INTRODUÇÃO
Bruxismo do sono (BS) é uma atividade repetitiva da musculatura mandibular, caracterizada pelo apoiar ou empurrar a mandíbula, apertar ou ranger os dentes durante o sono1. A condição tem sido associada com injúrias às estruturas orofaciais e impacto negativo na qualidade de vida de escolares2,3,4. A prevalência de BS apresenta percentuais variáveis nos diferentes grupos etários5 e poucas são as informações sobre sua epidemiologia em adolescentes6.
A maioria dos estudos epidemiológicos sobre BS é realizada com escolares6,7,8,9,10,11, e o diagnóstico se baseia nos relatos de familiares que descrevem sons característicos gerados pelo ranger dos dentes durante o sono7,8,9,12. Exames polissonográficos são considerados padrão-ouro para o diagnóstico, mas seu uso em estudos populacionais ainda é inviável pelo custo elevado e pela necessidade de profissionais qualificados para realização dos procedimentos1,11,13.
A busca por fatores associados ao BS tem direcionado o conhecimento de possíveis preditores da condição nas diferentes faixas etárias10,11,14,15. Agentes fisiopatológicos e genéticos foram sugeridos como possíveis fatores associados ao BS. Contudo, agentes psicossociais têm recebido atenção crescente16,17,18. São conhecidos poucos fatores associados ao BS em adolescentes; dentre eles: sons da articulação temporomandibular e estresse6.
O objetivo deste estudo foi determinar a prevalência de BS e fatores associados em adolescentes de Teresina, Piauí.
METODOLOGIA
ASPECTOS ÉTICOS
Estudo observacional transversal realizado após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa, Parecer nº 508.040/CAAE 03362112.1.0000.5214, da Universidade Federal do Piauí (UFPI), Teresina, Piauí, Brasil, conduzido em conformidade com a Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde.
AMOSTRA
A população do estudo foi composta por adolescentes na faixa etária de 11 a 14 anos, matriculados nas escolas das redes pública e privada do município - que, de acordo com dados da Secretaria Municipal de Educação de Teresina, no ano de 2011 totalizavam 54.056 estudantes.
O tipo de amostragem adotado foi de conglomerados complexos, com alocação proporcional em cada estágio. O primeiro estágio foi composto por zonas da cidade (20,8% norte, 21,0% sul, 17,0% sudeste, 21,6% leste e 19,6% centro). O segundo estágio, pelos modelos de escola (25,9% particular, 27,0% da rede pública estadual e 47,1% da rede pública municipal). A primeira unidade de amostragem foi definida pelas escolas; a segunda, pelas classes; e a terceira, pelos alunos.
Para o cálculo do tamanho da amostra, foi considerada uma prevalência de 35,3% (~ 36,0%)8, com intervalo de confiança de 95% (IC95%) e erro de 4%. Por se tratar de uma amostra em múltiplos estágios, foi corrigido o efeito do desenho por um fator de 1,5 (deff). Para o cálculo amostral, foi utilizado o programa Epi InfoTM (version 3.5.2; Centers for Disease Control and Prevention, Atlanta, GA, USA). O cálculo foi obtido pela seguinte Equação 1:
Em que:
n é a amostra que foi calculada,
∂ é o nível de confiança,
pq é a variância do fenômeno que ocorre,
N é a população,
ε é o erro amostral.
A partir dessa fórmula, obteve-se tamanho de amostra de 524 adolescentes e foi acrescentado 20% para compensar eventuais perdas, totalizando 629 convidados para participar do estudo.
Foi realizado sorteio de escolas, classes e jovens de acordo com as zonas da cidade e o tipo de instituição, conforme descrito na Tabela 1. Foram incluídos no estudo os indivíduos presentes no dia da coleta de dados que, juntamente com os pais/responsáveis, autorizaram as participações.
Tabela 1: Número de adolescentes a serem analisados, distribuição por redes escolares e zona de localização.
