Acessibilidade / Reportar erro

Tradição Mercantilizada: Construção de Mercados Baseados na Tradição

Marketization of Tradition: Market Construction Orientated by Tradition

Resumo

A mercantilização das sociedades contemporâneas tem sido apontada como um processo responsável pela elevação do mercado à posição de intermediário dos sistemas sociais e culturais, inclusive da tradição. Fazendo uso de um estudo etnográfico na cultura gaúcha, buscamos analisar como as práticas culturais têm contribuído para a preservação da tradição por meio de dinâmicas de mercado. Para tanto, adotamos um olhar interpretativo sobre as práticas que múltiplos agentes desempenham no mercado e o reflexo destas na mercantilização da cultura tradicionalista gaúcha. Resultados apontam a tradição como uma invenção que serve de referência cultural para a construção de um mercado por três grupos distintos de agentes: produtores, consumidores e organizadores. Esses agentes fazem uso de construções históricas, do orgulho em ser gaúcho e do vínculo identitário como referência cultural para guiar três estratégias distintas de mercantilização: tangibilização, aproximação mercadológica, e valorização da tradição. Concluímos que a mercantilização da tradição pode transformar o mercado num ambiente fecundo para a preservação de tradições culturais.

tradição; mercantilização; práticas de mercado; cultura gaúcha; etnografia

Abstract

Contemporary society marketization has been identified as the process responsible for elevation of the market to the position of intermediary in social and cultural systems, including traditions. Through an ethnographic study of the southern Brazilian gaucho culture, we analyze how cultural practices have contributed to preservation of traditions through market dynamics. For this, we adopt an interpretative approach to identify multiple agents’ practices responsible for the marketization of traditional gaucho culture. Findings recognize tradition as an invention used as cultural reference for market construction by three distinct groups of agents: producers, consumers and organizers. These agents make use of historical constructions, pride in being gaucho and local identity roots as cultural reference to guide three different marketization strategies: commodification; marketing approaching, and; valuation and valorization of tradition. We conclude that marketization of traditions can transforms the market into a fertile environment for cultural tradition preservation.

tradition; marketization; market practices; gaucho culture; ethnography

Introdução

Pesquisadores de marketing têm dedicado cada vez mais atenção aos estudos de mercado, motivados pelo entendimento de que o mercado não é apenas um modelo econômico, mas também uma interligação de agentes sociais (Slater & Tonkiss, 2001Slater, D., & Tonkiss, F. (2001). Market society: markets and modern social theory. Oxford: Blackwell Publishers Ltd.) envolvidos em práticas que resultam na construção de espaços, identidades e significados culturais (Arsel & Thompson, 2011Arsel, Z., & Thompson, C. J. (2011). Demythologizing consumption practices: how consumers protect their field-dependent identity investments from devaluing marketplace myths. Journal of Consumer Research, 37(5), 791-806. http://dx.doi.org/10.1086/656389
http://dx.doi.org/10.1086/656389...
; Castilhos, 2015Castilhos, R. (2015). Produzindo lugar, reproduzindo espaço: uma análise das dinâmicas de mercado no campo de moradia (Tese de doutorado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.; Sandicki & Ger, 2010)Sandicki, Ö., & Ger, G. (2010). Veiling in style: how does a stigmatized practice become fashionable? Journal of Consumer Research, 37(1), 15-36. http://dx.doi.org/10.1086/649910
http://dx.doi.org/10.1086/649910...
. A importância de compreender o mercado é amplificada quando consideramos que este é o principal espaço em que os consumidores constroem seus projetos socioculturais, moldando os próprios interesses e gostos (Arsel & Bean, 2013Arsel, Z., & Bean, J. (2013). Taste regimes and market-mediated practice. Journal of Consumer Research, 39(5) 899-917. http://dx.doi.org/10.1086/666595
http://dx.doi.org/10.1086/666595...
; Slater & Tonkiss, 2001)Slater, D., & Tonkiss, F. (2001). Market society: markets and modern social theory. Oxford: Blackwell Publishers Ltd..

O mercado, pois, passa a intermediar construções sociais e culturais, resultando numa crescente mercantilização das sociedades contemporâneas (MacAlexander, Dufault, Martin, & Schouten, 2014Macalexander, J. H., Dufault, B. L., Martin, D. M., & Schouten, J. W. (2014). The marketization of religion: field, capital and consumer identity. Journal of Consumer Research, 41(3), 858-875. http://dx.doi.org/10.1086/677894
http://dx.doi.org/10.1086/677894...
; Schimank & Volkmann, 2012Schimank, U., & Volkmann, U. (2012). The marketization of society: economizing the non-economic. Bremen: Forschungsverbund Welfare Societies.; Vikas, Varman, & Belk, 2015Vikas, R., Varman, R., & Belk, R.W. (2015). Status, caste, and market in a changing Indian village. Journal of Consumer Research, 42(3), 472-498. http://dx.doi.org/10.1093/jcr/ucv038
http://dx.doi.org/10.1093/jcr/ucv038...
). Essa submissão dos subsistemas sociais à lógica de mercado tem provocado um processo denominado destradicionalização, que sugere a perda de importância da tradição nas relações sociais e nas escolhas individuais de consumo, estimulada por um desejo de independência do consumidor nas suas escolhas (MacAlexander et al., 2014)Macalexander, J. H., Dufault, B. L., Martin, D. M., & Schouten, J. W. (2014). The marketization of religion: field, capital and consumer identity. Journal of Consumer Research, 41(3), 858-875. http://dx.doi.org/10.1086/677894
http://dx.doi.org/10.1086/677894...
e por uma desestabilização das normas sociais (Vikas et al., 2015)Vikas, R., Varman, R., & Belk, R.W. (2015). Status, caste, and market in a changing Indian village. Journal of Consumer Research, 42(3), 472-498. http://dx.doi.org/10.1093/jcr/ucv038
http://dx.doi.org/10.1093/jcr/ucv038...
.

Neste estudo, partimos do debate atual acerca da cultura do consumo (Casotti & Suarez, 2016Casotti, L. M., & Suarez, M. C. (2016). Dez anos de consumer culture theory: delimitações e aberturas. Revista de Administração de Empresas, 56(3), 353-359. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-759020160308
http://dx.doi.org/10.1590/S0034-75902016...
) e das consequências da mercantilização das tradições (MacAlexander et al., 2014Macalexander, J. H., Dufault, B. L., Martin, D. M., & Schouten, J. W. (2014). The marketization of religion: field, capital and consumer identity. Journal of Consumer Research, 41(3), 858-875. http://dx.doi.org/10.1086/677894
http://dx.doi.org/10.1086/677894...
; Vikas et al., 2015)Vikas, R., Varman, R., & Belk, R.W. (2015). Status, caste, and market in a changing Indian village. Journal of Consumer Research, 42(3), 472-498. http://dx.doi.org/10.1093/jcr/ucv038
http://dx.doi.org/10.1093/jcr/ucv038...
para descrever movimentos de mercado contrários à destradicionalização. Argumentamos que, mesmo num cenário de acelerada mercantilização, a tradição encontra, em determinados contextos culturais, formas alternativas de preservação. Esse argumento está centrado no entendimento de que, em épocas de grandes mudanças culturais e intensificação dos fluxos globais, as tradições são tomadas como um conjunto de ações valorativas da cultura local na busca por uma continuidade da sociedade, inclusive fazendo uso de ferramentas de marketing (Dalmoro & Nique, 2016Dalmoro, M., & Nique, W. M. (2016). Fluxos e contrafluxos: a relação global e local mediada pelo mercado na cultura gaúcha. Organizações & Sociedade, 23(77), 211-230. http://dx.doi.org/10.1590/1984-9230772
http://dx.doi.org/10.1590/1984-9230772...
; Oliven, 2006Oliven, R. G. (2006). A parte e o todo: a diversidade no Brasil nação. Petrópolis: Vozes.; Outka, 2009)Outka, E. (2009). Consuming traditions: modernity, modernism, and the commodified authentic. Oxford: Oxford University Press..

Para dar conta de descrever este argumento, lançamos mão de um estudo etnográfico na cultura tradicionalista gaúcha, com o objetivo de analisar como as práticas culturais têm contribuído para a preservação da tradição por meio de dinâmicas de mercado. A adoção de um olhar localizado, por meio da etnografia, em estudos de marketing (Belk & Casotti, 2014Belk, R., & Casotti, L. M. (2014). Ethnographic research in marketing: past, present, and possible futures. Revista Brasileira de Marketing, 13(6), 1-17. http://dx.doi.org/10.5585/remark.v13i6.2767
http://dx.doi.org/10.5585/remark.v13i6.2...
) visa proporcionar uma descrição densa (Geertz, 2008)Geertz, C. (2008). A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC. dos seus múltiplos agentes envolvidos na cultura gaúcha e em suas práticas (Swidler, 1996)Swidler, A. (1996). Culture in action: symbols and strategies. American Sociological Review, 51(2), 273-286. http://dx.doi.org/10.2307/2095521
http://dx.doi.org/10.2307/2095521...
. A existência de um movimento organizado que faz uso de um amplo aparato material e mercadológico para preservar as tradições gaúchas (Oliven, 2006)Oliven, R. G. (2006). A parte e o todo: a diversidade no Brasil nação. Petrópolis: Vozes. faz deste um contexto peculiar para compreender a relação entre mercado e tradição. Em adição, merece atenção a crescente oferta de produtos e atividades ligados a essa cultura, que envolvem não só consumidores, mas um leque de agentes que produzem, consomem e suportam trocas simbólicas e econômicas, construindo, por meio de suas práticas, um mercado em torno da tradição gaúcha (Dalmoro, Peñaloza, & Nique, 2016Dalmoro, M., & Nique, W. M. (2016). Fluxos e contrafluxos: a relação global e local mediada pelo mercado na cultura gaúcha. Organizações & Sociedade, 23(77), 211-230. http://dx.doi.org/10.1590/1984-9230772
http://dx.doi.org/10.1590/1984-9230772...
).

Alinhado a perspectivas contemporâneas que buscam compreender as dinâmicas de mercados a partir de um olhar sociocultural (Araujo, Finch, & Kjellberg, 2010Araujo, L., Finch, J., & Kjellberg, H. (2010). Reconnecting marketing to markets. Oxford: OUP Oxford. http://dx.doi.org/10.1093/acprof:oso/9780199578061.001.0001
http://dx.doi.org/10.1093/acprof:oso/978...
; Castilhos, 2015Castilhos, R. (2015). Produzindo lugar, reproduzindo espaço: uma análise das dinâmicas de mercado no campo de moradia (Tese de doutorado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.; Giesler, 2012Giesler, M. (2012). How doppelgänger brand images influence the market creation process: longitudinal insights from the rise of Botox cosmetic. Journal of Marketing, 76(6), 55-68. http://dx.doi.org/10.1509/jm.10.0406
http://dx.doi.org/10.1509/jm.10.0406...
; Nogami, Vieira, & Medeiros, 2015Nogami, V. K. C., Vieira, F. G. D., & Medeiros, J. (2015). Construção de mercados: um estudo no mercado de notebooks para baixa renda. Gestão & Regionalidade, 31(93), 59-75. http://dx.doi.org/10.13037/gr.vol31n93.2637
http://dx.doi.org/10.13037/gr.vol31n93.2...
), destacamos o papel da tradição como um elemento sociocultural presente na construção de mercados. Ao aproximar práticas de preservação da tradição com práticas de mercado, os resultados permitem expandir a compreensão acerca do papel do mercado na manutenção das tradições locais. Demonstramos caminhos nos quais a mercantilização não necessariamente leva à destradicionalização (MacAlexander et al., 2014)Macalexander, J. H., Dufault, B. L., Martin, D. M., & Schouten, J. W. (2014). The marketization of religion: field, capital and consumer identity. Journal of Consumer Research, 41(3), 858-875. http://dx.doi.org/10.1086/677894
http://dx.doi.org/10.1086/677894...
, mas contribui na manutenção e na reinvenção da tradição, a partir da sua incorporação como referência cultural nas práticas de mercado. Para descrever esse processo, inicialmente construímos um plano teórico que considera a construção de mercados a partir de três níveis de análise: (a) agentes; (b) práticas de mercado; e (c) cultura, bem como evocamos uma discussão teórica acerca da relação entre tradição e mercantilização. Posteriormente, descrevemos os procedimentos metodológicos e o processo de mercantilização, envolvendo três estratégias: (a) tangibilização da tradição; (b) aproximação mercadológica; e (c) valorização da tradição. Por fim, as implicações teóricas e gerenciais são discutidas.

