, que estão em atividade no país, passaram a atuar profissionalmente como forma de viabilizar seu interesse pelo estudo e pela pesquisa, sem qualquer forma de treinamento específico para a docência, tendo de se valer de exemplos conhecidos e valorizados das práticas de seus próprios mestres. Todavia uma das mais frequentes críticas dos estudantes universitários incide sobre a didática dos professores. São frequentes as queixas de que o professor conhece a matéria, mas não sabe transmitir, não se importa com o aluno, é distante, é arrogante, entre outras características que revelam dificuldades em dimensões de sua prática, que vão além do conteúdo a ser ensinado.

Temos evidências de que o crescimento do número de mestres e doutores tem produzido impacto significativo na consolidação da nossa comunidade científica; em decorrência, ficaram ampliados os nossos indicadores de produção científica. Cabe perguntar, entretanto, se essa titulação, tal como vem sendo realizada, contribui para a melhoria da qualidade didática do ensino superior. Se não contribui para a formação didática, ela prepara diferencialmente esses docentes (em comparação com aqueles que não cursam uma pós-graduação) de algum outro modo? De que evidências dispomos a respeito de tais questões? Em que medida os nossos programas de pós-graduação, ao priorizarem as habilidades de condução de pesquisas, não se tornam responsáveis, por certo não intencionalmente, por reproduzir e perpetuar a crença de que para ser professor basta conhecer a fundo determinado conteúdo ou, no caso específico do ensino superior, basta ser bom pesquisador?

Vários autores (Fischer, 2006; Pimenta & Anastasiou, 2002; Pachane & Pereira, 2004; Valente & Viana, 2010; Vasconcelos, 1998) ressaltam a pouca importância dada à formação pedagógica, quando se trata de formar docentes para o ensino superior. Geralmente não se exige formação pedagógica na docência do ensino superior, pois se considera suficiente o domínio de conhecimentos específicos; o docente universitário é valorizado pela pesquisa e/ou pelo exercício profissional no campo; ou seja, a formação exigida do professor universitário privilegia o conhecimento aprofundado da disciplina a ser ensinada, pouco se exigindo de domínio de capacidade específica para ensinar. Isto se reflete na pós-graduação, na formação de mestres e doutores, podendo levar à docência indivíduos titulados, mas sem as competências pedagógicas essenciais para a sua prática.

O estágio docente, no âmbito de um programa de pós-graduação, entendido como espaço para o desenvolvimento ou aprimoramento destas competências de ensinar, deveria ser visto como importante atividade para alcançar tal objetivo, algo claramente decorrente da missão do nosso sistema de pós-graduação. Mas ele não constitui o único modo pelo qual a pós-graduação impacta o desempenho posterior de seus egressos como docentes da educação superior.

Cumpre reconhecer que as funções de um docente do ensino superior são bem mais amplas do que as atividade de ensino em sentido restrito, ou seja, ministrar aulas. Como bem apontam Benedito, Ferrer e Ferreres (1995, p. 119), é amplo o conjunto de funções desempenhadas por um professor do ensino superior, podendo-se destacar:

(a) o estudo e a pesquisa; (b) a docência, sua organização e o aperfeiçoamento de ambas; (c) a comunicação de suas investigações; (d) a inovação e a comunicação das inovações pedagógicas; (e) a orientação (tutoria) e a avaliação dos alunos; (f) a participação responsável na seleção de outros professores; (g) a avaliação da docência e da investigação; (h) a participação na gestão acadêmica; (i) o estabelecimento de relações com o mundo do trabalho, da cultura etc.; (j) a promoção de relações e intercâmbio departamental e interuniversitário, e (k) a contribuição para criar um clima de colaboração entre os professores.

Em suma, preparar um docente para o ensino superior implica ampliar o leque de atividades que permitam ao pós-graduando adquirir, mesmo que embrionariamente, um conjunto bem mais amplo de competências e habilidades que abarquem o leque de funções a serem desempenhadas no futuro.