Rede escolar | Número de adolescentes |
---|---|
Estadual | |
Centro | 23 |
Leste | 24 |
Norte | 43 |
Sudeste | 40 |
Sul | 40 |
Total | 170 |
Municipal | |
Centro | 28 |
Leste | 83 |
Norte | 64 |
Sudeste | 51 |
Sul | 70 |
Total | 296 |
Particular | |
Centro | 72 |
Leste | 29 |
Norte | 24 |
Sudeste | 16 |
Sul | 22 |
Total | 163 |
Total | 629 |
CALIBRAÇÃO
Para padronização do diagnóstico de desgastes dentários, foi realizado treinamento clínico da examinadora por professoras da Clínica Odontológica Infantil da UFPI, experientes em estudos epidemiológicos. Foram examinados 20 adolescentes que não participaram do estudo, para determinação da concordância intraexaminador, obtendo valor de kappa igual a 0,9. Para tal, os indivíduos foram examinados duas vezes, com intervalo de duas semanas.
COLETA DE DADOS
A coleta de dados foi realizada no período de setembro a novembro de 2013. Foi solicitada autorização prévia dos diretores das unidades escolares sorteadas para a realização da pesquisa. Os diretores enviaram carta aos pais dos adolescentes, informando-lhes de que seus filhos tinham sido selecionados para participar do estudo. Os termos de assentimento e de consentimento livre e esclarecido e o questionário aos pais foram anexados às cartas.
Por não existir questionário validado sobre o tema estudado, o questionário direcionado aos pais foi elaborado com base na literatura1,5,6,7,8,9,10,11,12,19,20,21,22. As perguntas abordaram condições socioeconômicas, dados demográficos e possíveis fatores associados à presença de BS. As questões socioeconômicas e demográficas investigadas incluíam sexo9,12, idade9, tipo de escola (pública ou particular), renda familiar (categorizados com base no salário mínimo mensal brasileiro da época da entrevista, equivalente a R$ 678,00)8, escolaridade materna (anos de estudo formal) e estado civil dos pais8,10.
O diagnóstico de bruxismo foi baseado no relato afirmativo dos pais sobre o ranger de dentes durante o sono1,6,7,8,9,12,19. Também foram relatadas informações relativas à presença de ronco9-10,19, dores de cabeça ao acordar19, hábitos bucais deletérios (onicofagia, sucção digital, morder objetos ou outros hábitos)11,20, problemas de saúde geral (gastrointestinais, neurológicos/psicológicos, cardíacos, respiratórios, parasitoses ou outros)5,9,12,21, dificuldades para dormir9-10 e apercepção dos pais quanto ao comportamento ansioso ou não do filho5,21-22.
Os adolescentes foram examinados na escola sob luz artificial (lâmpada de mesa modelo Pelican Startec, 127 V) por única examinadora, que utilizou roletes de algodão esterilizados, espelho bucal plano (Golgran®, São Paulo, Brasil) e sonda exploradora (Golgran®, São Paulo, Brasil) recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS)23. Os adolescentes ficavam sentados em cadeira escolar, com a cabeça posicionada no colo da examinadora. No exame clínico foram avaliados desgastes dentários24, em que foi verificada a presença de facetas brilhantes e polidas sobre incisivos e/ou molares permanentes (superfície palatal, bordas incisais e cúspides de trabalho)20,24. Os dados foram anotados em ficha individual.
ANÁLISE DE DADOS
Os dados foram digitalizados e analisados no programa estatístico Statistical Package for Social Science ® (SPSS) versão 18.0 para Windows. O teste qui-quadrado de Pearson foi aplicado para se verificar a associação entre a presença de BS e as variáveis independentes. A análise de regressão de Poisson com variância robusta associou variáveis socioeconômicas e clínicas com maior prevalência de BS. Foram considerados estatisticamente significativos valores p ≤ 0,05, com IC95%. Na análise multivariada, foi utilizado processo Backward Stepwise. Foram incluídas no modelo as variáveis com valor p ≤ 0,20 na análise bivariada. Os resultados foram expressos em razão de prevalência (RP), medida de efeito para estudos de prevalência.
RESULTADOS
Foram incluídos na amostra final 594 (94,4%) dos 629 adolescentes selecionados. A prevalência de BS foi de 22,2%. A maioria dos adolescentes era do sexo feminino (63,1%), de famílias com renda familiar inferior ao salário mínimo vigente (55,2%) e estudante de escolas públicas (74,1%). Foram observados desgastes em 579 dentes (76,6% em incisivos e 9% em molares) de 80,64% dos adolescentes examinados.
A distribuição de variáveis independentes associadas ao BS encontra-se descrita na Tabela 2. Associação positiva foi observada na análise bivariada entre BS e sexo, idade, comportamento ansioso, dor de cabeça ao acordar, ronco e qualidade do sono (p < 0,05).