Agentes, Práticas e Cultura na Construção de Mercados

Neste estudo, tomamos o mercado como o plano principal em que as atividades de marketing ocorrem (Araujo et al., 2010Araujo, L., Finch, J., & Kjellberg, H. (2010). Reconnecting marketing to markets. Oxford: OUP Oxford. http://dx.doi.org/10.1093/acprof:oso/9780199578061.001.0001
http://dx.doi.org/10.1093/acprof:oso/978...
). Este pensamento está alinhado à visão clássica de Alderson e Cox (1948)Alderson, W., & Cox, R. (1948). Towards a theory in marketing. Journal of Marketing, 13(2), 137-152. http://dx.doi.org/10.2307/1246823
http://dx.doi.org/10.2307/1246823...
, de que o mercado é um conjunto dentro do qual a troca ocorre. Esse conjunto tem sido descrito na literatura de mercado sob diferentes lentes teóricas. Talvez as formas mais tradicionais sejam as abordagens: (a) econômica – que toma o mercado como um mecanismo para formação de preço; e (b) sociologia econômica – que reconhece o mercado como resultado de trocas, envolvendo diferentes agentes em uma estrutura sociomaterial. Tomando por base a segunda lente, ressaltamos a importância de se reconhecer a performatividade dos atores na formatação de mercados (Araujo et al., 2010Araujo, L., Finch, J., & Kjellberg, H. (2010). Reconnecting marketing to markets. Oxford: OUP Oxford. http://dx.doi.org/10.1093/acprof:oso/9780199578061.001.0001
http://dx.doi.org/10.1093/acprof:oso/978...
; Callon, 1998Callon, M. (1998). The laws of the markets. London: Blackwell.). Em adição, neste artigo, propomos uma abordagem emergente que considera os aspectos culturais de forma adicional aos sociais e materiais na compreensão do mercado.

O primeiro aspecto considera que a criação de um mercado envolve uma sequência progressiva de assimilações e contestações por parte de diferentes agentes. Nesta linha de raciocínio, diferentes agentes estão amplamente envolvidos (não só produtores) num processo constante de qualificação e requalificação das ofertas que configuram o mercado (Callon, 1998Callon, M. (1998). The laws of the markets. London: Blackwell.). Importante destacar a agência dos consumidores nessa dinâmica, reavaliando as rotinas e os sistemas de classificação dos produtos nas suas práticas. Assim, cada ato de produção – transformado em oferta − está relacionado a um ato de consumo e vice-versa, e o mercado consiste no palco em que essa interligação ocorre (Slater & Tonkiss, 2001Slater, D., & Tonkiss, F. (2001). Market society: markets and modern social theory. Oxford: Blackwell Publishers Ltd.; Venkatesh, Peñaloza, & Firat, 2006Venkatesh, A., Penãloza, L., & Firat, F. (2006). Taking the new dominant logic further: the market as a sign system. In R. Lusch & S. Vargo (Orgs.), The service-dominant logic of marketing: dialog, debate, and directions (pp. 251-265). Armonk, NY: M. E. Sharpe.).

Tal interligação passa por processos constantes de legitimação, nos quais os agentes de marketing possuem um papel duplo, ao estabelecer e desestabilizar os arranjos que estabelecem mercados (Humphreys, 2010Humphreys, A. (2010). Megamarketing: the creation of markets as a social process. Journal of Marketing, 74(2), 1-19. http://dx.doi.org/10.1509/jmkg.74.2.1
http://dx.doi.org/10.1509/jmkg.74.2.1...
) e marcas (Giesler, 2012Giesler, M. (2012). How doppelgänger brand images influence the market creation process: longitudinal insights from the rise of Botox cosmetic. Journal of Marketing, 76(6), 55-68. http://dx.doi.org/10.1509/jm.10.0406
http://dx.doi.org/10.1509/jm.10.0406...
). É nessas relações dinâmicas e conflituosas entre diferentes agentes que os mercados se transformam. Esse processo foi inicialmente descrito por Giesler (2008)Giesler, M. (2008). Conflict and compromise: drama in marketplace evolution, Journal of Consumer Research, 34(6), 739-753. http://dx.doi.org/10.1086/522098
http://dx.doi.org/10.1086/522098...
como drama, ou seja, desempenhos de agência antagônicos por grupos de consumidores e produtores, que resultam na transformação das características econômicas e competitivas do mercado. Ao considerar o papel múltiplo dos agentes na criação, na legitimação, e mesmo na desestabilização do mercado, reforçamos a perspectiva de que a agência dos produtores e dos consumidores vai além da troca em si, mas também cria normas e representações que condicionam a construção de um determinado mercado, inclusive utilizando formas contestáveis (Araujo, Kjellberg, & Spencer, 2008Araujo, L., Kjellberg, H., & Spencer, R. (2008). Market practices and forms: introduction to the special issue. Marketing Theory, 8(1), 5-14. http://dx.doi.org/10.1177/1470593107086481
http://dx.doi.org/10.1177/14705931070864...
; Castilhos, 2015)Castilhos, R. (2015). Produzindo lugar, reproduzindo espaço: uma análise das dinâmicas de mercado no campo de moradia (Tese de doutorado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil..

O segundo aspecto está relacionado aos aspectos sociais e materiais resultantes das práticas de mercado. O desenvolvimento de um mercado requer considerável investimento em uma estrutura social e material, e envolve a incorporação dessa estrutura numa lógica econômica e social (Callon, 1998Callon, M. (1998). The laws of the markets. London: Blackwell.; Finch & Geiger, 2010Finch, J., & Geiger, S. (2010). Positioning and relating: market boundaries and the slippery identity of the marketing object. Marketing Theory, 10(3), 237-251. http://dx.doi.org/10.1177/1470593110373188
http://dx.doi.org/10.1177/14705931103731...
). De maneira ampla, Kjellberg e Helgesson (2007)Kjellberg, H., & Helgesson, C. (2007). On the nature of markets and their practices. Marketing Theory, 7(2), 137-162. http://dx.doi.org/10.1177/1470593107076862
http://dx.doi.org/10.1177/14705931070768...
definem que as práticas desempenhadas pelos agentes contribuem na formação dos arranjos que constituem o mercado. De modo mais específico, os autores dividem as práticas que formam o mercado em três tipos interligados: (a) práticas de normatização – que servem para estabelecer objetivos normativos (regras e normas); (b) práticas representacionais – que servem para mostrar o mercado e como ele trabalha; e (c) práticas de troca – que servem para realizar trocas econômicas individuais. Essas práticas estão envolvidas num sistema dinâmico e são moldadas por múltiplos esforços por parte dos agentes (Araujo et al., 2010Araujo, L., Finch, J., & Kjellberg, H. (2010). Reconnecting marketing to markets. Oxford: OUP Oxford. http://dx.doi.org/10.1093/acprof:oso/9780199578061.001.0001
http://dx.doi.org/10.1093/acprof:oso/978...
; Kjellberg & Helgesson, 2007)Kjellberg, H., & Helgesson, C. (2007). On the nature of markets and their practices. Marketing Theory, 7(2), 137-162. http://dx.doi.org/10.1177/1470593107076862
http://dx.doi.org/10.1177/14705931070768...
, resultando na cocriação de valor entre os diferentes agentes (Nogami et al., 2015)Nogami, V. K. C., Vieira, F. G. D., & Medeiros, J. (2015). Construção de mercados: um estudo no mercado de notebooks para baixa renda. Gestão & Regionalidade, 31(93), 59-75. http://dx.doi.org/10.13037/gr.vol31n93.2637
http://dx.doi.org/10.13037/gr.vol31n93.2...
.

O terceiro aspecto diz respeito à cultura, visto que os agentes envolvidos em práticas de mercado agem ativamente na manipulação dos significados culturais por meio da transferência de imagens, textos e objetos (Giesler, 2012Giesler, M. (2012). How doppelgänger brand images influence the market creation process: longitudinal insights from the rise of Botox cosmetic. Journal of Marketing, 76(6), 55-68. http://dx.doi.org/10.1509/jm.10.0406
http://dx.doi.org/10.1509/jm.10.0406...
; Sandicki & Ger, 2010Sandicki, Ö., & Ger, G. (2010). Veiling in style: how does a stigmatized practice become fashionable? Journal of Consumer Research, 37(1), 15-36. http://dx.doi.org/10.1086/649910
http://dx.doi.org/10.1086/649910...
). A incorporação de uma perspectiva cultural nos estudos de mercado tem sido amplamente estimulada sob o argumento de que os agentes de mercado são historica e culturalmente constituídos (Arnould & Thompson, 2005Arnould, E. J., & Thompson, C. J. (2005). Consumer culture theory (CCT): twenty years of research. Journal of Consumer Research, 31(4), 868-882. http://dx.doi.org/10.1086/426626
http://dx.doi.org/10.1086/426626...
; Askegaard & Linnet, 2011Askegaard, S., & Linnet, J. (2011). Towards an epistemology of consumer culture theory: phenomenology and the context of context. Marketing Theory, 11(4), 381-404. http://dx.doi.org/10.1177/1470593111418796
http://dx.doi.org/10.1177/14705931114187...
; Casotti & Suarez, 2016)Casotti, L. M., & Suarez, M. C. (2016). Dez anos de consumer culture theory: delimitações e aberturas. Revista de Administração de Empresas, 56(3), 353-359. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-759020160308
http://dx.doi.org/10.1590/S0034-75902016...
. Venkatesh, Peñaloza e Firat (2006)Venkatesh, A., Penãloza, L., & Firat, F. (2006). Taking the new dominant logic further: the market as a sign system. In R. Lusch & S. Vargo (Orgs.), The service-dominant logic of marketing: dialog, debate, and directions (pp. 251-265). Armonk, NY: M. E. Sharpe. reconhecem a necessidade de uma mudança na visão de mercado, reformulando a natureza da relação dos produtores e dos consumidores de uma perspectiva individual para uma perspectiva que reconheça todos os agentes de mercado que compartilham de um mesmo universo cultural. Apesar da dificuldade em conceituar cultura, de forma geral ela é tratada como um veículo simbólico de significados, rituais e crenças compartilhados dentro de uma comunidade. A cultura influencia a ação, fornecendo parâmetros que auxiliam a construção de estratégias de ação dentro de um grupo e em espaços sociais (Swidler, 1996)Swidler, A. (1996). Culture in action: symbols and strategies. American Sociological Review, 51(2), 273-286. http://dx.doi.org/10.2307/2095521
http://dx.doi.org/10.2307/2095521...
.

