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Transferências de renda federais: focalização e impactos sobre pobreza e desigualdade

Federal income transfers: targeting and impacts on poverty and inequality

Resumos

Este artigo tem como objetivo explorar evidências empíricas sobre a clientela beneficiária dos "novos" programas de transferência de renda do governo federal a partir da utilização dos microdados do questionário principal e do suplemento específico da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD. Além do descasamento entre os registros oficiais e as informações da pesquisa domiciliar, estas últimas revelam uma forte superposição de programas em setembro de 2004. Dados os critérios de elegibilidade do Bolsa-família, analisou-se também sua focalização e cobertura, o que permitiu dimensionar a clientela elegível e não beneficiária da ordem de 5 milhões de domicílios. A imputação simulada de transferência monetária a toda clientela elegível, mas não beneficiária, permitiu mensurar o impacto esperado sobre indicadores de pobreza e de desigualdade de renda.

transferência de renda; renda; pobreza; desigualdade; programa social


This article explores empirical evidences on the implementation of the "new" federal income-transfer programs, using micro-data from the National Annual Household Sample Survey. Besides the incompatibility between official registers and household information, these ones reveal a strong overlapping of federal programs in September 2004. Given the eligibility criteria of the Bolsa-família Program, its characteristics in terms of coverage and targeting were analyzed, which allowed for estimating the size of the eligible but not benefited clientele - around 5 million households. Imputing the monetary transfer to the entire eligible but not beneficiary households generated a new income distribution, which served as basis for measuring the expected impact on income-based poverty and inequality indicators.

income transfer; income; inequality; poverty; social program


Transferências de renda federais: focalização e impactos sobre pobreza e desigualdade

Federal income transfers: targeting and impacts on poverty and inequality

Sonia Rocha

Economista do Instituto de Estudo do Trabalho e Sociedade (IETS) e pesquisadora do CNPq, e-mail: srocha@iets.org.br

RESUMO

Este artigo tem como objetivo explorar evidências empíricas sobre a clientela beneficiária dos "novos" programas de transferência de renda do governo federal a partir da utilização dos microdados do questionário principal e do suplemento específico da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD. Além do descasamento entre os registros oficiais e as informações da pesquisa domiciliar, estas últimas revelam uma forte superposição de programas em setembro de 2004. Dados os critérios de elegibilidade do Bolsa-família, analisou-se também sua focalização e cobertura, o que permitiu dimensionar a clientela elegível e não beneficiária da ordem de 5 milhões de domicílios. A imputação simulada de transferência monetária a toda clientela elegível, mas não beneficiária, permitiu mensurar o impacto esperado sobre indicadores de pobreza e de desigualdade de renda.

Palavras-chave: transferência de renda; renda; pobreza; desigualdade; programa social

Código JEL: 138

ABSTRACT

This article explores empirical evidences on the implementation of the "new" federal income-transfer programs, using micro-data from the National Annual Household Sample Survey. Besides the incompatibility between official registers and household information, these ones reveal a strong overlapping of federal programs in September 2004. Given the eligibility criteria of the Bolsa-família Program, its characteristics in terms of coverage and targeting were analyzed, which allowed for estimating the size of the eligible but not benefited clientele — around 5 million households. Imputing the monetary transfer to the entire eligible but not beneficiary households generated a new income distribution, which served as basis for measuring the expected impact on income-based poverty and inequality indicators.

Key words: income transfer; income; inequality; poverty; social program

INTRODUÇÃO

Em meados da década de 1990, programas de transferência de renda focalizados em famílias de baixa renda começaram a ser implantados com o patrocínio do governo federal, seguindo modelo que havia sido posto em prática em muitas unidades subnacionais, e, desde então, vêm adquirindo uma crescente participação na formação da renda das famílias brasileiras. O arcabouço institucional, construído e ampliado ao longo do tempo, sugere que esse tipo de mecanismo foi incorporado de forma permanente ao sistema de proteção social do país. Em função de sua importância crescente em termos de cobertura e dispêndio público, há interesse justificado de conhecer a clientela atendida, assim como os resultados alcançados por esses programas. O suplemento da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/IBGE) de 2004 disponibilizou, pela primeira vez, informações nacionalmente abrangentes sobre os programas de transferência de rendas obtidas por meio de pesquisa domiciliar. Este texto objetiva explorar em conjunto informações do suplemento e do questionário básico para verificar em que medida os novos programas estavam sendo bem-sucedidos em atender à sua população-alvo, e quais as principais características em termos de sua cobertura, inclusive considerando a questão da superposição de programas dado o objetivo de unificação sob o Bolsa-família. Trata-se, essencialmente, de constatações que podem ser feitas a partir de cruzamento de informações da PNAD sobre aspectos básicos de operacionalização do programa e de efeitos sobre a renda das famílias.

O texto está organizado da maneira seguinte. Depois dos esclarecimentos conceituais e metodológicos da próxima seção, a terceira seção trata de evidências empíricas da PNAD quanto à formação da renda das famílias, cobertura e focalização dos programas. A quarta seção apresenta os efeitos simulados das transferências sobre os indicadores de pobreza e de desigualdade, indicando a redução potencial desses indicadores, assim como o custo adicional de transferência caso o programa Bolsa-família atendesse a toda a sua clientela elegível. Finalmente, a quinta seção sumariza as questões examinadas e faz algumas considerações relativas à operacionalização de programas de transferência de renda focalizados nos mais pobres, assim como aos seus limites no âmbito de um sistema de proteção social.

1. QUESTÕES CONCEITUAIS E METODOLÓGICAS: ESCLARECIMENTOS E RESSALVAS

Embora existam registros administrativos relativos a cada programa de transferência de renda1 1 . Para setembro de 2004, as informações relativas ao tamanho da clientela atendida pelo Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti) não estavam disponíveis. e venham sendo tomadas medidas no sentido de proceder à revisão e unificação cadastral, são ainda reconhecidamente deficientes as informações sobre os beneficiários, assim como limitadas as possibilidades de utilização dos registros administrativos para fins de acompanhamento e avaliação das transferências monetárias realizadas.

Até 2004, a PNAD apenas levava em conta esses programas de forma indireta e não específica. Na verdade, o valor correspondente a eventuais transferências monetárias recebidas pelas pessoas deveria ser registrado no capítulo de rendimento, no quesito "outros rendimentos", sendo expresso como um valor consolidado único juntamente com outros itens, tais como juros, dividendos e demais rendimentos de natureza financeira.2 2 . Descrição do quesito em questão no questionário da PNAD: "juros de caderneta de poupança e de outras aplicações, dividendos e outros rendimentos (especifique)".

