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Implementando a Lógica de Produção Puxada: Uma Pesquisa-Ação

RESUMO

Contexto:

existe pouca evidência empírica da relação entre a implementação efetiva de técnicas lean e o seu real efeito na performance da cadeia produtiva.

Objetivo:

o objetivo deste artigo foi descrever o processo de implementação da lógica de produção puxada na cadeia de suprimentos, relatando a evolução histórica dos indicadores associados à mudança, como os níveis de estoque e os lead times ao longo de 23 meses de intervenção.

Métodos:

foi conduzido um projeto de pesquisa-ação descrevendo os passos da intervenção na cadeia entre os anos de 2017, 2018 e 2019, dividida em fases: o planejamento, a coleta de dados, a implementação da ação, a análise e a avaliação dos resultados.

Resultados:

a principal contribuição foi demonstrar que a mudança de produção empurrada para puxada na pesquisa impactou positivamente os indicadores de lead time, estoque e rotinas de planejamento. Houve a redução de mais de 30% para os níveis de inventários e cerca de 40% para os lead times, além do aumento da assertividade da previsão de vendas.

Conclusão:

o artigo pode ser uma possível referência para organizações que queiram promover alterações semelhantes em suas cadeias de suprimentos e alterar de maneira significativa a rotina de planejamento de seus fornecedores e distribuidores através da implementação da lógica puxada.

Palavras-chave:
produção enxuta; sistema puxado; sistema empurrado

ABSTRACT

Context:

there is little empirical evidence of the relationship between the implementation of lean techniques (such as the pull system) and their real effect on supply chain performance.

Objective:

the purpose of this paper is to describe the process of implementing the pull production logic in the supply chain, reporting the historical evolution of indicators, such as inventory levels and lead times over 23 months of intervention.

Methods:

an action research project was carried out describing chain intervention steps in 2017-2019, divided into phases as follows: planning, data collection, implementation of the action, analysis and evaluation of the results.

Results:

the main contribution was to demonstrate that the production shift from push to pull had a positive impact on lead time, inventory, and planning routines indicators. Inventory levels were reduced by more than 30% and lead times were down approximately 40%. In addition, sales forecast assertiveness increased.

Conclusion:

this paper may provide a reference for organizations that want to make similar changes in their supply chains and significantly change the planning routine of their suppliers and distributors by implementing the pull logic.

Keywords:
lean production; pull system; push system

INTRODUÇÃO

No atual cenário competitivo, com as mudanças ocorrendo em intervalos de tempo cada vez menores, parece pouco crível que as decisões da área de operações que despertem uma ordem de fabricação devam ser tomadas meses antes do recebimento de um produto. Esse horizonte de tempo pode ser inviável, mesmo em se tratando de produtos importados, com todos os trâmites de comércio exterior. Os efeitos de longos lead times, chegando em alguns casos a patamares de meio ano, podem ainda ser amplificados quando se trata de uma cadeia, tal como apresentado no efeito chicote introduzido no trabalho seminal de Forrester (1958Forrester, J. (1958). Industrial dynamics a major breakthrough for decision makers. Harvard Business Review, 36, 37-66. Retrieved from https://www.scienceopen.com/document?vid=74f2f079-41e8-4f58-8162-2fac17ad8a7c
https://www.scienceopen.com/document?vid...
) e posteriormente revisitado por Naim, Spiegler, Wikner e Towill (2017Naim, M, Spiegler, V, Wikner, J., & Towill, D. (2017). Identifying the causes of the bullwhip effect by exploiting control block diagram manipulation with analogical reasoning. European Journal of Operational Research, 263(1), 240-246. https://doi.org/10.1016/j.ejor.2017.05.014
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) ou Nematollahi (2019Nematollahi, I. (2019). Empirical investigation of trust antecedents and consequences in decentralized supply chain: The case of cosmetics market in Iran. Decision Science Letters, 8(4), 483-504. https://doi.org/10.5267/j.dsl.2019.4.004
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). Tal amplificação pode atravancar a competitividade dos negócios.

A pesquisa-ação apresentada neste artigo tecnológico objetiva retratar como uma situação real de desconforto numa cadeia de suprimentos tornou-se um terreno fértil para a mudança da forma com que a empresa compete e realiza suas operações de compras e entregas. Essa situação desconfortável era representada pelo lead time de seis meses que a empresa apresentava com um dos mais importantes fornecedores de sua cadeia de suprimentos, gerando níveis de estoque na cadeia que poderiam comprometer a continuidade futura do negócio.

Compreende-se neste trabalho que o lead time é o tempo necessário entre a solicitação de um item e seu recebimento. Do ponto de vista amplo da gestão de operações, há basicamente duas lógicas de produção que impactam diretamente o lead time: a lógica empurrada e a lógica puxada.

A lógica de produção empurrada se caracteriza pela antecipação do modelo de negócio através da produção baseada numa previsão de vendas, enquanto a lógica de produção puxada tem como uma das principais características a maior responsividade às vendas, através da tomada de decisão da produção baseada na informação em tempo real do comportamento da demanda, reduzindo a dependência da previsão e a incerteza inerente a ela (Bowersox, Closs, & Cooper, 2020Bowersox, D., Closs, D. & Cooper, B. (2020). Supply chain logistics management (5th ed.) Boston, MA: McGrawHill. Retrieved from https://www.mheducation.com/highered/product/0078096642.html
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).

A lógica de produção puxada constitui um dos pilares essenciais do sistema de manufatura enxuta apresentados em meados dos anos noventa pelo fundamental trabalho de Jones, Roos e Womack (1990Jones, D. T., Roos, D., & Womack, J. P. (1990). The machine that changed the world. New York, NY: Simon and Schuster.), e já foi amplamente descrita na literatura da área de gestão de operações (Danese, Manfe, & Romano, 2018Danese, P., Manfe, V. & Romano P. (2018). A systematic literature review on recent lean research: State-of-the-art and future directions. International Journal of Management Reviews, 20(2), 579-605. https://doi.org/10.1111/ijmr.12156
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; Tortorella, Miorando, & Marodin, 2017Tortorella, G. L., Miorando, R., & Marodin, G. (2017). Lean supply chain management: Empirical research on practices, contexts and performance. International Journal of Production Economics, 193, 98-112. https://doi.org/10.1016/j.ijpe.2017.07.006
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). Todavia, parece haver uma lacuna em exemplos concretos de implementação da lógica puxada substituindo a lógica empurrada, retratando sobretudo as dificuldades e os ganhos que essa alteração acarreta para a cadeia como um todo.

Apesar de o conceito de produção puxada estar relacionado normalmente à demanda real do consumidor, adota-se neste trabalho a definição de sistema puxado como sendo o sistema puxado pela demanda real dos clientes da empresa de venda direta de cosméticos, que são suas consultoras de vendas, que por sua vez revendem os produtos para os consumidores finais, enquanto o sistema empurrado é aquele em que as decisões de produção e compra são antecipadas e baseadas em uma projeção de vendas (forecast) realizadas dentro da empresa, bem antes do momento real da venda para as consultoras.

Na lógica empurrada, todo o trabalho de planejamento e execução é realizado em antecipação ao que se projeta vender, com estimativas de vendas que muitas vezes não se concretizam. Já na lógica puxada, a decisão da produção e compra é disparada pela venda, com o objetivo de repor o estoque regulador (supermercado) que foi consumido pela venda. Na lógica puxada, as etapas são sincronizadas e seus tempos são reduzidos quando comparadas ao cronograma de etapas no sistema empurrado (Bowersox et al., 2020Bowersox, D., Closs, D. & Cooper, B. (2020). Supply chain logistics management (5th ed.) Boston, MA: McGrawHill. Retrieved from https://www.mheducation.com/highered/product/0078096642.html
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; Danese et al., 2018Danese, P., Manfe, V. & Romano P. (2018). A systematic literature review on recent lean research: State-of-the-art and future directions. International Journal of Management Reviews, 20(2), 579-605. https://doi.org/10.1111/ijmr.12156
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).