Com isso, compartilhamos a visão de Reckwitz (2002)Reckwitz, A. (2002). Toward a theory of social practices: a development in culturalist theorizing. European Journal of Social Theory, 5(2), 243-263. http://dx.doi.org/10.1177/13684310222225432
http://dx.doi.org/10.1177/13684310222225...
, para quem as bases culturais são necessárias para a existência da prática e, consequentemente, reforçadas pelas próprias práticas. Essas envolvem formas de fazer e dizer que vão além da ação em si, mas envolvem também entendimento, procedimentos e engajamentos dos significados culturais e de suas representações (Warde, 2005Warde, A. (2005). Consumption and theories of practice. Journal of Consumer Culture, 5(2), 131-153. http://dx.doi.org/10.1177/1469540505053090
http://dx.doi.org/10.1177/14695405050530...
). Assim, ao aproximar os estudos de práticas de mercado de uma perspectiva cultural, devemos reconhecer que os agentes de mercado são historicamente situados e culturalmente sensíveis (Peñaloza & Venkatesh, 2006Peñaloza, L., & Venkatesh, A. (2006). Further evolving the new dominant logic of marketing: from services to the social construction of markets. Marketing Theory, 6(3) 299-316. http://dx.doi.org/10.1177/1470593106066789
http://dx.doi.org/10.1177/14705931060667...
; Pereira & Ayrosa, 2012)Pereira, S. J. N., & Ayrosa, E. A. T. (2012). Between two worlds: an ethnographic study of gay consumer culture in Rio de Janeiro. Brazilian Administration Review, 9(2), 211-228. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/bar/v9n2/a06v9n2.pdf. http://dx.doi.org/10.1590/S1807-76922012000200006
http://www.scielo.br/pdf/bar/v9n2/a06v9n...
. Importante, assim, é considerar que a cultura não define a construção de um mercado isoladamente, mas cumpre um papel central na forma como os agentes constroem e reconstroem significados, rituais, crenças e tradições por meio de práticas de mercado.

(Des)Tradicionalização e Mercantilização

Tradição consiste num processo geral de transmissão, com um sentido implícito de respeito e obediência (Williams, 1992Williams, R. (1992). Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra.). Assim, tradição não necessariamente é algo sólido, mas uma interpretação do passado que se traduz em práticas, ritos e comportamentos perpetuados pela repetição (Lenclud, 1987Lenclud, G. (1987). La tradition n'est plus ce qu'elle était...Sur les notions de tradition et de société traditionnelle en ethnologie. Terrain, 9, 110-123.). Com isso, a tradição está calcada num passado legitimador para estabelecer uma ligação entre esse passado e o presente, mesmo que seu sentido se altere fora do contexto em que foi criada. A visão contemporânea de tradição reconhece que esta não necessariamente é algo sólido, mas uma invenção do passado perpetuado pela repetição (Hobsbawm, 1984Hobsbawm E. (1984). Introdução: a invenção das tradições. In E. Hobsbawm & T. Ranger (Eds.), A invenção das tradições (pp. 9-23.). Rio de Janeiro: Paz e Terra.). A explicação para isso está no fato de que a tradição fornece soluções que se acredita serem justas, não pelo que representaram no passado, mas sim pelo que representam no presente (Hobsbawm, 1984Hobsbawm E. (1984). Introdução: a invenção das tradições. In E. Hobsbawm & T. Ranger (Eds.), A invenção das tradições (pp. 9-23.). Rio de Janeiro: Paz e Terra.; Pouillon, 1975Pouillon, J. (1975). Tradition: transmission ou reconstruction. In J. Pouillom (Org.), Fétiches sans fétichisme (pp. 155-173). Paris: Maspero.).

Dessa forma, mesmo de natureza ritual ou simbólica, a tradição inculca valores e normas através da repetição, instituindo significados culturais que instruem valores e regras a serem seguidos por um grupo social (Hobsbawm, 1984Hobsbawm E. (1984). Introdução: a invenção das tradições. In E. Hobsbawm & T. Ranger (Eds.), A invenção das tradições (pp. 9-23.). Rio de Janeiro: Paz e Terra.). Ao se apropriar da tradição, compartilha-se homogeneamente com um grupo social um sentimento de pertencimento − uma posição no mundo, a partir de um conjunto de práticas que assimilam regras estáveis e abertamente aceitas. A tradição serve, assim, como um elemento de coesão cultural em diferentes grupos sociais, definindo inclusive as condições de admissão em um grupo por meio da legitimação de instituições, ideias, valores e padrões de comportamento (Hobsbawm, 1984Hobsbawm E. (1984). Introdução: a invenção das tradições. In E. Hobsbawm & T. Ranger (Eds.), A invenção das tradições (pp. 9-23.). Rio de Janeiro: Paz e Terra.). Neste sentido, os elementos de estabilização e coesão ligados à tradição conflitariam com as práticas de desestabilização que envolvem a construção de mercado (Giesler, 2008Giesler, M. (2008). Conflict and compromise: drama in marketplace evolution, Journal of Consumer Research, 34(6), 739-753. http://dx.doi.org/10.1086/522098
http://dx.doi.org/10.1086/522098...
; Vikas et al., 2015Vikas, R., Varman, R., & Belk, R.W. (2015). Status, caste, and market in a changing Indian village. Journal of Consumer Research, 42(3), 472-498. http://dx.doi.org/10.1093/jcr/ucv038
http://dx.doi.org/10.1093/jcr/ucv038...
). A explicação para isso estaria no fato de que, na construção de mercados, os subsistemas sociais e culturais são incorporados por uma política deliberada de valorização econômica, denominada mercantilização, que enfraqueceria as instituições tradicionais (Schimank & Volkmann, 2012Schimank, U., & Volkmann, U. (2012). The marketization of society: economizing the non-economic. Bremen: Forschungsverbund Welfare Societies.).

Mercantilização é entendida como o meio pelo qual aspectos dos subsistemas sociais são submetidos a uma política deliberada de valorização econômica, expondo esses aspectos às forças do mercado (Schimank & Volkmann, 2012Schimank, U., & Volkmann, U. (2012). The marketization of society: economizing the non-economic. Bremen: Forschungsverbund Welfare Societies.). MacAlexander, Dufault, Martin e Schouten (2014)Macalexander, J. H., Dufault, B. L., Martin, D. M., & Schouten, J. W. (2014). The marketization of religion: field, capital and consumer identity. Journal of Consumer Research, 41(3), 858-875. http://dx.doi.org/10.1086/677894
http://dx.doi.org/10.1086/677894...
, analisando processos de mercantilização, observaram sua atuação como inibidores do papel da tradição na construção da identidade dos consumidores. Para os autores, a mercantilização permeia a maioria das instituições tradicionais da sociedade, atingindo inclusive os sistemas sociais e não econômicos, como educação e artes, gerando uma rejeição da autoridade reconhecida em crenças e práticas tradicionais.

Em suas análises no contexto americano, MacAlexander et al. (2014)Macalexander, J. H., Dufault, B. L., Martin, D. M., & Schouten, J. W. (2014). The marketization of religion: field, capital and consumer identity. Journal of Consumer Research, 41(3), 858-875. http://dx.doi.org/10.1086/677894
http://dx.doi.org/10.1086/677894...
observaram que a mercantilização resultaria numa rejeição da autoridade reconhecida nas instituições tradicionais, desestabilizando estruturas sociais e não econômicas num processo denominado destradicionalização ‒ conceituada como a interrupção do uso da tradição nas práticas socioculturais (Boeve, 2005Boeve, L. (2005). Religion after detraditionalization: Christian faith in a post-secular Europe. Irish Theological Quarterly, 70(2), 99-122. http://dx.doi.org/10.1177/002114000507000201
http://dx.doi.org/10.1177/00211400050700...
). Esse processo é evidenciado em produtos considerados sagrados, que, por meio da destradicionalização, tornam-se mais acessíveis e amigáveis à mercantilização (Sandicki & Ger, 2010Sandicki, Ö., & Ger, G. (2010). Veiling in style: how does a stigmatized practice become fashionable? Journal of Consumer Research, 37(1), 15-36. http://dx.doi.org/10.1086/649910
http://dx.doi.org/10.1086/649910...
).

Contudo, ao mesmo passo que representa uma ameaça à tradição, a mercantilização da tradição torna-se um fenômeno relevante para a compreensão de práticas de mercado. A condição estruturante dos agentes de mercado e suas práticas podem dar novos significados à tradição, tomando-a como um elemento de expressão dos seus interesses culturais, na estabilização e desestabilização dos mercados. Diferente de outros estudos de marketing que consideram a tradição um arranjo institucional estável (MacAlexander et al., 2014Macalexander, J. H., Dufault, B. L., Martin, D. M., & Schouten, J. W. (2014). The marketization of religion: field, capital and consumer identity. Journal of Consumer Research, 41(3), 858-875. http://dx.doi.org/10.1086/677894
http://dx.doi.org/10.1086/677894...
; Vikas et al., 2015Vikas, R., Varman, R., & Belk, R.W. (2015). Status, caste, and market in a changing Indian village. Journal of Consumer Research, 42(3), 472-498. http://dx.doi.org/10.1093/jcr/ucv038
http://dx.doi.org/10.1093/jcr/ucv038...
), ao considerar a tradição como um elemento cultural fluido e diacrônico, as referências modernas da cultura global (Dalmoro & Nique, 2014Dalmoro, M., & Nique, W. M. (2014). Cultura global do consumo e tradicionalismo local: uma reflexão teórica a partir da diacronia dos conceitos. Revista Brasileira de Gestão e Desenvolvimento Regional, 10(4), 420-442.), esta pode servir como referência em práticas que constroem mercados.

Dessa forma, ao mesmo tempo em que a mercantilização representa um risco de desestabilização das estruturas tradicionais, torna-se um fenômeno relevante para a compreensão de contextos que apresentam constantes alterações nos padrões sociais e culturais dominantes, como, por exemplo, a América Latina (Martín-Barbero, 2003Martín-Barbero, J. (2003). De los medios a las mediaciones: comunicación, cultura e hegemonía. Bogotá: Convenio Andrés Bello.). Ressaltamos, em especial, projetos que visam à orientação valorativa da tradição como um pilar na construção identitária, como o caso do Tradicionalismo Gaúcho, localizado no sul do Brasil (Oliven, 2006Oliven, R. G. (2006). A parte e o todo: a diversidade no Brasil nação. Petrópolis: Vozes.). Conforme descrito por Barbosa Lessa (1985)Barbosa Lessa, L. C. (1985). Nativismo: um fenômeno social gaúcho. Porto Alegre: L&PM., um dos principais líderes do Tradicionalismo Gaúcho, esse movimento busca a manutenção da tradição e dos laços humanos perdidos quando da desterritorialização do indivíduo, promovida pela globalização. Para isso, o passado é venerado por meio da transmissão de elementos simbólicos associados como tradicionais em diferentes instâncias da sociedade, inclusive no mercado.

