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Epidemiologia e saber científico

Epidemiology and scientific knowledge

Resumos

Todo conhecimento, seja ele oriundo do cotidiano ou das interpretações mágicas, religiosas, filosóficas, científicas ou artísticas da realidade, tem sua origem em problemas práticos. Desde a Antigüidade o homem preocupou-se com as doenças e suas causas. Entretanto, os saberes referentes ao processo saúde-doença em sua dimensão coletiva só ultrapassam o limiar de positividade , isto é, só se individualizam como prática discursiva, no século XVII, quando as noções de população, Estado e coletivo ganham significado social. Tais saberes, entretanto, não caracterizam ainda uma disciplina científica com seu conjunto particular de enunciados, normas de verificação e coerência. A superação do limiar de epistemologização só se dará no século XIX, com a incorporação de cálculos estatísticos, formulação de taxas, desenvolvimento de teorias de causalidade e elaboração dos métodos de investigação. Na primeira metade do século XX observa-se a transição da disciplina para a ciência epidemiológica, marcada pela incorporação de instrumentos analíticos da Bioestatística, explicitação do caráter coletivo do objeto e sistematização dos métodos. Atualmente vive-se nova etapa de transição para o limiar de formalização.

Epidemiologia, história; Epidemiologia teórica; Ciência


All knowledge, whether routine or based upon magical, religious, philosophical, scientific or artistic interpretations of reality, originates from practical problems. Since ancient times man has been concerned with diseases and their causes. Nevertheless, knowledge of the health-disease process in its collective sense, only crosses the threshold of positivity, that is to say, it only stands out as a discoursal practice, in the 17th century when the ideas of population, State and collectivity gain social significance. This knowledge, however, does not yet characterize a scientific discipline with its own set of enunciations, rules of investi-gation and coherence. The epistemological threshold will only be crossed in the 19th century with the use of statistics, rates, development of causal theories and definition of research methods. In the first half of the 20th century the transition of the discipline towards epidemiological science occurs by using analytical instruments such as statistics, defining the collective character of the object, and the systematization of methods. The current stage is the transition towards the threshold of formalization.

Epidemiology; Epidemiology, history; Science


Epidemiologia e saber científico

Epidemiology and scientific knowledge

Rita Barradas Barata

Departamento de Medicina Social. Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, Rua Cesário Motta Jr., 61 - 5º andar, 01221-020 São Paulo, SP - Brasil e-mail: celagsc@uol.com.br

RESUMO

Todo conhecimento, seja ele oriundo do cotidiano ou das interpretações mágicas, religiosas, filosóficas, científicas ou artísticas da realidade, tem sua origem em problemas práticos. Desde a Antigüidade o homem preocupou-se com as doenças e suas causas. Entretanto, os saberes referentes ao processo saúde-doença em sua dimensão coletiva só ultrapassam o limiar de positividade , isto é, só se individualizam como prática discursiva, no século XVII, quando as noções de população, Estado e coletivo ganham significado social. Tais saberes, entretanto, não caracterizam ainda uma disciplina científica com seu conjunto particular de enunciados, normas de verificação e coerência. A superação do limiar de epistemologização só se dará no século XIX, com a incorporação de cálculos estatísticos, formulação de taxas, desenvolvimento de teorias de causalidade e elaboração dos métodos de investigação. Na primeira metade do século XX observa-se a transição da disciplina para a ciência epidemiológica, marcada pela incorporação de instrumentos analíticos da Bioestatística, explicitação do caráter coletivo do objeto e sistematização dos métodos. Atualmente vive-se nova etapa de transição para o limiar de formalização.

Palavras-chave: Epidemiologia, história. Epidemiologia teórica. Ciência.

ABSTRACT

All knowledge, whether routine or based upon magical, religious, philosophical, scientific or artistic interpretations of reality, originates from practical problems. Since ancient times man has been concerned with diseases and their causes. Nevertheless, knowledge of the health-disease process in its collective sense, only crosses the threshold of positivity, that is to say, it only stands out as a discoursal practice, in the 17th century when the ideas of population, State and collectivity gain social significance. This knowledge, however, does not yet characterize a scientific discipline with its own set of enunciations, rules of investi-gation and coherence. The epistemological threshold will only be crossed in the 19th century with the use of statistics, rates, development of causal theories and definition of research methods. In the first half of the 20th century the transition of the discipline towards epidemiological science occurs by using analytical instruments such as statistics, defining the collective character of the object, and the systematization of methods. The current stage is the transition towards the threshold of formalization.

Keywords: Epidemiology. Epidemiology, history. Science.

Todo conhecimento, seja ele oriundo do cotidiano ou das interpretações mágicas, religiosas, filosóficas, científicas ou artísticas da realidade, tem sua origem em problemas práticos, isto é, em necessidades humanas. Os comportamentos cotidianos repre-sentam o começo e o fim de toda atividade humana porque é nessa dimensão da vida cotidiana que os problemas são formulados e as soluções para os mesmos são produzidas, ainda que tais soluções envolvam conhecimentos mais elaborados que, em seu processo de formulação, tenham dependido de um conjunto mais ou menos complexo de mediações. Assim, mesmo os conhecimentos científicos e as concepções artísticas, que apresentam entre eles e o cotidiano uma série considerável de mediações, são constantemente incorpo-rados às práticas rotineiras, tornando-se parte dos hábitos e das tradições.1