Os autores fizeram, no entanto, uma opção teórica que nos parece problemática para todo o desenvolvimento do estudo. Apesar da clara preocupação com a formação docente, os autores, apoiados na literatura consultada, procuram se afastar do que seria uma perspectiva tecnicista de pensar a formação docente, a partir de competências incluídas no 'aprender a ensinar'. Fazem uma opção contra o que consideram superficial e, erroneamente, uma perspectiva behaviorista, optando por uma perspectiva fenomenológica, que enfatizaria "práticas mais reflexivas e humanistas, nas quais a reflexão sob a ação e sobre a ação, bem como a autonomia dos formandos e seu desenvolvimento pessoal, se consideram como centrais neste processo" ( p. 1140).

A referência ao behaviorismo reproduz uma caracterização preconceituosa e equivocada das contribuições da psicologia comportamental para o planejamento do ensino. Tais contribuições em nada conflitam com a atenção às dimensões reflexivas da atuação docente, mas chamam a atenção para o fato de que, ou a escola planeja as condições necessárias para promover as competências desejadas para os seus alunos, sejam elas quais forem, ou ela simplesmente selecionará aqueles que em outros ambientes puderem adquirir tais competências.

Com a decisão de privilegiar a perspectiva fenomenológica, o artigo afasta-se de um conjunto largamente consolidado de estudos que já avançaram bastante na compreensão das competências envolvidas no exercício da docência. Ele deixa, portanto, de contar com quadros de referência que seriam importantes para construir e orientar o processo de análise dos dados constantes nos relatórios dos alunos do estágio docente. Assim, em vez de contribuir para fazer avançar o conhecimento da formação docente, o estudo termina restringindo-se a uma avaliação limitada, desde que pautada apenas pela ótica de um ator envolvido, de uma experiência de ensino. O estágio docente, por seu turno, também não é discutido no contexto do ambiente mais amplo de formação do aluno de pós-graduação, que certamente oferece a oportunidade para a aquisição de competências diversas relevantes para uma atuação futura na docência.

Sem sermos exaustivos, duas importantes contribuições para a área podem ser consideradas no debate sobre a formação docente na pós-graduação stricto sensu. Em um trabalho que se tornou de grande relevância para o campo das pesquisas sobre a formação do professor, Perrenoud (2000a) nos apresenta instigante e amplo modelo de competências que inclui dez competências gerais que se desdobram em competências, mais específicas, para as quais o autor oferece um conjunto de sugestões e indicações de como concretizá-las na prática docente. São competências gerais, esperadas de um professor, independentemente do nível de ensino em que atua: (a) organizar e dirigir situações de aprendizagem; (b) administrar a progressão das aprendizagens; (c) conceber e fazer evoluir os dispositivos de diferenciação; (d) envolver os alunos em suas aprendizagens e em seu trabalho; (e) trabalhar em equipe; (f) participar da administração da escolar; (g) informar e envolver os pais; (h) utilizar novas tecnologias; (i) enfrentar os deveres e os dilemas éticos da profissão; (j) administrar sua própria formação contínua.

Talvez o trabalho de Perrenoud tenha sido ignorado, porque centraliza a maior parte das competências docentes naquilo que os autores rechaçam como sendo o aprender a ensinar. No entanto o modelo apresentado pelo autor vai além das situações específicas de ensino, ao incluir toda a dimensão de inserção do docente em uma instituição educacional, as questões éticas, a sua relação com o contexto social do qual vem o aluno e, ainda, da responsabilidade que ele deve ter com a sua carreira e seu contínuo processo de desenvolvimento. Perrenoud (2000a, 2000b) apoia-se largamente em princípios socioconstrutivistas que partem do princípio de que as competências docentes decorrem de um processo autorreflexivo, a partir da sua prática e da sua interação com os desafios postos pelo meio. Para Perrenoud (2000b, p. 19), "competência é a faculdade de mobilizar um conjunto de recursos cognitivos (saberes, capacidades, informações etc.) para solucionar com pertinência e eficácia uma série de situações". Assim, não se pode pensar a competência como a simples aplicação de regras para solucionar problemas, já que ela mobiliza bem mais recursos pessoais e sempre em interação com contextos específicos. A competência é, em grande medida, algo contextual.

