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MINSKY E A FRAGILIDADE FINANCEIRA DAS DISTRIBUIDORAS DO SETOR ELÉTRICO BRASILEIRO

MINSKY AND THE FINANCIAL FRAGILITY OF THE BRAZILIAN ELECTRICITY DISTRIBUTION FIRMS

RESUMO

Este trabalho apresenta os resultados da aplicação da Teoria da Fragilidade Financeira (TIF) de Minsky ao setor de distribuição de energia elétrica no Brasil. Essa teoria permite identificar o risco de as empresas conseguirem saldar de forma sustentada suas dívidas em condições adversas de mercado. A TIF disponibiliza uma taxonomia que classifica as firmas conforme o nível de seu risco financeiro. Este trabalho adapta os indicadores e a taxonomia da TIF às condições do setor de distribuição de energia elétrica e os aplica aos dados da contabilidade regulatória de mais de 60 empresas entre 2007 e 2015. Constitui uma iniciativa original pela sua aplicação a um setor específico da economia e também a um setor regulado pelo governo. Há estudos que contemplam essa mesma linha aplicada de pesquisa, entretanto essa literatura tem predominantemente uma preocupação diferente, de natureza macroeconômica. Os resultados mostram um aumento substantivo da fragilidade financeira das distribuidoras do setor elétrico brasileiro ao longo do período analisado.

PALAVRAS-CHAVE:
fragilidade financeira; Minsky; teoria da instabilidade financeira; distribuição de energia elétrica; Brasil

ABSTRACT

This paper applies Hyman Minsky's Financial Fragility Theory (FFT) to analyze the sector of power distribution in Brazil. This theory provides a methodology to classify companies according to the risk of defaulting when facing adverse market conditions. This work adapts the FFT's indicators and taxonomy to the conditions of the electricity distribution sector and applies them to the regulatory accounting data of more than 60 companies between 2007 and 2015. This work gives an original contribution as the major part of the literature of applied studies in the Minskyian tradition has a macroeconomic focus. Differently, this article analyses the sectoral level and works with a government-regulated sector. The results show an increase in the financial fragility of these power distribution firms throughout the period.

KEYWORDS:
financial fragility; Minsky; theory of financial instability; electric energy distribution; Brazil

1 Introdução1 1 Este trabalho foi fruto de uma pesquisa que contou com o apoio financeiro do Programa de Pesquisa e Desenvolvimento da Agência Nacional de Energia Elétrica e os autores agradecem às sugestões dos pesquisadores do Grupo de Estudos de Energia Elétrica (Gesel) do Instituto de Economia da UFRJ, particularmente de Roberto Brandão, e também do parecerista anônimo dessa revista, que muito contribuiu para o aprimoramento do texto original.

A Teoria da Instabilidade Financeira foi desenvolvida pelo economista americano Hyman Minsky a partir de ideias de Keynes, com o objetivo de lidar com a recorrência de graves crises financeiras nos países capitalistas. A visão do autor contrasta com a interpretação dos economistas neoclássicos, que atribui esses eventos disruptivos a fatores exógenos ao sistema econômico. Na visão desses outros autores, o sistema econômico tenderia inexoravelmente ao equilíbrio, não fossem os erros de política econômica ou choques imprevistos.

Para Minsky, em uma economia monetária em que existe um sistema financeiro razoavelmente desenvolvido, há uma tendência a que empresas e bancos especulem com seus fluxos de caixa futuros. Assim, são concedidos empréstimos no presente em troca da expectativa do recebimento de um fluxo de pagamentos (juros e amortizações) no futuro.

Muitos financiamentos são efetivados mesmo quando a previsão de receitas operacionais líquidas do credor se mostra insuficiente para garantir o repagamento da dívida. Nesses casos, já se prevê o refinanciamento do empréstimo antes do fim do prazo contratado. Quando isso acontece, as empresas e seus bancos passam a estar sujeitos a um risco maior relacionado às condições de preço e prazo em que essa renegociação se dará no futuro. Esse fator estritamente financeiro dá lugar a um componente de cálculo da taxa de juros da operação que será adicional ao do risco de mercado, que é associado a flutuações imprevistas nas receitas esperadas do devedor e, portanto, inerente a qualquer empréstimo.

Para avaliar a relevância do risco financeiro na economia, Minsky (1986MINSKY, H. P. Stabilizing an unstable economy. New Haven: Yale University Press, 1986.) recomenda que as unidades econômicas de qualquer tipo - famílias, empresas ou governo - sejam classificadas em três tipos: hedge, quando o risco financeiro apresentado em seu balanço é muito baixo, relacionado apenas a frustrações muito fortes e inesperadas na demanda; especulativo, quando o risco financeiro da renegociação já prevista de passivos é considerado baixo; e Ponzi, quando a situação financeira da empresa é insustentável no tempo. O nível de robustez ou de fragilidade financeira de uma economia dependeria da composição das unidades econômicas entre essas três categorias.