Em 2004, o IBGE incluiu na PNAD um questionário suplementar de modo a identificar os domicílios onde os moradores estavam inscritos e/ou tinham recebido em setembro daquele ano benefício monetário de programas de transferência. O questionário investigou de forma explícita oito programas federais,3 3 . Auxílio-gás, Cartão-alimentação, Bolsa-alimentação, LOAS/Benefício de Prestação Continuada (BPC) aos idosos e deficientes, outro LOAS, Bolsa-família, Bolsa-escola, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti). além de haver um quesito residual para indicação de eventual atendimento por outros programas de transferência de renda federais, estaduais ou municipais.

Cabe destacar, no entanto, que o suplemento da PNAD investiga para cada programa apenas a inscrição e o recebimento do benefício, mas não o valor recebido, seja de cada um deles, seja o total. Como sabidamente há superposição de programas, e, além disso, aos diferentes programas correspondem diferentes valores para os benefícios, torna-se inviável estimar de forma precisa o valor dos benefícios recebidos pela família.4 4 . Pode ocorrer, inclusive, de o domicílio declarar ter recebido um ou mais benefícios e, no entanto, não haver informação de valor no quesito "outros rendimentos". Isso significa que as estimativas de impacto dos benefícios recebidos em termos de redução da pobreza ou indigência, assim como sobre a redução da desigualdade de rendimentos, só podem ser feitas de forma aproximada. Ademais, pela mesma razão, dadas as regras de elegibilidade e determinação do valor de transferência de cada programa, fica prejudicada a avaliação quanto à focalização e adequação do valor transferido às características de renda e de presença de crianças no domicílio.5 5 . Para fazer face parcialmente a essas dificuldades, Soares et al. (2006) desenvolveram uma metodologia visando a estimar o impacto das transferências e de outros itens do agregado "outros rendimentos" da PNAD sobre a pobreza e sobre a desigualdade.

2. CARACTERÍSTICAS OPERACIONAIS DOS PROGRAMAS COM BASE NA PNAD

2.1 O comportamento da renda

As informações de rendimento, que fazem parte do corpo principal de investigação da PNAD, mostraram um crescimento importante do valor do quesito "outros rendimentos", no qual devem ser registrados, quando ocorrem, os benefícios assistenciais, sejam eles associados à Lei Orgânica de Assistência Social - LOAS, sejam aos "novos" programas de transferência de renda criados desde meados da década de 1990.

Embora, para o conjunto das famílias, o valor do quesito "outros rendimentos" tenha aumentado fortemente sua participação na composição da renda entre 2003 e 2004, sua importância permanece marginal no total da renda, passando de 1%, em 2003, para 1,6%, em 2004.6 6 . Juros e rendimentos de capital são informações difíceis de serem obtidas em inquéritos domiciliares, particularmente em pesquisas de objetivos múltiplos como a PNAD. É sabido que a PNAD subestima fortemente esses rendimentos, o que, no entanto, só prejudica a comparação da composição da renda ou do nível de desigualdade em anos subseqüentes se houver mudança significativa da participação dos juros na renda total ou da sua taxa de subdeclaração. No entanto, para as famílias mais pobres, população-alvo dos programas de transferência de renda, a participação desses rendimentos cresceu de forma acentuada.

Os gráficos da figura 1 ilustram como a composição da renda se altera conforme o nível de renda familiar. Para famílias com renda familiar per capita inferior a R$ 100,00 em 2004, correspondendo, portanto, ao público-alvo dos programas federais de transferência de renda,7 7 . O público-alvo é definido pela sua renda, exclusive benefícios, enquanto as informações apresentadas aqui incluem, inevitavelmente, eventuais benefícios, já que o seu valor não é diretamente separável. a participação dos rendimentos que incluem essas transferências passou de 5,6%, em 2003, para 10,2%, em 2004.8 8 . O valor de R$ 100,00 correspondia ao limite superior da renda domiciliar per capita para fins de seleção de novos beneficiários para o Bolsa-família, já que os programas associados ao LOAS utilizam um quarto de salário mínimo (R$ 65,00 em setembro de 2004) como limite máximo da RFPC. Como essas famílias muito pobres não recebem juros,9 9 . E caso recebam algum juro, sua participação na renda não tem razão de ter sido afetada de um ano para o outro. o crescimento dessa rubrica se deve certamente aos programas de transferência de renda. A importância crescente das transferências levou a alguma perda de participação de outras rubricas na formação da renda dessas famílias, em particular a da renda do trabalho, que cai de 79,0%, em 2003, para 76,5%, em 2004.


A esse respeito é importante registrar que a renda das famílias brasileiras aumentou entre 2003 e 2004, por diversas razões. Pelo aumento da renda do trabalho, em função da expansão da ocupação, já que o rendimento médio permaneceu constante em termos reais; pelo aumento da renda das aposentadorias e pensões devidas tanto ao aumento dos valores reais como do número de beneficiários; pelo aumento do número de benefícios assistenciais dos "novos" programas, assim como pelo aumento da cobertura e do valor das transferências — houve valorização do salário mínimo — dos programas constitucionais.10 10 . O número de benefícios pagos no âmbito da LOAS a idosos e portadores de deficiências passou de 1,7 milhão em setembro de 2003 para 2 milhões em setembro de 2004, um acréscimo forte de quase 20% em um ano. Fonte: Boletim Estatístico da Previdência Social.

Desse modo, foram diversos os fatores que contribuíram para o aumento da renda das famílias, em particular para o seu acréscimo maior na base da distribuição, favorecendo a redução da pobreza e a melhoria distributiva. As informações do suplemento da PNAD trazem subsídios sobre características da clientela atendida pelos diversos programas de transferência de renda, permitindo alguma avaliação do seu impacto sobre pobreza e desigualdade, embora com as ressalvas feitas na seção 2, assim como as restrições relativas às divergências em relação aos registros administrativos, de que se tratará a seguir.

2.2 A cobertura

As informações levantadas pelo suplemento da PNAD revelam que pouco mais de 8 milhões de domicílios receberam pelo menos um benefício monetário em setembro de 2004, totalizando 12,2 milhões de benefícios (média de 1,5 benefício por domicílio beneficiado). A tabela 1 apresenta a freqüência de respostas por programa, permitindo a comparação com o número de benefícios segundo os registros administrativos.

A esse respeito cabem duas ordens de considerações:

(a) A informação domiciliar diverge muito da dos registros administrativos

Há uma evidente divergência entre as informações da PNAD e dos registros administrativos. Isso pode se dever, em parte, à migração de beneficiários para o Bolsa-família sem que os informantes deixassem de declarar na PNAD o programa a que originalmente pertenciam. De fato, os resultados da PNAD mostram uma participação nos programas que precederam o Bolsa-família (Auxílio-gás, Bolsa-escola, Bolsa-alimentação, Cartão-alimentação do Fome Zero) maior do que a de fato ocorreu, segundo os registros administrativos, enquanto subestimam a participação no Bolsa-família.