Cabe neste ponto deixar explícito o que compreendemos por competência, termo que vimos utilizando ao longo do texto. Diante de uma vasta literatura, que revela quão plural é o uso do conceito de competência no campo dos estudos sobre trabalho, assumimos aqui a definição de competência apresentada por Resende (2000): "a transformação de conhecimentos, aptidões, habilidades, interesse, vontade etc. em resultados práticos" (p. 32). Para o autor, tais elementos apenas quando usados de forma articulada para atingir um objetivo é que configuram uma competência específica. Competência sempre envolve, portanto, a combinação de conhecimento com comportamentos, em contextos que colocam desafios específicos.

Outra contribuição importante é encontrada no trabalho de Masetto (2002), que apresenta uma reflexão especificamente voltada para o docente do ensino superior, por considerar que este nível de ensino requer competências próprias de forma que a educação superior cumpra o seu objetivo de formar profissionais e cidadãos críticos e reflexivos, capazes de serem agentes de importantes transformações que ocorrem na sociedade contemporânea.

Para Masetto (2002), três grandes classes de competências são esperadas de um professor de ensino superior. A primeira, refere-se à competência em determinada área de conhecimento, o que envolve elevado domínio dos conhecimentos, quer adquiridos na sua formação básica, quer adquiridos na sua atividade profissional. Tal domínio, em face da velocidade com que o conhecimento se modifica, requer constante atualização, o que é conseguido pela atividade de pesquisa e pela intensa participação em eventos científicos ou de formação, como cursos, congressos etc. A segunda é a competência na área pedagógica, o que envolve conhecer em profundidade o processo ensino-aprendizagem e os fatores que afetam a sua dinâmica e a qualidade dos seus resultados. Inclui, ainda, a capacidade de estabelecer adequadas relações com os alunos e entre os alunos, possuir a visão do currículo como um todo, dominar as tecnologias educacionais, entre outras. Finalmente, uma terceira dimensão envolve o exercício da dimensão política, já que como cidadão a ele não é dado o direito de negligenciar a realidade social, a vida em sociedade, devendo ter uma visão crítica, da própria educação como processo social.

Como fica patente em ambas as contribuições, o conceito de competência, de fato polissêmico e controverso, não pode ser restrito a uma perspectiva tecnicista, opção equivocadamente adotada pelos autores. Ao não se apropriarem do conceito em tais bases e por não se valerem de modelos já disponibilizados pela literatura da área, o trabalho de criar categorias, a partir dos registros realizados pelos alunos, redunda em um conjunto de cinco categorias pouco consistentes, sem eixos ou dimensões que as articulem. Referimo-nos, aqui, às cinco classes de conteúdos que emergiram do trabalho empírico de exame dos relatórios apresentados pelos pós-graduandos. Estes conteúdos foram agrupados nas seguintes categorias: (a) planejamento da disciplina; (b) contato profissional com a atividade docente; (c) aproximação e relacionamento com o professor titular da disciplina; (d) dificuldades enfrentadas no estágio docente; (e) aprendizagem e habilidade adquirida no desenvolvimento das atividades desempenhadas. As duas primeiras guardam estreita relação com algumas categorias de competências apresentadas por Perrenoud (2000a) ou por Masetto (2002), sem alcançar a amplitude que estes dois modelos permitiriam. As três últimas categorias são, claramente, conteúdo de avaliação do significado da experiência para o pós-graduando. Os exemplos de conteúdos selecionados para a categoria (a) evidenciam que ela não está bem definida e comporta conteúdos de natureza diversa. Os exemplos de conteúdo abrangidos pela categoria (e) são muito semelhantes aos da categoria (b), o que explicita que elas não são exclusivas, e reafirma a insuficiência da articulação entre as categorias construídas no processo de análise dos dados.