O caso do Tradicionalismo Gaúcho carrega ainda como peculiaridade o fato de estar organizado em torno de entidade jurídica própria, denominada Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG). Assim, enquanto em outros contextos a mercantilização tem sido associada à destradicionalização, a análise do Tradicionalismo Gaúcho permite compreender processos culturais contrários à destradicionalização. Interessante é observar como esse processo faz uso de práticas de mercado para se estruturar.

Método

No seu plano metodológico, a construção deste artigo é derivada de um amplo estudo etnográfico na cultura tradicionalista gaúcha. O trabalho de campo que forneceu suporte para este artigo iniciou em agosto de 2009, e tomou como objeto de análises a teia de experiências, significados e ações criadas e compartilhadas pelos habitantes do Estado do Rio Grande do Sul – Brasil, que dão sentido à tradição gaúcha. A imersão formal no campo de pesquisa ocorreu em agosto de 2009, na sede do MTG, em Porto Alegre-RS. A continuidade das atividades de campo foi guiada pelas premissas da abordagem multilocalizada (Marcus, 1995Marcus, G. E. (1995). Ethnography in/of the world system: the emergence of multisited ethnography. Annual Review of Anthropology, 24(1), 95-117. http://dx.doi.org/10.1146/annurev.an.24.100195.000523
http://dx.doi.org/10.1146/annurev.an.24....
), seguindo o fluxo da cultura gaúcha, sem necessariamente preservar uma conexão com o MTG. Em setembro de 2012, ao completar três anos de trabalho de campo e após acompanhar as atividades da Semana Farroupilha – período de maior exaltação da tradição gaúcha –, entendemos que a coleta de dados já havia rendido material suficiente para a escrita do primeiro relato etnográfico. Desse relato, identificamos um processo particular de mercantilização na cultura gaúcha e decidimos voltar a campo em 2014 para coletar dados específicos sobre esse processo. Nessa segunda etapa, conduzimos novas entrevistas e acompanhamos a Semana Farroupilha em 2014, fornecendo dados complementares para a construção deste artigo. Assim, o período de coleta de dados totalizou quatro anos, dividido em dois períodos: (a) de 2009 a 2013; e (b) 2014.

A coleta de dados buscou dar conta das diferentes vozes que envolvem o tradicionalismo gaúcho, assumindo um caráter polissêmico. Para isso, a coleta de dados envolveu inicialmente observação participante em 40 locais demarcados por práticas tradicionalistas em dez diferentes cidades. Como principal meio dessa coleta nos estudos etnográficos em marketing (Cayla & Arnould, 2013Cayla, J., & Arnould, E. (2013). Ethnographic stories for market learning. Journal of Marketing, 77(4), 1-16. http://dx.doi.org/10.1509/jm.12.0471
http://dx.doi.org/10.1509/jm.12.0471...
) e capaz de explorar a riqueza dos contextos culturais brasileiros (Belk & Casotti, 2014)Belk, R., & Casotti, L. M. (2014). Ethnographic research in marketing: past, present, and possible futures. Revista Brasileira de Marketing, 13(6), 1-17. http://dx.doi.org/10.5585/remark.v13i6.2767
http://dx.doi.org/10.5585/remark.v13i6.2...
, a observação participante visou apreender fenômenos culturais particulares por meio da assimilação das categorias que ordenam o universo cultural em estudo. Para isso, buscamos um envolvimento direto com práticas culturais reconhecidas como gaúchas, participando ativamente em eventos e rodeios ligados ao MTG e realizando cursos de formação tradicionalistas. Durante o trabalho de campo, as observações eram registradas em diários (totalizando 114 páginas, em formato eletrônico), bem como por meio de registros audiovisuais, enriquecendo a representação textual com um acervo de 1.564 fotos e 390 vídeos. Esse acervo foi revisitado na análise dos dados e auxiliou na retomada da imagem mental do que foi observado em campo. Contudo, devemos reconhecer que, apesar do extenso material etnográfico, o resultado da observação participante fica a cargo do observador. Suas visões de mundo e o envolvimento com o contexto em estudo podem influenciar a capacidade de observação do pesquisador (Peirano, 1995)Peirano, M. (1995). A favor da etnografia. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.. Para superar essa limitação, o trabalho de campo foi complementado com outras duas fontes de coleta de dados.

Visando dar voz às pessoas envolvidas com o tradicionalismo gaúcho, foram conduzidas 36 entrevistas em profundidade, junto a três grupos de agentes, a saber: consumidores – pessoas que se envolvem com a cultura gaúcha por meio da aquisição de produtos ou da participação em eventos; produtores – pessoas que desempenham atividade profissional explorando o mercado tradicionalista gaúcho; e organizadores – pessoas que assumem cargo executivo no Movimento Tradicionalista Gaúcho ou em outras entidades relacionadas à cultura gaúcha. A seleção dos entrevistados se deu ao longo do trabalho de campo, identificando pessoas que ocupavam posição de destaque nos diferentes grupos e seguindo indicações de informantes. A Tabela 1 detalha as informações sociodemográficas dos entrevistados. Ressalta-se que os nomes dos informantes apresentados neste artigo são fictícios, de forma a preservar o anonimato.

Tabela 1
Descrição dos Entrevistados

Em adição, durante o trabalho de campo, foi construído um acervo com artefatos diversos – jornais, folders, panfletos, materiais publicitários e embalagens – coletados durante as atividades de campo e que envolviam, de alguma forma, símbolos da cultura gaúcha. Os artefados foram úteis para identificar a forma de comunicação utilizada pelos organizadores e produtores para transmitir informação para o grupo de consumidores, bem como os símbolos reproduzidos nessas comunicações. Esse acervo foi incorporado à pesquisa e analisado conjuntamente com os dados provenientes das observações participantes e entrevistas.

O trabalho de campo foi conduzido pelo primeiro autor. Mesmo tendo nascido no Rio Grande do Sul, o pesquisador não tinha envolvimento prévio com o MTG, mantendo somente familiariadade com elementos simbólicos que circulam na população de forma geral. De maneira complementar, para garantir alteridade na interpretação dos dados, esse processo foi acompanhado por uma pessoa que tinha total distanciamento, e pelo segundo autor deste estudo, que possui experiência com o tema, mas não teve imersão direta no campo.

Para conduzir a análise e a interpretação dos dados, utilizamos um sistema de classificação e descrição formado por códigos, códigos axiais e categorias, conforme indicado por Lofland e Lofland (1995)Lofland, J., & Lofland, L. (1995). Analyzing social settings: a guide to qualitative observation and analysis. Belmont, CA: Wadsworth.. O processo de codificação e categorização para este estudo foi predominantemente indutivo, identificando categorias emergentes a partir da organização dos dados globais, num sistema de códigos. Os dados originários das três fontes de coleta (observação participante, entrevistas e artefatos) foram organizados em uma base única (fazendo uso do software MaxQDA) e analisados integramente, atribuindo códigos aos textos e imagens e a sua posterior organização em categorias. Para este estudo, identificamos três categorias principais: (a) agentes; (b) práticas culturais; e (c) práticas de mercado. Essas categorias orientaram a construção das análises dos dados apresentadas a seguir.

O Processo de Mercantilização da Tradição

As tradições gaúchas são reportadas a partir da imagem do gaúcho do período colonial, que, a cavalo, lidava com o gado para extrair o couro ou produzir charque na região do Pampa, bem como às manifestações políticas como a Revolução Farroupilha em 1835 (Pesavento, 1982Pesavento, S. (1982). História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto.). A apropriação desse imaginário na constituição da figura do gaúcho remonta ao final do século 19, com a criação de agremiações que visavam exaltar elementos da vida no campo num contexto urbano. Contudo, foi a associação de alguns jovens interessados em reviver as tradições gaúchas em 1947 que deu início àquilo que viria a ser o Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) (Oliven, 2006Oliven, R. G. (2006). A parte e o todo: a diversidade no Brasil nação. Petrópolis: Vozes.). Naquele período, um grupo de jovens estava interessado em recriar um repertório cultural reconhecido como tradicional gaúcho, em face à iminência da cultura euroamericana que se instalava na região (Barbosa Lessa, 1985Barbosa Lessa, L. C. (1985). Nativismo: um fenômeno social gaúcho. Porto Alegre: L&PM.). O movimento passou a ganhar força na segunda metade do século, com a criação de centenas de Centros de Tradição Gaúcha (CTGs) – entidades sem fins lucrativos que dispõem de uma estrutura voltada para proporcionar aos frequentadores uma forma de vivenciar a cultura gaúcha. Atualmente, o MTG estima que cerca de um milhão de pessoas participem ativamente de atividades tradicionalistas, seja como sócio de CTG ou como participante das atividades promovidas por essas entidades. Essas atividades, com destaque para aquelas mediadas pelo mercado, são detalhadas a seguir, em três níveis de análise: agentes envolvidos, referências culturais e práticas de mercado.

Os agentes envolvidos na construção do mercado

O primeiro nível de análise diz respeito aos agentes envolvidos na preservação da tradição e na criação do mercado em torno da cultura gaúcha, envolvendo uma rede de agentes que, por meio de interações, configuram esse mercado (Callon, 1998Callon, M. (1998). The laws of the markets. London: Blackwell.). Ao dar início às observações, percebemos que os agentes assumem diferentes papéis na organização do movimento. Identificamos três grupos distintos de agentes: organizadores, produtores e consumidores. O grupo de agentes descrito como organizador – formado por entidades públicas e civis sem fins lucrativos – assume o objetivo de promulgar o tradicionalismo gaúcho e toma a frente na organização das atividades tradicionalistas. A principal entidade nesse grupo é o Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG). Como aponta a fala do entrevistado Manoel, a entidade assume a responsabilidade pela preservação da tradição gaúcha, criando uma barreira em torno da cultura gaúcha para permitir o ressurgimento de hábitos locais tradicionais.

O MTG atua na preservação da tradição por meio da instituição de um repertório cultural, que, segundo a visão da entidade, seria o composto formador da cultura gaúcha. Esse repertório é instituído e mantido por meio de regras e regulamentos que reforçam o que pertence ou não às tradições gaúchas, e que são utilizados como balizas das atividades tradicionalistas organizadas pelo MTG, como, por exemplo, rodeios e eventos artísticos. Como local para operacionalização das práticas do tradicionalismo, o MTG conta com cerca de 1.500 Centros de Tradição Gaúcha (CTG). As atividades desenvolvidas nos CTGs seguem eixos temáticos denominados invernadas, envolvendo atividades culturais (ações que visam difundir o tradicionalismo na comunidade), artísticas (apresentações e competições de dança e música), sociais (eventos, como bailes típicos) e campeiras (rodeios e cavalgadas). Dessa forma, o MTG atua na criação de normas e espaços representacionais relacionados à tradição gaúcha. Contudo, a entidade não atua de forma direta na comercialização de produtos.