Mesmo o trabalho e a linguagem, práticas integrantes do cotidiano humano, apresentam algum nível de mediação entre o reflexo na consciência e a realidade imediata. No trabalho, a elaboração de um projeto prévio que oriente a ação, pressupõe algum grau de objetivação do real, ainda que de maneira mutável e fluida e em estreita conexão com a cotidianidade. Na linguagem, o processo de mediação é ainda mais evidente e elaborado, visto que a fixação mental das representações necessita da formulação dos conceitos, o que em si significa a quebra relativa da imediatez que, no cotidiano, une reflexão e prática. Entretanto, a formulação do conceito e a atribuição de um nome a um conjunto de fenômenos refaz, no momento mesmo de seu uso, a imediatez temporariamente suspensa durante a etapa de conceituação.1

O pensamento cotidiano é caracterizado por relações imediatas entre teoria e prática, a intenção é orientada para situações particulares e não para a apreensão das características gerais comuns a um grupo de fenômenos. Portanto, baseia-se em objetivações mutantes que podem ou não tornarem-se fixadas pela tradição. Essa primeira característica confere um traço contraditório ao senso comum que opera tanto com base em decisões instantâneas e fugazes, premido pelas circunstâncias, quanto por decisões rígidas estribadas na tradição e nos hábitos. É a imediatez, conferida pela vinculação estreita entre teoria e prática, que garante o funcio-namento prático desse pensamento, ao mesmo tempo em que enfraquece muito a visão de mundo produzida a partir dessa reflexão, mesclando elementos mágicos, religiosos, éticos, estéticos, filosóficos e científicos, de maneira indiferenciada.1

Outra característica marcante do pensamento cotidiano é o uso da indução analógica e de concepções causais incipientes como recursos intelectuais preponderantes. Diferentemente das outras formas de conhecimento desenvolvidas pelo gênero humano, na vida cotidiana o homem se relaciona com a realidade "inteiramente", ou seja, sem privilegiar ou excluir nenhum dos seus componentes (intelectual, afetivo, moral etc...)

É desse solo comum da cotidianidade que irão se desenvolver e se "desprender" os outros tipos de reflexo, isto é, as outras formas de conhecimento da realidade. As práticas discursivas tendem a sofrer um processo contínuo de diferenciação e individualização, na medida em que o conhecimento sobre um campo específico vai se constituindo, ultrapassando, inicialmente, o limiar de positividade quando já é possível identificar um saber relativo a um certo conjunto de processos, destacado dos demais saberes na vida cotidiana.2A formação discursiva, que assim se destaca, é constituída por práticas discursivas regulares e consistentes, empregadas em diferentes âmbitos da vida social, compostas por saberes sem provas ou demonstrações, admitidos pela crença ou pela imaginação.

O prosseguimento desse processo de diferenciação poderá ultrapassar o limiar de epistemologização e resultar na configuração de disciplinas, isto é, conjuntos de enunciado coerentes e demonstráveis relativos a objetos especificados; e, definir um espaço em que sujeitos podem tomar posição e emitir discursos que poderão ser utilizados/apropriados por outros segmentos sociais.2

A próxima etapa é representada pelo limiar de cientificidade que, uma vez ultrapassado, dá origem a uma ciência caracterizada por objetos claramente delimitados, critérios formais estabelecidos para a obtenção de conhecimentos e leis de construção de proposições válidas sobre os mencionados objetos. Finalmente, após a constituição de uma ciência, seu desenvolvimento posterior poderá resultar na ultrapassagem do limiar de formalização, marcado pela presença de axiomas e pela definição de estruturas proposicionais próprias, caracterizando maior distanciamento em relação ao cotidiano e portanto, maior abstração.2

A apresentação sucessiva e encadeada dessas fases responde apenas a uma necessidade de obter maior clareza na exposição não implicando, entretanto, a reprodução fiel de processos observados na realidade. Em um dado momento histórico podemos observar, para um mesmo conjunto de fenômenos, a presença de várias dessas etapas concomitantemente, ou etapas diferentes para diferentes conjuntos de saberes, ou ainda, a existência de saberes que quase instantaneamente cumprem todas as etapas mencionadas.

Este ensaio tem por objetivo examinar as diferentes etapas de constituição dos saberes a cerca do processo saúde-doença em sua dimensão coletiva e, na medida do possível, indicar as diferentes características da episteme a partir da qual esses conhecimentos foram produzidos.

Saber relativo ao processo saúde-doença na coletividade

Os saberes relativos ao processo saúde-doença têm origem na vivência do sofrimento provocado pelas doenças nos seres humanos. Canguilhem assinala que "a medicina existe porque há homens que se sentem doentes. É apenas em segundo lugar que os homens sabem em que consiste sua doença".3 O autor destaca, portanto, a precedência das necessidades humanas e das práticas que elas engendram face aos saberes que tais procedimentos evocam. Posto em outros termos, diríamos que a doença existe primeiro e antes como sofrimento humano, como perturbação ao exercício habitual de sua vida cotidiana, e somente depois na consciência e na "ciência dos médicos".

Desde a mais remota Antigüidade há registros da presença de doenças e das tentativas desenvolvidas pelos diferentes povos no sentido de controlá-las, entretanto, só relativamente tarde na história do homem, aparecerão práticas e saberes referentes ao processo saúde-doença na dimensão coletiva.

Embora muitos autores identifiquem na medicina hipocrática a origem dos conhecimentos epidemiológicos, outros há que demonstram a impossibilidade de um saber sobre a dimensão coletiva da doença e da saúde nesse momento, visto não haver se constituído, ainda, a própria noção de coletivo.4,5 A medicina hipocrática representa o limiar de positividade, no mundo ocidental, dos saberes relativos à saúde e à doença, porém em dimensão individual. O fato de realçar a importância da natureza na causação das doenças, retirando-as do âmbito de explicação mágico-religioso, assinala a transposição desse limiar e a constituição de um saber específico. Entretanto, não há nos aforismas, evidências de uma compreensão coletiva dos fenômenos de saúde e doença ou referências a práticas visando a prevenção ou o controle de doenças nessa dimensão.