Pode ser dito também que, mesmo tendo sido analisados vinte e dois relatórios, optou-se por não fornecer nenhuma informação sobre freqüência de incidência de algum conteúdo; constam apenas menções a grandezas nem sempre precisas, como muitos, grande parte, ou alguns. Tal opção favorece a idéia de que todos os conteúdos detectados têm a mesma representatividade, o que tem alta probabilidade de não corresponder à realidade.

É preciso reconhecer o aspecto inovador de utilizar como fonte de dados os relatórios de estágio dos pós-graduandos; mas, considerando os problemas mencionados, fica claro que a análise realizada é contribuição restrita ao registro de uma experiência singular, de alcance limitado, que poderia ter contribuído, de forma mais efetiva, para reflexões sobre o próprio significado do estágio docente como espaço capaz de propiciar o desenvolvimento de competências, habilidades e atitudes, que são indispensáveis no agir e no fazer de um professor do ensino superior.

Formar Docentes e Pesquisadores: Objetivos Incompatíveis?

Um segundo eixo de argumentos desenvolvidos pelos autores do trabalho consiste no possível antagonismo entre a formação do pesquisador e a formação do docente no âmbito da pós-graduação. Há importantes contribuições da literatura que mostram como o peso da formação do pesquisador se sobrepõe fortemente à formação do docente. O produto final esperado (dissertação ou tese oriunda de pesquisa) condiciona a estrutura curricular, que é direcionada para oferecer o suporte necessário à atividade de pesquisa. Por outro lado, inexistem disciplinas para contemplar a formação para o ensino.

Pimenta e Anastasiou (2002) comparam as atividades de ensino e de pesquisa, buscando revelar como se trata de processos distintos em várias dimensões. O ensino e a pesquisa diferem quanto aos sujeitos envolvidos: a pesquisa é conduzida sob a responsabilidade do pós-graduando ligado a seu orientador; o ensino envolve constantemente alunos, colegas, chefes etc. Ao tempo: no ensino o tempo não pode ser usado flexivelmente, pois deve ajustar-se a calendários, ao período letivo, diferente da pesquisa. Aos resultados obtidos: na pesquisa, o conhecimento, o avanço na compreensão de um problema; no ensino, novas sínteses que ampliem o domínio que o aluno tem de um campo teórico ou da realidade. Aos conhecimentos: o conhecimento atingido é base para novas propostas, na atividade de pesquisa; no ensino, o conhecimento deve ser sistematizado para ser apropriado pelo aluno. Ao método: o processo de produção de conhecimento difere do processo de gerar novas aprendizagens. Tais diferenças justificam, segundo os autores, que estas duas vertentes da formação na pós-graduação requeiram estratégias e métodos distintos.

É verdade que os sucessivos Planos Nacionais de Pós-Graduação, especialmente a partir do III Plano, do final da década de oitenta do século XX, instituíram a preocupação crescente com a formação para a pesquisa. Isso ocorreu em um contexto nacional específico, de incremento do investimento em ciência e tecnologia (particularmente na última década) e de preocupação com autonomia científica do país. A formação para a docência, porém, nunca foi abandonada como objetivo da pós-graduação stricto sensu. Também não há razões para supor que o treinamento mais efetivo de competências relacionadas à pesquisa conflite com a promoção de competências voltadas ao ensino.

Um componente possivelmente relevante para compreender o que tem sido relatado com ênfase maior na pesquisa diz respeito às mudanças operadas no processo de avaliação dos programas de pós-graduação stricto sensu, que efetivamente impactaram a atenção dedicada à formação para a docência. No momento em que as competências no campo da pesquisa se tornaram mais valorizadas pelo sistema, a avaliação acompanhou essa mudança e as áreas de conhecimento foram capazes de gerar indicadores relevantes e objetivos do sucesso nesse domínio. O mesmo não foi observado para a docência. A despeito da valorização relativa das atividades de formação com relação à produção de conhecimento no último triênio, a avaliação propriamente dita tem aferido pouco mais do que a oferta de estágio docente: daí, provavelmente, a ênfase que o texto em questão e análise acabou atribuindo ao estágio. Registre-se, porém, que vários programas de pós-graduação já inseriram em suas estruturas curriculares atividades de formação diretamente relacionadas à formação para a docência na educação superior, como a co-orientação de alunos de iniciação científica e mestrado, participação em bancas de projetos de outros alunos, avaliação de artigos etc. Tais iniciativas são bem avaliadas, mas não constituem referência para o sistema como um todo.