O segundo grupo de agentes identificados foi denominado produtores de mercado, consistindo em indivíduos ou organizações que exploram comercialmente a tradição gaúcha. Ao ingressar no Acampamento Farroupilha em Porto Alegre – primeiro local de prática do tradicionalismo visitado no trabalho de campo, chamou-nos a atenção o vasto comércio que ocorria naquele local. Ao longo do trabalho de campo, compreendemos que o comércio não ocorre de modo singular, mas como resultado de diferentes modelos de negócios ou atividades profissionais. Formando esse grupo, primeiramente destacamos empresas que têm o tradicionalismo como foco do negócio. Esse segmento envolve fabricantes, distribuidores e varejistas de produtos reconhecidos como típicos da cultura gaúcha (indumentária e acessórios, cavalo criolo e equipamentos relacionados, erva-mate, entre outros), bem como organizadores de eventos tradicionalistas. Esse tipo de negócio se apropria da cultura gaúcha para fins comerciais e o sucesso deste depende exclusivamente da existência do tradicionalismo. Os agentes desse grupo, apesar de uma especialização profissional, têm algum tipo de envolvimento com o tradicionalismo e são entusiastas da cultura gaúcha, encontrando no negócio uma forma de fomentar o tradicionalismo, como, por exemplo, o entrevistado Tiago, proprietário de uma loja no interior do Estado:

“A loja foi aberta para preencher uma lacuna que tinha no mercado tradicionalista. Eu mesmo me deslocava seguido para a grande Porto Alegre para comprar a minha indumentária, porque não tinha nenhuma loja especializada em indumentária tradicional aqui na região, ... Sou bem envolvido com o tradicionalismo. Na verdade foi unir o útil ao agradável” (Tiago).

Adicionalmente, destacamos aquelas empresas que não oferecem produtos reconhecidos como tradicionais, mas exploram a tradição nas ações de comunicação, aproximando suas marcas com o consumidor local por meio de patrocínio aos eventos do MTG. Esses produtores de mercado ganham apoio do grupo de organizadores, pois, segundo o entrevistado Otávio (ex-presidente do MTG), “garantem a viabilidade financeira do movimento”. Durante o trabalho de campo, chamou atenção o crescente envolvimento de empresas nacionais ou mesmo com atuação global e sem conexão direta com o Rio Grande do Sul nos eventos do MTG. Destaque para empresas como NIKON, SKY e TIM. Em um release divulgado pela TIM, esta reforçava que, ao patrocinar o calendário oficial de eventos do MTG, buscava estar cada vez mais próxima dos gaúchos. Ou seja, tais empresas visualizam, nas ações do MTG, uma forma eficiente de se conectar com os consumidores. Fechando o grupo de produtores, identificamos, ainda, os produtores culturais – artistas que exploram os símbolos da tradição gaúcha nas suas produções, como músicos regionais que seguem uma linha denominada música gaúcha (ou gauchesca), e os veículos de comunicação locais, que divulgam aspectos relacionados à tradição. Destacamos aqui jornais com conteúdo editorial específico sobre o tradicionalismo, como por exemplo, o Eco da Tradição e o Jornal do Nativismo, e programas televisivos, como o Galpão Crioulo.

Por fim, o terceiro grupo de agentes é denominado consumidores. Ao conversar com os participantes das atividades tradicionalistas ao longo do trabalho de campo, observamos que grande parte deles não assume um papel ativo na organização do movimento, mas sim participa como consumidor de eventos e produtos. Analisando o perfil dos consumidores entrevistados, observamos que, embora de origem urbana, no seu passado familiar estes preservam algum vínculo com o campo. Participar das atividades do MTG é uma forma de se reconectar com este passado: “o gostar vem de família, a gente aprende com o pai, com o vô e vem mantendo a tradição” (Adilson).

Analisando de forma conjunta os três grupos de agentes, observamos que eles se complementam e interagem entre si por meio da tradição gaúcha como uma assimilação comum, produzindo e estabilizando formas de interações materiais e sociais, conforme descrito por Kjellberg e Helgesson (2007)Kjellberg, H., & Helgesson, C. (2007). On the nature of markets and their practices. Marketing Theory, 7(2), 137-162. http://dx.doi.org/10.1177/1470593107076862
http://dx.doi.org/10.1177/14705931070768...
. A Figura 1 demonstra a complementariedade e a intercessão dos agentes na formação do mercado, representados de maneira gráfica em três estágios que se interconectam por meio de práticas de consumidores, produtores e organizadores.

Figura 1
Complementaridade e Intercessão das Agentes na Formação do Mercado

Os estágios se complementam na alocação de papéis para cada grupo de agente, com destaque para os agentes organizadores. Estes são responsáveis pela organização de ações que permitem aos produtores e consumidores se inserirem num arranjo material e social instituído que dá forma ao mercado. Apesar dos interesses de cada agente em balizar suas ações (Callon, 1998Callon, M. (1998). The laws of the markets. London: Blackwell.), a tradição gaúcha é tomada como base comum nas práticas, e, mesmo envolvendo agentes heterogêneos, interliga esses agentes a partir de um enquadramento estável (tradição) para a construção do mercado.

A tradição como referência nas práticas culturais

Ao descrever os agentes relacionados ao tradicionalismo gaúcho, destacamos a utilização de elementos ligados à tradição gaúcha como uma fonte de referência cultural comum. A construção de um mercado envolve a manipulação de significados culturais (Arsel & Thompson, 2011Arsel, Z., & Thompson, C. J. (2011). Demythologizing consumption practices: how consumers protect their field-dependent identity investments from devaluing marketplace myths. Journal of Consumer Research, 37(5), 791-806. http://dx.doi.org/10.1086/656389
http://dx.doi.org/10.1086/656389...
; Sandicki & Ger, 2010)Sandicki, Ö., & Ger, G. (2010). Veiling in style: how does a stigmatized practice become fashionable? Journal of Consumer Research, 37(1), 15-36. http://dx.doi.org/10.1086/649910
http://dx.doi.org/10.1086/649910...
. No caso da tradição gaúcha, os agentes envolvidos nessa manipulação encontram três temas culturais distintos e que funcionam como referências comuns para os agentes balizarem suas práticas de mercado.

O primeiro deles diz respeito ao reforço de construções históricas. O culto e a preservação das tradições passam pelo conhecimento da população local de suas origens, recorrendo, assim, à significação ou mesmo à invenção de aspectos tomados como históricos. De acordo com o entrevistado Cassiano, a repercussão do passado ressignificado na cultura gaúcha é evidente, pois o gaúcho conserva os aspectos positivos do seu passado, reconstruindo, a partir destes, sua história, e renegando os aspectos negativos. Um fato observado durante o trabalho de campo que reforça essa relação são as crescentes festividades para celebrar a Revolução Farroupilha (1835-1845). A evocação desses aspectos históricos – hoje compreendida como parte da tradição gaúcha – consiste numa celebração recente, tanto que o estabelecimento da data de 20 de setembro como feriado estadual em comemoração à Revolução Farroupilha aconteceu em 1996. Mesmo que a dita Revolução tenha sido considerada por um longo período um aspecto negativo da história do Rio Grande do Sul, o tradicionalismo tem contribuído para ressignificar esse passado e reavivá-lo no imaginário dos gaúchos. O entrevistado Márcio reforça essa observação, para quem as construções históricas são usadas para fortalecer a tradição gaúcha. Segundo ele, quando se fala em tradicionalismo, a história é evocada como suporte, mesmo que no seu todo apresente incoerências quando comparada àquela contada por historiadores sem vínculo com o tradicionalismo gaúcho.

O segundo tema consiste no orgulho em ser gaúcho. Como o entrevistado Roberto menciona: “no fundo, dificilmente alguém não tem orgulho de ser gaúcho, de dizer que é gaúcho”. Os entrevistados argumentam que o orgulho deriva do fato de que, na cultura gaúcha, o passado é tomado como um motivo de orgulho, e, assim, tudo que está atrelado a ele é digno de ser preservado: “é o amor, amor verdadeiro que nós temos, porque nós nascemos aqui” (Jorival). A entrevistada Marciane comenta que o orgulho em ser gaúcho estimula as pessoas a procurarem conhecer mais de suas tradições e a engajarem-se na sua preservação: “a gente tem orgulho e quer saber mais, quanto mais se apega, mais se quer saber e preservar” (Marciane).

O terceiro tema diz respeito à manutenção de um vínculo identitário com a cultura gaúcha. Ao longo do trabalho de campo, observamos que, indiferente do nível de envolvimento com o tradicionalismo, os gaúchos reconhecem os aspectos formadores da cultura gaúcha e utilizam-nos no seu cotidiano para construir uma identidade alinhada à tradição. Como o entrevistado Vitor ressalta, “as pessoas gostam de encontrar na imagem favorável do bravo gaúcho uma fonte identitária própria e que as diferencia dos demais povos”. Esse entendimento é reforçado pelo entrevistado Manoel, que destaca também o fato de o cultivo da tradição auxiliar no fomento da cultura gaúcha como fonte identitária: “o tradicionalismo fez aflorar a questão da identidade, é um motor que não cria identidade, ele cria condições da identidade gaúcha aflorar” (Manoel).

Esses três temas são responsáveis por − de forma dinâmica − alimentar a tradição gaúcha no âmbito das práticas culturais dos agentes, servindo como referência cultural. Em linha com o entendimento de Callon (1998)Callon, M. (1998). The laws of the markets. London: Blackwell., o nível de conhecimento dos agentes, seus significados e motivações direcionam suas práticas. Assim, observamos que as referências fornecidas pelos temas culturais servem como guia para as práticas de preservação da tradição.

As práticas de mercado em torno da tradição gaúcha

A interação entre os diferentes agentes e a incorporação da tradição como fonte de referência cultural não ocorrem de forma desconexa às práticas de mercado, uma vez que as práticas retroalimentam as referências culturais (Reckwitz, 2002Reckwitz, A. (2002). Toward a theory of social practices: a development in culturalist theorizing. European Journal of Social Theory, 5(2), 243-263. http://dx.doi.org/10.1177/13684310222225432
http://dx.doi.org/10.1177/13684310222225...
). Assim, ao analisar as relações envolvendo os três grupos de agentes no mercado, observamos que as referências culturais servem de suporte para incorporar a tradição nas práticas de mercado. Para isso, os agentes lançam mão de três estratégias complementares: tangibilização, aproximação mercadológica e valorização da tradição.

A preservação da tradição gaúcha nas práticas de mercado envolve, inicialmente, a construção de uma estrutura sociomaterial. Como Kjellberg e Helgesson (2007)Kjellberg, H., & Helgesson, C. (2007). On the nature of markets and their practices. Marketing Theory, 7(2), 137-162. http://dx.doi.org/10.1177/1470593107076862
http://dx.doi.org/10.1177/14705931070768...
afirmam, a construção de um mercado é processo contínuo de interação material e social. Assim, identificamos a construção de uma estrutura material reconhecida como tradicional pelos agentes de mercado, denominada tangibilização da tradição. O proprietário de uma loja de produtos tradicionalistas comenta que, na percepção dele, existem pessoas querendo consumir produtos relacionados à tradição, então produtores criam esses produtos, contribuindo na formação dos arranjos do mercado. Por sua vez, com a oferta, as pessoas identificam nos produtos uma forma de se aproximarem da tradição reconhecida como sua.

Essa análise se faz evidente principalmente no leque de produtos ofertados nas lojas especializadas. Tais lojas consistem num polo catalisador do consumo da cultura gaúcha, pois permitem que os consumidores acessem diferentes produtos de maneira facilitada, como bombachas, vestidos, botas, lenços, alpargatas, facas e inúmeros acessórios para a caracterização da vestimenta típica gaúcha ou para a prática de atividades ligadas às tradições gaúchas, como os rodeios. Como o entrevistado Adilson descreve, quando ele está pilchado (usando roupas típicas), sente-se gaúcho por dentro e por fora, evidenciando assim a interação dos aspectos materiais nas práticas culturais. O caráter simbólico das roupas também foi observado pelo pesquisador durante o trabalho de campo, uma vez que se considerava mais bem recebido nos eventos quando estava vestindo bombacha (calça típica) e botas.