A divergência de informações no caso do Auxílio-gás se deve provavelmente também à sua associação a outros programas. Depois de criado em 1996, o pagamento do Auxílio-gás não cresceu como esperado.11 11 . O valor do benefício do Auxílio-gás, que compensava as famílias de baixa renda pela eliminação do subsídio generalizado ao consumo de gás engarrafado que vigorava até então, era de R$ 7,50/mês, pagos a cada dois meses (R$ 15,00). Quando programas de transferência de renda, tais como o Bolsa-escola e o Bolsa-alimentação, se expandiram no final da década de 1990, o Auxílio-gás passou a ser atribuído freqüentemente como um benefício complementar, aproveitando o cadastramento que vinha sendo feito para os outros programas. Houve então uma superposição "legítima" do Auxílio-gás com outros programas. Embora o pagamento do benefício do Auxílio-gás deixe de existir quando é feita a migração dos beneficiários dos programas preexistentes para o Bolsa-família, a informação domiciliar parece refletir uma situação anterior que não vigorava mais em setembro de 2004, resultando em uma forte sobredeclaração de recebimento do Auxílio-gás na PNAD (3,5 milhões de domicílios declarantes contra 1,3 milhão de domicílios beneficiários nos registros administrativos).

Em relação à LOAS verifica-se divergência no sentido inverso, isto é, subdeclaração na PNAD. O número de domicílios que informaram receber o benefício — cerca de 780 mil — é significativamente inferior ao número de benefícios efetivamente pagos em setembro de 2004 — cerca de 2,6 milhões. Nesse caso específico, é provável que a diferença se dê por duas razões básicas.

A primeira é o desconhecimento por parte do declarante da PNAD de que o valor recebido corresponda a um programa assistencial, sendo, ao invés disso, considerado e declarado na PNAD como aposentadoria ou pensão. Nesse caso, como contrapartida, são superestimados, na mesma medida, as freqüências e os valores associados de aposentadorias e pensões, no capítulo de rendimento. Esse erro na categorização do rendimento recebido não afeta indicadores tais como os de pobreza e os de distribuição de renda — já que uns e outros utilizam o total das rendas recebidas de qualquer natureza. No entanto, leva a subestimar o impacto dos programas de transferência de renda que levam em conta exclusivamente a informação de "outros rendimentos" recebidos.

A segunda razão para a subestimação é a omissão da informação, seja de forma involuntária, por desconhecimento, seja de forma voluntária, principalmente em casos em que o beneficiário receie ter o benefício suprimido. Nesta segunda opção, há certamente implicações quando se trata de utilizar a informação da PNAD para analisar as características da população beneficiária dos programas, e, em particular, a adequação da focalização, já que uma parte da focalização inadequada se perde devido à não-declaração.

Mesmo deixando de lado os caso especiais do Auxílio-gás e dos benefícios da LOAS, de modo a centrar a comparação nos quatro programas — três preexistentes12 12 . Bolsa-escola, Bolsa-alimentação e Cartão-alimentação. e o "guarda-chuva" Bolsa-família — que formam o core das novas transferências, a diferença entre PNAD e registros administrativos é muito elevada: cerca de 1,8 milhão de benefícios a mais nos registros administrativos.13 13 . Corresponde à diferença do número dos benefícios dos quatro programas pagos efetivamente (8.990 mil) e os benefícios desses mesmos quatro programas declarados na PNAD (7.180 mil), que não pode ser imputado a erro amostral da PNAD.

b) Existe uma elevada superposição de benefícios no mesmo domicílio

As informações apresentadas na tabela 1 mostram que havia uma significativa superposição de benefícios, da ordem de 1,5 por domicílio,14 14 . O número médio resulta das respostas afirmativas relativas à participação nos programas (12,21 milhões), dividido pelo número de domicílios beneficiados (8,06 milhões). já que, dos domicílios que recebiam algum benefício, 47,2% declararam receber benefícios do Bolsa-escola, 43,3 declararam receber o Auxílio-gás, e assim por diante.

O Bolsa-escola, com 3,3 milhões de benefícios ou quase um terço dos benefícios declarados, ainda aparecia na PNAD, em setembro de 2004, como o programa de maior cobertura, o que contraria a informação dos registros administrativos, segundo os quais o Bolsa-família já seria naquela data o programa mais importante, atendendo a 5 milhões de domicílios. Apesar da divergência, os registros administrativos parecem sugerir que logo após o seu lançamento, de outubro a dezembro de 2003, o Bolsa-família expandiu-se principalmente pela incorporação dos beneficiários dos programas preexistentes, enquanto em 2004 ocorreu forte aumento de novos beneficiários, revelando prioridade de expansão da clientela em detrimento da integração e organização do novo modelo (ver tabela 2).

A PNAD evidencia ainda que a maior superposição ocorria entre Bolsa-escola e Auxílio-gás — uma superposição "legítima", como se viu anteriormente (tabela 3). Outras superposições ocorriam entre os programas implementados originalmente por instâncias distintas — por exemplo, o Bolsa-escola, do Ministério da Educação, o Bolsa-alimentação, do Ministério da Saúde, o Peti, do Ministério da Previdência e da Assistência Social. Essas superposições ocorrem legítima ou ilegitimamente, já que o cadastramento de cada um foi feito de forma independente.

A implantação do cadastro único dos beneficiários das transferências, mantida e tornada mais operacional com a criação do Bolsa-família, que integra os programas preexistentes, objetiva a eliminação de superposições. No entanto, as informações da PNAD indicam uma superposição significativa até do Bolsa-família com programas que ele deveria substituir, a saber, Bolsa-escola, Bolsa-alimentação, Cartão-alimentação, Auxílio-gás (tabela 3), já que somente metade (50,7%) dos beneficiários do Bolsa-família recebiam apenas essa transferência. Mesmo considerando a superposição com o LOAS e "outro programa" como superposições legítimas, já que os benefícios são geridos por sistemas independentes, a forte superposição do Bolsa-família com o Bolsa-escola e com o Auxílio-gás captada pela PNAD sugere a existência de problemas operacionais na expansão da cobertura e na unificação dos "novos" programas de transferência federais sob o Bolsa-família. Possivelmente isso explica, em parte, as discrepâncias entre os registros administrativos e as informações obtidas durante a pesquisa domiciliar.

A tabela 4 apresenta dados relativos à questão de superposição de benefícios vista sob outro ângulo, o do número de benefícios recebidos pelos domicílios beneficiários. Embora a maioria dos domicílios beneficiários receba apenas uma transferência, e parte da superposição seja "legítima", a questão do paralelismo entre sistemas de assistência social diferentes, utilizando critérios diversos, mas sempre centrados na unidade familiar, certamente terá de ser enfrentada no futuro próximo.