Neste artigo, foi inicialmente observada uma cadeia de produção de uma empresa de cosméticos sob a lógica de produção empurrada. Segundo essa lógica de produção, os lead times eram demasiadamente longos, algumas vezes superiores a seis meses contados entre o momento em que a empresa de cosméticos solicitava os produtos aos seus fabricantes terceirizados e o respectivo recebimento desses produtos em seus centros de distribuição.

Nesse modelo de produção sob a lógica empurrada, a empresa de cosméticos disparava ordens de produção para seus fabricantes terceirizados com base em uma previsão de vendas de um determinado mês que estava seis meses à frente do momento em que ela enviava esses pedidos.

Essa antecedência era necessária, pois o fabricante terceirizado, ao receber o pedido da empresa de cosméticos, disparava as compras dos insumos, que muitas vezes eram importados e com lead times de até quatro meses. Somando-se o prazo da compra dos insumos, o fabricante terceirizado necessitava de cerca de dois meses para manufaturar os produtos, levando o lead time total dessa cadeia para cerca de seis meses.

Esses longos lead times traziam consequências à cadeia produtiva, pois amplificavam o período sob o qual a incerteza da previsão de vendas era considerada para as decisões de compra e produção, ocasionando erros de até 90% entre a previsão de vendas e as vendas efetivas que se acumulavam mensalmente, trazendo reflexos nos estoques e no nível de serviço dessas cadeias.

Uma das consequências mais importantes decorrentes desse modelo de produção empurrado com longos lead times e baixa acuracidade da previsão de vendas era o desbalanceamento do nível de estoque em relação ao nível de demanda, chegando-se a atingir uma relação em que o nível de estoque médio chegava a ser mais de quatro vezes o volume médio de vendas mensal.

Essa diferença acontecia devido à variação entre a demanda prevista no momento da definição da ordem de compra e a venda real que acontece seis meses depois.

A baixa acurácia das projeções de demanda com tamanha antecedência, em que o erro acumulado gerava decisões equivocadas de compras e produção, provocava situações de excesso ou falta de estoque, além de uma corrida para os ajustes de programação, ora para postergar entregas futuras, ora para antecipar as entregas, causando diversas turbulências e mudanças nos planos de produção e compras.

Quanto maior for esse lead time, mais a cadeia ficará dependente de uma maior acuracidade da projeção de demanda. Por outro lado, quanto mais próximas as previsões de vendas estiverem do momento do fornecimento, mais eficiente será a operação. Obter uma melhor acuracidade da previsão da demanda é um dos maiores desafios enfrentados por quase todas as empresas e profissionais de gestão do supply chain management, principalmente considerando a evolução e a volatilidade que o mercado de bens de consumo apresenta (Angelo, Zwicker, Fouto, & Luppe, 2011Angelo, C. F., Zwicker, R., Fouto, N. M. M. D., & Luppe, M. R. (2011). Séries temporais e redes neurais: Uma análise comparativa de técnicas na previsão de vendas do varejo brasileiro. Brazilian Business Review, 8(2), 1-21. Retrieved from http://www.spell.org.br/documentos/ver/8021/series-temporais-e-redes-neurais--uma-analise-comparativa-de-tecnicas-na-previsao-de-vendas-do-varejo-brasileiro-/i/pt-br
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).

Apesar de o mercado de cosméticos continuar se transformando e se tornando cada vez mais complexo, seja pela exigência das novas dinâmicas de venda de produtos através da experiência multicanal (varejo, on-line ou venda direta), seja pela maior variedade de itens no portfólio devido à tendência crescente da customização das necessidades do consumidor, a maior parte das empresas do setor ainda utiliza a lógica convencional do sistema de produção empurrado.

Como já dito anteriormente, a contrapartida de um sistema de produção empurrado é a adoção de uma lógica puxada de produção, em que o pedido de produção somente é disparado quando o consumo real de fato reduzir o nível de estoque a um ponto em que se dispara uma ordem de produção. Esse modelo é conhecido na literatura da área de operações como um sistema ‘supermercado’, onde tanto o nível de estoque do ponto de disparo quanto seus limites máximos e mínimos são predefinidos, de forma que a cadeia produtiva passa a operar com um estoque delimitado e suficiente para cobrir o tempo necessário para a reposição (Zhang, Luo, Shi, Chia, & Sim, 2016Zhang, A., Luo, W., Shi, Y., Chia, S. T., & Sim, Z. H. X. (2016). Lean and six sigma in logistics: A pilot survey study in Singapore. International Journal of Operations & Production Management, 36(11). https://doi.org/10.1108/IJOPM-02-2015-0093
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).

A lógica de produção puxada caracterizada pelo sistema de supermercado é um dos princípios da filosofia lean, que norteou a intervenção proposta neste artigo, onde foi realizada a alteração num caráter experimental para dois SKUs da empresa, com o objetivo de avaliar ao longo do tempo os efeitos dessa mudança na cadeia produtiva.

Os SKUs analisados nessa intervenção foram escolhidos pela sua relevância estratégica para a empresa e são produzidos em duas fábricas distintas, sendo que o SKU produzido na fábrica de cremes e loções será tratado pelo nome de ‘creme para cuidados com a pele’ e o outro SKU, produzido em uma fábrica de fragrâncias, será identificado neste trabalho como ‘fragrância’.

De acordo com Bevilacquia, Ciarapica e De Sanctis (2017), as empresas precisam melhorar seus processos para se tornarem mais eficientes, flexíveis e ágeis em um cenário de mercado cada vez mais desafiador e competitivo. Para isso, as empresas precisam implementar processos que compartilhem informações entre os participantes da cadeia, para alcançar o conceito do sistema puxado e promover uma maior capacidade de resposta ao mercado (Roh, Hong, & Min, 2014Roh, J., Hong, P., & Min, H. (2014). Implementation of a responsive supply chain strategy in global complexity: The case of manufacturing firms. International Journal of Production Economics, 147(Part B), 198-210. https://doi.org/10.1016/j.ijpe.2013.04.013
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).

Existe pouca evidência empírica da relação entre a implementação de técnicas lean e o efeito na performance da cadeia produtiva como um todo (Näslund, 2013Näslund, D. (2013). Lean and six sigma - Critical success factors revisited. International Journal of Quality and Service Sciences, 5(1), 86-100. https://doi.org/10.1108/17566691311316266
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; Panwar, Jain, Rathore, Nepal, & Lyons, 2018Panwar, A., Jain, R., Rathore, P., Nepal, B., & Lyons, A. C. (2018). The impact of lean practices on operational performance - an empirical investigation of Indian process industries. Production Planning & Control, 29(2), 158-169. https://doi.org/10.1080/09537287.2017.1397788
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; Roh et al., 2014Roh, J., Hong, P., & Min, H. (2014). Implementation of a responsive supply chain strategy in global complexity: The case of manufacturing firms. International Journal of Production Economics, 147(Part B), 198-210. https://doi.org/10.1016/j.ijpe.2013.04.013
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; Tortorella et al., 2017Tortorella, G. L., Miorando, R., & Marodin, G. (2017). Lean supply chain management: Empirical research on practices, contexts and performance. International Journal of Production Economics, 193, 98-112. https://doi.org/10.1016/j.ijpe.2017.07.006
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). Muitas empresas reportam os benefícios da implementação lean, porém ainda existem muitas dúvidas sobre sua aplicabilidade e sobre os resultados concretos encontrados quando o lean é aplicado em empresas que não se enquadram nas características de uma demanda estável e que estão localizadas em mercados instáveis economicamente e com muitas mudanças.

Este artigo tecnológico pretende então contribuir para esclarecer essa dúvida, ao abordar a aplicação do sistema puxado em um ambiente de demanda instável e de mudança constante, além de buscar responder à seguinte questão norteadora: “‘Como uma mudança do sistema de produção empurrado para puxado pode de fato contribuir para a competitividade da cadeia de suprimentos?’ Haverá alterações significativas da acurácia da previsão de vendas, dos indicadores de lead time e dos níveis de inventário de uma díade formada por uma empresa de cosméticos e seu fabricante terceirizado?”

