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Democratização Financeira em Época de Pandemia

A Universidade Zumbi dos Palmares (Unipalmares), fundada em 2002 por acadêmicos, profissionais liberais, intelectuais e personalidades de diversas áreas do conhecimento, é uma instituição de ensino superior comunitária, sem fins lucrativos, cuja missão é formar e incluir profissionais qualificados e comprometidos com os valores da ética, da dignidade da pessoa humana e da diversidade étnico-racial. Tem também o objetivo de incluir e fortalecer a presença de jovens negros no universo acadêmico, no mercado de trabalho e na sociedade em geral, além de pesquisar, promover, divulgar e aprimorar ações afirmativas públicas e privadas e a cultura da paz, da tolerância e da resolução pacífica de conflitos.

Somos uma instituição que prima pelo aspecto mais elevado da democratização universal, que é o acesso à educação e tudo o que a envolve. Procuramos suprir uma lacuna da sociedade brasileira exercendo a educação como a única ferramenta que leva verdadeiramente à liberdade plena. Formamos não apenas o profissional, mas sobretudo o cidadão protagonista e responsável por sua trajetória - esse mesmo indivíduo que será capaz de tomar decisões de vida da forma mais consistente e racional, prescindindo da tutela do Estado ou da família e de influenciadores de toda sorte. A liberdade conquistada pela educação prepara o ser humano para as complexidades do mundo, desenvolve suas potencialidades e o torna mais completo e elevado.

O pressuposto do trabalho da Universidade Zumbi dos Palmares é incluir e integrar uma parcela da população que enfrenta muitas dificuldades de acesso ao ensino superior de qualidade, preparando esses jovens sobretudo como seres pensantes, críticos da realidade e preparados para os desafios sociais e profissionais do mundo atual. Nossa instituição é integradora, conciliadora de anseios sociais e preocupada com a igualdade de oportunidades. Oferecemos nove cursos de graduação e já formamos cerca de três mil estudantes nas mais diversas áreas. Reservamos metade das vagas disponíveis para afrodescendentes e metade para alunos de outras etnias, mostrando claramente nossa intenção de integrar e diversificar nosso corpo discente. E o mesmo se passa no corpo docente: metade de nossos professores são afrodescendentes, fenômeno único no mercado educacional brasileiro, onde existem 2.608 instituições de ensino superior (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira [Inep], 2019), num país onde os negros compõem 56% da população (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2019). Para efeito comparativo, nos EUA, onde apenas 13% da população é de negros, existem 101 HBCU, ou historically black colleges and universities - universidades e faculdades historicamente negras (Anderson, 2017Anderson, M. (2017, February) A look at historically black colleges and universities as Howard turns 150. Factank - News in the Numbers. Retrieved from https://www.pewresearch.org/fact-tank/2017/02/28/a-look-at-historically-black-colleges-and-universities-as-howard-turns-150/
https://www.pewresearch.org/fact-tank/20...
).

Essa diversidade interna é motivo de grande orgulho, mas, ao mesmo tempo, nos consterna diante do que acontece fora de nossos muros, nas outras empresas, em órgãos públicos e privados e em todas as esferas sociais.

Desde março de 2020, com a pandemia do COVID-19, precisamos nos reinventar rapidamente para manter as atividades educacionais em condições adequadas ao momento, sem prejuízo de nossos alunos, professores e colaboradores e da comunidade em geral. Essa ruptura no mundo acadêmico acompanha a transformação que vem acontecendo no mundo todo e, em particular, no mercado, onde vemos as organizações se adaptarem ao que se chamou “novo normal”.

Para muitos, a expressão “novo normal” implica uma diferença sensível, mas, infelizmente, para nós, negros, não há nada muito diferente do que sempre vivemos; a pandemia serviu para desmascarar as contradições e o abismo social que nos separa dos demais segmentos da sociedade. Em todos os aspectos, os indicadores sociais da população negra do país são terríveis. Os negros são os mais atingidos pelo desemprego, pela precariedade ou pela falta de moradia e saneamento básico, pela contaminação pelo coronavírus e pela dificuldade de acesso à saúde, pelo endividamento familiar, pela falta de condições de desenvolver trabalho remoto, pelo abandono escolar, pelo desalento e pela frustração emocional, entre outros fatores que constituem a cidadania integral. Portanto, o “novo normal” só agravou a exclusão da população negra, que já se encontrava dramaticamente alijada de uma vida digna.