2.3 A focalização

A partir de um critério único de renda, geralmente um quarto de salário mínimo per capita, os "novos" programas de transferência tinham originalmente população-alvo diversas — por exemplo, famílias com crianças entre 7 e 14 anos, no caso do Bolsa-escola, ou famílias com crianças de 0 a 6 anos no caso do Bolsa-alimentação. No entanto, a análise que se fará aqui terá como base o critério e a elegibilidade do Bolsa-família, que substitui todos os anteriores, sendo mais generoso em termos do corte de renda e não condicionado à presença de crianças na família.

Assim, o Bolsa-família garantia um benefício básico de R$ 50,00/mês por família.15 15 . Regras em vigor até 2006. Para famílias com crianças de até 15 anos e com renda domiciliar per capita (RDPC) inferior a R$ 100,00/mês per capita existia um benefício de R$ 15,00 reais por criança, com limite máximo de R$ 45,00. Para famílias com menos de R$ 50,00/mês per capita mês os dois benefícios podiam se superpor, de modo que a transferência máxima era de R$ 95,00, em setembro de 2004.

Tendo por base os critérios de renda estabelecidos pelo Bolsa-família, a PNAD permitiu avaliar sua focalização através de cruzamento da informação contida no suplemento quanto ao fato de o domicílio ser ou não beneficiário de cada programa, com as características do mesmo domicílio investigadas no corpo principal da pesquisa.

Utilizando a informação de RDPC, adotada como critério básico de elegibilidade dos programas, as informações da PNAD evidenciam que 3,8 milhões ou 48% dos beneficiários, inclusive os declarantes do benefício da LOAS, se enquadram nos critérios de renda dos novos programas de transferência, isto é, mesmo depois do recebimento do benefício têm RDPC inferior a R$ 100,00 (tabela 5).

O fato de 2,9 milhões de domicílios beneficiários — 37% do total — terem RDPC acima de R$ 130,00 — deixando-se, portanto, uma faixa de transição aceitável de R$ 100,00 a R$ 130,00 acima do limite superior oficial — evidencia certamente uma inadequação da focalização. Isso se daria não em termos absolutos, já que tanto a renda dos beneficiários como os valores transferidos são muito baixos, mas porque existe um enorme contingente de domicílios com renda inferior a R$ 50,00 — 1,8 milhões —, portanto incondicionalmente elegíveis, que não recebem qualquer benefício. Considerando os domicílios que recebem o LOAS e o Auxílio-gás e que ainda assim permanecem elegíveis para o Bolsa-família, a clientela não beneficiária chega a quase 5 milhões de domicílios (ver seção 4). Isso significa que, mantendo os domicílios já atendidos em 2004, seria necessário expandir a cobertura em pouco mais de 60% para garantir o atendimento de todos os elegíveis tendo por base as características declaradas à PNAD.

Embora haja amplo espaço para melhorar a focalização dos "novos" programas, estes apresentam uma focalização significativamente mais adequada que as transferências de renda realizadas no âmbito da LOAS. A figura 2 mostra a distribuição acumulada dos beneficiários de diferentes programas conforme décimos da RDPC, que inclui os benefícios recebidos.


Embora a comparação entre o LOAS e os "novos" programas fique prejudicada porque os valores dos benefícios já incorporados à renda considerada são muito diferentes, observa-se que o Cartão-alimentação do Fome Zero é o programa mais bem focalizado, enquanto os benefícios da LOAS, como era de se esperar, apresentam a pior focalização. O fato de o Bolsa-família ser o segundo melhor programa em termos de focalização é um fato digno de nota, e mesmo surpreendente, em função tanto da sua rápida expansão, que leva necessariamente a problemas de cadastramento e seleção, como do processo de migração de beneficiários de programas preexistentes. É desejável que a expansão do Bolsa-família a partir de 2004 tenha se dado pela incorporação da ampla clientela não atendida na base da distribuição dos rendimentos, o que levaria à melhoria da sua focalização.16 16 . A PNAD 2005 não inclui quesitos suplementares que permitam a análise como feita para setembro de 2004. Quesitos específicos sobre o atendimento pelos "novos" programas de transferência de renda foram incluídos na PNAD 2006 e estarão disponíveis, portanto, no final de 2007.

Uma evidência de que havia muito espaço para melhorar a focalização é a existência de 1,8 milhão de domicílios com RDPC de até R$ 50,00/mês que não recebem qualquer benefício. Nesse sentido pareceu interessante verificar em que medida se diferenciam as condições de vida dos domicílios elegíveis e não beneficiados pelo Bolsa-família situados na base da distribuição de rendimentos (menos de R$ 50,00 per capita/mês) das condições de vida daqueles na mesma faixa de rendimento, mas que já recebem o benefício. Optou-se por considerar somente os domicílios que recebem o Bolsa-família, de modo que a comparação reflita o resultado do cadastramento e integração dos programas ao Bolsa-família após outubro de 2003, e não eventuais defeitos operacionais dos programas preexistentes.

Tendo como ponto de partida o critério de renda, buscou-se determinar uma pontuação (score) relativa às condições de vida dos domicílios considerando três variáveis relevantes, às quais se atribuíram peso idêntico: água canalizada em pelo menos um cômodo, banheiro e energia elétrica. A tabela 6 apresenta os resultados para os dois conjuntos de domicílios, assim como os scores obtidos.

Os scores relativos aos dois conjuntos não apresentam diferença que evidencie ter havido defeito de focalização devido ao uso da RDPC para a seleção de beneficiários. Na verdade, o score dos que não recebem o Bolsa-família é um pouco mais alto (7,86/10,0) do que os que o recebem (7,05/10,0), refletindo, portanto, como desejável, condições de vida um pouco superiores às daqueles. Em outras palavras, não parece haver um viés indevido contra os não beneficiários, apenas uma insuficiência de cobertura. Assim, o defeito fundamental do Bolsa-família em termos de focalização se revela no atendimento de domicílios de RDPC mais elevada — em que as condições de vida são necessariamente melhores —, antes que todos os domicílios na base da distribuição tenham sido atendidos.

3. O IMPACTO DAS TRANSFERÊNCIAS DE RENDA

3.1 Domicílios elegíveis e beneficiários

É sabido que a pobreza no Brasil está associada à desigualdade de renda, e não à sua insuficiência para atender às necessidades básicas de todos. Os dados da tabela 7 mostram que em 2004 aos 50% dos domicílios com rendimentos mais baixos correspondiam 15,9% da renda total, portanto parcela apenas 50% superior à que cabia ao 1% dos domicílios com rendimentos mais altos, o que resulta em coeficientes de Gini historicamente elevadíssimos e que só a partir da segunda metade da década de 1990 começaram a apresentar uma tendência de declínio. Verifica-se ainda que tem havido ganhos de participação na renda dos 50% mais pobres em detrimento dos 10% mais ricos. Como o valor dos rendimentos domiciliares mensais na base da distribuição é muito baixo — R$ 177,00 no primeiro décimo e R$ 442,00 na metade inferior da distribuição dos rendimentos positivos —, mesmo transferências de renda de valor muito modesto, como as realizadas no âmbito do Bolsa-família, mas focalizadas na base da distribuição, têm necessariamente um impacto mensurável sobre pobreza e desigualdade quando a cobertura atinge clientela tão ampla como aquela beneficiada em 2004.