CONTEXTO DA REALIDADE INVESTIGADA

É importante apontar aqui que um dos autores deste trabalho também exercia a função de principal executivo da área de operações da empresa estudada durante a pesquisa, facilitando tanto a descrição do contexto da realidade investigada quanto o acesso aos dados e a todos os desdobramentos necessários para a execução da pesquisa.

Mesmo com essa condição privilegiada, estudar toda a cadeia de suprimentos de um setor poderia ser uma tarefa arriscada por sua possível extensão, complexidade e possibilidade de perca de foco de análise. Por esse motivo, optou-se por delimitar a pesquisa, estudando a díade composta por uma empresa multinacional que atua no segmento de venda direta de cosméticos e um fabricante terceirizado (Mostafa, Dumrak, & Soltan, 2013Mostafa, S. Dumrak, J. & Soltan, H. (2013). A framework for lean manufacturing implementation. Production and Manufacturing Research, 1(1), 44-64. https://doi.org/10.1080/21693277.2013.862159
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).

Na cadeia de suprimentos da empresa estudada no Brasil, 30% dos itens são produzidos em uma de suas fábricas no exterior e são importados e distribuídos pelos seus centros de distribuição localizados em diferentes estados.

Para os 70% restantes dos seus itens, a empresa promoveu a transferência de tecnologia, para que esses produtos pudessem ser fabricados no Brasil por empresas multinacionais parceiras de manufatura. Assim, os produtos que são manufaturados localmente no Brasil seguem rigorosamente os padrões de qualidade, formulação e produção semelhantes aos produtos produzidos pela empresa de cosméticos em suas fábricas no exterior.

Para assegurar esse padrão de qualidade dos itens produzidos localmente no Brasil, a empresa de cosméticos especifica o uso dos ingredientes que são fornecidos a partir de fornecedores globais, localizados em sua maioria fora do país. Apenas alguns ingredientes e componentes (itens de embalagens como cartuchos, rótulos e caixas) são produzidos por fornecedores locais.

Colocado de outra forma, a empresa de cosméticos especifica para o fabricante terceirizado todos os itens (ingredientes, matérias-primas, embalagens) que devem compor os seus produtos. Trata-se de um acordo previamente definido e formalizado através de contratos de longo prazo entre esses dois agentes da cadeia com o objetivo de zelar pelo padrão de qualidade mundial da marca de cosméticos.

A Figura 1 a seguir descreve de forma simplificada a cadeia de suprimentos de cosméticos com manufatura por empresas terceirizadas no Brasil.

Figura 1
Cadeia de suprimentos da empresa de cosméticos no Brasil.

A rotina de planejamento: compreendendo a lógica empurrada da empresa

Tradicionalmente, a empresa trabalha dentro da lógica empurrada, de acordo com seu calendário de atividades, com previsões e programações. Essa condição antecipa a demanda do cliente através de uma previsão de vendas (Liker, 2005Liker, J. K. (2005). O modelo Toyota. Porto Alegre, RS: Bookman.; Nematollahi, 2019Nematollahi, I. (2019). Empirical investigation of trust antecedents and consequences in decentralized supply chain: The case of cosmetics market in Iran. Decision Science Letters, 8(4), 483-504. https://doi.org/10.5267/j.dsl.2019.4.004
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). Para tal, a empresa de cosméticos realiza mensalmente suas rotinas de planejamento de inventários, identificando as necessidades de estoque de seus produtos e programando as cadeias de suprimentos com seus fabricantes terceirizados e os respectivos fornecedores de insumos.

Essa lógica empurrada considera uma previsão de vendas para os próximos 12 meses, a posição do estoque disponível nos centros de distribuição da empresa de cosméticos e os pedidos em produção, ou seja, os pedidos que já foram solicitados aos fabricantes terceirizados nos meses anteriores, mas que ainda não foram entregues.

Dentro da empresa, essa rotina é realizada pela coordenadora sênior de planejamento de inventários na primeira semana de cada mês. Após analisar o relatório extraído do sistema de planejamento de necessidades de materiais da empresa de cosméticos com as informações dos estoques, previsão de vendas e pedidos colocados e em processamento no fabricante terceirizado, essa coordenadora identifica as necessidades de inclusão de novos pedidos, bem como verifica a necessidade de realizar ajustes nos pedidos já colocados nos fabricantes terceirizados. Esses ajustes nos pedidos em processamento podem ser solicitações de antecipações, priorizações de entrega, postergações ou até mesmo ajustes em quantidades.

Tanto os novos pedidos quanto as necessidades de ajustes nos pedidos submetidos em meses anteriores são comunicados ao gerente de manufatura da empresa de cosméticos, responsável pela gestão e pelo relacionamento comercial com o fabricante terceirizado.

O gerente de manufatura envia essas solicitações ao fabricante terceirizado ainda dentro dessa primeira semana de cada mês e acompanha a análise dessas solicitações por parte do fabricante, que, por sua vez, retorna normalmente na segunda semana do mês, com a confirmação da inclusão dos novos pedidos na programação, bem como com a aceitação ou não das solicitações dos ajustes nos pedidos anteriormente submetidos.

Uma vez confirmados os pedidos, o gerente de manufatura da empresa de cosméticos acompanha toda a execução do processamento desses pedidos até seu momento de entrega nos centros de distribuição da empresa de cosméticos.

Todo esse processo de planejamento de produção é disparado com base nas projeções de vendas, o que caracteriza o sistema empurrado de produção, em que as decisões de recomposição dos inventários e colocação dos novos pedidos junto aos fabricantes terceirizados são baseadas nas previsões de vendas e consideram o lead time total de produção e fornecimento dos insumos somente a partir do momento em que a empresa de cosméticos confirma seu pedido de produção junto ao fabricante terceirizado.

Nesse modelo, tanto as compras dos insumos quanto as ordens de produção são disparadas somente a partir do pedido do fabricante de cosméticos. O fabricante terceirizado, ao receber um pedido de produto acabado da empresa de cosméticos, processa seu planejamento de necessidades de materiais para atender a esse pedido, colocando suas requisições nos fornecedores locais, para os insumos nacionais, e nos distribuidores, no caso dos insumos que são fabricados no exterior.

Esses fornecedores fora do país levam cerca de quatro meses para entregar esses insumos ao fabricante terceirizado, que por sua vez necessita de mais dois meses para fabricar e entregar os produtos à empresa de cosméticos. Todas essas etapas definem um lead time total de seis meses para essa cadeia, compreendidos entre a colocação de pedido pela empresa de cosméticos junto ao seu fabricante terceirizado e o respectivo recebimento desse pedido.

Esse lead time total é decomposto de acordo com a Figura 2 a seguir.

Figura 2
Lead times da cadeia de suprimentos com manufatura terceirizada.

Um dos maiores desafios dessa cadeia de suprimentos é a sua capacidade de resposta frente às variações de demanda considerando esse longo lead time de seis meses. De acordo com esse modelo de sistema empurrado de produção, a definição da previsão de vendas é exigida com muita antecedência, aumentando-se a probabilidade de erro na estimativa de vendas devido ao grande intervalo de tempo entre o momento da previsão de vendas e a respectiva colocação do pedido até o momento em que de fato as vendas irão ocorrer.

O erro médio acumulado entre a demanda prevista no momento da colocação do pedido e a venda efetiva que ocorreu seis meses após o pedido variou cerca de 60% para o SKU fragrância e até 90% para o SKU creme para cuidados com a pele, durante o período de cerca de um ano de observação da lógica empurrada.

Os principais problemas decorrentes desse cenário são: (a) estoques desbalanceados ao longo da cadeia, sendo que o estoque médio gira em torno de quatro vezes o volume médio de vendas; (b) frequentes pedidos extras fora de lead times e solicitações de postergações de entrega, gerando retrabalhos no planejamento e programação de produção; (c) reação lenta a mudanças na previsão de vendas, uma vez que cada pedido enfrenta o lead time total de seis meses.