Considerando esse cenário apresentado e suas implicações para a comunidade negra, enfatizamos que a solução dessas mazelas passa por uma conscientização dos negros de sua real condição de existência e pela intensificação dos instrumentos de sua formação educacional e profissional oferecidos por nossa instituição.

O lema da Universidade Zumbi dos Palmares é “Sem educação, não há liberdade”, e esse princípio norteia todas as nossas iniciativas, sustenta nossas convicções e nos move rumo ao futuro. Nosso caminho é transformar a vida de pessoas negras ressignificando seu passado e construindo um futuro melhor por meio da educação. Mas entendemos que, ao lado da educação, temos de resgatar muito da história da população negra, suas expressões artísticas, seu lugar no mundo e sua amplitude histórica. Para tanto, temos parceria com empresas que nos permitem a colocação de jovens no mercado de trabalho e uma formação profissional prática, promovemos eventos de reconhecimento de atuações expressivas no combate ao preconceito racial e ações afirmativas, organizamos eventos literários com o protagonismo de autores e autoras negras e desenvolvemos pesquisas sobre a condição do negro no mercado de trabalho, entre outras iniciativas do Observatório do Negro. Ou seja, a educação é a linha mestra que articula todas essas ações de resgate e valorização da produção negra, com destaque para nossa participação na construção social, reforçando sua identidade e autoestima.

Muito tem se falado sobre a necessidade de democratizar a sociedade brasileira, mas as mais diversas esferas de atuação social carecem de mecanismos de universalização ou acesso equitativo e, consequentemente, de oportunidades desconcentradas e plurais. O tratamento superficial desse aspecto leva a uma abstração do que realmente seria essa democratização e quais seriam suas consequências.

A real democratização da sociedade passa pelo acesso a todos os aspectos de cidadania plena. A educação está entre os principais, mas não é o único. Para mudar a situação atual, precisamos de recursos financeiros para o desenvolvimento social e a geração de emprego e renda. Nesse sentido, observamos uma mudança no mercado financeiro, induzida pelo aumento do número de atores e a entrada de novos players, exemplificados pelos bancos digitais, pelas fintechs (startups do segmento financeiro), pelas sociedades de crédito direto, pela simplificação normativa do Banco Central e pelo próprio apoio dado pela Febraban, entidade representativa do setor bancário brasileiro. A competição é positiva e implica ganhos para todos os participantes do mercado, potencializando inovações, criatividade e melhores práticas mercadológicas.

O mercado atual tem sofrido rupturas, e vem se impondo uma nova estrutura de atuação baseada no mobilecentrismo, alicerçado em automação, inteligência artificial e agilidade, que possibilitará um aumento da produtividade dos profissionais do segmento, aquisição e engajamento dos consumidores, transformará esses consumidores num dos motores da conformidade, e os relacionamentos serão realizados com as fintechs e outras empresas que usam plataformas digitais.

Observamos um aumento significativo de iniciativas no mercado financeiro; segundo dados do Banco Central do Brasil (2020), já existem 20 bancos digitais, mas nenhum voltado especificamente para o público negro. Apesar de o discurso de mercado ressaltar a personalização da experiência do cliente bancário, o que realmente acontece é uma massificação, focada no oferecimento de produtos e serviços padronizados, visando à diminuição dos custos, incentivando o autoatendimento e com grandes deficiências na orientação e assessoria aos clientes para um melhor aproveitamento dos recursos acessados.

A pandemia logrou acelerar tudo, inclusive nossa determinação de bancarizar a população negra, permitindo que os empreendedores protagonizem suas iniciativas empresariais. E entendemos que este é o momento certo para lançar as bases de uma transformação econômico-social por meio da educação financeira e do protagonismo de uma instituição financeira capaz de entender as singularidades e suscetibilidades dessa população e facultar o acesso de empreendedores negros aos recursos necessários.

Conforme pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva (2019), 31,5 milhões de pessoas negras encontram-se desbancarizadas, e parte significativa delas também não tem acesso a aparelho celular, computador ou internet. Por outro lado, precisam de serviços financeiros para apoiar seu crescimento, prosperar e conquistar a desejada sustentabilidade.