O chimarrão também é apontado como um exemplo da tangibilização da cultura. Apontado como o símbolo gaúcho, o hábito de tomar chimarrão envolve a aquisição de três produtos básicos: cuia, erva-mate e bomba, sem contar a água e algum instrumento para acondicionar a água. Interessante é a forma com os consumidores relacionam a aquisição de objetos materiais com práticas de preservação da tradição, numa tentativa de justificar trocas econômicas: “assim como tu vai comprar uma cuia, uma térmica, a erva-mate, tudo é custo, mas é da nossa tradição” (Liliane).

No entanto, a tangibilização da tradição não pode ser entendida somente como a construção de bens materiais identificados como tradicionais. Os produtores de mercado, juntamente com os organizadores, promovem um leque de eventos que congregam milhares de pessoas interessadas em acessar a tradição gaúcha. A entrevistada Marta destaca a importância desses eventos nas suas práticas cotidianas de consumo:

“meu contato diário é com eventos, rodeios, assistir apresentações de grupos ... o que eu mais gasto é para ir nos eventos, para ir nos rodeios. Com roupa não tanto porque eu não compro tanto, com o que eu tenho tá bom” (Marta).

Dentre o leque de eventos, destacamos o Acampamento Farroupilha, pelo seu objetivo de celebrar a Revolução Farroupilha. O acampamento consiste num momento em que a tradição busca ser vivida simbolicamente, mas, além disso, trata-se de uma oportunidade comercial para os produtores de mercado. O comércio é visível por todos os lados do acampamento, inclusive contando com uma área especial para trocas econômicas. Num amplo lonão, denominado feira tradicionalista, dezenas de lojas oferecem produtos tradicionalistas: facas, artesanato, CDs, livros, consistindo num dos lugares com maior circulação de público no evento.

Em complemento ao Acampamento Farroupilha, rodeios são locais para vivenciar a tradição gaúcha. Estima-se que ocorram no estado cerca de 400 rodeios por ano, envolvendo em torno de cinco mil pessoas, entre competidores e expectadores em cada evento. O entrevistado José destaca a importância desses eventos para os gaúchos: “rodeio é tudo para o gaúcho porque ele oferece a opção para viver as tradições gaúchas” (José). Cada rodeio, além de oportunizar o contato do público e dos participantes com atividades campeiras, movimenta um mercado que vai desde a exposição de marcas patrocinadoras, mídia de divulgação do evento, expositores, comercialização de produtos tradicionalistas e alimentação. Os participantes dos eventos pagam uma entrada, e os competidores, um valor referente à inscrição, que, geralmente, é revertido em premiação para os vencedores. Esses eventos também oportunizam aos participantes adquirirem produtos tradicionalistas, por meio de lojas expositoras itinerantes, como destaca o entrevistado Gustavo:

“nos rodeios, hoje tem as lojas móveis, os caras têm um caminhão, um ônibus com tudo dentro, muita gente compra ali, porque tu tá ali, é fácil, tu não precisa sair exclusivamente para isso, tem muita coisa ali que não encontra nas lojas, por ser alguma coisa diferenciada, com um valor mais agregado” (Gustavo).

Dessa forma, os eventos são locais para o desempenho de práticas representacionais (Kjellberg & Helgesson, 2007Kjellberg, H., & Helgesson, C. (2007). On the nature of markets and their practices. Marketing Theory, 7(2), 137-162. http://dx.doi.org/10.1177/1470593107076862
http://dx.doi.org/10.1177/14705931070768...
), bem como permitem a realização de práticas de troca. É justamente a possibilidade de trocas comerciais que permite o desenvolvimento da segunda estratégia, denominada aproximação mercadológica. Essa estratégia é desempenhada principalmente pelos produtores de mercado, que, ao produzirem e ofertarem produtos ligados à cultura gaúcha, aproximam os elementos da tradição aos consumidores. Consumidores relatam que buscam junto aos produtores (especialmente nas lojas especializadas) informações sobre produtos e modos de uso na tentativa de preservar um alinhamento com práticas tidas como tradicionais. A relação entre produtores e consumidores por intermédio do mercado fortalece os aspectos da tradição e da cultura gaúcha, pois, mutuamente, os consumidores têm um contato ampliado com os elementos gaúchos, e os produtores aproveitam para obter sustento financeiro operando nesse mercado. Assim, as práticas de mercado contribuem no reforço de um senso de conexão entre os agentes a partir da existência de um elemento identificador comum: a tradição gaúcha. Já o MTG busca atuar como balizador nesse processo de conexão entre os produtores e os consumidores, organizando eventos e estabelecendo materiais que, nas palavras do presidente do MTG, “deixam claro para a sociedade o que é tradicional e o que não é tradicional” (Manoel).

A aproximação mercadológica estimula uma terceira estratégia, denominada valorização da tradição. Elementos simbólicos e objetos conectados à tradição gaúcha, bem como características identitárias do povo gaúcho, são exaltados pelos agentes como uma forma de reforçar os vínculos comunitários. Tomando uma perspectiva cultural de mercado, na qual os agentes de um determinado mercado formam uma comunidade (Venkatesh et al., 2006Venkatesh, A., Penãloza, L., & Firat, F. (2006). Taking the new dominant logic further: the market as a sign system. In R. Lusch & S. Vargo (Orgs.), The service-dominant logic of marketing: dialog, debate, and directions (pp. 251-265). Armonk, NY: M. E. Sharpe.), a valorização da tradição garante um compartilhamento simbólico que retroalimenta o mercado. Para isso, a principal forma de valorização da tradição é por meio da publicidade, utilizada até mesmo por empresas com pouco ou nenhum vínculo com a cultura gaúcha:

“É uma identidade forte e qualquer empresa que se instale aqui enfatiza isso, qualquer empresa que quer entrar aqui tem que enfatizar ... o gaúcho é um consumidor diferente do resto do país e quem entra aqui tem que saber que está entrando num outro tipo de ambiente” (Roberto).

O caso mais representativo desse tipo de ação consiste na cerveja Polar, que constrói sua imagem de marca reforçando a tradição gaúcha, mesmo pertencendo à multinacional AMBEV. Um exemplo acompanhado ao longo do trabalho de campo foi a campanha intitulada Polar.RS, que explorava o orgulho gaúcho, exemplificando as estratégias de valorização da tradição.

Dessa forma, o tradicionalismo gaúcho encontra, nos produtores de mercado, aliados à valorização da tradição, pois esses produtores atuam de forma contundente na retroalimentação do desejo dos consumidores de preservarem aspectos considerados tradicionais nas suas práticas de mercado. Como o proprietário de uma loja de produtos tradicionalistas enfatiza: “na verdade, esse é um mercado que a gente faz crescer, todo mês tem coisa nova aparecendo, tem produtos novos que são lançados, toda semana tem rodeio em algum lugar, tem evento todo dia” (Tiago). Durante o trabalho de campo, foi possível observar que os produtos ofertados no mercado são compreendidos pelos consumidores como uma oportunidade de manter um vínculo com suas tradições. Eles não observam incoerência em adquirir um produto tido como tradicional num shopping center, por exemplo. Como o entrevistado Manoel afirma, não é possível preservar a tradição enquanto produto, pois não existem mais os mesmos produtos do passado, mas a raiz dos valores locais é preservada, mesmo que por meio de novos mecanismos de distribuição.

Neste sentido, as práticas de mercado contribuem com a tangibilização, a aproximação mercadológica e a valorização de aspectos ligados à tradição, de forma que transformam o mercado num framework útil na produção, na distribuição e na apropriação de referências culturais calcadas na tradição. Considerando o mercado como um espaço de interligação de agentes e de construção cultural, as práticas de mercado podem se valer da tradição como referência cultural para a construção de ofertas. As estratégias observadas para essa construção, ao invés de desafiarem os aspectos tradicionais (MacAlexander et al., 2014Macalexander, J. H., Dufault, B. L., Martin, D. M., & Schouten, J. W. (2014). The marketization of religion: field, capital and consumer identity. Journal of Consumer Research, 41(3), 858-875. http://dx.doi.org/10.1086/677894
http://dx.doi.org/10.1086/677894...
; Vikas et al., 2015Vikas, R., Varman, R., & Belk, R.W. (2015). Status, caste, and market in a changing Indian village. Journal of Consumer Research, 42(3), 472-498. http://dx.doi.org/10.1093/jcr/ucv038
http://dx.doi.org/10.1093/jcr/ucv038...
), reforçam-nos, tornando o mercado um local de acesso e valorização de referenciais culturais tradicionais. A Figura 2 busca descrever esse processo, ressaltando os agentes, os aspectos culturais ligados à tradição e as práticas de mercado, que, de forma cíclica, fomentam a mercantilização da tradição.

Figura 2
Síntese do Processo de Mercantilização da Tradição

Considerações Finais

Fazendo uso de um estudo etnográfico na cultura gaúcha, neste artigo buscamos analisar de que forma as práticas de mercado são utilizadas como um mecanismo de preservação da tradição. Há algum tempo a incorporação de aspectos não econômicos, pelas lógicas do mercado, consiste numa das principais características da mercantilização das sociedades contemporâneas (Polany, 1944Polany, K. (1944). The great transformation: the political and economic origins of our time. Boston: Bacon Press.). Contudo, neste estudo, foi possível identificar um processo contemporâneo de mercantilização da tradição, ou seja, um processo pelo qual a tradição é incorporada, distribuída e acessada em práticas de mercado por diferentes agentes.

Os resultados, ao serem interpretados à luz das teorias de marketing, contribuem com estudos prévios que destacam os esforços coletivos como fundamentais para a configuração do mercado (Callon, 1998Callon, M. (1998). The laws of the markets. London: Blackwell.; Kjellberg & Helgesson, 2007Kjellberg, H., & Helgesson, C. (2007). On the nature of markets and their practices. Marketing Theory, 7(2), 137-162. http://dx.doi.org/10.1177/1470593107076862
http://dx.doi.org/10.1177/14705931070768...
). A análise do tradicionalismo gaúcho, em específico, permitiu identificar esforços conjuntos de produtores, consumidores e principalmente dos organizadores na construção do mercado. Esses agentes encontram na tradição uma referência simbólica comum, pois, como Hobsbawm (1984)Hobsbawm E. (1984). Introdução: a invenção das tradições. In E. Hobsbawm & T. Ranger (Eds.), A invenção das tradições (pp. 9-23.). Rio de Janeiro: Paz e Terra. lembra, essa referência auxilia homens de hoje a resolver problemas atuais. Neste caso, identificamos que a tradição serve como referência para desenvolver estratégias de mercantilização por meio da interligação de três grupos distintos de agentes. Os esforços coletivos são capazes de reproduzir representações tradicionais que retroalimentam simbolicamente as trocas econômicas que sustentam o mercado.