Apesar da preocupação predominantemente macroeconômica da literatura minskyana, alguns poucos autores dessa tradição caminharam no sentido de realizar avaliações da fragilidade financeira a partir de um foco setorial (MULLIGAN, 2013; TYMOIGNE, 2014TYMOIGNE, É. Measuring macroprudential risk through financial fragility: a Minskian approach.Journal of Post Keynesian Economics 36 (4), p. 719-744, 2014.; NISHI, 2016NISHI, H. An empirical contribution to Minsky’s financial fragility: Evidence from non-financial sectors in Japan. Discussion Papern. E-16-007. Graduate School of Economics Kyoto University, 2016. Disponível em: <www.econ.kyoto-u.ac.jp/dp/papers/e-16-007.pdf>. Acesso em: 18 out. 2018.
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; ROLIM et al., 2016ROLIM, L.; CATTAN, R.; ANTONIOLI, J. Fragilidade Financeira das Empresas Brasileiras de Capital Aberto no Período de 2010 a 2014: uma análise a partir de Minsky. In: Anais do IX Encontro Internacional da Associação Keynesiana Brasileira (AKB). São Paulo: AKB, 2016.; DAVIS et al., 2017DAVIS L.; DE SOUZA, J.; HERNANDEZ, G. An empirical analysis of Minsky regimes in the US economy. Working Paper 2017-08, University of Massachusetts Amherst, 2017. Disponível em: <http://scholarworks.umass.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1225&context=econ_workingpaper>. Acesso em: 18 out. 2018.
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; PEDROSA, 2017PEDROSA, I. Firms’ leverage ratio and the Financial Instability Hypothesis (FIH): an empirical investigation for the United States economy (1970-2014). Mimeo, 2017.). Entretanto esses trabalhos, em geral, deram importância a segmentos que têm relevância sistêmica, a exemplo do sistema financeiro, ou avaliaram vários setores produtivos simultaneamente, como um passo preliminar para quantificar o risco financeiro da economia como um todo. Por esse motivo não foram identificados estudos que usem a metodologia minskyana para avaliar exclusivamente a evolução da fragilidade financeira de um setor específico, tampouco com a preocupação de analisar setores diretamente regulados pelo governo.

Tendo por base esse cenário, esse artigo mostra que a taxonomia proposta por Minsky (1986MINSKY, H. P. Stabilizing an unstable economy. New Haven: Yale University Press, 1986.) pode ser também utilizada para analisar a evolução da fragilidade financeira de setores específicos da economia e, em particular, daqueles envolvidos na prestação de serviços públicos. Nesses segmentos, os órgãos reguladores são, geralmente, obrigados a acompanhar a saúde financeira das empresas concessionárias em sua área de atuação, de modo a garantir que a prestação do serviço à população se mantenha dentro de padrões mínimos de qualidade. Desse ponto de vista, o aumento da fragilidade financeira do setor pode ser usado como indicador antecedente de risco operacional crescente.

A motivação original desse trabalho foi uma demanda da agência brasileira reguladora do setor de energia elétrica, a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). Em 2012, as empresas do Grupo Rede, uma empresa holding que controlava nove distribuidoras de energia elétrica, pediram proteção judicial ou sofreram intervenção do governo como forma de protegê-las da ação de seus credores. Esse caso surpreendeu a ANEEL e deu origem à sua demanda para o desenvolvimento de uma pesquisa que identificasse indicadores financeiros que pudessem orientar suas atividades de supervisão financeira das empresas concessionárias. Este artigo se baseia em resultados parciais dessa pesquisa que foi financiada com recursos do programa de pesquisa e desenvolvimento da Agência.2 2 O projeto de pesquisa e desenvolvimento do "Índice de Sustentabilidade Econômico-Financeira das Distribuidoras de Energia Elétrica" foi comandado pelo Grupo do Setor Elétrico do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro com o objetivo de dotar a ANEEL de metodologia, bancos de dados e indicadorespara o acompanhamento financeiro das empresas concessionárias (distribuidoras).