À medida que esse erro de projeção de demanda é repassado upstream ao longo da cadeia produtiva (ou seja, a partir do ponto da cadeia mais próximo ao consumo em direção ao extremo inicial da cadeia onde estão os fabricantes de insumos), ele é amplificado, aumentando as consequências negativas de desbalanceamento dos inventários, gerando o conhecido efeito chicote ou bullwhip effect (Forrester, 1958Forrester, J. (1958). Industrial dynamics a major breakthrough for decision makers. Harvard Business Review, 36, 37-66. Retrieved from https://www.scienceopen.com/document?vid=74f2f079-41e8-4f58-8162-2fac17ad8a7c
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; Mbhele, 2018Mbhele, T. P. (2018). Decoupling paradigm of push-pull theory of oscillation in the FMCG industry. South African Journal of Business Management, 47(2), 53-66. https://doi.org/10.4102/sajbm.v47i2.60
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).

Esse cenário de longos lead times e estoques médios acima do volume médio de venda real decorrentes desse sistema empurrado constitui o contexto original dessa investigação.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A metodologia considerada neste artigo tecnológico foi a qualitativa, adotando-se como estratégia de pesquisa o método de pesquisa-ação. A adoção da metodologia qualitativa se baseia na natureza do objetivo a ser investigado, isto é, promover uma investigação sobre como uma mudança de produção empurrada para puxada pode influenciar os indicadores de lead time, estoque e acuracidade de previsão de vendas.

A escolha do método de pesquisa-ação se deve ao fato de que este trabalho optou por descrever uma intervenção realizada em uma cadeia de produção terceirizada realizada ao longo de 23 meses, em que os primeiros dados foram em outubro de 2017 e o último mês de análise foi agosto de 2019, com um dos pesquisadores atuando como executivo e participante ativo nessa intervenção.

A pesquisa-ação tem sido um método que vem se destacando nas pesquisas científicas na área de engenharia de produção e operações (Mello, Turrioni, Xavier, & Campos, 2012Mello, C. H. P., Turrioni, J. B., Xavier, A., & Campos, D. F. (2012). Pesquisa-ação na engenharia de produção: Proposta de estruturação para sua condução. Production, 22(1), 1-13. https://doi.org/10.1590/S0103-65132011005000056
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). A área de gerenciamento da cadeia de suprimentos fornece um campo vasto para questões de pesquisa que são relevantes para os gestores de negócios e a pesquisa-ação é um método que enfoca a relevância do tema pesquisado, tratando de problemas reais do ambiente das organizações.

A pesquisa-ação se distingue do estudo de caso porque, neste último, o pesquisador é um observador que não interfere no objeto do estudo, enquanto na pesquisa-ação o pesquisador interfere no objeto de estudo através de interação com os participantes da ação, com o objetivo de resolver um problema e expandir o conhecimento relacionado com o estudo (Dresch, Lacerda, & Miguel, 2015Dresch, A., Lacerda, D. P. & Miguel, P. A. C. (2015). A distinctive analysis of case study, action research and design science research. Revista Brasileira de Gestão de Negócio, 17(56), 1116-1133. https://doi.org/10.7819/rbgn.v17i56.2069
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).

Os principais resultados da pesquisa-ação são a ação e a pesquisa, diferentemente das pesquisas positivistas tradicionais, cujo principal objetivo é apenas gerar conhecimento. Uma pesquisa-ação é uma pesquisa em ação e não uma pesquisa sobre uma ação, com uma abordagem participativa e focada na solução de um problema real (Coughlan & Coghlan, 2002Coughlan, P., & Coghlan, D. (2002). Action research for operations management. International Journal of Operations and Production Management, 22(2), 220-240. https://doi.org/10.1108/01443570210417515
https://doi.org/10.1108/0144357021041751...
).

Os resultados esperados de uma pesquisa-ação não são apenas soluções para os problemas, mas o aprendizado dos resultados esperados e não esperados, produzindo uma contribuição para o conhecimento científico e para a teoria. O resultado gerado pela pesquisa positivista é universal, enquanto aquele criado em uma pesquisa-ação é particular e situacional. Apesar de situacionais, os resultados de uma pesquisa-ação podem extrapolar e informar a outras organizações como atuar em um problema específico (Dresch et al., 2015Dresch, A., Lacerda, D. P. & Miguel, P. A. C. (2015). A distinctive analysis of case study, action research and design science research. Revista Brasileira de Gestão de Negócio, 17(56), 1116-1133. https://doi.org/10.7819/rbgn.v17i56.2069
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).

Segundo Mello, Turrioni, Xavier, e Campos (2012Mello, C. H. P., Turrioni, J. B., Xavier, A., & Campos, D. F. (2012). Pesquisa-ação na engenharia de produção: Proposta de estruturação para sua condução. Production, 22(1), 1-13. https://doi.org/10.1590/S0103-65132011005000056
https://doi.org/10.1590/S0103-6513201100...
), a pesquisa-ação é composta de cinco fases: planejamento da pesquisa-ação, coleta de dados, análise de dados, implementações das ações e avaliação de resultados. Todas essas cinco fases são executadas em sequência e de forma cíclica, em que o resultado de um ciclo original é avaliado e considerado na preparação do próximo ciclo a ser executado. A Figura 3 ilustra a característica cíclica das fases de uma pesquisa-ação.

Figura 3
Fases de uma pesquisa-ação.

A pesquisa-ação proposta neste trabalho aplicado seguiu esse fluxo de execução, e será descrita a seguir.

O planejamento da pesquisa-ação

Uma pesquisa-ação pode iniciar com duas alternativas de abordagens: pela identificação de um problema através da revisão de literatura e depois buscando-se um objeto de estudo em que esse problema possa ser resolvido ou pela identificação de um problema por uma organização e tendo o pesquisador a oportunidade de participar da solução desse problema por meio da utilização do método de pesquisa (Mello et al., 2012Mello, C. H. P., Turrioni, J. B., Xavier, A., & Campos, D. F. (2012). Pesquisa-ação na engenharia de produção: Proposta de estruturação para sua condução. Production, 22(1), 1-13. https://doi.org/10.1590/S0103-65132011005000056
https://doi.org/10.1590/S0103-6513201100...
).

O planejamento da pesquisa-ação proposta neste trabalho aplicado partiu da segunda abordagem, isto é, a identificação de uma situação-problema na empresa de cosméticos, que são os efeitos do sistema empurrado em uma cadeia produtiva terceirizada com longos lead times, incorrendo em erros de previsão que geram estoques desbalanceados em relação ao volume de vendas, o que dificulta a capacidade de resposta e agilidade dessa cadeia.

Com base nesse problema, define-se a fundamentação teórica e estruturam-se as etapas de execução desta pesquisa-ação. A Figura 4 apresenta a abordagem da pesquisa-ação adotada no planejamento do artigo, representada pelas figuras destacadas e hachuradas abaixo.

Figura 4
Abordagem da pesquisa-ação deste artigo.

Um dos pontos mais importantes do planejamento desta pesquisa-ação foi a seleção da unidade de análise, isto é, dos SKUs que seriam investigados. Os critérios de seleção dessa intervenção foram a sua importância estratégica para a empresa e a relação entre o volume da demanda mensal desses itens e o volume mínimo de cada lote de produção exigido pelo fabricante terceirizado.

Foram escolhidos, intencionalmente, itens cujo lote mínimo de produção não representasse mais do que três meses do volume mensal médio da demanda.

A razão dessa condição é evitar intervalos dilatados de tempo entre dois lotes de produção, ou seja, se o SKU escolhido tiver uma demanda muito menor que o volume mínimo de produção exigido pelo fabricante terceirizado, a cada recebimento de um pedido acionado pelo sistema puxado, o estoque subirá demasiadamente e o tempo até se atingir o ponto de disparo novamente será longo, ou seja, haverá uma baixa frequência de disparo.

Por outro lado, como essa regra do volume mínimo de produção representa no máximo três meses da demanda média mensal, provavelmente ocorrerá o disparo em um intervalo inferior a três meses.

De acordo com esses critérios, foram selecionados dois itens da empresa de cosméticos para avaliar os efeitos da mudança do sistema de produção empurrado para puxado. Esses dois itens são produzidos pelo mesmo fabricante terceirizado, porém em duas fábricas distintas, sendo uma fábrica de cremes e loções e uma fábrica de fragrâncias.