Conforme Slater e Tonkiss (2001)Slater, D., & Tonkiss, F. (2001). Market society: markets and modern social theory. Oxford: Blackwell Publishers Ltd., os princípios de mercado estão penetrando cada vez mais na vida social e mediam aspectos culturais na sociedade contemporânea, inclusive aspectos da tradição e da cultura. Assim, diante da mercantilização das sociedades contemporâneas, os agentes envolvidos na preservação da tradição reconhecem no mercado um ambiente fecundo para incorporar práticas que revivem aspectos tidos como tradicionais. A mercantilização da tradição revela-se um processo no qual o mercado permite o desenvolvimento de uma estrutura sociomaterial (Callon, 1998Callon, M. (1998). The laws of the markets. London: Blackwell.; Finch & Geiger, 2010Finch, J., & Geiger, S. (2010). Positioning and relating: market boundaries and the slippery identity of the marketing object. Marketing Theory, 10(3), 237-251. http://dx.doi.org/10.1177/1470593110373188
http://dx.doi.org/10.1177/14705931103731...
) para distribuição e apropriação da tradição. Diante disso, o estudo contribui especialmente na identificação de três estratégias complementares, desempenhadas pelos diferentes grupos de agentes que tangibilizam, aproximam e valorizam a tradição nas práticas de mercado. A Tabela 2 sintetiza as práticas dos diferentes agentes que resultam na mercantilização da tradição.

Tabela 2
Práticas de Mercantilização da Tradição

A identificação de estratégias de mercantilização da tradição contribui com os estudos acerca das práticas de mercado em diferentes sentidos. Primeiramente, identificamos como a imagem tradicional do gaúcho serve de modelo representacional para os agentes de mercado construir uma estrutura sociomaterial representada por produtos simbólicos acessados via mercado. Já os consumidores encontram nessa estrutura uma forma de acessar, mesmo que simbolicamente, aquilo que eles entendem como sendo tradicional. No caso da cultura gaúcha, os modelos representacionais diferem em termos das práticas representacionais descritas por Kjellberg e Helgesson (2007)Kjellberg, H., & Helgesson, C. (2007). On the nature of markets and their practices. Marketing Theory, 7(2), 137-162. http://dx.doi.org/10.1177/1470593107076862
http://dx.doi.org/10.1177/14705931070768...
, visto que, ao invés de mostrar como o mercado funciona, as representações servem para orientar os agentes na construção de ofertas alinhadas com práticas, ritos, comportamentos e símbolos considerados tradicionais.

Em adição, os resultados revelam um processo no qual o mercado serve de palco para conectar diferentes agentes em torno de referências culturais comuns. Em linha com Outka (2009)Outka, E. (2009). Consuming traditions: modernity, modernism, and the commodified authentic. Oxford: Oxford University Press., os consumidores passam a ter acesso e a consumir a tradição por meio da sua aproximação via mercado. Ao dar luz a essa dinâmica, conferimos um olhar alternativo à mercantilização como um processo de desestabilização das estruturas sociais (Vikas et al., 2015Vikas, R., Varman, R., & Belk, R.W. (2015). Status, caste, and market in a changing Indian village. Journal of Consumer Research, 42(3), 472-498. http://dx.doi.org/10.1093/jcr/ucv038
http://dx.doi.org/10.1093/jcr/ucv038...
), visto que o consumo da tradição, ao estabelecer uma conexão entre o passado e o presente (Hobsbawm, 1984Hobsbawm E. (1984). Introdução: a invenção das tradições. In E. Hobsbawm & T. Ranger (Eds.), A invenção das tradições (pp. 9-23.). Rio de Janeiro: Paz e Terra.; Oliven, 2006Oliven, R. G. (2006). A parte e o todo: a diversidade no Brasil nação. Petrópolis: Vozes.), pode resultar num processo de estruturação de um ambiente cultural estável no qual os consumidores baseariam seus projetos de identidade. Dessa forma, por meio das práticas de mercado, os agentes reforçam normas e representações (Araujo et al., 2008Araujo, L., Kjellberg, H., & Spencer, R. (2008). Market practices and forms: introduction to the special issue. Marketing Theory, 8(1), 5-14. http://dx.doi.org/10.1177/1470593107086481
http://dx.doi.org/10.1177/14705931070864...
) que legitimam os arranjos de um determinado mercado (Humphreys, 2010Humphreys, A. (2010). Megamarketing: the creation of markets as a social process. Journal of Marketing, 74(2), 1-19. http://dx.doi.org/10.1509/jmkg.74.2.1
http://dx.doi.org/10.1509/jmkg.74.2.1...
) em torno de uma estrutura sociomaterial estabilizada pela tradição.

Por fim, a exploração e a exaltação de aspectos simbólicos da cultura local nas práticas de mercado demonstram contribuir na valorização da tradição entre os agentes. Mesmo que de maneira intencional (Callon, 1998Callon, M. (1998). The laws of the markets. London: Blackwell.), agentes sem conexão com a tradição gaúcha adotam estratégias de valorização para criar vínculos comunitários com os demais agentes. O mercado passa a consistir numa forma de exaltar, distribuir e de se apropriar da tradição gaúcha por parte dos produtores e dos consumidores, que no seu cotidiano não têm relação direta com esse universo cultural.

Com base nesses resultados, o estudo apresenta um olhar complementar a estudos prévios que encontraram na mercantilização uma causa da destradicionalização (MacAlexander et al., 2014Macalexander, J. H., Dufault, B. L., Martin, D. M., & Schouten, J. W. (2014). The marketization of religion: field, capital and consumer identity. Journal of Consumer Research, 41(3), 858-875. http://dx.doi.org/10.1086/677894
http://dx.doi.org/10.1086/677894...
) e desestabilização das normas sociais (Vikas et al., 2015Vikas, R., Varman, R., & Belk, R.W. (2015). Status, caste, and market in a changing Indian village. Journal of Consumer Research, 42(3), 472-498. http://dx.doi.org/10.1093/jcr/ucv038
http://dx.doi.org/10.1093/jcr/ucv038...
). No caso da cultura gaúcha, a mercantilização da tradição envolve um conjunto de estratégias que reforçam a tradição local pela sua incorporação nas práticas de mercado. Como um conceito fluido – uma invenção nas palavras de Hobsbawm (1984)Hobsbawm E. (1984). Introdução: a invenção das tradições. In E. Hobsbawm & T. Ranger (Eds.), A invenção das tradições (pp. 9-23.). Rio de Janeiro: Paz e Terra. −, a exploração de elementos simbólicos da tradição na construção de ofertas proporciona a incorporação da tradição nas práticas mercado. Uma vez que o mercado consiste num local para a construção de identidades, significados culturais, espaços, interesses e gostos (Arsel & Bean, 2013Arsel, Z., & Bean, J. (2013). Taste regimes and market-mediated practice. Journal of Consumer Research, 39(5) 899-917. http://dx.doi.org/10.1086/666595
http://dx.doi.org/10.1086/666595...
; Arsel & Thompson, 2011Arsel, Z., & Thompson, C. J. (2011). Demythologizing consumption practices: how consumers protect their field-dependent identity investments from devaluing marketplace myths. Journal of Consumer Research, 37(5), 791-806. http://dx.doi.org/10.1086/656389
http://dx.doi.org/10.1086/656389...
; Castilhos, 2015Castilhos, R. (2015). Produzindo lugar, reproduzindo espaço: uma análise das dinâmicas de mercado no campo de moradia (Tese de doutorado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.; Sandicki & Ger, 2010)Sandicki, Ö., & Ger, G. (2010). Veiling in style: how does a stigmatized practice become fashionable? Journal of Consumer Research, 37(1), 15-36. http://dx.doi.org/10.1086/649910
http://dx.doi.org/10.1086/649910...
, ao darmos luz ao processo de mercantilização da tradição, contribuímos com os estudos anteriores, demonstrando que o mercado também consiste num ambiente fecundo para a preservação de tradições culturais.

Em termos gerenciais, esses resultados contribuem com a literatura de marketing em diferentes sentidos. Inicialmente, destacamos a importância de analisar os mercados considerando três níveis de análises: (a) agentes, (b) práticas e (c) culturas. Os elementos culturais têm um poder estruturante nas dinâmicas de construção de mercados. Ao apontar a tradição como um destes elementos, identificamos inúmeras possibilidades de apropriação da tradição no fomento de novos mercados, envolvendo tanto instituições organizadas quanto tradições populares. No âmbito das instituições, organizações representativas da cultura brasileira, como clubes de futebol e escolas de samba, possuem potencial para desenvolvimento de estruturas sociomateriais específicas, calcadas na tradição dessas instituições. No âmbito da cultura brasileira, as tradições nordestinas emergem como um caso próximo ao gaúcho, envolvendo um processo crescente de mercantilização. Assim, ao dar luz ao papel da tradição nas práticas de mercado, reforçamos a importância de reconhecer os mercados como um ambiente culturalmente construído e o poder de estruturação dos diferentes agentes. Não esperamos que os agentes tentem gerenciar esse fato, mas sim reconhecer que os mais diferentes agentes envolvidos num mercado estão constantemente significando e ressignificando o próprio mercado. Com isso, reforçamos a visão de Cayla e Arnould (2013)Cayla, J., & Arnould, E. (2013). Ethnographic stories for market learning. Journal of Marketing, 77(4), 1-16. http://dx.doi.org/10.1509/jm.12.0471
http://dx.doi.org/10.1509/jm.12.0471...
, para quem os estudos de mercado devem apreender e não prever o mercado.

Para isso, é importante destacar que as práticas de mercado não são livres de sentido, e dessa forma, devemos reconhecer os jogos de interesses envolvidos nos processos de mercantilização da tradição. Nesse estudo, a tradição não deve ser vista como algo sólido, mas sim uma interpretação do passado à luz dos interesses dos agentes envolvidos (Hobsbawm, 1984Hobsbawm E. (1984). Introdução: a invenção das tradições. In E. Hobsbawm & T. Ranger (Eds.), A invenção das tradições (pp. 9-23.). Rio de Janeiro: Paz e Terra.; Pouillon, 1975Pouillon, J. (1975). Tradition: transmission ou reconstruction. In J. Pouillom (Org.), Fétiches sans fétichisme (pp. 155-173). Paris: Maspero.) e que não necessariamente respeitam uma autenticidade simbólica. Esse fato deve ser encarrado também como uma limitação do estudo, visto que, ao explorar um contexto urbano e com o qual os pesquisadores já estão familiarizados (Velho & Kuschnir, 2003Velho, G., & Kuschnir, K. (2003). Pesquisas urbanas: desafios do trabalho antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.), símbolos e práticas comuns aos olhos dos pesquisadores podem ter passado despercebidos no processo de interpretação dos dados. Assim, deve-se reconhecer a presença de um inevitável etnocentrismo diante das dificuldades subjetivas em absorver tudo o que ocorre no campo, estabelecendo fatos etnográficos (Peirano, 1995)Peirano, M. (1995). A favor da etnografia. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. restritos às relações de mercado que se fizeram reluzentes aos olhos dos pesquisadores.

Além disso, reconhecendo a existência de uma estrutura sociomaterial que media as práticas, estudos adicionais poderiam adotar um olhar sobre a estrutura, ou mesmo, a partir de uma ontologia plana, reconhecer a interferência dos aspectos materiais na construção da realidade (Latour, 2005Latour, B. (2005). Reassembling the social: an introduction to actor-network theory. Oxford: Oxford University Press. http://dx.doi.org/10.1080/10967490701515606
http://dx.doi.org/10.1080/10967490701515...
). Distinções no âmbito da compreensão do conceito de tradição também devem ser mencionadas, ressaltando que, neste estudo, o conceito foi tomado num sentido amplo, um elemento cultural – enquanto um meio de vida (Williams, 1992Williams, R. (1992). Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra.) e não de forma restrita enquanto instituições tradicionais – organizações tradicionais. Novos estudos podem explorar casos em que as instituições tradicionais tornem-se agentes de mercados, ampliando a compreensão do papel da tradição na construção de mercado.