As reflexões anteriores mostram que o possível antagonismo entre a formação de pesquisadores e de docentes poderia ser tratada em diferentes níveis. Contudo, ao que nos parece, tais questões dificilmente poderiam ser respondidas pelo exame de relatórios de estágios em docência de uma turma específica, de um curso particular.

É interessante e atrativa a alternativa de trabalhar material já produzido e disponível para responder a questões de pesquisa. Esta alternativa, todavia, amplia os riscos de os dados disponíveis não serem os mais adequados para responder às questões mais significativas que o trabalho levanta.

O aparente paradoxo entre formar pesquisadores e formar docentes, ponto de partida para fundamentar a realização da pesquisa, certamente não pode ser respondida, mesmo parcialmente, a partir de autorrelatos avaliativos de uma experiência de estágio em docência que, por sua vez, constituem material sujeito à avaliação por parte de colegiado composto pelos próprios orientadores desses estágios.

Na realidade, como os próprios autores reconhecem e assumem como pressuposto, a formação docente não se esgota no simples contato do pós-graduando com a situação de sala de aula, muitas vezes apenas substituindo o docente orientador. Da mesma forma, podemos afirmar que tal formação também não é assegurada com o simples acréscimo de um ou mais componentes curriculares voltados para a formação pedagógica. Ela requer mais e os Programas talvez não saibam exatamente como fazê-lo. Desse ponto de vista, cumpre reconhecer que a própria realização do estágio docente assume formatos muito variados, às vezes em um mesmo programa de pós-graduação, não sendo incomum o aluno simplesmente substituir o titular da disciplina sem o adequado acompanhamento e orientação.

Ao examinarmos o processo de avaliação dos programas de pós-graduação pela CAPES, não se encontram indicadores que avaliem e que considerem a dimensão pedagógica da formação docente no conceito atribuído ao curso; ou seja, quer na avaliação da proposta de curso, quer no exame dos resultados obtidos, estes fortemente dominados por indicadores de produção científica, não se encontram indicadores que captem o êxito do curso na formação de docentes mais habilidosos e capazes de conduzir com êxito o processo de ensino-aprendizagem. Pelo menos não indicadores tão claros e objetivos quanto aqueles definidos para aferir o sucesso na formação para a pesquisa.

Cabe aqui uma reflexão sobre como este pressuposto, acriticamente assumido, pode produzir, ou já pode estar produzindo, consequências negativas na qualidade do ensino superior. A formação de um profissional no nível de graduação requer o contato com domínios diversificados, do campo, muitas vezes mal integrados nas propostas curriculares. Há um conjunto amplo de competências a serem adquiridas, o que requer o manejo de conhecimentos diversificados, vindos tanto do próprio campo como de campos afins. Ao contrário desta demanda mais ampla, a formação na pós-graduação, centrada na formação do pesquisador, requer foco e concentração do aluno em domínio bastante específico, no qual realizará a sua pesquisa, base da dissertação ou da tese. Assim, ele se torna profundo conhecedor, se e quando a formação é bem sucedida, de um tópico específico bastante delimitado e que assume, para o novo docente, elevada centralidade e importância, como campo de produção de conhecimento. No entanto ele irá inserir-se em curso de graduação com as características acima descritas e, muitas vezes, sem possuir sequer um conhecimento amplo da estrutura curricular na qual atua. Encontra-se, conseguintemente, pouco preparado para fazer as necessárias articulações entre aquilo que ele sabe em profundidade e as necessidades de formação do futuro profissional. Problemas como este deveriam ser superados com uma formação que contemplasse o amplo conjunto de competências esperadas de um docente de ensino superior.