Os saberes referentes ao processo saúde-doença em sua dimensão coletiva só ultrapassam o limiar de positividade, isto é, só se individualizam enquanto prática discursiva, no século XVII, no período de gestação da Idade Moderna (denominado por Foucault de período clássico), quando as noções de população, Estado e coletivo são produzidas. O "nascimento" do modo de produção capitalista acompanhou-se do aparecimento em cena do trabalhador livre, do surgimento do Estado moderno, do desenvolvimento de ciências e técnicas, da reorganização do espaço público, enfim de um conjunto de transformações que levaram ao surgimento das condições necessárias para que um saber sobre a doença e a saúde em sua dimensão coletiva começasse a ser produzido.

"Em uma época em que o capitalismo industrial começava a recensear suas necessidades de mão de obra, a doença tomou uma dimensão social: a manutenção da saúde, a cura, a assistência aos doentes pobres, a pesquisa das causas e dos focos patogênicos tornaram-se um encargo coletivo que o Estado devia assumir e supervisionar. Daí resultam a valorização do corpo como instrumento de trabalho, o cuidado de racionalizar a medicina pelo modelo das outras ciências, os esforços para manter o nível de saúde da população, o cuidado com a terapêutica, a manutenção de seus efeitos, o registro dos fenômenos de longa duração".2 Colocaram-se, assim, as condições históricas para o aparecimento de práticas discursivas relativas à saúde, à doença, à pesquisa das causas, ao registro, em dimensão coletiva e também as condições para as transformações das práticas discursivas relativas ao processo de adoecimento dos indivíduos.

Na esfera do saber, o conhecimento produzido até o século XVI era fundamentado principalmente na semelhança, desdobrada em suas quatro figuras: a conveniência ou proximidade entre as coisas, a emulação ou relação entre as coisas e seus reflexos, a analogia ou as similitudes que se estabelecem entre o visível e o invisível, e a simpatia ou a assimilação entre as coisas do mundo.6 Nessa episteme, marcada pela semelhança e suas figuras, não há espaço para um pensamento epidemiológico que se alimenta principalmente do diferente, da dessemelhança. Assim sendo, para que os saberes sobre a doença e a saúde, na dimensão coletiva, ultrapassem o limiar de positividade, é preciso que além do surgimento em cena da população, do espaço público na sua versão mercantilista, do Estado absolutista, ocorram também modificações na episteme e o "pensamento deixe de se mover no elemento da semelhança".6

Este primeiro período, que abarca os séculos XVII e XVIII, corresponde ao aparecimento de práticas discursivas marcadas pela quantificação dos eventos vitais, óbitos e nascimentos, inicialmente relacionadas com interesses do Estado e, posteriormente orientadas para a investigação de padrões de adoecimento da população, além do desenvolvimento de estudos incipientes sobre as causas das doenças, envolvendo "procedimentos experimentais" e contagens. São exemplares desse momento os trabalhos de Petty (1648), Graunt (1662), Lind(1747) e Bernouilli(1760). Petty foi um dos pioneiros no estudo quantitativo dos fenômenos sociais, inclusive dos problemas sociais da saúde e da doença, criando o que ele denominava de "aritmética política"7. Graunt realizou estudos sobre as "leis da mortalidade", relatando as diferenças da mortalidade entre os gêneros, regiões urbanas e rurais, grupos etários, estações do ano etc. Ele também construiu as primeiras tábuas de vida, com base na experiência de mortalidade da população de Londres. Quase cem anos depois, Bernouilli aperfeiçoa a construção dessas tábuas, utilizando os conhecimentos da matemática e da estatística, e utiliza o cálculo da esperança de vida para avaliar o impacto da vacinação antivariólica sobre a população. O trabalho de Lind, na investigação das causas do escorbuto, sugere as potencialidades da análise cartesiana na elucidação causal.8

Esses conhecimentos se destacam de outros conhecimentos existentes sobre as populações e que irão desembocar em outras ciências humanas e, também, dos conhecimentos relativos à doença e à saúde em sua dimensão individual. Pela primeira vez, na história ocidental, a população como tal encontra-se no centro de um conjunto vasto de saberes, embora ainda não totalmente diferenciados. Há na estrutura social um pensamento e um movimento cujo objeto é a população. Todavia, não é possível falar ainda de uma disciplina ou de uma ciência epidemiológica, cabendo talvez falar em uma ideologia epidemiológica no sentido em que esse termo é usado nos estudos de Bachelar9 e Canguilhem10 (história epistemológica das idéias), para designar saberes ainda não formalizados, noções mais do que conceitos, ainda entremeadas por contribuições do senso comum.