O texto foi organizado da seguinte maneira: a primeira seção faz uma resenha da Teoria da Instabilidade Financeira (TIF). A segunda aborda os trabalhos acadêmicos que se debruçaram sobre a aplicação da taxonomia proposta por Minsky a setores produtivos da economia. A terceira apresenta a forma como se adaptou a taxonomia minskyana para lidar com dados que as empresas distribuidoras são obrigadas a informar anualmente, de acordo com o padrão contábil determinado pela ANEEL. A quarta seção mostra os resultados obtidos pela aplicação dessa metodologia aos dados das 64 concessionárias ao longo do período de 2007 a 2015. Seguem algumas considerações finais. O resultado do trabalho aponta que a metodologia minskyana permitiu a identificação e a análise da vulnerabilidade financeira das empresas do setor. Mostrou-se, portanto, um instrumento simples e útil para orientar as autoridades regulatórias no acompanhamento da fragilidade financeira das empresas sob sua supervisão.

2 A Teoria da Instabilidade Financeira

A Teoria da Instabilidade Financeira (TIF) foi desenvolvida pelo economista americano Hyman Minsky. Seu objetivo era explicar por que, de tempos em tempos, os Estados Unidos e as demais economias capitalistas enfrentam forte instabilidade financeira e por que, em algumas oportunidades, essas situações se generalizam, levando a crises macroeconômicas, algumas de extrema gravidade.

Segundo Minsky, a TIF foi concebida com base em ideias contidas nas obras de John Maynard Keynes e na descrição que Irwin Fisher fez da crise de 1930 (FISHER, 1933FISHER, I. The Debt-Deflation Theory of Great Depressions. Econometrica 1(4), p. 337-57, 1933.). Posteriormente o autor também reconheceu a influência de Schumpeter (1934SCHUMPETER, J. Theory of economic development. Cambridge, Mass. Harvard University Press, 1934.) na formação do seu pensamento (MINSKY, 1982MINSKY, H. P. The financial-instability hypothesis: capitalist processes and the behavior of the economy. Hyman P. Minsky Archive. Paper 282. 1982. Disponível em: <http://digitalcommons.bard.edu/hm_archive/282>. Acesso em: 18 out. 2018.
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)

A perspectiva minskyana diferencia-se assim da visão dominante no pensamento econômico neoclássico de que os mercados tendem inexoravelmente ao equilíbrio, a menos que sejam impedidos por um choque imprevisto ou por um erro de política econômica. Para Minsky, “the fundamental proposition of the financial instability theory of a capitalist economy is that the capitalist market mechanism is flawed, in the sense that it does not lead to a stable price-full employment equilibrium” (MINSKY, 1974MINSKY, H. P. The modeling of financial instability: an introduction. Modeling and Simulation, v. 5, Part 1: Proceedings of the Fifth Annual Pittsburgh Conference. Pittsburgh, Pa: InstrumentSocietyofAmerica, 1974, p. 267-272. Disponível em: <http://digitalcommons.bard.edu/hm_archive/467/>. Acesso em: 18 out. 2018.
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, p. 267). A razão das crises recorrentes do sistema capitalista é, portanto, de natureza endógena e não exógena.

Minsky aponta que o processo de acumulação de capital se dá por meio de aplicações de dinheiro no presente em troca de uma expectativa de recebimento de um montante ainda maior de dinheiro no futuro. Em uma economia moderna, em que já se desenvolveram o financiamento bancário de longo prazo e os mercados de capitais, essas somas são financiadas em grande parte por empréstimos junto a bancos ou a investidores dos mercados de capitais por meio do lançamento de títulos de dívida corporativa.

Com isso, as empresas são, a cada momento, responsáveis por administrar um fluxo de receitas monetárias esperadas, mas incertas, a serem obtidas ao longo de um determinado prazo. Esses recursos precisam ser recebidos em valores e em datas tais que garantam a cobertura das seguintes despesas: a liquidação das obrigações financeiras que vencem no período; o custeio das despesas operacionais da firma; e o pagamento de dividendos para os controladores.

Essa perspectiva de análise se assemelha à descrita por Keynes (1972) na seguinte passagem de um de seus Ensaios de Persuasão, originalmente publicado em 19313 3 Intitulado The Consequences to the Banks of the Collapse of Money Values. :

There is a multitude of real assets in the world which constitute our capital wealth - buildings, stocks of commodities, goods in course of manufacture and of transport, and so forth. The nominal owners of these assets, however, have not infrequently borrowed money in order to become possessed of them. To a corresponding extent the actual owners of wealth have claims, not on real assets, but on money. A considerable part of thisEcon. Contemp., v. 22, n. 3, p. 1-27, set-dez/2018: e182233 26 DOI: 10.1590/198055272233 Nesse sentido foi desenvolvido um indicador adicional, o Índice de Fragilidade Financeira Regulatório, que pretende atender melhor às necessidades do regulador, dada a disponibilidade de dados. Os Indicadores de Fragilidade Financeira, além de se prestarem ao acompanhamento setorial, podem também ser utilizados como instrumento de análise no sentido de identificar os determinantes macroeconômicos, setoriais e gerenciais envolvidos no processo de fragilização financeira, tanto no nível das empresas e de seus grupos controladores quanto no do setor como um todo. Trata-se de uma linha de pesquisa que deveria vir a ser desenvolvida no futuro. REFERÊNCIAS "financing" takes place through the banking system, which interposes its guarantee between its depositors who lend it money, and its borrowing customers to whom it loans money wherewith to finance the purchase of real assets. (p.151)