Tabela 2: Distribuição de variáveis independentes associadas ao bruxismo do sono (n = 594).
Com BS (n = 132) | Sem BS (n = 462) | Valor p* | |
---|---|---|---|
n (%) | n (%) | ||
Desgastes dentários | |||
Sim | 107 (22,3) | 372 (77,7) | 0,890 |
Não | 25 (21,7) | 90 (78,3) | |
Gênero | |||
Masculino | 61 (27,9) | 158 (72,1) | 0,012 |
Feminino | 71 (18,9) | 304 (81,1) | |
Idade (anos) | |||
11 | 37 (24,0) | 117 (76,0) | 0,031 |
12 | 41 (25,5) | 120 (74,5) | |
13 | 18 (13,0) | 120 (87,0) | |
14 | 36 (25,5) | 105 (74,5) | |
Tipo de escola | |||
Pública | 106 (24,1) | 334 (75,9) | 0,064 |
Particular | 26 (16,9) | 128 (83,1) | |
Escolaridade da mãe (anos) | |||
Até 7 | 55 (23,9) | 175 (76,1) | 0,728 |
Entre 8 e 11 | 58 (21,0) | 218 (79,0) | |
Acima de 12 | 19 (21,6) | 69 (78,4) | |
Estado civil dos pais | |||
Separados | 59 (25,2) | 175 (74,8) | 0,157 |
Moram juntos | 73 (20,3) | 287 (79,7) | |
Renda familiar (SM) | |||
≤ 1 | 82 (25,0) | 246 (75,0) | 0,071 |
> 1 | 50 (18,8) | 216 (81,2) | |
Comportamento ansioso | |||
Sim | 62 (30,1) | 144 (69,9) | 0,001 |
Não | 70 (18,0) | 318 (82,0) | |
Condição de saúde geral | |||
Presença de problemas | 63 (25,1) | 188 (74,9) | 0,149 |
Ausência de problemas | 69 (20,1) | 274 (79,9) | |
Hábitos | |||
Sim | 71 (23,1) | 237 (76,9) | 0,614 |
Não | 61 (21,3) | 225 (78,7) | |
Sente dor de cabeça ao acordar | |||
Sim | 74 (27,8) | 192 (72,2) | 0,003 |
Não | 54 (17,6) | 253 (82,4) | |
Presença de ronco noturno | |||
Sim | 58 (31,0) | 129 (69,0) | 0,001 |
Não | 69 (18,2) | 310 (81,8) | |
Qualidade do sono | |||
Dificuldade para dormir | 46 (39,0) | 72 (61,0) | < 0,001 |
Dorme bem | 86 (18,1) | 390 (81,9) |
*teste qui-quadrado de Pearson. BS: bruxismo do sono; SM: salário mínimo.
As RPs obtidas na análise multivariada das variáveis associadas ao BS estão apresentadas na Tabela 3. Sexo masculino (RP = 1,41; IC95% 1,04 - 1,89), ronco (RP = 1,39; IC95% 1,02 - 1,89) e dificuldades para dormir (RP = 1,92; IC95% 1,38 - 2,66) foram associados à maior prevalência de BS no modelo final.
Tabela 3: Razão de prevalência bruta e ajustada das variáveis associadas ao bruxismo do sono (n = 594).
RPbruta (IC95%) | RPajustada (IC95%) | |
---|---|---|
Gênero | ||
Masculino | 1,48 (1,08 - 2,01) | 1,41 (1,04 - 1,89) |
Feminino | 1 | 1 |
Idade (anos) | ||
11 | 0,92 (0,60 - 1,41) | 1,00 (0,67 - 1,49) |
12 | 1,05 (0,70 - 1,56) | 1,05 (0,72 - 1,54) |
13 | 0,55 (0,33 - 0,93) | 0,61 (0,37 - 1,01) |
14 | 1 | 1 |
Tipo de escola | ||
Particular | 1,37 (0,92 - 2,04) | - |
Pública | 1 | |
Estado civil dos pais | ||
Moram juntos | 1,28 (0,94 - 1,75) | - |
Separados | 1 | |
Renda familiar (SM) | ||
≤ 1 | 1,37 (0,98 - 1,89) | - |
> 1 | 1 | |
Comportamento ansioso | ||
Sim | 1,76 (1,29 - 2,39) | 1,33 (0,96 - 1,84) |
Não | 1 | 1 |
Sente dor de cabeça ao acordar | ||
Sim | 1,56 (1,13 - 2,13) | 1,31 (0,94 - 1,79) |
Não | 1 | 1 |
Ronco | ||
Sim | 1,70 (1,25 - 2,30) | 1,39 (1,02 - 1,89) |
Não | 1 | 1 |
Qualidade do sono | ||
Dificuldade para dormir | 2,36 (1,75 - 3,19) | 1,92 (1,38 - 2,66) |
Dorme bem | 1 | 1 |
IC95%: intervalo de confiança de 95%; RP: razão de prevalência; SM: salário mínimo.