A experiência histórica com as epidemias que assolaram a humanidade durante a transição para o modo capitalista de produção, e a capacidade de formalização matemática que a racionalidade moderna trouxe para o pensamento abstrato fornecem elementos para a constituição dessa ideologia científica, nesse momento.11 A quantificação aparece como recurso potencialmente capaz de isolar os fenômenos de interesse, permitindo à razão compreendê-los de maneira mais clara e objetiva. O surgimento da população como objeto a ser investigado possibilitou o desenvolvimento de várias técnicas que constituíram a estatística, e essas técnicas, por sua vez, permitiram delimitar melhor esse objeto. A semelhança dá lugar, no pensamento da época clássica, ao estudo da identidade e da diferença, e da medida e da ordem. A análise cartesiana e a comparação passam a ser os instru-mentos privilegiados na produção de conhecimentos. Descartes afirma que, deixando-se de lado a intuição, pode-se afirmar que todo o conhecimento "se obtém pela comparação de duas ou mais coisas entre si".6

A hierarquia analógica dos saberes anteriores é substituída pela análise que reduz a complexidade aos seus elementos mais simples, facilitando o estabelecimento das séries em que a diferença é tratada como graus sucessivos na direção do mais complexo. A enumeração de todos os elementos da série aparece como ideal de um saber dedutivo e empiricamente fundado. A razão busca discernir, estabelecer diferenças e ordenar os elementos para melhor compreender o mundo em seus mecanismos. Ao invés de interpretações baseadas na analogia, o saber procura em cada fenômeno, os elementos mais simples e a medida e a ordem são agora as figuras utilizadas para estabelecer relações. A observação é o procedimento privilegiado e nela a visibilidade dos fenômenos se sobrepõe a qualquer outra característica sensível. "Observar é contentar-se com ver. Ver, sistematicamente poucas coisas.".6 Procurar para cada elemento a forma, as quantidades, a distribuição espacial e a grandeza relativa, definindo assim uma estrutura. Há nesse tipo de saber perfeita correspondência entre o nome que denomina e a coisa denominada, daí a importância atribuída às classificações.

Durante o período clássico, séculos XVII e XVIII, não há ainda ciências da vida. A história natural é um saber sobre os seres vivos, mas não sobre a vida. Do mesmo modo a medicina das espécies não possui propriamente uma teoria sobre a doença, constituindo-se em taxonomia de sinais e sintomas. Deste modo não existem condições para uma epidemiologia, muito embora já existam práticas discursivas sobre a dimensão coletiva das doenças.

A constituição de uma disciplina científica

O limiar de epistemologização dessas práticas discursivas é ultrapassado no início do século XIX, dando origem a uma disciplina científica, ou seja, um conjunto de enunciados organizados segundo o modelo científico, coerentes, demonstráveis e institucionalizados. Fortemente influenciado pelo evolucionismo bio-logicista, pelo causalismo da física mecânica e pelo empiroindutivismo predominante nas ciências naturais, o conhecimento epidemiológico ganha contornos mais nítidos, diferenciando-se daqueles saberes anteriormente constituídos.2 A teoria "emerge como projeto de domínio de certa região do real pelo pensamento, vinculado potencialmente a explorações técnicas e aplicações eficazes já expressas, já objetivadas sob a forma de necessidades sociais historicamente produzidas, mas não ainda sob a forma de um corpo de conhecimentos e de seus desdobramentos instrumentais, que adquirirá como resultado da reflexão".12

Este período, que abrange todo o século XIX e início do século XX, tem sua expressão nos trabalhos de Villermé (1826) sobre a mortalidade dos operários industriais e as condições de trabalho nas fábricas; de Louis(1836) com o aprimoramento do uso de métodos estatísticos nas investigações em saúde; de Engels (1845) sobre a situação da classe trabalhadora na Inglaterra e o uso de taxas e indicadores; de Semmelweiss (1846) sobre a etiologia da febre puerperal na maternidade de Viena; de Snow (1854) sobre a transmissão do cólera em Londres. A criação, em 1850, da London Epidemiological Society é mais um dos indicadores da transposição do limiar de epistemologização, revelando um aspecto da institucionalização desses saberes.8

Os trabalhos de Snow13 contém esboçados, em linhas gerais, todos os desenhos de investigação que a epidemiologia utilizará, daí em diante, para o estudo da distribuição e dos determinantes da doença. Ele inicia suas investigações descrevendo a progressão da doença, desde a área endêmica nos países asiáticos até sua penetração e difusão na Europa, preocupando-se em caracterizar as pessoas acometidas com relação a idade, sexo, ocupação, condições de vida etc... A seguir, buscando elementos para fortalecer sua hipótese de transmissão hídrica, relaciona as taxas de mortalidade por cólera com o tipo de abastecimento de água existente em cada um dos distritos londrinos, realizando uma investigação que poderíamos classificar de "ecológica" ou de agregados. Verificada a associação, no surto em Broad Street, ele executa uma investigação transversal, analisando para cada caso e também para não casos, a exposição ou não à água obtida na bomba, demonstrando a forte associação entre haver bebido água e ter desenvolvido e morrido de cólera, naquela área. Para demonstrar sua hipótese Snow desenha um estudo de coorte, classificando os domicílios de uma mesma área (já que se tratava também de refutar a teoria miasmática) segundo a companhia de abastecimento de água à qual estivessem ligados. Os dados recolhidos mostraram que sua hipótese estava correta, visto que, apesar das condições ambientais serem idênticas, nos domicílios ligados à companhia Lambeth, as taxas de mortalidade eram significativamente menores do que nos domicílios servidos por Southwark and Vauxhall.13

Esses trabalhos todos vão consolidando princípios de investigação e produzindo uma certa racionalidade na abordagem dos problemas coletivos de saúde e doença. O uso de taxas, a comparação entre grupos, a interrogação metódica, a busca de explicações causais mais objetivas, isto é, passíveis de verificação empírica, são elementos que compõem o quadro dessa disciplina. A observação metódica procura extrair dos fatos todos os significados que não estão imediatamente dados; a quantificação adquire importância crescente como instrumento da razão nesse processo de tornar visível as relações não imediatamente observáveis. Progressivamente, também, as noções de natureza e natureza humana vão cedendo lugar, nas explicações, à noção de organização social e seus efeitos sobre o adoecer dos grupos humanos.