O sistema capitalista moderno se baseia, portanto, em uma teia de relações financeiras, ativas e passivas, que fazem múltiplas interfaces entre si. Podem estar sujeitas a diferentes formas e níveis de intermediação, desde a empresa devedora até o detentor final do crédito. Essa maneira complexa de estruturação do capital reforça a importância das expectativas não só na projeção dos fluxos de caixa futuro, mas também nas condições de contratação dos empréstimos e na determinação do valor de mercado dos ativos e passivos de cada empresa. Assim, quando o nível das receitas correntes cai substancialmente abaixo do previsto, torna-se necessário rever os parâmetros dos cálculos que deram origem à captação da empresa com recursos de terceiros, na forma de dívida ou de ações.

Em um mundo como esse, há, de acordo com Minsky, “an irreducible speculative element, for the extent of debt-financing of positions and the instruments used in such financing reflect the willingness of businessmen and bankers to speculate on future cash flows and financial market conditions” (MINSKY, 1986MINSKY, H. P. Stabilizing an unstable economy. New Haven: Yale University Press, 1986., p. 198-199).

Desse ponto de vista não há diferença entre as empresas financeiras e as demais corporações. Ambos são empreendimentos que administram fluxos de caixa e objetivam a maximização de lucro. Além disso, a exemplo do que acontece na economia real, as inovações que acontecem no setor financeiro, criam possibilidades adicionais de lucros para as firmas inovadoras.

Entretanto as inovações financeiras normalmente carregam consigo um aumento da fragilidade financeira. Na prática, aumentam o volume de dívidas que pode ser efetivado a partir de uma mesma base de garantias e de taxa de juros. Quanto mais duradouro for um determinado período de estabilidade, maior é o incentivo para que os diferentes agentes promovam inovações financeiras e os investidores se disponham, por causa da concorrência, a assumir maiores riscos para uma mesma rentabilidade esperada.

Para Minsky, a fragilização se efetiva de forma mais imediata na deterioração das margens de garantia dos financiamentos. O consequente aumento do risco, no entanto, só é percebido em momento posterior à concessão desses empréstimos e muitas vezes de forma abrupta. Um cenário recessivo inesperado pode comprometer a capacidade de as firmas mais endividadas renegociarem seus créditos, algo que antes era visto como de fácil efetivação. Isso acontece porque os bancos retraem rapidamente a concessão de novos créditos e as taxas de juros aumentam. Segundo Keynes (1976KEYNES, J. Ensaios de persuasão: as consequências para os bancos das mudanças nos valores em dinheiro. Ensaios Econômicos, 1976., p. 51),

[...] os bancos, conscientes de que muitos de seus adiantamentos estão de fato “congelados”’4 4 O termo “congelados”, nesse caso, refere-se à iliquidez do crédito, ou seja, à dificuldade que os devedores encontram para pagar suas dívidas e de os bancos conseguirem vender esses créditos rapidamente, sem incorrer em perdas muito elevadas. , envolvendo um risco latente maior do que eles voluntariamente aceitariam, se tornam particularmente ansiosos para que o resto de seus ativos se mantenham tão líquidos e livres de risco o quanto for possível.

A fragilização financeira pode se tornar um problema de natureza macroeconômica quando períodos de estabilidade se prolongam por muito tempo. Nesses casos, há um aumento progressivo do risco implícito no balanço das empresas, que tende a ser minimizado. Em geral os analistas econômicos tentam identificar elementos de mudança estrutural com relação às condições do passado que justificariam solidez das inovações introduzidas e, consequentemente, as novas características dos mercados financeiros. Como apontaram Reinhardt e Rogoff (2008, p. 1): “[m]ajor default episodes are typically spaced some years (or decades) apart, creating an illusion that "this time is different" among policymakers and investors”.

Quanto maior a fragilidade financeira, maior será o impacto que uma flutuação imprevista na demanda efetiva corrente terá sobre o nível de atividade. Isso porque o risco de mercado a que as empresas estão sujeitas será, nesses casos, amplificado pelo maior risco financeiro implícito e não precificado na estrutura dos passivos que foram gerados no período anterior de estabilidade macroeconômica. Isso pode comprometer as margens de garantia das operações financeiras que foram contratadas com base em inovações introduzidas no passado recente. A fragilidade financeira é, assim, um pré-requisito da instabilidade financeira (MINSKY, 1986MINSKY, H. P. Stabilizing an unstable economy. New Haven: Yale University Press, 1986., p. 280).