Nesse contexto, consideramos imprescindível constituir uma instituição financeira que vise a atender ao empreendedor negro, destacando-se pela educação financeira, pela maior facilidade de acesso a crédito, pela orientação na utilização dos recursos e, sobretudo, pela compreensão das dificuldades específicas dessa população. E, como contribuição ao tema da democratização da sociedade brasileira, do mercado financeiro e do apoio à população negra, trazemos ao conhecimento do mercado o lançamento do BankZ, “o banco de negros de todas as cores”. Essa iniciativa nasce como uma plataforma digital vinculada à Universidade Zumbi dos Palmares, e fará uma intermediação financeira com crédito facilitado e serviços de microfinanças a pequenos empreendimentos, e que tende a fomentar iniciativas da população em tela. Segundo o Instituto Locomotiva (2019), a população desbancarizada do país movimenta cerca de R$ 817 bilhões anualmente, 59% desse contingente é composto de mulheres, 75% do público evita recorrer aos bancos tradicionais e 88% não possui cartão de crédito. Evidentemente, trata-se de um segmento de mercado que merece ser estudado e compreendido, e as instituições devem buscar soluções disruptivas, personalizadas, próprias para as necessidades de mercado desse público e que rompam com o conceito-padrão de tratamento financeiro.

O BankZ é a iniciativa que visa a tornar-se um banco digital, que se propõe a entender esse mercado, estudá-lo profundamente, conhecer seus hábitos de consumo, suas necessidades e comportamentos, assim como suas dificuldades, fragilidades e riscos. Nosso grande diferencial é conhecer nosso público-alvo, compreender seus dilemas econômico-financeiros, suas angústias, frustrações, rejeições e problemas de autoestima que os inibem e afastam do sistema financeiro tradicional, de modo que podemos construir um modelo de negócio que atenda às expectativas desse segmento numa instituição concebida e dirigida por negros.

A propósito, lançamos algumas provocações e desafios aos acadêmicos da área de administração, sobretudo do campo financeiro, para que desenvolvam estudos que visem a desvendar circunstâncias e situações que merecem mais atenção:

  • Quais as razões da resistência do modelo financeiro tradicional a atuar junto ao público negro?

  • O número de experiências de êxito com microcrédito condiz com o tamanho desse mercado?

  • Existem novos modelos de atuação para potencializar o desenvolvimento econômico-financeiro dos negros?

  • Os modelos financeiros tradicionais não funcionam ou existem preconceitos e modelos mentais inibidores de propostas disruptivas de atuação?

  • Quais as reais razões para que grande parte do público evite os modelos tradicionais dos bancos e acabe arcando com o ônus da informalidade?

  • A dificuldade de os bancos prestarem orientação/assessoria a esse público é devido à baixa escolarização das pessoas ou à ineficiência das instituições em preparar profissionais que tenham essa capacidade?

  • Por que até o momento não temos no Brasil um banco que atue com um recorte étnico-racial dando prioridade à população negra?

Finalmente, esperando concorrer para a democratização do mercado financeiro, aparentemente perseguida e incentivada pelos órgãos reguladores, atenderemos a um público carente de uma instituição financeira que realmente o represente e entenda suas necessidades primordiais, contribuiremos com a geração de emprego e renda e diminuiremos o abismo econômico-social da população negra. Seguramente, em pouco tempo, incrementaremos a discussão com um dado invisibilizado e pouco estudado, que é o número e a história de negros economicamente bem-sucedidos no Brasil.

REFERENCES

  • Carta Executiva recebida mediante convite formulado pelo Editor-chefe:

    Wesley Mendes-Da-Silva (Fundação Getulio Vargas, EAESP, Brasil)
    rac.wesley.mendes@gmail.com
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    Cartas Executivas são documentos publicados, desde janeiro de 2021, pela Revista de Administração Contemporânea - RAC, e prestam-se ao papel de viabilizar e estabelecer interlocução entre a comunidade de praticantes e a comunidade acadêmica do campo de negócios e gestão. A intenção central da publicação das Cartas Executivas é consolidar e orientar o impacto social das pesquisas de rigor científico nesse campo. Esses documentos devem conter prioritariamente a opinião, em nível individual, de pessoas que exerçam liderança em setores da indústria ou da gestão pública acerca de problemas relevantes para sua atuação. Para tanto, esses documentos devem abordar contextos e problemas enfrentados por líderes, os quais possam se refletir em alvo de pesquisa na área de negócios e gestão. A autoria das Cartas Executivas será de individuos convidados por Editores(as) da RAC.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    2021
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