A seleção de dois itens de diferentes fábricas, com diferentes processos, objetivou enriquecer a avaliação da implementação do sistema puxado em dois ambientes industriais completamente distintos e independentes, sendo necessário duplicar todos os esforços para replicar essas intervenções.

Cada item selecionado é composto por um conjunto de componentes, com seus respectivos fornecedores e/ou distribuidores de insumos, o que aumenta a complexidade dessa intervenção, pois se faz necessário envolver os participantes nessa mudança de sistema de produção.

Para efeito de simplificação de análise, foram analisados os ingredientes e os componentes que são exclusivos do item de produto acabado selecionado para essa intervenção, obtendo-se a lista da Tabela 1 a seguir.

Tabela 1
Composição dos insumos dos SKUs estudados na intervenção.

A intervenção então envolvia seis itens (entre componentes e matéria-prima) para o SKU creme e oito itens para o SKU fragrância. Ao todo, a mudança de lógica empurrada para puxada impactaria diretamente o relacionamento com dez fornecedores diretos (locais e importados), além de três distribuidores situados no país.

A coleta de dados: o diagnóstico da situação-problema e/ou oportunidade

Os dados da pesquisa-ação foram coletados de diferentes formas, como recomendado por Coughlan e Coghlan (2002Coughlan, P., & Coghlan, D. (2002). Action research for operations management. International Journal of Operations and Production Management, 22(2), 220-240. https://doi.org/10.1108/01443570210417515
https://doi.org/10.1108/0144357021041751...
). Foram consideradas as observações diretas dos pesquisadores no ambiente da intervenção e sondagens através das entrevistas e dos questionamentos aos participantes por interpretações dos dados operacionais e dos impactos da mudança.

Os dados secundários foram coletados através da análise documental de relatórios extraídos dos sistemas de compras e inventário da empresa de cosméticos e de seu fabricante terceirizado. Para cada item de produto acabado e seus respectivos insumos selecionados nas unidades de análise para essa intervenção, foram coletados dados históricos dos estoques e dos lead times dos pedidos.

Os dados de nível de estoque também foram apresentados sob a forma de indicadores de cobertura de estoque, ou seja, os dados dos estoques absolutos foram coletados em unidades e foram convertidos em meses de cobertura, subtraindo a posição absoluta do estoque pela demanda do mesmo item nos meses subsequentes. Dessa forma, converte-se o estoque absoluto em cobertura de estoque (unidade de medida: meses de estoque) relativa à demanda futura.

Para os SKUs estudados, isto é, creme para cuidados com a pele e fragrância, foram coletados os dados de previsão de vendas no momento da colocação do pedido e a respectiva venda efetiva seis meses após o momento da colocação do pedido, entre outubro de 2017 e novembro de 2018, conforme Tabela 2.

Tabela 2
Erro da previsão de demanda no sistema empurrado.

Na Tabela 2, a coluna Forecast Lag 6 significa a previsão da demanda, em unidades, realizada seis meses antes da venda. A coluna ‘Venda Efetiva’ representa a venda real que ocorreu no mês da análise.

Para os SKUs selecionados para essa intervenção, foram também coletados os dados do lead time (em dias corridos) dos pedidos da empresa de cosméticos, compreendendo o intervalo de tempo entre a colocação do pedido pela empresa de cosméticos no fabricante terceirizado e o respectivo recebimento desses produtos.

Na Tabela 3, a seguir, estão os dados referentes aos lead times dos pedidos colocados no sistema empurrado para os dois SKUs estudados.

Tabela 3
Lead times dos pedidos dos SKUs creme para cuidados e fragrância.

A análise dos dados: a situação-problema

A previsão de vendas

No sistema empurrado, constatou-se que o erro médio da previsão de vendas é elevado em decorrência do longo intervalo de tempo entre o momento da colocação de pedido e a efetiva venda seis meses após a solicitação.

O erro médio entre a demanda prevista no momento do pedido e a venda real efetiva ficou em torno de 90% para o SKU creme para cuidados com a pele, analisado durante 14 meses, compreendidos entre outubro de 2017 e novembro de 2018. O percentual médio de acerto acumulado ficou em torno de 10% no mesmo período.

Para o SKU fragrância, o erro médio de previsão de demanda acumulado no período de 14 meses, compreendido entre outubro de 2017 e novembro de 2018, foi de 60,7%, tendo o acerto ficado em 39,3%, consequentemente.

Os lead times

Os lead times no sistema empurrado indicaram um longo intervalo entre a colocação do pedido e o recebimento.

No caso do SKU creme para cuidados com a pele foram obtidos dados de lead time de oito pedidos, em um intervalo de um ano e seis meses, entre 20/03/2017 e 20/09/2018. Nesses oito pedidos, a média do prazo foi de 148,6 dias corridos e o desvio-padrão foi de 18,5 dias.

No caso do SKU fragrância foram obtidos dados de lead time de seis pedidos, em um intervalo de um ano e três meses, de 05/05/2017 a 03/08/18. Nesses seis pedidos, a média do prazo foi de 147,8 dias corridos e o desvio-padrão foi de 21,6 dias.

Os níveis de inventários

No cenário do sistema empurrado, observa-se que os estoques de produto acabado da empresa de cosméticos apresentam um descolamento do comportamento das vendas. Na Figura 5, a seguir, verifica-se esse comportamento para o item creme para cuidados com a pele.

Figura 5
Estoques e vendas no sistema empurrado - SKU creme para cuidados com a pele.

O estoque inicial médio mensal para o SKU creme para cuidados com a pele no sistema empurrado para esse período ficou em 672.224 unidades e é cerca de 3,8 vezes o volume médio mensal de vendas, que ficou em 174.714 unidades. O estoque final médio mensal ficou em 610.258 unidades e é cerca de 3,5 vezes o volume médio de venda.

O indicador de cobertura do estoque do sistema empurrado indica uma cobertura média de 4,0 meses em estoque. Os dados de cobertura são apresentados na Figura 6 a seguir.

Figura 6
Indicador de cobertura de estoque do produto acabado da empresa de cosméticos - SKU creme para cuidados com a pele.

Em relação à cobertura dos estoques de insumos no fabricante terceirizado, o nível de estoque geral de insumos no fabricante, considerando ingredientes e componentes, apresentou uma cobertura média de 3,52 meses no sistema empurrado.

Da mesma forma, foram realizadas as análises para o SKU fragrância. Na Figura 7, a seguir, verifica-se o descolamento dos estoques iniciais e finais versus as vendas mensais.

Figura 7
Estoques e vendas no sistema empurrado - SKU fragrância.

O estoque inicial médio mensal para o SKU fragrância para esse período ficou em 58.828 unidades e é cerca de 3,8 vezes o volume médio mensal de vendas, que ficou em 15.409 unidades. O estoque final médio mensal teve 54.514 unidades como resultado, sendo cerca de 3,5 vezes o volume médio mensal de vendas.

O indicador de cobertura do estoque do sistema empurrado indica uma cobertura média de 3,3 meses em estoque, conforme Figura 8 a seguir.

Figura 8
Indicador de cobertura de estoque do produto acabado da empresa de cosméticos - SKU fragrância.

Em relação à cobertura dos estoques de insumos no fabricante terceirizado, considerando ingredientes e componentes, a cobertura média ficou em 2,4 meses, que foi a média de estoque de setembro de 2017 a setembro de 2018 para cada um dos itens, elaborado em meses de cobertura de estoque.

Propostas de intervenção: implementando as ações

Uma das primeiras etapas que essa intervenção realizou foi a ampla conscientização dos benefícios potenciais que as práticas lean poderiam trazer para os agentes da cadeia. Para isso, foi instituída uma política de treinamento na metodologia lean como forma de preparação para implementar o sistema puxado. Esse treinamento ocorreu em diversas sessões, envolvendo dezenas de colaboradores durante os 12 meses iniciais de projeto.