3 A Taxonomia de Minsky e a TIF

As unidades econômicas, a cada momento, administram um fluxo de caixa composto por receitas5 5 Para fazer frente a suas despesas correntes as empresas contam com recursos de quatro fontes: receitas de sua atividade fim; rendas de contratos, tais como juros e aluguéis; resultados da venda de ativos; e disponibilidade de dinheiro em caixa. e despesas futuras. Dependendo do nível de risco associado à capacidade de essas empresas realizarem os pagamentos de suas obrigações financeiras, Minsky, como vimos anteriormente, propôs segmentá-las em três classes: hedge, especulativa ou Ponzi. Segundo o autor, essa taxonomia é passível de ser aplicada a toda e qualquer unidade econômica, sem distinção:

To analyze how financial commitments affect the economy it is necessary to look at economic units in terms of their cash flows. The cash flow approach looks at all units - be they households, corporations, state and municipal governments, or even national governments - as if they were banks. Traditional banking literature emphasized the need for bankers to be liquid and solvent, and this was to be achieved by banks emphasizing self-liquidating commercial loans. In this way, the cash flows from business sales would lead to payments to banks; these payments would guarantee bank liquidity and solvency. In a similar way ordinary business needs to be liquid and solvent; this means that the payment commitments on debts must lie within bounds given by realized and expected cash flows. (MINSKY, 1986MINSKY, H. P. Stabilizing an unstable economy. New Haven: Yale University Press, 1986., p. 221)

As unidades do tipo hedge6 6 O termo hedge não possui uma tradução adequada na língua portuguesa e se refere, no caso, a uma unidade econômica que apresenta um relativo equilíbrio nas condições de seus ativos e passivos, em termos de unidades de conta, taxas de juros e prazo; na linguagem coloquial financeira brasileira trata-se de uma condição em que ativos e passivos de uma empresa ou de uma operação financeira estão "casados". são aquelas que se estima que serão capazes de pagar, apenas com a disponibilidade gerada pelas receitas correntes esperadas, a integralidade do serviço de sua dívida (juros e principal) ao longo do prazo do empréstimo. Nesse caso, a empresa e seu banqueiro não precisam se preocupar com eventuais mudanças que venham a ocorrer nas condições oferecidas pelos mercados financeiros, tais como nível da taxa de juros, prazo máximo das operações, demanda de garantias etc. Todo o risco associado à liquidação da dívida contratada se concentra na eventual frustração da geração corrente de caixa. Empresas com baixo nível de endividamento - ou seja, que fazem uso predominantemente de capital próprio - são quase sempre hedge.

As unidades especulativas, diferentemente, são aquelas que se sabe de antemão que não gerarão recursos provenientes de sua atividade fim em montante suficiente para conseguir liquidar integralmente seu serviço da dívida, no prazo de vigência dos contratos de empréstimo. Os valores referentes a juros, em princípio, estão razoavelmente cobertos, mas pelo menos parte do principal terá necessariamente que ser refinanciado.

Isso significa dizer que a decisão de realizar esses empréstimos foi tomada, tanto por credores quanto pelo devedor, com base na expectativa de que a unidade especulativa precisará renegociar parcela do principal de suas dívidas ao longo da vida do crédito. Essa empresa apresenta, assim, maior risco que a hedge, uma vez que, além do risco de mercado a que ambas estão sujeitas, está também exposta a um risco adicional, de natureza financeira: poderá vir a ser obrigada a enfrentar uma renegociação de passivos em uma situação adversa nos mercados de dívida.

As unidades do tipo Ponzi se assemelham às especulativas pelo fato de não terem condições de saldar integralmente suas dívidas no horizonte contratado, uma vez que suas receitas correntes também serão inferiores ao serviço da dívida previsto. Entretanto a especificidade do financiamento Ponzi é a magnitude desse desequilíbrio. A diferença esperada é tão grande que nem a parcela de juros conseguirá ser integralmente liquidada. Com isso, já é esperado que o montante da dívida da empresa aumentará, a menos que haja uma venda de ativos, uma emissão primária de ações, ou, nos casos mais extremos, uma renegociação de passivos. O risco financeiro da empresa Ponzi é, portanto, demasiadamente alto e insustentável.