O conhecimento, presidido pela observação, dirige-se para a identificação de formas de organização, relações internas entre os elementos cujo conjunto assegura a realização de determinadas funções. Observa-se a distribuição atual dos casos, anotam-se as características dos indivíduos acometidos, compara-se a espacialização e a experiência em períodos anteriores. O rigor descritivo será resultante de uma precisão na observação e enunciação dessas características e da regularidade na identificação das mesmas. É através da descrição que se passa dos casos, enquanto individualidades, para a apreensão do coletivo no plano conceitual. E é aí que se estabelece o vínculo entre o campo aleatório das ocorrências isoladas e o domínio onde se dá à percepção, a ordem, a regularidade, a consistência que permite à razão compreender a seqüência inteligível da gênese dos acontecimentos coletivos e ver e saber ao mesmo tempo.14

Os métodos utilizados para tornar essa observação parte de um esforço no sentido de construir uma "ciência positiva" começam a ser esboçados, carecendo ainda de um maior nível de formalização, mas possibilitando já a realização de comparações entre grupos com diferentes formas de manifestação da doença, evidenciando, assim, potenciais situações ou configurações causais. A simples observação dos fenômenos, característica da etapa anterior, dá lugar a uma observação em que o aparente é visto e entendido como indicador de processos que não se dão imediatamente à percepção. Além disso o observado não procura mais o seu lugar no quadro previamente definido por um saber eminentemente dedutivo; o observado será, de agora em diante, o elemento necessário para a construção de um saber indutivo, empírico, positivo.

A crítica da razão empreendida por Kant desvela para o pensamento ocidental a cisão entre o domínio das formas puras do pensamento (filosofia transcendental) e o domínio do saber empírico onde se instala o projeto de formalização da realidade concreta e de constituição das ciências, cisão essa cuja superação o pensamento ocidental não deixará mais de buscar nas mais diferentes vertentes filosóficas. Quando se extingue o discurso clássico surge o homem com a sua posição ambígua de objeto para um saber e de sujeito que conhece.

A primeira metade do século XX representa a transição para o limiar de cientificidade, etapa em que as tendências esboçadas durante o século XIX irão se desenvolver e consolidar. O processo de institucionalização da epidemiologia, enquanto disciplina científica, prossegue com a criação de cátedras nas principais escolas de Saúde Pública como a London School of Hygiene e a Johns Hopkins. A incorporação das técnicas e princípios da Bioestatística ao estudo dos problemas epidemiológicos dão nova dimensão aos procedimentos de quantificação, baseados nas contagens de casos que caracteri- zaram a etapa anterior. A aplicação dos procedimentos estatísticos, respeitadas as peculiaridades dos processos biológicos, trazem ao campo nova possibilidade de precisão à observação empírica e embasam os procedimentos de generalização dos resultados.

Bradford Hill e Major Greenwood são expoentes da utilização dos testes de hipóteses e das estimações por intervalos no âmbito da Epidemiologia. Ambos valorizam os procedimentos de padronização e análise estratificada, aprimorando e tornando mais exatas as análises epidemiológicas. Em seu estudo sobre a epidemiologia do câncer, Greenwood utiliza até a função logística simples para construir a curva da mortalidade padronizada para o período de 1900 e 1930.15 Neste mesmo período Frost desenvolve o conceito de coortes de geração, propondo uma metodologia mais adequada para o estudo de problemas crônicos como a tuberculose15.

O campo dos problemas epidemioló-gicos sofre ampliação considerável, incluindo, além das tradicionais doenças infecciosas e transmissíveis e dos problemas ocupacionais, estudados nas etapas anteriores, problemas nutricionais, câncer, stress, acidentes, enfim, toda uma gama nova de questões relativas à saúde e seus agravos, refletindo em suas investigações as transformações profundas decorrentes do processo de industrialização e urbanização, iniciados no século XIX e aprofundados nas primeiras décadas do século XX.

A Epidemiologia, enquanto disciplina científica, apresenta um conjunto de enunciados organizados segundo o modelo científico, isto é, formulações claras, objetivas, articuladas, racionais, possuidoras de conteúdo empírico capaz de ser submetido à verificação; dispõe de um conjunto de métodos de observação que funcionam como regras de construção de suas verdades, muito embora careçam de maior formalização; começa a utilizar recursos técnicos no sentido de tornar suas análises mais rigorosas e de dar maior fundamentação a seu processo inferencial. Há todo um processo de institucionalização dessa prática científica com o estabelecimento das cátedras, fundação de sociedades científicas, criação de veículos apropriados para a divulgação da sua produção, e instalação de serviços de profilaxia e controle de doenças baseados em seus princípios.

Vão se constituindo assim as condições para a ultrapassagem do limiar de cientificidade, caracterizado pela delimitação mais precisa do objeto, pelo estabelecimento de critérios formais e de leis de construção de proposições verdadeiras, sistematização dos métodos de investigação, reflexão relativa aos pressupostos e modelos de causalidade.

A configuração de uma ciência

A ciência pode ser pensada como prática de conhecer, ou teoria sobre um particular objeto. Na perspectiva filosófica aqui adotada pressupõe-se a precedência do objeto real face ao objeto pensado ou conhecido, daí a conceituação da ciência como prática de conhecer; e a precedência desse mesmo objeto real por referência aos métodos utilizados pela razão no processo do conhecimento, reforçando assim a definição da ciência como teoria e não apenas como um conjunto padronizado de estratégias de investigação.12

No início do processo de constituição da ciência epidemiológica maior atenção foi dada à sistematização dos métodos de investigação do que à reflexão teórica dirigida à delimitação do objeto. A publicação de "Epidemiologic methods" , por MacMahon, Pugh e Ipsen em 196016 poderia ser tomada, emblematicamente, como o momento do "nascimento" da ciência epidemiológica, ou melhor, como um dos fatos que assinalam a decalagem em relação à disciplina científica constituída progressivamente durante o século XIX e a primeira metade do século XX. Este texto "inaugural" , assim como outros produzidos durante a década de 70, contém a sistematização das estratégias de investigação, também conhecidas como desenhos de pesquisa, utilizados pela epidemiologia.