Como visto na seção 4, há um amplo espaço tanto para expandir a cobertura como para melhorar a focalização, já que, dentre a clientela-alvo do Bolsa-família, existe uma parcela significativa — quase 1,8 milhão de domicílios — que, mesmo com RDPC abaixo de R$ 50,00, não recebe nenhum benefício. Ademais, há um outro conjunto de domicílios que forma uma clientela potencial complementar, pois, embora recebendo LOAS/BPC e/ou Auxílio-gás, permanecem com renda abaixo dos critérios de corte do programa e apresentam característica de composição familiar (presença de criança de 0 a 15 anos) que as qualificam segundo os critérios de elegibilidade do Bolsa-família. A tabela 8 apresenta a distribuição desses quase 5 milhões de domicílios elegíveis em setembro de 2004, distinguindo as quatro situações possíveis. Verifica-se, em particular, que cerca de 4,5 milhões ou 90% dos domicílios identificados declararam não receber benefício de qualquer programa de transferência de renda. A tabela 9 apresenta a discriminação do total desses domicílios por faixa de renda domiciliar per capita e região. As maiores clientelas potenciais se localizam no Nordeste, seguida da região Sudeste.

Tendo por base a distribuição da RDPC verificada em setembro de 2004, que inclui, portanto, os benefícios declarados como "outros rendimentos", foram feitas simulações de modo a verificar o impacto das transferências adicionais do Bolsa-família sobre a incidência de pobreza e sobre a desigualdade de renda. Para isso, a partir das rendas declaradas, foi feita a imputação do benefício devido aos quase 5 milhões de domicílios elegíveis não beneficiários, gerando assim uma nova distribuição de rendimentos.

A imputação do benefício foi feita conforme as regras do Bolsa-família, já que, segundo as diretivas operacionais vigentes, os novos beneficiários devem ser cadastrados e submetidos às regras de elegibilidade e de cálculo do benefício variável do Bolsa-família, a saber:

(a) Para domicílios com RDPC igual ou inferior R$ 100,00 e superior a R$ 50,00, foi imputado o benefício de R$ 15,00 por criança na faixa etária de 0 a 15 anos, respeitando o limite máximo de R$ 45,00.

(b) Para domicílios com RDPC igual ou inferior a R$ 50, foi imputado benefício de R$ 50,00, além de adicional de R$ 15,00 por criança na faixa etária de 0 a 15 anos, como anteriormente citado. Então, para essa faixa de RDPC, o benefício máximo é R$ 95,00.

Os valores possíveis do benefício no âmbito do Bolsa-família são relativamente baixos, principalmente em comparação com os benefícios transferidos pelo LOAS, já que o valor máximo se situava pouco acima de um terço do salário mínimo em setembro de 2004.17 17 . O valor do salário mínimo era de R$ 260,00 e o benefício máximo do Bolsa-família era de R$ 95,00. Considerando que o impacto relevante da transferência depende da sua repartição intradomiciliar, os valores per capita são ainda mais reduzidos.

Com clientela elegível adicional de 4,9 milhões de domicílios, a transferência imputada atingiu R$ 230 milhões em valores consolidados para setembro de 2004 (tabela 9). Desse total, 44% se destinariam a domicílios na região Nordeste, onde não só se concentra a maior clientela, como o benefício médio é mais elevado em função do fato de a renda média dos domicílios beneficiados ser mais baixa. Do ponto de vista do dispêndio federal, o valor imputado total corresponde a 34% do valor do dispêndio com LOAS (R$ 675 milhões) e 49% com os demais programas de transferência (R$ 466 milhões)18 18 . Considerou-se o dispêndio consolidado do Bolsa-escola, Bolsa-alimentação, Auxílio-gás, Cartão-alimentação e Bolsa-família. Fonte: MDS . na mesma data.

3.2 Impactos simulados das transferências adicionais do Bolsa-família sobre os indicadores de pobreza

Antes de apresentar os resultados da imputação sobre os indicadores de pobreza como insuficiência de renda, uma qualificação é necessária. Esta diz respeito às linhas de pobreza utilizadas, que têm 25 valores diversos, de modo a refletir os diferenciais de custo de vida para os pobres em áreas rurais, urbanas e metropolitanas em diferentes regiões do país. Os valores mensais per capita, utilizados em confronto com as RDPC para distinguir os pobres dos não-pobres, são apresentados no Anexo 1 Anexo 1 . Tendo em vista esses valores em contraponto com o valor máximo do benefício (R$ 95,00), fica evidente que, mesmo no caso mais favorável para o beneficiário, o recebimento do benefício é incapaz de mudar o status de uma família pobre para não-pobre nas áreas urbanas e metropolitanas.19 19 . À guisa de exemplo, examinemos o caso da área urbana da região Sul, onde o valor da linha de pobreza assume o valor mais baixo dentre as áreas urbanas e metropolitanas do país (R$ 112,96/pessoa/mês em setembro de 2004). Caso a família tenha a RDPC mais alta possível para ser atendida pelo programa (R$ 100,00) e seja formada apenas por um adulto e três crianças de modo a receber o benefício máximo, R$ 45,00, esse benefício elevaria a RDPC para R$ 111,20, portanto ainda abaixo da linha da pobreza da região. Desse modo, no que concerne à proporção de pobres, a imputação dos benefícios só é passível de alterar o valor original do indicador nas áreas rurais.

A tabela 10 apresenta os indicadores de pobreza por região e estrato de residência, tanto os originais como aqueles após imputação, de modo a permitir a comparação. Observa-se que, para o Brasil como um todo, a proporção pouco se altera — de 32,4% para 32,1% —, correspondendo a cerca de menos 500 mil pessoas pobres. Esse efeito é limitado quando comparado ao número de domicílios aos quais foi imputada a transferência — cerca de 5 milhões —, porque somente aqueles em área rural são passíveis de ultrapassar a linha de pobreza ao receber o benefício, como explicado. O efeito sobre a proporção é mais sensível na região Norte — menos 2,6% —, em parte devido à relativamente baixa taxa de urbanização; todavia, a redução do número de pobres é marginal (12 mil) em função da pequena população da região.