As unidades Ponzi são normalmente associadas a práticas financeiras fraudulentas. Entretanto, como o próprio Minsky (1986MINSKY, H. P. Stabilizing an unstable economy. New Haven: Yale University Press, 1986., p.231) alertou, esse nem sempre é o caso. Diante de uma desaceleração econômica imprevista, todas as empresas são negativamente afetadas pela frustração em suas receitas correntes. Entretanto, as unidades hedge sempre têm o recurso de, em último caso, tornarem-se especulativas. Já as que já eram especulativas poderão ser transformadas involuntariamente em Ponzi. Entretanto as que já eram Ponzi não teriam outra possibilidade senão a de reestruturarem seus passivos. Seu acesso aos mercados voluntários de crédito simplesmente deixará de existir definitivamente. A permanência de empresas em situação Ponzi deveria, portanto, ser de curta duração7 7 Existem ainda empresas que atenderiam aos critérios de Ponzi porque são projetos de longo prazo de implantação, masque ainda estão em situação pré-operacional e que, portanto, não geram receitas. Esses casos, no entanto, não são objeto de preocupação do ponto da TIF. .

Uma reestruturação, que promova a redução dos valores e dos custos e o aumento dos prazos das dívidas, é um passo normal para que as unidades econômicas consigam recuperar a robustez financeira de seus balanços. Só assim uma unidade Ponzi pode voltar a ser especulativa e, eventualmente, uma já em situação especulativa conseguir passar a ser uma hedge. Segundo Vercelli (2009VERCELLI, A. A Perspective on Minsky moments: the core of the financial instability hypothesis in light of the subprime crisis. The Levy Economics Institute of Bard College. Working Papern. 579. Oct. 2009. Disponível em: <www.levyinstitute.org/pubs/wp_579.pdf>. Acesso em: 18 out. 2018.
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, p. 7):

(...) a virtually insolvent unit (...) does not need to bankrupt, as it may be rescued by a private or public bail-out, or it may get out of trouble through a prompt adoption of extraordinary measures, such as the sell-out of illiquid and strategic assets to realize a radical downsizing or redirection of activity. (...), in any case, even the bankruptcy (in legal sense) of a unit does not fully discontinue its economic and financial consequences.

A instabilidade financeira está, assim, diretamente relacionada à estrutura de risco associada aos balanços das empresas e, consequentemente, aos de seus bancos. Quanto maior for a relevância das unidades especulativas e, principalmente, das Ponzi, mais exposta a economia estará sujeita a crises. Como afirma Minsky (1986MINSKY, H. P. Stabilizing an unstable economy. New Haven: Yale University Press, 1986., p. 232):

The mixture of hedge, speculative, and Ponzi finance in an economy is a major determinant of its stability. The existence of a large component of positions financed in a speculative or a Ponzi manner is necessary for financial instability.

Esse autor buscou em várias oportunidades8 8 Ver Minsky (1975; 1980; 1982; 1986). formalizar algebricamente as condições que deveriam ser obedecidas pelas unidades econômicas em cada uma de suas classes de risco. Essa preocupação foi posteriormente retomada por Vercelli (2009VERCELLI, A. A Perspective on Minsky moments: the core of the financial instability hypothesis in light of the subprime crisis. The Levy Economics Institute of Bard College. Working Papern. 579. Oct. 2009. Disponível em: <www.levyinstitute.org/pubs/wp_579.pdf>. Acesso em: 18 out. 2018.
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), Tymoigne (2010TYMOIGNE, É. Detecting Ponzi finance: an evolutionary approach to the measure of financial fragility. The Levy Economics Institute of Bard College. Working Paper n. 605, 2010. Disponível em: <http://www.levyinstitute.org/publications/detecting-ponzi-finance>. Acesso em: 18 out. 2018.
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; 2014), Mulligan (2013), Nishi (2016NISHI, H. An empirical contribution to Minsky’s financial fragility: Evidence from non-financial sectors in Japan. Discussion Papern. E-16-007. Graduate School of Economics Kyoto University, 2016. Disponível em: <www.econ.kyoto-u.ac.jp/dp/papers/e-16-007.pdf>. Acesso em: 18 out. 2018.
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) e Davis et al. (2017DAVIS L.; DE SOUZA, J.; HERNANDEZ, G. An empirical analysis of Minsky regimes in the US economy. Working Paper 2017-08, University of Massachusetts Amherst, 2017. Disponível em: <http://scholarworks.umass.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1225&context=econ_workingpaper>. Acesso em: 18 out. 2018.
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).