Para estruturar essa iniciativa de conscientização, foi contratada uma consultoria especializada em metodologia lean para elaborar um programa com o objetivo de educar os profissionais das áreas de planejamento de supply e gestão de manufatura terceirizada da empresa de cosméticos nas ferramentas lean, bem como orientar e dar o suporte necessário para implementar o sistema puxado na sua cadeia de produção. Após uma reunião para definição dos detalhes com a empresa de consultoria, foi definido o cronograma de treinamento na metodologia lean.

Também foi designado pela alta administração um time com sete integrantes-chave do projeto, composto por gestores de planejamento, de manufatura e relacionamento com o fabricante terceirizado, e consultor lean, além do executivo que também atuava como pesquisador.

Com esse time foi realizada em seguida uma análise em profundidade das causas primárias dos problemas identificados. A partir das análises, um conjunto de contramedidas foi desenvolvido, com o objetivo de endereçar as causas dos problemas, e os integrantes desenvolveram um cronograma detalhado de implementação da intervenção com 15 principais etapas, conforme a Figura 9 a seguir.

Figura 9
Cronograma de implementação do sistema puxado na cadeia de produção terceirizada.

Não é viável nesse relato técnico apresentar os pormenores de cada uma das etapas do cronograma exposto para viabilizar a intervenção. Todavia, vale ressaltar que uma das questões mais críticas da intervenção realizada foram as revisões dos fluxos para compor os lead times (etapas 2 e 3) e os dimensionamentos dos estoques (etapa 4).

Ficou acordado nas reuniões entre a empresa de cosméticos e o fabricante terceirizado que no novo sistema puxado a empresa de cosméticos enviará os pedidos firmes de fabricação dos produtos ao fabricante terceirizado quando a lógica do sistema puxado disparar a necessidade de reposição através do ponto de ressuprimento, sendo que o fabricante terceirizado se compromete a realizar a respectiva entrega do produto acabado no prazo máximo de ‘42 dias corridos’ no caso de fragrâncias e de ‘55 dias corridos’ no caso de produtos para cuidados com a pele.

Nessa etapa da intervenção, a equipe designada pela alta administração promoveu uma série de reuniões cujo objetivo foi o levantamento da situação atual e uma projeção do estado futuro da intervenção. Por definição, um mapa do estado atual segue o caminho de um produto, do pedido até a entrega, para determinar as condições atuais. Um mapa do estado futuro desdobra as oportunidades de melhoria identificadas pelo mapa do estado atual, para atingir um nível mais alto de desempenho em algum ponto no futuro (Womack, Jones, & Roos, 2007Womack, J. P., Jones, D. T., & Roos, D. (2007). The machine that changed the World: The Story of Lean Production-Toyota’s Secret weapon in the global car wars that is the machine that changed the world- now revolutionizing world industry. New York, NY: Rawson Macmillan.). Na Figura 10 é apresentada uma simplificação desses mapas, passando de um lead time de seis meses para 55 dias corridos no caso de produtos para cuidados com a pele.

Figura 10
Mapa da situação atual e da situação futura.

Esses prazos consideraram todo o ciclo, incluindo o prazo de aquisição, recebimento e liberação dos insumos, assim como o prazo de programação, fabricação, análise e liberação do produto acabado até a efetiva entrega à empresa de cosméticos. Os prazos foram criteriosamente estudados na intervenção através de reuniões específicas com profissionais envolvidos na intervenção, tanto do fabricante terceirizado como da empresa de cosméticos, que realizaram mapeamentos e revisões de fluxos detalhados para constituir esses prazos.

A Figura 11 apresenta uma exemplificação de um dos documentos que foram produzidos nas reuniões de redefinição dos fluxos e lead times entre o fabricante terceirizado e a empresa de cosméticos.

Figura 11
Exemplo de redefinição de fluxo e lead time realizada na intervenção (etapas 2 e 3).

Como ponto central da intervenção, ficou decidido também que os novos pedidos da empresa de cosméticos junto ao fabricante terceirizado deveriam ser realizados ‘segundo as vendas das consultoras’, caracterizando um sistema puxado. Para viabilizar as entregas nos prazos convenientes para a força de vendas, a forma de trabalhar escolhida seguiu a lógica de um supermercado do sistema de manufatura enxuto.

Segundo essa lógica de supermercado, há um condicionamento primordial para que cada etapa do processo imediatamente anterior só produza um bem ou serviço quando o processo posterior ou o cliente final o solicite, normalmente utilizando sistemas Kanbans. Assim, os Kanbans representam sinalizações que despertam ordens de produção, podendo ser empregados cartões visuais, painéis luminosos, ou mesmo ordens de reposição entre fornecedores e clientes (como foi o caso da intervenção).

O dimensionamento do sistema puxado adotado na intervenção contemplou então a construção coletiva de um sistema de supermercado composto de três partes: estoque de ciclo, estoque pulmão e estoque de segurança para cada SKU estudado, conforme Figura 12.

Figura 12
Sistema de supermercado adotado na intervenção realizada.

Para a intervenção proposta, o estoque de ciclo, representado pela cor verde na Figura 7, significou o estoque necessário para cobrir todo o lead time da reposição do item, sendo traduzido pela demanda média diária do item multiplicada pelo número de dias necessários para a reposição desse item, que para o SKU creme foi de 55 dias e para o SKU fragrância foi de 42 dias.

À medida que a demanda real através dos pedidos das consultoras for consumindo o estoque de ciclo da empresa de cosméticos, este vai se reduzindo até chegar a um nível conhecido como ‘ponto de disparo’. Ao chegar a esse ponto, ficou acordado com os fornecedores que uma ordem de reposição seria disparada aos fornecedores dos SKUs estudados. De maneira análoga, ficaram acordados também entre o fabricante terceirizado e a empresa de cosméticos os níveis de estoque pulmão e de estoque de segurança.

Para o dimensionamento dos níveis de estoque real aplicados na intervenção, foi calculada a média mensal de venda dos 12 meses, obtendo-se uma média e um desvio-padrão para cada item. Além disso, também foram considerados os novos lead times acordados (55 e 44 dias) e os MOQs (minimum order quantity), que são os tamanhos mínimos dos lotes de produção exigidos pelo fabricante terceirizado.

Com base nesses parâmetros, foi feito o dimensionamento de cada estoque que compõe o sistema puxado para os itens. Para exemplificação da lógica de supermercado, a Figura 13 apresenta um resumo das quantidades acordadas entre o fabricante terceirizado e a empresa de cosméticos para os dois SKUs estudados no projeto.

Figura 13
Parâmetros de funcionamento da lógica puxada da intervenção.

A avaliação dos resultados da intervenção

Após a implementação do sistema puxado, foram novamente coletados os dados dos principais indicadores de lead time e estoques em um período subsequente à intervenção, avaliando o comportamento desses indicadores e comparando-os com os resultados obtidos antes da intervenção. Nas seções seguintes, serão analisados esses resultados.

Impactos nos resultados da acuracidade da previsão de vendas

Em relação à previsão de vendas, houve um importante ganho na acuracidade acumulada no período sob a lógica puxada em decorrência da maior assertividade no menor intervalo de tempo. A Tabela 4 a seguir demonstra o histórico de resultados da medição do erro da previsão nos dois SKUs estudados.

Tabela 4
Erro da previsão de demanda no sistema puxado.

Para o SKU creme para cuidados com a pele, o erro médio entre a demanda prevista no momento do pedido e a venda real efetiva ficou em torno de 27%, compreendidos de outubro de 2018 a agosto de 2019. O percentual médio de acerto acumulado ficou em torno de 73% no mesmo período.

Comparado com a performance da acuracidade acumulada de forecast no período analisado sob a lógica empurrada, cujos resultados foram de 90% de erro acumulado e 10% de acerto, houve um significativo aumento na taxa de acerto.

Para o SKU fragrância, o erro médio entre a demanda prevista no momento do pedido e a venda real efetiva ficou em torno de 33%, compreendidos entre dezembro de 2018 e agosto de 2019. O percentual médio de acerto acumulado ficou em torno de 67% no mesmo período.

Comparado com a performance da acuracidade acumulada de forecast no período analisado sob a lógica empurrada, cujos resultados foram de 61% de erro acumulado e 39% de acerto, houve um significativo aumento do acerto da previsão.