O texto sob exame, como vimos, não cobre todas estas reflexões que seriam básicas para se discutir o possível paradoxo entre a formação do pesquisador e do docente, abrindo horizontes para que agências de fomento e avaliação e os próprios programas de pós-graduação possam pensar em modelos que contemplem a necessidade de integrar estas duas dimensões básicas da formação pós-graduada no Brasil.

À Guisa de Conclusão

Como se assinala ao longo desta réplica, o trabalho 'Estágio Docência: um Estudo no Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal de Lavras' apoia-se em questão que consideramos da maior importância e cuja atualidade é reconhecida. Trata-se de questão que está a merecer atenção mais cuidadosa dos programas de pós-graduação e da própria agência responsável por assegurar o crescimento e a melhoria contínua da qualidade desses programas. Trata-se de questão complexa, que requer estudos continuados, ampliação dos debates, e reflexões mais cuidadosas por seu potencial impacto na qualidade do ensino.

Apesar de reconhecer a complexidade e a importância da questão, o estudo conduzido realiza um limitado levantamento de percepções dos estagiários em face da prática docente, com suas vantagens e desvantagens, aliada à avaliação da sua importância como ferramenta para aproximar o ensino e a pesquisa. Nas considerações teóricas que fundamentam o trabalho, os argumentos transitam em torno de algumas ideias centrais que, no entanto, não tocam na essência do que significa ser professor universitário e de que tipo de aprendizagens é significativo para o desempenho deste papel. A própria noção de identificação e prática reflexiva, como elementos fundantes de boa formação docente, não se revelam nas categorias construídas a partir dos relatórios examinados.

Adicionalmente, o texto faz uma crítica das práticas tecnicistas, focadas no aprendizado de competências fragmentadas, como no aprender a ensinar, opondo, de forma superficial, o que seria uma perspectiva behaviorista a uma perspectiva fenomenológica, focada esta na reflexão, no autodesenvolvimento e na autonomia. Esta visão dicotômica e limitada do complexo processo de tornar-se professor leva o texto a desconsiderar os aspectos substantivos que definem este papel.

Tais problemas limitam fortemente o alcance dos resultados obtidos e as conclusões a que chegam os autores. Afirma-se, por exemplo, que "o estágio docência é uma possibilidade de aliar pesquisa e ensino, tornando-se estratégia bastante interessante no processo de formação de novos docentes" (p. 1148). Que resultados embasam esta conclusão? Em nenhum momento, os relatórios ensejaram qualquer reflexão sobre como pesquisa e ensino estavam sendo articulados pelos pós-graduandos, ao realizarem os seus estágios docentes.

Outra conclusão foi assim enunciada: "Torna-se proeminente a prática do ensino em conformidade e harmonia com a pesquisa, e não um sobrepujando a outra e vice-versa" (p. 1148). Na realidade, tal enunciado é o pressuposto assumido, e não algo que tenha recebido suporte, a partir dos resultados de rigoroso estudo. O estudo parte da insuficiência do estágio como único elemento para formar um docente, o que parece ter sido esquecido nas conclusões. Como isto deve ocorrer? O trabalho não avança na discussão a respeito de que tal formação requer outros espaços dialógicos e de reflexão, que preparem ou desenvolvam competências docentes fundamentais, como é o caso do planejamento que os próprios alunos reconheceram como deficiente.

As reflexões críticas, aqui expostas, buscam ensejar o debate e estimular mais e mais estudos do tema, reconhecendo o mérito do trabalho em tomar tais questões como objeto de investigação empírica.

ISP/UFBA, Av. Ademar de Barros, s/n, Pavilhão 04, Campus Universitário de Ondina, Salvador/BA, 40170-110.

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    Endereço: Antonio Virgílio Bittencourt Bastos
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Nov 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2011
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