As pesquisas epidemiológicas têm seus desenhos baseados na observação, e portanto, necessitam de uma série de procedimentos metódicos a fim de controlar, seja no desenho, seja na análise das informações, as variáveis interveniente e de confusão, para que as conclusões possam ser mais robustas.17 Daí a importância, muitas vezes exagerada, que os epidemiologistas concedem aos "métodos", chegando, com freqüência, a recusar à epidemiologia qualquer conteúdo teórico, reduzindo-a a um conjunto de estratégias, técnicas e modos de raciocinar aplicáveis a objetos pertencentes a outras ciências, e nesse movimento, negando qualquer possibilidade de considerá-la como ciência.

O "modo de raciocinar" prevalente nessas propostas metodológicas articula-se ao redor do conceito de risco, enquanto "determinante" da probabilidade de aparecimento/desenvolvimento de doenças e agravos à saúde em populações humanas, valendo-se de uma orientação empiricista , indutivista e positivista, semelhante àquela existente na disciplina desde o século XIX, ou da orientação "renovada" pelo racionalismo lógico substituindo os processos indutivos e verificacionais pelos procedimentos dedutivos e refutacionais, sem que, entretanto, essa substituição signifique o privilégio da teoria e, portanto, do objeto na construção científica.

As estratégias de investigação passam por um processo de elaboração e reflexão bastante diferenciado por referência ao momento anterior. Os desenhos de investigação voltados para o componente determinação da saúde e da doença, os chamados métodos analíticos, tornam-se hegemônicos em relação aos métodos descritivos, voltados para o estudo da distribuição da saúde e da doença. Esse movimento não se originou apenas de um desejo de aprimoramento metodológico da disciplina, mas reflete, em grande parte, a experiência acumulada na realização de grandes inquéritos populacionais e dos primeiros estudos de coorte de grandes dimensões, realizados na primeira metade desse século.

As técnicas quantitativas de análises de dados, baseadas nos importantes avanços da bioestatística e a incorporação crescente dos recursos da informática completam o quadro, no que se refere à constituição de uma "metodologia epidemiológica" dominante, nesse período.

Outra marca importante, nessa etapa de transição da disciplina para a ciência epidemiológica, foi a publicação da obra de Susser sobre o pensamento causal nas ciências da saúde.18 A questão da causalidade, embora ocupando um lugar central nas várias definições que os autores formulavam sobre a epidemiologia, não tinha merecido, até então, um tratamento teórico mais detido. Os famosos postulados de Bradford Hill, para o estabelecimento da causalidade em pesquisas epidemiológicas, tinham cunho eminentemente pragmático, valendo como justificativa lógica aos resultados, obtidos por meio da quantificação e do tratamento estatístico, das relações de associação estudadas.

O livro de Susser, além de apresentar a proposta do modelo ecológico, formulação mais elaborada e complexa da idéia de multicausalidade, ainda que dentro dos mesmos marcos funcionalistas das elaborações que o precederam, traz a discussão das etapas de construção dos "modelos causais" na prática da investigação, ordenando e hierarquizando as variáveis, destacando a importância das análises estratificadas e, principalmente, reafirmando o papel do pesquisador e de suas hipóteses de trabalho, na condução das análises dos dados e das interpretações dos mesmos18.

Kleibaun, Kupper e Morgenstern "inauguram", em 1982, com a publicação de "Epidemiologic research", uma nova modalidade de manual de epidemiologia onde o conteúdo se destina, quase que exclusivamente, à apresentação de técnicas quantitativas para a análise dos dados, alguns comentários relativos aos desenhos de investigação e, praticamente, nenhuma linha de reflexão teórica.19 Assim, as leis de construção de proposições verdadeiras no âmbito da epidemiologia restringem-se progressivamente à capacidade maior ou menor do pesquisador em aplicar técnicas de quantificação e modelos matemáticos adequados ao tratamento rigoroso de seus dados, diminuindo, na mesma proporção, a importância atribuída à interpretação. Em muitos dos trabalhos de pesquisa dados à publicação, os autores se limitam a reproduzir as "saídas" obtidas na manipulação dos dados por meio da aplicação de determinados softwares, não aduzindo nenhum comentário ou discussão que vá além das análises estatísticas produzidas. Os autores dos manuais e textos, publicados nesse período, podem ser divididos entre aqueles que privilegiam a discussão estrita dos aspectos relativos às técnicas estatísticas e outros que privilegiam um enfoque mais propriamente epidemiológico, isto é, subordinam a escolha das técnicas às características peculiares dos problemas estudados.20

A ciência epidemiológica não apresenta um desenvolvimento equilibrado. A elaboração e a utilização crescentes de técnicas de análises cada vez mais sofisticadas, nas pesquisas epidemiológicas, não se acompanharam de igual fortalecimento da reflexão teórica, favorecendo a identificação da epidemiologia como um método mais do que como uma ciência com objeto próprio. Esse desequilíbrio começa a ser sanado no final dos anos 80, com o surgimento de diferentes produções teóricas de teor mais ou menos crítico, relativas à especificidade e às características do objeto da epidemiologia. Os trabalhos de Almeida Filho21 e Mendes Gonçalves12, para ficar apenas com os autores nacionais, representam contribuições bastante importantes nessa direção.