Vercelli (2009VERCELLI, A. A Perspective on Minsky moments: the core of the financial instability hypothesis in light of the subprime crisis. The Levy Economics Institute of Bard College. Working Papern. 579. Oct. 2009. Disponível em: <www.levyinstitute.org/pubs/wp_579.pdf>. Acesso em: 18 out. 2018.
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) retrabalhou as equações desenvolvidas pelo próprio Minsky com o intuito de torná-las mais aderentes à realidade financeira decorrente da crise do subprime nos Estados Unidos. Tymoigne (2010TYMOIGNE, É. Detecting Ponzi finance: an evolutionary approach to the measure of financial fragility. The Levy Economics Institute of Bard College. Working Paper n. 605, 2010. Disponível em: <http://www.levyinstitute.org/publications/detecting-ponzi-finance>. Acesso em: 18 out. 2018.
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) desenvolveu uma metodologia para identificar a presença de unidades Ponzi e a aplicou ao setor imobiliário americano pré-2008, posteriormente atualizando seu trabalho de modo a abarcar também as experiências dos setores imobiliários francês e britânico (TYMOIGNE, 2014TYMOIGNE, É. Measuring macroprudential risk through financial fragility: a Minskian approach.Journal of Post Keynesian Economics 36 (4), p. 719-744, 2014.). Mulligan (2013) classificou 8.707 empresas norte-americanas de capital aberto entre 2002 e 2009 segundo a taxonomia minskyana. Para tanto utilizou um índice de cobertura de juros.9 9 O índice de cobertura de juros (ICJ) é composto pela renda líquida mais os gastos com juros no numerador e pelo gasto com jurosno denominador: ICJ = Renda Líquida + Gastos com Juros/Gastos com Juros (MULLIGAN, 2013, p. 452). A partir desse indicador, considerou como hedge as empresas que apresentaram valores negativos e classificou como Ponzi aquelas cujo indicador foi igual ou superior a quatro.10 10 Esse valor (quatro) foi determinado de forma arbitrária pelo autor (NISHI, 2016, p. 7). As empresas restantes foram classificadas como especulativas.

Nishi (2016NISHI, H. An empirical contribution to Minsky’s financial fragility: Evidence from non-financial sectors in Japan. Discussion Papern. E-16-007. Graduate School of Economics Kyoto University, 2016. Disponível em: <www.econ.kyoto-u.ac.jp/dp/papers/e-16-007.pdf>. Acesso em: 18 out. 2018.
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) aplicou as equações propostas por Minsky à economia japonesa entre os anos 1975MINSKY, H. P. The financial instability hypothesis and recent business cycle experience. Hyman P. Minsky Archive. Paper 190. 1975. Disponível em: <http://digitalcommons.bard.edu/hm_archive/190>. Acesso em: 18 out. 2018.
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e 2014. Sua preocupação era analisar o perfil de risco das empresas nipônicas por tamanho e pelos setores manufatureiro e não manufatureiro. O resultado do estudo é relativamente inconclusivo, a despeito de revelar que o financiamento especulativo é dominante na maior parte dos setores. Rollim et al. (2016) analisam a evolução da fragilidade financeira das empresas brasileiras não financeiras de capital aberto entre 2010 e 2014.11 11 Os autores têm como referência a metodologia empregada por Bacic (1990) para analisar os segmentos das maiores empresas brasileiras na década de 1980. Os autores concluem que houve uma deterioração no perfil financeiro das empresas.

Davis et al. (2017DAVIS L.; DE SOUZA, J.; HERNANDEZ, G. An empirical analysis of Minsky regimes in the US economy. Working Paper 2017-08, University of Massachusetts Amherst, 2017. Disponível em: <http://scholarworks.umass.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1225&context=econ_workingpaper>. Acesso em: 18 out. 2018.
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) fazem um estudo de inspiração semelhante à de Nishi (2016NISHI, H. An empirical contribution to Minsky’s financial fragility: Evidence from non-financial sectors in Japan. Discussion Papern. E-16-007. Graduate School of Economics Kyoto University, 2016. Disponível em: <www.econ.kyoto-u.ac.jp/dp/papers/e-16-007.pdf>. Acesso em: 18 out. 2018.
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) para as empresas nãofinanceiras nos Estados Unidos entre 1970 e 2014. Identificam um forte aumento no número de empresas Ponzi ao longo do período, principalmente entre as de pequeno porte. Pedrosa (2017PEDROSA, I. Firms’ leverage ratio and the Financial Instability Hypothesis (FIH): an empirical investigation for the United States economy (1970-2014). Mimeo, 2017.) trata da mesma temática, porém enfoca a relação entre alavancagem e fragilidade financeira no nível da firma. Seu trabalho empírico utiliza a mesma base de dados de Davis et al. (2017), cobrindo o mesmo período e empresas com as mesmas características.

De acordo a formulação de Vercelli, a taxonomia minskyana se baseia em dois índices, um de liquidez corrente e outro de solvência esperada. O índice de liquidez corrente da unidade i no tempo t, mit, é determinado pela diferença entre as entradas correntes, yit, e as saídas correntes da unidade i no tempo, eit:

m i t = y i t e i t (1)

O índice de solvência da unidade i no tempo t é função das entradas líquidas esperadas mit* que podem ser obtidas a partir da seguinte fórmula:

m i t * = s = 0 n E [ m i t + s ] ( 1 + r ) s , (2)

Em (2), n é o horizonte de tempo da tomada de decisão estratégica da unidade; r é a taxa nominal de juros; e E designa as expectativas do operador.