DISCUSSÃO
O presente estudo contribui para o estágio atual do conhecimento ao apontar prevalência e fatores associados ao BS em grupo etário cujas evidências são limitadas.
BS é uma condição frequente em adolescentes de Teresina, e a prevalência de BS encontrada foi superior à descrita para jovens de outra faixa etária6 e para adultos25, contudo inferior à mencionada para crianças brasileiras8, apesar de a prevalência relatada em crianças ser variável5,26. Estudos têm mencionado que a prevalência de BS diminui com a idade9,25,26.
Em estudos de bases populacionais, é possível que a prevalência seja subestimada, em virtude de o diagnóstico ser feito por relatos dos pais, que nem sempre dormem no mesmo espaço que os indivíduos investigados11; e essa é uma limitação a ser considerada na interpretação dos resultados. A comparação entre estudos de prevalência é também dificultada pelo emprego de diferentes idades dentro dos grupos etários, métodos diagnósticos e não especificação da forma de bruxismo - do sono ou de vigília1,11.
Foi observado, no presente estudo, que meninos apresentam maior prevalência de BS que meninas, resultado que corrobora os apresentados por Renner et al.12 e Lam et al.9 e Kato et al.27. Contudo, discorda da observação de Serra Negra et al.8, que realizaram estudo com faixa etária diferente. A prevalência de BS no sexo masculino pode representar uma característica da distribuição do BS nessa faixa etária, e pode estar relacionada ao fato de os meninos serem mais agitados e, em geral, motivados a conter suas emoções, o que favoreceria a ocorrência de movimentos involuntários12.
No estudo atual, BS foi associado à idade do adolescente, assim como em outro estudo27. Investigações ainda são necessárias para explicar o mecanismo envolvido27. Carra et al.19 verificaram menor frequência de BS em indivíduos maiores de 12 anos, o que não foi verificado no presente estudo. Contudo, mencionaram que a observação pode estar relacionada ao fato de os pais visitarem seus filhos no quarto com menos frequência depois de atingirem essa idade, influenciando os relatos19.
Fatores psicossociais frequentes na adolescência, tais como estresse, ansiedade, depressão, neuroticismo, hiperatividade, problemas de saúde mental e emocional têm sido associados à presença de BS5,6,8,9. Neste e em outros estudos, a ansiedade foi associada5,21,22 e, como implicação clínica, isso sugere que o tratamento psicológico poderia ser um fator positivo para o controle da condição7.
Pacientes com BS, em geral, apresentam dores de cabeça matinais19,20,28, associação confirmada no presente estudo. Tal achado sugere que a presença desse sintoma pode contribuir para a hipótese diagnóstica de BS. Carra et al.19 mencionaram que contrações musculares repetitivas podem estar associadas com a dor de cabeça tensional ou ambas as condições podem partilhar fatores de risco comuns, sem relação causal. No entanto, recomendamos que estudos com delineamentos que permitam investigar essa hipótese sejam realizados.
A presença de ronco foi um dos fatores associados à maior prevalência de BS, corroborando os resultados apresentados por outros autores9,19 e sugerindo tal desordem respiratória relacionada ao sono como preditora da condição. É possível que, diante de uma obstrução, o BS favoreça o restabelecimento da respiração normal10,19. Contudo, tal associação precisa ser mais bem elucidada.
Problemas relacionados à qualidade do sono são consequências sintomáticas comuns relatadas em indivíduos com bruxismo22, observação também confirmada em nossos resultados. Maior prevalência de BS foi verificada em indivíduos com dificuldades para dormir. Uma provável justificativa se deve ao fato de o BS ter sido descrito como uma complexa resposta de excitação do sistema nervoso, que pode ser acompanhada por movimentos corporais, aumento da frequência cardíaca e alterações respiratórias22.