Impactos nos lead times dos fluxos de processos

Em relação ao lead time, foi observada uma significativa redução no resultado obtido entre o sistema puxado e o sistema empurrado anterior. Na Tabela 5, a seguir, é apresentado o histórico dos lead times dos dois SKUs estudados sob a lógica do sistema puxado.

Tabela 5
Lead times - sistema puxado pós-intervenção.

Comparando os resultados dos lead times do SKU creme para cuidados com a pele, entre o período sob a lógica empurrada e puxada, houve uma redução de 65,2% na média do prazo medido entre a data de colocação do pedido e sua data de entrega. O prazo anterior no sistema empurrado era de 148,6 dias contra os 51,8 dias da média de prazo no sistema puxado. O desvio-padrão do prazo caiu para 13,3 dias, uma redução de 28% em relação ao desvio-padrão da condição do sistema empurrado, que era de 18,5 dias.

Comparando os resultados dos lead times do SKU fragrância entre o período sob a lógica empurrada e puxada, houve uma redução de 66,7% na média do prazo medido entre a data de colocação do pedido e sua data de entrega. O prazo anterior no sistema empurrado era de 147,8 dias contra os 49,3 dias da média de prazo no sistema puxado. O desvio-padrão do prazo foi reduzido para 9,0 dias, uma redução de 58% em relação ao desvio-padrão da condição do sistema empurrado, que era de 21,6 dias.

Impactos nos níveis de inventário

Em relação aos estoques, também foi observada uma mudança no comportamento dos indicadores de cobertura de estoque em relação à demanda.

No cenário do sistema puxado, nota-se que o nível dos estoques de produto acabado da empresa de cosméticos se aproxima mais do nível da demanda, diminuindo o descolamento que existia no sistema empurrado.

Na Figura 14, a seguir, verifica-se esse comportamento para o SKU creme para cuidados com a pele.

Figura 14
Estoques e vendas no sistema puxado - SKU creme para cuidados com a pele.

Nesse período sob a lógica puxada, o estoque inicial médio mensal do SKU creme para cuidados com a pele foi reduzido para 91.595 unidades, enquanto o volume médio mensal de vendas caiu para 28.090 unidades. Com isso, a relação entre o estoque inicial médio mensal e o volume médio mensal de vendas ficou em 3,3. Comparando esse resultado com o que foi obtido no sistema empurrado, em que a relação entre esses dois indicadores apresentava um fator de 3,8, observa-se uma redução de 15% entre o nível de cobertura do estoque inicial médio e sua respectiva demanda média mensal.

Da mesma forma, foi observado o estoque final médio mensal do SKU creme para cuidados com a pele sob o período da lógica puxada, o qual ficou com o valor de 80.038 unidades. Calculando a relação desse resultado com o volume médio mensal de vendas de 28.090 unidades, obtém-se o resultado de 2,8 meses.

Comparando esse resultado no sistema puxado com o que foi obtido no sistema empurrado, em que a relação entre esses dois indicadores apresentava um fator de 3,5, observa-se uma redução de 18% na relação entre o nível de cobertura do estoque final médio mensal e sua respectiva demanda média mensal.

O gráfico indicador de cobertura do estoque de produto acabado no sistema puxado para o SKU creme para cuidados com a pele indica uma cobertura média de 2,7 meses em estoque. Isso significa uma redução de 32,5% no indicador meses de cobertura comparado ao mesmo indicador quando avaliado no sistema empurrado, conforme Figura 15 a seguir.

Figura 15
Variação da cobertura de estoque - SKU creme para cuidados com a pele.

Em termos de estoque geral de insumos, considerando ingredientes e componentes, a cobertura média ficou em 3,51 meses no sistema puxado. Esse resultado representa uma pequena redução de 1% quando comparado com o valor mensurado para esse indicador durante o período de avaliação sob a lógica empurrada, que era 3,52 meses de estoque, indicando que não houve uma variação significativa no estoque de insumos no fabricante terceirizado.

Em relação aos estoques do SKU fragrância, também foi observada uma mudança similar no comportamento dos indicadores de cobertura de estoque em relação à demanda, em que o nível dos estoques de produto acabado da empresa de cosméticos se aproxima mais do nível da demanda, diminuindo o descolamento que existia no sistema empurrado.

Na Figura 16, a seguir, verifica-se esse comportamento para o SKU fragrância.

Figura 16
Estoques e vendas no sistema puxado - SKU fragrância.

No período sob a lógica puxada, o estoque inicial médio mensal do SKU fragrância foi reduzido para 20.700 unidades, enquanto o volume médio mensal de vendas foi de 10.759 unidades. Com isso, a relação entre o estoque inicial médio mensal e o volume médio mensal de vendas ficou em 1,9. Comparando esse resultado com o que foi obtido no sistema empurrado, em que a relação entre esses dois indicadores apresentava um fator de 3,8, observa-se uma redução de 50% entre o nível de estoque inicial médio e sua respectiva demanda média mensal.

Em relação ao estoque final médio mensal do item de fragrância, obteve-se o valor de 24.103 unidades no período sob o sistema puxado e, calculando a relação desse resultado com o volume médio mensal de vendas de 10.759 unidades, obtém-se o resultado de 2,2 meses.

Comparando esse resultado no sistema puxado com o que foi obtido no sistema empurrado, em que a relação entre esses dois indicadores apresentava um fator de 3,5, observa-se uma redução de 37% entre o nível de estoque final médio mensal e sua respectiva demanda média mensal.

O indicador de cobertura do estoque de produto acabado para o SKU fragrância indica uma cobertura média de 2,1 meses para o período sob a lógica puxada. Esse nível de cobertura média sob a lógica puxada representa uma redução de 36% comparada ao resultado do mesmo indicador sob a lógica empurrada, que era de 3,3 meses, conforme demonstrado na Figura 17 a seguir.

Figura 17
Variação da cobertura de estoque - SKU fragrância.

Em termos de estoque geral de insumos, considerando ingredientes e componentes, a cobertura média ficou em 1,8 meses no sistema puxado. Esse resultado representa uma significativa redução de 24% quando comparado com o valor mensurado para esse indicador durante o período de avaliação sob a lógica empurrada, que era 2,5 meses de estoque, indicando que houve uma importante redução dos insumos no estoque do fabricante terceirizado.

CONTRIBUIÇÕES TECNOLÓGICAS

Como uma contribuição para a base de conhecimento na área de operações, é oportuno apontar que essa intervenção permitiu aos autores sugerir um roteiro de como implementar o sistema puxado baseado na experiência desta pesquisa-ação. Esse roteiro está descrito na Figura 18 a seguir.

Figura 18
Roadmap de implementação do sistema puxado.

Nesse roteiro, as etapas estão numericamente indicadas de forma a sugerir uma sequência para uma implementação de uma mudança do sistema de produção empurrado para puxado.

Inicia-se com a etapa de capacitação dos agentes que participarão da intervenção, em que eles devem ser treinados nas principais ferramentas lean a serem utilizadas. Em seguida, definem-se as unidades de análise da intervenção, detalhando os SKUs e seus respectivos insumos que serão avaliados no projeto.

Na sequência, realiza-se o mapeamento dos estados atual e futuro do sistema em que se deseja implementar a intervenção, identificando todos os pontos de melhorias e alterações necessárias para se atingir o estado futuro. Dentro da atividade de desenho do estado futuro, estão inclusos a etapa de decomposição dos lead times, que compreende o detalhamento dos tempos de cada atividade, e o exercício do dimensionamento do sistema puxado.

Formalizam-se todas essas etapas preparatórias através da criação do documento A3, que sela o compromisso do time envolvido com a execução do que foi planejado.

Nas etapas seguintes, revisam-se as condições de fornecimento e os contratos com os principais fornecedores envolvidos, destacando-se as novas dinâmicas de operação, bem como as responsabilidades de cada empresa envolvida no novo contexto. Simultaneamente, coletam-se os dados históricos do sistema de produção empurrado vigente antes da intervenção.