No entanto, a transferência imputada afeta positivamente a renda dos domicílios que permanecem pobres, diminuindo o hiato que os separa do valor da linha de pobreza. O indicador de hiato, que mostra em termos percentuais essa diferença, é mais fortemente reduzido como efeito das transferências em que a ocorrência da renda domiciliar igual a zero é mais freqüente e o valor da linha de pobreza é mais baixo, isto é, geralmente nas áreas rurais. Nestas, a razão do hiato cai significativamente de 40,5% antes para 35,0% depois da imputação dos benefícios do Bolsa-família.20 20 . Isso significa que, antes da imputação, a média das RDPC representava 59,5% do valor da linha de pobreza nas áreas rurais, faltando, portanto, 40,5% para atingi-la, o que se reduziu a 35% após a imputação. Em contrapartida, nas áreas metropolitanas onde as linhas de pobreza são mais elevadas, o valor do benefício transferido, fixado segundo as mesmas regras para todo o país, tem um efeito menor na redução da insuficiência de renda.

Finalmente, o hiato quadrático que leva em conta simultaneamente as reduções no número de pobres, no hiato de renda e na desigualdade entre os pobres mostra um efeito percentual mais acentuado que os outros dois indicadores separadamente, já que ambos operam no mesmo sentido. Ademais, a queda da componente de desigualdade dentre os pobres, que é considerada somente no hiato quadrático, é significativa por duas razões básicas.

A primeira é que a simulação permite uma perfeita focalização da transferência, que junto com a forma de determinação do seu valor, que é inversamente proporcional ao nível de renda do domicílio, tem impacto direto sobre a desigualdade. A segunda é que, ao simular transferências para 5 milhões de domicílios, o que corresponde, grosso modo, a cerca de um terço das pessoas pobres antes da simulação, o efeito sobre a desigualdade é inevitavelmente forte, mesmo com valores transferidos modestos em termos absolutos.

3.3 Impactos simulados sobre a desigualdade21 21 . A variável de renda utilizada é a renda domiciliar per capita que leva em conta a redistribuição que ocorre naturalmente entre os membros de um mesmo domicílio.

A simulação feita resulta, como visto anteriormente, na redução da desigualdade entre os pobres, em função de transferências mais elevadas para aqueles com rendas mais baixas, e, em particular, eliminando a ocorrência de renda zero. As transferências simuladas permitem também a redução da desigualdade de renda medida com base na totalidade da distribuição de rendimentos, porque diminuem a diferença de rendimentos entre os relativamente ricos e os relativamente pobres.22 22 . Hoffmann (2005) discute a questão da fronteira entre relativamente ricos e relativamente pobres, verificando que, em 2004, esse valor limítrofe era de R$ 470,00 para a RDPC, portanto, não muito distante do critério per capita utilizado nos programas. Na tabela 11 são apresentados os resultados relativos aos impactos sobre a desigualdade na distribuição da RDPC, medidos a partir dos índices de Gini e T-Theil. Os efeitos são bastante diferenciados entre regiões, bem mais acentuados no Norte e no Nordeste. Isso se dá em função do tamanho do contingente de pobres e da importância relativa da pobreza rural, sobre a qual o impacto das transferências de valores nacionais únicos é maior em face de custos de vida diferenciados para os pobres. A variação entre o valor original do índice e seu valor depois da imputação depende da sua sensibilidade ao aumento da renda na extremidade inferior da distribuição, que é maior no caso do índice T-Theil (-0,0097). No caso do Gini, a variação foi de -0,0046. Para fornecer uma referência para avaliação desse resultado, a queda média do Gini para o país como um todo foi de -0,008 por ano de 2001 a 2004.

Vale enfatizar que, embora as transferências tenham contribuído para a redução da desigualdade de rendimentos entre 2001 e 2004, o declínio observado se deveu preponderantemente a melhorias na distribuição no rendimento do trabalho, cujos ganhos se concentraram na base da distribuição (Rocha, 2006). Fazendo a decomposição da renda domiciliar segundo tipo de rendimento, Soares (2006) estimou que, entre 2001 e 2004, a renda do trabalho foi responsável por 68% da queda do Gini, enquanto a rubrica "outros rendimentos", na qual são registradas as transferências, respondeu por 27% do declínio.23 23 . Aposentadorias indexadas ao salário mínimo e aluguéis tiveram uma contribuição de 10% e de 1% na queda do Gini, enquanto outras aposentadorias e pensões tiveram um efeito concentrador (-6%) (Soares, 2006). Barros, et al. (2006), fazendo um exercício de simulação contrafactual, estimaram em 35% a contribuição de rendas que não as do trabalho para a redução do Gini no período 2001-2004.

Dado o nível de dispêndio já atingido, as transferências permitiram uma redução substancial da desigualdade. Naturalmente, dado um nível de dispêndio, seus efeitos sobre a desigualdade são tanto maiores quanto melhor for a focalização das transferências na base da distribuição.

4. CONCLUSÕES

A análise das informações da PNAD relativas ao recebimento de transferências de renda pelos domicílios brasileiros em setembro de 2004, no âmbito dos programas focalizados nos mais pobres, permite algumas considerações que serão apresentadas a seguir à guisa de conclusão.

Verificou-se um desacordo significativo entre os registros oficiais e as informações obtidas junto aos domicílios no que diz respeito ao recebimento ou não de benefícios dos diferentes programas. Tal fato tem duas implicações básicas. Por um lado, é necessário reexaminar a conveniência e a forma de levantamento das informações na PNAD. Embora seja evidente a necessidade de mecanismos de controle além daqueles baseados nos cadastros administrativos, há de se buscar a maior coerência possível entre as fontes, tomando como referência aquela que seja inequívoca, no caso em questão, o número de benefícios efetivamente pagos em setembro de 2004.

Por outro lado, há de se reconhecer que, em face das divergências verificadas entre a PNAD e os registros administrativos, as análises realizadas a partir das informações domiciliares perdem precisão. Assim, por exemplo, no que concerne aos "novos" programas de transferência associados ao Bolsa-família, existe na PNAD uma subestimação de 1,8 milhão de beneficiários, ou cerca de 20% em relação aos registros oficiais. O conjunto de beneficiários não considerados tem o potencial de alterar o perfil que se desenha da clientela a partir dos dados da PNAD. No caso da simulação apresentada neste texto, por exemplo, haveria uma superestimação da clientela a ser ainda atendida se parte dela já receber alguma transferência e não tiver declarado esse fato. Da mesma forma, estudos de focalização ficam prejudicados se a clientela beneficiária não declarante tiver características que não permitiriam a sua elegibilidade para os programas.

Em 2004, os "novos" programas de transferência de renda do governo federal estavam sendo objeto de mudanças de regras operacionais e administrativas, o que ocorria simultaneamente à expansão forte da clientela atendida. A criação do Bolsa-família como guarda-chuva dos novos programas e o processo de unificação em curso justificam o fato de termos elegido esse programa para fornecer algumas evidências empíricas quanto a superposições indevidas e à focalização com base nas informações de rendimento. As informações domiciliares revelaram um elevado grau de superposição do Bolsa-família com os programas anteriores, o que é indesejado, já que por definição ele os substitui. Quanto à focalização da Bolsa-família, não há evidências de que seja fundamentalmente diferente da dos programas do mesmo tipo que o precederam, pelo menos considerando a população beneficiária de cada um deles em setembro de 2004.