A delimitação do objeto é etapa fundante na construção de uma ciência e, principalmente, na definição de sua especificidade face a outros conhecimentos científicos existentes num mesmo campo de aplicações. Embora não haja exatamente consenso na definição desse objeto, a maioria das formulações aponta dois constituintes importantes: a dimensão coletiva dos problemas que interessam à epidemiologia e, portanto, a dimensão coletiva do seu objeto; e a diferenciação operada no conjunto maior -população ou seus equivalentes- pela noção de doença ou agravos à saúde, constituindo assim os subconjuntos passíveis de comparação e análise.21

Face às dificuldades empíricas e conceituais, a epidemiologia, como outras ciências, defronta-se com dois caminhos na tentativa de obter a superação das limitações que tais dificuldades representam: o caminho da formalização e o da revisão crítica.

A transição para o limiar de formalização

À primeira vista parece improvável que uma ciência marcadamente empírica como a epidemiologia seja passível de procedimentos de formalização que aproximem suas proposições daquelas da matemática e da lógica formal. Entretanto, uma das tendências de desenvolvimento da ciência epidemiológica aponta decididamente nessa direção.

Miettinem22 busca a formalização da epidemiologia através de dois procedimentos que, como nos informa Ayres23, têm sido adotados pela matemática em seus momentos de "crise". O primeiro procedimento consiste na ampliação do sistema de objetos a que aquela ciência se aplica; o segundo corresponde à restrição do sistema de operações relativas a esses objetos.

Ao definir o objeto da epidemiologia como "funções de ocorrência", isto é, "a relação de uma medida de ocorrência a um determinante, ou uma série de determinantes", Miettinem22 consegue seu intuito de formalização através de uma formulação que possibilita a expressão matemática do objeto, ao mesmo tempo em que amplia o escopo desse objeto para abranger qualquer problema que se refira a "funções de ocorrência" .

Se a formulação apresentada retém o caráter coletivo ou populacional do objeto da epidemiologia, visto que, funções de ocorrência pressupõem a existência da referência população, ela descarta completamente o qualificativo humano para tais populações. Retém apenas o significado estatístico, ou seja, população refere-se aqui a uma coleção de elementos relativamente homogêneos, que pode incluir indivíduos, células, moléculas e qualquer outra coisa, inclusive "estados e eventos não médicos" e "objetos não humanos", descaracterizando completamente a especificidade dos problemas epidemiológicos.

Acompanhando Almeida Filho24 pode-se afirmar que nesse processo de formalização o objeto da Epidemiologia vê-se reduzido e transformado a uma "máquina matemática", aplicável a qualquer conjunto de elementos. Ou seja, a proposta de formalização que visava superar as deficiências detectadas na ciência epidemiológica acaba por provocar, no limite, a sua negação. A excessiva generalidade na formulação do objeto acaba por esvaziar o conteúdo da Epidemiologia, além de tornar impossível a delimitação de sua aplicação no campo das ciências com as quais se relaciona.

A redução do sistema de operações relativas a esses objetos a "funções de ocorrência" também implica em reduzir a possibilidade de explicação, pela epidemiologia, dos processos coletivos de adoecimento e de manutenção da saúde dos grupos humanos. A exclusividade concedida à quantificação e aos modelos matemáticos, enquanto ferramentas de análise dos dados obtidos em pesquisas epidemiológicas, se por um lado, traz maior rigor formal para essa ciência, por outro, exclui inúmeras características de interesse nos fenômenos epidemiológicos cujo tratamento e apropriação pela razão requerem outras técnicas de abordagem. Ao estabelecer a precedência do método, ou melhor, das técnicas de análise, sobre o objeto, obtém-se a interdição de aspectos do objeto que não se ajustam às estratégias escolhidas, tornando ilegítimas, e portanto inverídicas, as dimensões inadequadas, resultando em conhecimentos limitados. Não há necessariamente a produção de conhecimentos falsos, mas eles serão limitados, parciais, fragmentados, podendo, nesse processo, perder parte de sua eficácia tecnológica.12

A elaboração de uma teoria crítica para a Epidemiologia

Um movimento em sentido contrário ao da formalização também vem se constituindo desde a década de 70 no âmbito da Epidemiologia, no sentido de questionar, criticamente, seus pressupostos teóricos, seus métodos e técnicas de abordagem do real. Esse movimento, nascido no interior da Medicina Social e desenvolvido no campo da Saúde Coletiva, tem fundamentalmente duas pretensões: compreender e explicar o processo saúde-doença em populações humanas, tomando a dimensão social como estruturante do real; e pensar o método como etapa de construção de uma ciência, ou seja, em íntima conexão com a teoria do objeto, indo além, na discussão metodológica, da descrição de estratégias e técnicas para produzir realmente uma teoria.