A etapa de teste e validação do novo sistema de produção puxado realizada antes do go live permite validar, em um ambiente real de negócio, os tempos previamente definidos, em que se utiliza o estoque excedente do sistema empurrado como um colchão protetor em caso de risco de ruptura nessa etapa de teste.

Após o go live, o monitoramento do sistema puxado, através de uma coleta contínua dos dados, permite controlar seu funcionamento, como também avaliar os impactos nos principais indicadores do sistema de produção. Uma avaliação qualitativa através de entrevistas com os principais envolvidos complementa o entendimento dos efeitos da intervenção, pois captura alguns aspectos que muitas vezes não são revelados apenas com a leitura e interpretação dos indicadores.

Outra importante contribuição identificada neste trabalho é a necessidade de avaliar o trade-off relacionado ao esforço de administrar de forma manual o planejamento dos SKUs, que tiveram a lógica de produção alterada para o sistema puxado, adicionalmente às rotinas de planejar o restante dos SKUs que permanecem no sistema empurrado.

Dentre os inúmeros benefícios que essa intervenção proporciona, existe um relacionado à redução do trabalho adicional de planejamento através da eliminação do retrabalho que existia no sistema empurrado para ajustes, correções, incrementos, cancelamentos ou postergações de pedidos já colocados. Foi constatado que a redução do retrabalho é maior que o esforço do controle manual adicional no sistema puxado. Além disso, a sugestão de adaptar o ERP para incorporar os controles e reduzir o esforço manual aumenta ainda mais as vantagens do sistema puxado nesse trade-off.

Outro importante trade-off a ser considerado é o que está relacionado com os desafios comercial e contratual enfrentados para promover as mudanças junto aos fabricantes e fornecedores envolvidos versus os ganhos operacionais revelados pela intervenção. As dificuldades maiores identificadas estavam relacionadas com a preocupação que os fabricantes e fornecedores tinham com a necessidade de expor os dados e as informações detalhadas dos processos de fabricação, bem como o receio de que esse sistema pudesse afetar de alguma forma a rentabilidade do contrato.

Ficou evidenciado que o comprometimento em não prejudicar nenhuma empresa envolvida em decorrência da implementação do sistema puxado, o compromisso de assumir os custos dos estoques dos insumos não absorvidos pelo novo sistema após um período de tempo e os rápidos resultados obtidos no sistema puxado, em que se constatou uma maior estabilidade de programação da produção, permitiram reduzir os entraves e inseguranças comerciais e contratuais junto aos fabricantes e fornecedores, levando-os a superar mais rapidamente esses questionamentos e dúvidas, à medida que os pedidos no sistema puxado eram executados, os benefícios eram revelados e os receios eram desfeitos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em relação ao seu objetivo principal, esta pesquisa-ação permitiu avaliar os efeitos de uma intervenção no sistema de produção de uma díade formada por uma empresa de cosméticos e seu fabricante terceirizado. Através da análise das medições de indicadores de cobertura de estoque e lead times, observaram-se variações importantes no comportamento desses indicadores sob as duas diferentes lógicas de produção.

A intervenção trouxe de fato melhoria nos indicadores selecionados. A Tabela 6 apresenta um resumo dos principais indicadores, considerando os períodos anterior e posterior à intervenção.

Tabela 6
Resumo dos resultados obtidos na pesquisa.

Quanto ao comportamento dos lead times dos pedidos após a intervenção, as reduções foram significativas em ambos os SKUs analisados, sendo a redução superior a 60% quando comparada com o lead time do período sob a lógica puxada. O SKU creme para cuidados com a pele apresentou uma redução de 65,2%, enquanto o SKU fragrância reduziu em 66,7%.

Outra observação importante em relação aos lead times é que não houve somente uma forte redução no prazo, mas também uma significativa redução na variabilidade do lead time. O desvio-padrão do lead time para o SKU creme para cuidados com a pele apresentou uma redução de 28%, enquanto no SKU fragrância a redução foi de 58%, o que potencialmente sugere que a variação dos lead times foi reduzida com a respectiva redução dos prazos.

Esse comportamento também foi observado com a assertividade da previsão de vendas. Diante do menor intervalo que a lógica puxada permite utilizar, verificou-se que o erro da previsão de vendas entre o momento da colocação do pedido e o momento da entrega dos produtos foi reduzido de 90% para 27% no caso do SKU creme para cuidados com a pele e de 61% para 33% no caso do SKU fragrância.

Uma expectativa esperada decorrente desses resultados é um eventual impacto positivo na gestão dos inventários, que foi observado nessa intervenção, na qual o comportamento descolado das curvas dos estoques em relação ao patamar de demanda, identificado no sistema empurrado, foi nitidamente alterado para outro padrão de comportamento, no qual essas curvas de estoque se aproximaram muito mais do nível de vendas respectivo, proporcionando uma redução no nível de cobertura do estoque.

Quando analisamos o estoque mensal médio final de cada mês, a redução no sistema puxado foi de 18% para o SKU creme para cuidados com a pele e de 37% para o SKU fragrância, confirmando que o nível de cobertura dos estoques foi reduzido em relação ao nível de vendas.

Apesar de ambos apresentarem uma redução na cobertura dos estoques de produto acabado, verificou-se que a redução foi maior no SKU fragrância. Ficou evidenciado que os benefícios proporcionados pelo sistema puxado foram menores no SKU creme para cuidados com a pele em decorrência de sua queda de demanda progressiva no período em análise do sistema puxado em virtude de sua descontinuidade por uma troca de versão desse SKU, o que leva à conclusão de que a estabilidade do SKU no portfólio da empresa é um fator crítico que deve ser levado em consideração para a implementação do sistema puxado, uma vez que seu dimensionamento utiliza dados históricos, bem como projeções de sua demanda, para definir os parâmetros do sistema puxado.

Em relação à preocupação de que uma eventual redução nos estoques de produto acabado da empresa de cosméticos, como de fato aconteceu, poderia gerar como consequência um aumento dos estoques dos insumos no fabricante terceirizado, a intervenção potencialmente demonstrou que não houve uma variação significativa no nível de estoque dos insumos nos fabricantes.

Mesmo diante de uma exigência de maior agilidade por parte dos fabricantes devido aos menores lead times na cadeia sob a lógica puxada, verificou-se que o nível de estoques geral dos insumos no sistema puxado ficou estável para o SKU creme para cuidados com a pele, e até se observou uma redução no estoque de insumos para o SKU fragrância.

Para além da significativa redução dos erros de previsões de vendas, dos lead times e dos níveis de estoque das SKUs, como apontado na Tabela 6, pode-se afirmar que a intervenção alterou drasticamente a forma de se planejar e programar a produção, em que a empresa de cosméticos deixou de utilizar o sistema convencional de planejamento de produção do ERP com base na previsão de vendas e passou a planejar de acordo com o nível real de estoque. A alteração da lógica empurrada para a puxada e todos os seus desdobramentos foi, sem dúvida, a principal mudança que este relato tecnológico pretendeu apresentar.

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  • Classificação JEL:

    L600.
  • Relatório de Revisão por Pares:

    A disponibilização do Relatório de Revisão por Pares não foi autorizada pelos revisores.
  • Financiamento

    Os autores relataram que não houve suporte financeiro para a pesquisa deste artigo.
  • Verificação de Plágio

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  • Método de Revisão por Pares

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  • Disponibilidade dos Dados

    Os autores afirmam que todos os dados utilizados na pesquisa foram disponibilizados publicamente, e podem ser acessados por meio da plataforma Harvard Dataverse:
    Vasconcellos, Luis Rigato; Sampaio, Mauro; Fonseca, Henrique, 2021, "Replication Data for: "Implementing the Pull Production System: An Action Research" published by RAC-Revista de Administração Contemporânea", Harvard Dataverse, V1.
    https://doi.org/10.7910/DVN/JWCQMF
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Editado por

Editor-chefe:

Marcelo de Souza Bispo (Universidade Federal da Paraíba, PPGA, Brasil)

Editor Associado:

Gustavo da Silva Motta (Universidade Federal Fluminense, PPGA, Brasil)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    20 Maio 2021
  • Revisado
    04 Ago 2021
  • Aceito
    04 Ago 2021
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