Na verdade, considerando a característica perversa de progressividade do gasto social no Brasil, as transferências de renda dos "novos" programas têm sido relativamente bem-sucedidas em beneficiar os mais pobres. No entanto, há certamente espaço para a melhoria da focalização. No conjunto de cerca de 5 milhões de domicílios elegíveis e que se declararam não beneficiários do Bolsa-família, cerca de 1,9 milhão tem renda domiciliar per capita inferior a R$ 50,00, enquanto dentre os beneficiários existe um contingente de 2,9 milhões com renda domiciliar per capita superior a R$ 130,00 portanto pelo menos 30% acima do limite de renda do programa.

A imputação da transferência do Bolsa-família aos cerca de 5 milhões de domicílios elegíveis teve um efeito negligenciável sobre a proporção de pobres, de 32,4% para 32,1%, o que se deve ao valor baixo do benefício em relação aos valores das linhas de pobreza adotados. No entanto, ao elevar a renda dos pobres, as transferências têm impacto significativo na redução da intensidade da pobreza e da desigualdade de renda, tanto entre os pobres como na população em geral. Transferências perfeitamente focalizadas, como as simuladas, apresentam, naturalmente, um efeito distributivo maior do que as realizadas de fato, permitindo mensurar o potencial teórico do mecanismo e avaliar a operação. Assim, o dispêndio total relativamente baixo que corresponde à simulação — R$ 230 milhões/mês para atender a mais 5 milhões de domicílios — se explica fundamentalmente pela eliminação de superposição de programas, que se verificava na data de referência. Embora, como se sabe, a queda da desigualdade de renda que vem sendo observada no Brasil se deva preponderantemente à redução da desigualdade nos rendimentos do trabalho, transferências modestas, mas em grande escala, como vêm sendo feitas no país nos últimos anos, afetam necessariamente os índices de desigualdade. A perfeita focalização das transferências simuladas foi capaz de reduzir o índice de Gini em 0,004, o que equivale aproximadamente à metade do declínio médio anual observado desde 2001.

Deve-se comentar ainda a questão do uso da renda como critério para a elegibilidade de beneficiários e para a avaliação da focalização dos programas de transferência de renda. A renda certamente se constitui em uma variável operacional para fins de convocação de potenciais beneficiários para o cadastramento.24 24 . Sabóia e Rocha (1998). No entanto, dentre populações vulneráveis, a renda é preponderantemente informal, portanto não passível de comprovação, além de incerta e sujeita a fortes oscilações ao longo do tempo. Por conseqüência, a declaração do seu valor em um determinado momento tem pouca utilidade prática para fins de delimitação de uma clientela "pobre" além de refletir a percepção subjetiva de pobreza. Por essa razão, a informação inicial de renda fornecida pelos domicílios tem de ser validada por um sistema de pontuação que reflita as reais condições de vida dos candidatos.

O cadastro único tem como uma de suas funções a de permitir fazer a passagem entre a renda como variável "convocatória" e as condições de vida de cada família, que é o que de fato interessa quando se trata de formar a clientela do programa. É desejável que a consolidação do Bolsa-família se dê nesse sentido, o que permitirá melhorar a focalização e realizar o atendimento de assistência social integrada dos beneficiários, que certamente não pode se limitar à transferência de renda.

Como o uso da declaração de renda, seja para a seleção de beneficiários, seja para a avaliação de focalização, tem desvantagens evidentes, o exercício de comparação de características de bem-estar de populações com renda semelhante, beneficiárias e não beneficiárias, teve por objetivo verificar em que medida havia desvios de focalização associados ao uso exclusivo da variável renda no processo de seleção. Para domicílios com renda familiar inferior a R$ 50,00 esse desvio não foi observado. No entanto, sem implementação de um sistema de pontuação e controle, é provável que desvios venham a ocorrer em todas as faixas de renda, já que os domicílios tenderiam a subdeclarar suas rendas com o objetivo de tornarem-se beneficiários do programa.

As evidências quanto à focalização comparativa dos novos programas de transferência de renda e dos antigos vinculados à LOAS, assim como os respectivos custos e tamanho das clientelas atendidas, indicam que uma unificação do sistema de assistência social englobando tanto os programas constitucionais como os "novos" programas é necessária e desejável. Embora ambos os tipos de transferência tenham como objetivo atender aos mais pobres, os critérios de seleção, valor dos benefícios e institucionalidades são muito diversos. Em 2004, por exemplo, o dispêndio com os benefícios da LOAS era 45% superior ao dos novos programas, mas correspondia apenas a um quarto do número de benefícios destes últimos. Embora o valor dos benefícios de transferência seja uma questão ainda em aberto, seu estabelecimento passa necessariamente pela redefinição de prioridades no conjunto de gastos sociais. Ademais, a diferença dos valores das transferências "constitucionais" e a das dos "novos" programas inviabiliza a criação de um sistema integrado de assistência social na linha adotada pelo governo federal.25 25 . Trata-se do SUAS, atualmente em estruturação.

Finalmente, cabe concluir que, embora as transferências de renda dos novos programas tenham efeitos de redução da pobreza e distributivos irrefutáveis, o desafio principal reside em utilizar o arcabouço de identificação e de acompanhamento da população-alvo para assisti-la e protegê-la. Trata-se de garantir o acesso a serviços básicos — educação de qualidade, por exemplo — que venha a garantir a inserção produtiva adequada das novas gerações, operando no sentido de romper o ciclo vicioso da pobreza. Caberia, então, entender as transferências monetárias como apenas um elemento de um sistema mais amplo de medidas articuladas antipobreza.

NOTAS

Artigo enviado em 31 de dezembro de 2006 e aprovado em 29 de novembro de 2007.