Referências

  • Alderson, W., & Cox, R. (1948). Towards a theory in marketing. Journal of Marketing, 13(2), 137-152. http://dx.doi.org/10.2307/1246823
    » http://dx.doi.org/10.2307/1246823
  • Araujo, L., Finch, J., & Kjellberg, H. (2010). Reconnecting marketing to markets Oxford: OUP Oxford. http://dx.doi.org/10.1093/acprof:oso/9780199578061.001.0001
    » http://dx.doi.org/10.1093/acprof:oso/9780199578061.001.0001
  • Araujo, L., Kjellberg, H., & Spencer, R. (2008). Market practices and forms: introduction to the special issue. Marketing Theory, 8(1), 5-14. http://dx.doi.org/10.1177/1470593107086481
    » http://dx.doi.org/10.1177/1470593107086481
  • Arnould, E. J., & Thompson, C. J. (2005). Consumer culture theory (CCT): twenty years of research. Journal of Consumer Research, 31(4), 868-882. http://dx.doi.org/10.1086/426626
    » http://dx.doi.org/10.1086/426626
  • Arsel, Z., & Bean, J. (2013). Taste regimes and market-mediated practice. Journal of Consumer Research, 39(5) 899-917. http://dx.doi.org/10.1086/666595
    » http://dx.doi.org/10.1086/666595
  • Arsel, Z., & Thompson, C. J. (2011). Demythologizing consumption practices: how consumers protect their field-dependent identity investments from devaluing marketplace myths. Journal of Consumer Research, 37(5), 791-806. http://dx.doi.org/10.1086/656389
    » http://dx.doi.org/10.1086/656389
  • Askegaard, S., & Linnet, J. (2011). Towards an epistemology of consumer culture theory: phenomenology and the context of context. Marketing Theory, 11(4), 381-404. http://dx.doi.org/10.1177/1470593111418796
    » http://dx.doi.org/10.1177/1470593111418796
  • Barbosa Lessa, L. C. (1985). Nativismo: um fenômeno social gaúcho Porto Alegre: L&PM.
  • Belk, R., & Casotti, L. M. (2014). Ethnographic research in marketing: past, present, and possible futures. Revista Brasileira de Marketing, 13(6), 1-17. http://dx.doi.org/10.5585/remark.v13i6.2767
    » http://dx.doi.org/10.5585/remark.v13i6.2767
  • Boeve, L. (2005). Religion after detraditionalization: Christian faith in a post-secular Europe. Irish Theological Quarterly, 70(2), 99-122. http://dx.doi.org/10.1177/002114000507000201
    » http://dx.doi.org/10.1177/002114000507000201
  • Callon, M. (1998). The laws of the markets London: Blackwell.
  • Casotti, L. M., & Suarez, M. C. (2016). Dez anos de consumer culture theory: delimitações e aberturas. Revista de Administração de Empresas, 56(3), 353-359. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-759020160308
    » http://dx.doi.org/10.1590/S0034-759020160308
  • Castilhos, R. (2015). Produzindo lugar, reproduzindo espaço: uma análise das dinâmicas de mercado no campo de moradia (Tese de doutorado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.
  • Cayla, J., & Arnould, E. (2013). Ethnographic stories for market learning. Journal of Marketing, 77(4), 1-16. http://dx.doi.org/10.1509/jm.12.0471
    » http://dx.doi.org/10.1509/jm.12.0471
  • Dalmoro, M., & Nique, W. M. (2014). Cultura global do consumo e tradicionalismo local: uma reflexão teórica a partir da diacronia dos conceitos. Revista Brasileira de Gestão e Desenvolvimento Regional, 10(4), 420-442.
  • Dalmoro, M., & Nique, W. M. (2016). Fluxos e contrafluxos: a relação global e local mediada pelo mercado na cultura gaúcha. Organizações & Sociedade, 23(77), 211-230. http://dx.doi.org/10.1590/1984-9230772
    » http://dx.doi.org/10.1590/1984-9230772
  • Dalmoro, M., Peñaloza, P., & Nique, W. M. (2016). Market resistance in developing nations: the sustenance of Gaucho consumer culture in Brazil. In M. D. Groza & C. B. Ragland (Eds.), Marketing challenges in a turbulent business environment (pp. 267-268). New York: Springer. http://dx.doi.org/10.1007/978-3-319-19428-8_67
    » http://dx.doi.org/10.1007/978-3-319-19428-8_67
  • Finch, J., & Geiger, S. (2010). Positioning and relating: market boundaries and the slippery identity of the marketing object. Marketing Theory, 10(3), 237-251. http://dx.doi.org/10.1177/1470593110373188
    » http://dx.doi.org/10.1177/1470593110373188
  • Geertz, C. (2008). A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC.
  • Giesler, M. (2008). Conflict and compromise: drama in marketplace evolution, Journal of Consumer Research, 34(6), 739-753. http://dx.doi.org/10.1086/522098
    » http://dx.doi.org/10.1086/522098
  • Giesler, M. (2012). How doppelgänger brand images influence the market creation process: longitudinal insights from the rise of Botox cosmetic. Journal of Marketing, 76(6), 55-68. http://dx.doi.org/10.1509/jm.10.0406
    » http://dx.doi.org/10.1509/jm.10.0406
  • Hobsbawm E. (1984). Introdução: a invenção das tradições. In E. Hobsbawm & T. Ranger (Eds.), A invenção das tradições (pp. 9-23.). Rio de Janeiro: Paz e Terra.
  • Humphreys, A. (2010). Megamarketing: the creation of markets as a social process. Journal of Marketing, 74(2), 1-19. http://dx.doi.org/10.1509/jmkg.74.2.1
    » http://dx.doi.org/10.1509/jmkg.74.2.1
  • Kjellberg, H., & Helgesson, C. (2007). On the nature of markets and their practices. Marketing Theory, 7(2), 137-162. http://dx.doi.org/10.1177/1470593107076862
    » http://dx.doi.org/10.1177/1470593107076862
  • Latour, B. (2005). Reassembling the social: an introduction to actor-network theory. Oxford: Oxford University Press. http://dx.doi.org/10.1080/10967490701515606
    » http://dx.doi.org/10.1080/10967490701515606
  • Lenclud, G. (1987). La tradition n'est plus ce qu'elle était...Sur les notions de tradition et de société traditionnelle en ethnologie. Terrain, 9, 110-123.
  • Lofland, J., & Lofland, L. (1995). Analyzing social settings: a guide to qualitative observation and analysis Belmont, CA: Wadsworth.
  • Macalexander, J. H., Dufault, B. L., Martin, D. M., & Schouten, J. W. (2014). The marketization of religion: field, capital and consumer identity. Journal of Consumer Research, 41(3), 858-875. http://dx.doi.org/10.1086/677894
    » http://dx.doi.org/10.1086/677894
  • Marcus, G. E. (1995). Ethnography in/of the world system: the emergence of multisited ethnography. Annual Review of Anthropology, 24(1), 95-117. http://dx.doi.org/10.1146/annurev.an.24.100195.000523
    » http://dx.doi.org/10.1146/annurev.an.24.100195.000523
  • Martín-Barbero, J. (2003). De los medios a las mediaciones: comunicación, cultura e hegemonía Bogotá: Convenio Andrés Bello.
  • Nogami, V. K. C., Vieira, F. G. D., & Medeiros, J. (2015). Construção de mercados: um estudo no mercado de notebooks para baixa renda. Gestão & Regionalidade, 31(93), 59-75. http://dx.doi.org/10.13037/gr.vol31n93.2637
    » http://dx.doi.org/10.13037/gr.vol31n93.2637
  • Oliven, R. G. (2006). A parte e o todo: a diversidade no Brasil nação. Petrópolis: Vozes.
  • Outka, E. (2009). Consuming traditions: modernity, modernism, and the commodified authentic. Oxford: Oxford University Press.
  • Peirano, M. (1995). A favor da etnografia Rio de Janeiro: Relume-Dumará.
  • Peñaloza, L., & Venkatesh, A. (2006). Further evolving the new dominant logic of marketing: from services to the social construction of markets. Marketing Theory, 6(3) 299-316. http://dx.doi.org/10.1177/1470593106066789
    » http://dx.doi.org/10.1177/1470593106066789
  • Pereira, S. J. N., & Ayrosa, E. A. T. (2012). Between two worlds: an ethnographic study of gay consumer culture in Rio de Janeiro. Brazilian Administration Review, 9(2), 211-228. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/bar/v9n2/a06v9n2.pdf http://dx.doi.org/10.1590/S1807-76922012000200006
    » http://www.scielo.br/pdf/bar/v9n2/a06v9n2.pdf» http://dx.doi.org/10.1590/S1807-76922012000200006
  • Pesavento, S. (1982). História do Rio Grande do Sul Porto Alegre: Mercado Aberto.
  • Polany, K. (1944). The great transformation: the political and economic origins of our time Boston: Bacon Press.
  • Pouillon, J. (1975). Tradition: transmission ou reconstruction. In J. Pouillom (Org.), Fétiches sans fétichisme (pp. 155-173). Paris: Maspero.
  • Reckwitz, A. (2002). Toward a theory of social practices: a development in culturalist theorizing. European Journal of Social Theory, 5(2), 243-263. http://dx.doi.org/10.1177/13684310222225432
    » http://dx.doi.org/10.1177/13684310222225432
  • Sandicki, Ö., & Ger, G. (2010). Veiling in style: how does a stigmatized practice become fashionable? Journal of Consumer Research, 37(1), 15-36. http://dx.doi.org/10.1086/649910
    » http://dx.doi.org/10.1086/649910
  • Schimank, U., & Volkmann, U. (2012). The marketization of society: economizing the non-economic Bremen: Forschungsverbund Welfare Societies.
  • Slater, D., & Tonkiss, F. (2001). Market society: markets and modern social theory. Oxford: Blackwell Publishers Ltd.
  • Swidler, A. (1996). Culture in action: symbols and strategies. American Sociological Review, 51(2), 273-286. http://dx.doi.org/10.2307/2095521
    » http://dx.doi.org/10.2307/2095521
  • Velho, G., & Kuschnir, K. (2003). Pesquisas urbanas: desafios do trabalho antropológico Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
  • Venkatesh, A., Penãloza, L., & Firat, F. (2006). Taking the new dominant logic further: the market as a sign system. In R. Lusch & S. Vargo (Orgs.), The service-dominant logic of marketing: dialog, debate, and directions (pp. 251-265). Armonk, NY: M. E. Sharpe.
  • Vikas, R., Varman, R., & Belk, R.W. (2015). Status, caste, and market in a changing Indian village. Journal of Consumer Research, 42(3), 472-498. http://dx.doi.org/10.1093/jcr/ucv038
    » http://dx.doi.org/10.1093/jcr/ucv038
  • Warde, A. (2005). Consumption and theories of practice. Journal of Consumer Culture, 5(2), 131-153. http://dx.doi.org/10.1177/1469540505053090
    » http://dx.doi.org/10.1177/1469540505053090
  • Williams, R. (1992). Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    05 Mar 2016
  • Revisado
    28 Jul 2016
  • Recebido
    03 Ago 2016
  • Aceito
    05 Out 2016
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração Av. Pedro Taques, 294,, 87030-008, Maringá/PR, Brasil, Tel. (55 44) 98826-2467 - Curitiba - PR - Brazil
E-mail: rac@anpad.org.br