O desenvolvimento da Epidemiologia no interior da Saúde Coletiva resultou na ampliação do objeto em sentido bastante diverso daquele observado no procedi-mento de formalização, anteriormente apresentado. Aqui a ampliação se deu pela inclusão da reflexão relativa às práticas de saúde "pensando-se a Epidemiologia não apenas como fornecedora de descrições acerca da magnitude e da distribuição das doenças, mas como viabilizadora de um projeto de organização das práticas, coerente com a explicação da gênese do processo saúde-doença em populações, o que significa pensá-la como tecnológica".12

Em lugar da restrição do sistema de operações na direção da maior formalização, busca-se a superação dos limites estritamente delimitados pelas disciplinas, concedendo precedência aos objetos por referência às estratégias de investigação, modos de raciocinar e técnicas de obtenção, elaboração e análise de dados. Para além das matemáticas, a Epidemiologia vai buscar elementos que permitam a construção de sua metodologia nas ciências biológicas, cujos objetos encontram-se subsumidos pelo objeto epidemiológico, mas também nas ciências sociais às quais seu objeto se encontra subsumido.25

A teoria da causalidade, em sua versão mais mecanicista ou em sua elaboração probabilística, vai sendo substituída pela teoria da determinação social do processo saúde-doença, incluindo desde a reflexão filosófica relativa aos diferentes tipos de relação de determinação que operam na realidade, até a teorização sobre a produção da saúde e da doença no processo histórico de produção e reprodução do homem enquanto ser genérico, vivendo em sociedade, incluindo nessa reflexão as questões mais imediatamente ligadas ao trabalho como categoria privilegiada para a compreensão da organização social; e, as questões mais diretamente ligadas à linguagem e à dimensão simbólica, como categorias privilegiadas para a compreensão das relações humanas, e nelas das mediações entre indivíduo e grupo social.

"O grande problema teórico da Epidemiologia é o de reconhecer-se e realizar-se como TEORIA, como busca da máxima adequação do pensamento àquele objeto real que pode ser conceituado como...a dinâmica - gênese e devir - dos processos saúde-doença em populações concretas, com todas as características históricas e sociais que as especificam".12 Assim, "para a teoria como práxis (o) definidor mais substancial não será nunca seu acabamento sintático e semântico, que evidentemente é necessário e desejável, mas seu conteúdo, tomado como adequação ao real que se verifica na práxis histórica mesma, e não nos modelos formais"12 Não estarão nos procedimentos de formalização as soluções para a crise das ciências, principalmente para aquelas que tomam por objeto fenômenos tão complexos quanto a saúde e a doença, o viver e o adoecer humanos.

A teoria, para não tornar-se reflexão idealizada e descolada do real, necessita estar ancorada firmemente na práxis, dela retirando seus problemas de investigação, nela construindo suas estratégias de conhecer, para ela retornando os produtos de sua elaboração. Recorrendo mais uma vez, e ainda de maneira insuficiente, ao pensamento extremamente fértil de Mendes Gonçalves12 "só quando...obedece a interesses emancipatórios e enriquecedores (a teoria) torna-se ética e verdadeiramente teoria, e pode, então, viabilizar uma práxis que, desenvolvendo as potencialidades inscritas no próprio real, de forma objetiva, faça do homem o que ele deve ser"; e eu acrescentaria: um ser humano, demasiadamente humano.

Summary

All knowledge derives from practical problems, that is to say, human needs. Other forms of understanding reality develop from this common source of daily routine. Comprehension of the health-disease process originates from experiencing the pain caused by disease in the human being. Disease is human suffering first and foremost, because it disrupts the performance of daily routine, and only then does it become conscious and "medical science". Knowledge of the health-disease process in its collective sense only crosses the threshold of positivity and only stands out as discoursal practice in the 17th century, when the ideas of population, State and the collectivity are produced. Knowledge was based on similarity up to the 16th century. In this episteme, based on similarity, there is no room for epidemiological thinking based upon differences and diversity. Thus, for knowledge to cross the threshold of positivity, besides the appearance of population, public space and absolutist State, there must occur changes in the episteme and "thought must cease to base itself upon similar elements". This period, the 17th and 18th centuries, corresponds to the appearance of discoursal practices characterized by quanti-fying vital events, guiding investigation towards patterns of disease in the population, besides the development of studies of the causes of diseases, involving 'experimental procedures' and counting. Similarity is replaced by the study of identity and difference, measurement and order. Cartesian analysis and comparison become the favored rational instruments. The episte-mological threshold of discoursal practices is crossed in the beginning of the 19h century, originating a scientific discipline, influenced by biological evolutionism, by the causality of mechanical physics and by the empirica-linductive character of natural sciences. Rates, comparison between groups, metho-dological questioning, the quest for more objective causal explanations that can be verified feasibly and empirically, are the elements of the framework of this discipline. In the first half of the 20th century, the incorporation of statistical techniques and principles in epidemiological studies gave numerical procedures a new dimension, and brought about the possibility of more precise empirical observation, enabling the generalization of results. Thus, the conditions for crossing the scientific threshold develop by limiting the object more precisely, establishing formal criteria and laws for building real propositions, organizing investigation methods, and thinking causal models and hypotheses. The laws for building real propositions in epidemiology are progressively restricted to the ability of the researcher to use suitable quantitative techniques and mathematical models to analyze data throughly, at the same time reducing the weight given to interpretation. In the face of conceptual and empirical difficulties, epidemiology has two routes open to it: formalization and critical review. In the formalization process, the object of Epidemiology is reduced and transformed into a "mathematical device", applicable to any group of elements. The reduction of the system of opera-tions related to these objects into "event functions" also entails reducing the possibility of explaining through epidemiology the collective processes of becoming ill and maintaining health in human groups. The critical movement, in the opposite direction to formalization has two fundamental aims: to understand and to explain the health-disease process in human populations, taking the social dimension as the structure of reality; and understanding the method as a step towards constructing science, that is to say, intimately related to the theory of the object, hence going beyond the mere description of strategies and techniques in the methodological discussion, in order to effectively produce a theory. Instead of restricting the system of operations to greater formalization, an attempt is made to break limits by privileging objects through investigation strategies, ways of thinking and techniques of obtaining, preparing and analyzing data.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jul 2007
  • Data do Fascículo
    Abr 1998
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