  • BARROS, R. P.; CARVALHO, M.; FRANCO, S.; MENDONÇA, R. Macro-determinantes da queda na desigualdade no Brasil. Rio de Janeiro: IPEA, 2006.
  • HOFFMANN, R. O limite entre os relativamente pobres e os relativamente ricos em 2004 Campinas: Unicamp, 2005.
  • IBGE. Pesquisa nacional por amostra de domicílios, 2004 Rio de Janeiro, 2005.
  • LAVINAS, L.; VARSANO, R.; ROCHA, S. Programas de garantia de renda mínima: uma orientação para os municípios. Rio de Janeiro: Friedrich Ebert Stiftung (ILDES)/ Fundação Ford, 1998. 88 p.
  • MDS. Análise comparativa de programas de proteção social, 1995-2003 Brasília, 2004.
  • MPAS. Boletim Estatístico da Previdência Social (diversos números).
  • ROCHA, S. Pobreza e indigência no Brasil: algumas evidências empíricas a partir da PNAD 2004. Nova Economia, Belo Horizonte, v. 16, n. 2, p. 265-302, maio/ago. 2006.
  • Impacto sobre a pobreza dos novos programas federais de transferência de renda. Revista de Economia Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 153-185, 2005, jan./abr. 2005.
  • ; GARCIA, E. O programa de renda mínima federal: uma avaliação do desenho e da operacionalização no período 1998-2000 Brasília: OIT, 2001.
  • SABÓIA, J.; ROCHA, S. Programas de renda mínima: linhas gerais de uma metodologia de avaliação. Texto para discussão, Rio de Janeiro: IPEA, n. 582, 37 p., 1998.
  • SCHWARTZMAN, S. Programas sociais voltados à educação no Brasil. Sinais Sociais, v. 1, n. 1, p. 114-144, maio/ago. 2006.
  • SOARES, F.; VERAS; SOARES, S.; MEDEIROS, M.; OSÓRIO, R. Programas de transferências de renda no Brasil: impactos sobre a desigualdade e a pobreza Brasília: IPEA, 2006.
  • SOARES, S. Distribuição de renda no Brasil de 1976 a 2004 com ênfase no período entre 2001 e 2004. Texto para discussão, Rio de Janeiro: IPEA, n. 1.166, 27 p., 2006.

Anexo 1

  • 1
    . Para setembro de 2004, as informações relativas ao tamanho da clientela atendida pelo Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti) não estavam disponíveis.
  • 2
    . Descrição do quesito em questão no questionário da PNAD: "juros de caderneta de poupança e de outras aplicações, dividendos e outros rendimentos (especifique)".
  • 3
    . Auxílio-gás, Cartão-alimentação, Bolsa-alimentação, LOAS/Benefício de Prestação Continuada (BPC) aos idosos e deficientes, outro LOAS, Bolsa-família, Bolsa-escola, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti).
  • 4
    . Pode ocorrer, inclusive, de o domicílio declarar ter recebido um ou mais benefícios e, no entanto, não haver informação de valor no quesito "outros rendimentos".
  • 5
    . Para fazer face parcialmente a essas dificuldades, Soares et al. (2006) desenvolveram uma metodologia visando a estimar o impacto das transferências e de outros itens do agregado "outros rendimentos" da PNAD sobre a pobreza e sobre a desigualdade.
  • 6
    . Juros e rendimentos de capital são informações difíceis de serem obtidas em inquéritos domiciliares, particularmente em pesquisas de objetivos múltiplos como a PNAD. É sabido que a PNAD subestima fortemente esses rendimentos, o que, no entanto, só prejudica a comparação da composição da renda ou do nível de desigualdade em anos subseqüentes se houver mudança significativa da participação dos juros na renda total ou da sua taxa de subdeclaração.
  • 7
    . O público-alvo é definido pela sua renda, exclusive benefícios, enquanto as informações apresentadas aqui incluem, inevitavelmente, eventuais benefícios, já que o seu valor não é diretamente separável.
  • 8
    . O valor de R$ 100,00 correspondia ao limite superior da renda domiciliar
    per capita para fins de seleção de novos beneficiários para o Bolsa-família, já que os programas associados ao LOAS utilizam um quarto de salário mínimo (R$ 65,00 em setembro de 2004) como limite máximo da RFPC.
  • 9
    . E caso recebam algum juro, sua participação na renda não tem razão de ter sido afetada de um ano para o outro.
  • 10
    . O número de benefícios pagos no âmbito da LOAS a idosos e portadores de deficiências passou de 1,7 milhão em setembro de 2003 para 2 milhões em setembro de 2004, um acréscimo forte de quase 20% em um ano. Fonte:
    Boletim Estatístico da Previdência Social.
  • 11
    . O valor do benefício do Auxílio-gás, que compensava as famílias de baixa renda pela eliminação do subsídio generalizado ao consumo de gás engarrafado que vigorava até então, era de R$ 7,50/mês, pagos a cada dois meses (R$ 15,00).
  • 12
    . Bolsa-escola, Bolsa-alimentação e Cartão-alimentação.
  • 13
    . Corresponde à diferença do número dos benefícios dos quatro programas pagos efetivamente (8.990 mil) e os benefícios desses mesmos quatro programas declarados na PNAD (7.180 mil), que não pode ser imputado a erro amostral da PNAD.
  • 14
    . O número médio resulta das respostas afirmativas relativas à participação nos programas (12,21 milhões), dividido pelo número de domicílios beneficiados (8,06 milhões).
  • 15
    . Regras em vigor até 2006.
  • 16
    . A PNAD 2005 não inclui quesitos suplementares que permitam a análise como feita para setembro de 2004. Quesitos específicos sobre o atendimento pelos "novos" programas de transferência de renda foram incluídos na PNAD 2006 e estarão disponíveis, portanto, no final de 2007.
  • 17
    . O valor do salário mínimo era de R$ 260,00 e o benefício máximo do Bolsa-família era de R$ 95,00.
  • 18
    . Considerou-se o dispêndio consolidado do Bolsa-escola, Bolsa-alimentação, Auxílio-gás, Cartão-alimentação e Bolsa-família. Fonte: MDS .
  • 19
    . À guisa de exemplo, examinemos o caso da área urbana da região Sul, onde o valor da linha de pobreza assume o valor mais baixo dentre as áreas urbanas e metropolitanas do país (R$ 112,96/pessoa/mês em setembro de 2004). Caso a família tenha a RDPC mais alta possível para ser atendida pelo programa (R$ 100,00) e seja formada apenas por um adulto e três crianças de modo a receber o benefício máximo, R$ 45,00, esse benefício elevaria a RDPC para R$ 111,20, portanto ainda abaixo da linha da pobreza da região.
  • 20
    . Isso significa que, antes da imputação, a média das RDPC representava 59,5% do valor da linha de pobreza nas áreas rurais, faltando, portanto, 40,5% para atingi-la, o que se reduziu a 35% após a imputação.
  • 21
    . A variável de renda utilizada é a renda domiciliar
    per capita que leva em conta a redistribuição que ocorre naturalmente entre os membros de um mesmo domicílio.
  • 22
    . Hoffmann (2005) discute a questão da fronteira entre relativamente ricos e relativamente pobres, verificando que, em 2004, esse valor limítrofe era de R$ 470,00 para a RDPC, portanto, não muito distante do critério
    per capita utilizado nos programas.
  • 23
    . Aposentadorias indexadas ao salário mínimo e aluguéis tiveram uma contribuição de 10% e de 1% na queda do Gini, enquanto outras aposentadorias e pensões tiveram um efeito concentrador (-6%) (Soares, 2006).
  • 24
    . Sabóia e Rocha (1998).
  • 25
    . Trata-se do SUAS, atualmente em estruturação.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Ago 2008
    • Data do Fascículo
      2008

    Histórico

    • Aceito
      29 Nov 2007
    • Recebido
      31 Dez 2006
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