Uma unidade hedge teria que, simultaneamente, satisfazer às seguintes condições:

m i t > 0, t = 0, e E m i t > 0, 1 t n .

Com isso, suas receitas líquidas presentes e esperadas têm que ser positivas para cada período compreendido no horizonte da decisão financeira. Todo o endividamento da empresa deverá ser liquidado sem que seja necessário se recorrer a refinanciamentos. Não há necessidade de se tomar recursos de terceiros em nenhum momento.

Se uma empresa é especulativa, as condições são:

m i t < 0 t = 0 E ( m i t ) < 0 , t < s < n , s é p e q u e n o ;

E ( m i t ) > J t < s < n , s é p e q u e n o ; e

E ( m i t ) > 0, s t n .

Nas condições acima, s representa um intervalo de tempo inicial e curto e J é a soma das parcelas de juros devidas no período.

Uma unidade especulativa, por definição, não terá condições de atender plenamente ao serviço de sua dívida no prazo contratado.12 12 O serviço da dívida inclui tanto as despesas com juros quanto com amortização. Isso se reflete na primeira das equações acima. Esse descasamento, no entanto, está, de acordo com as expectativas dos devedores e credores, concentrado no curto prazo (segunda equação). Entretanto os cálculos indicam que suas receitas líquidas serão maiores que as parcelas de juros devidas (J), conforme explicitado na terceira equação. Contudo as amortizações não serão integralmente liquidadas. Assim, nesse intervalo mais curto não se espera que o saldo da dívida da empresa cresça, já que os juros serão integralmente saldados. Entretanto, a partir do momento do refinanciamento já esperado do principal (s) até o final do prazo do contrato de dívida (n),a empresa voltará a ser hedge. Conseguirá, assim, pagar todo o seu serviço da dívida com suas receitas líquidas correntes.

Se uma empresa é Ponzi13 13 Essa apresentação formal das condições da empresa Ponzi difere da apresentada por Vercelli por não explicitar, por motivos de simplificação, a existência de um elemento positivo ao final do contrato de empréstimo. , as condições são:

m i t < 0 t = 0

E ( m i t ) < 0 1 t n , e

E ( m i t ) < J 1 t n

A empresa Ponzi terá receitas líquidas negativas ao longo de todo o horizonte da dívida, como mostram a primeira e a segunda equação anteriores. Nesse intervalo não terá capacidade de saldar as despesas referentes ao principal nem a integralidade dos juros (terceira equação). Terá que tomar novos empréstimos continuamente e, em consequência, sua dívida aumentará em termos absolutos, assim como relativamente à sua estrutura de capital.

Em sua metodologia, Minsky introduziu ainda um elemento adicional que, na prática, é igualmente relevante para a tomada de decisões de financiamento: a existência de margens de segurança. Ele aponta que são usados três desses mecanismos pelos estruturadores de operações de crédito. O primeiro é aplicado sobre o cálculo das receitas esperadas de forma a eliminar o risco de sua variação no tempo. Essa margem tende a reduzir o valor do fluxo esperado frente às despesas correntes de modo a amortecer qualquer flutuação negativa nas vendas ou nas receitas provenientes de rendas. A segunda margem está associada à relação entre o valor de mercado dos ativos das empresas e seus passivos. Trata-se de um coeficiente positivo aplicado às obrigações da empresa. A terceira margem está relacionada com o volume de ativos líquidos - dinheiro e títulos negociáveis - que a empresa deverá manter como uma reserva, independentemente de suas necessidades operacionais.

Esses elementos não foram levados em conta na formalização anterior da taxonomia minskyana tendo em vista a preocupação com a simplicidade da exposição e a pouca relevância desses elementos para a análise empírica que será feita nas seções seguintes.

4 Os indicadores de fragilidade financeira e sua aplicação às distribuidoras do setor elétrico brasileiro

A teoria minskyana propõe o uso de uma taxonomia que pode ser aplicada a empresas isoladamente, àquelas integrantes de um setor específico ou mesmo ao conjunto das firmas de uma economia. Nesse contexto, o objetivo deste trabalho é avaliar a evolução da fragilidade financeira das empresas distribuidoras do setor elétrico brasileiro entre 2007 e 2015.

Para tanto foi gerada uma base de dados financeiros a partir das informações disponíveis ao público que as empresas de distribuição são obrigadas a informar continuamente à ANEEL. Esses dados seguem uma contabilidade específica que tem finalidades exclusivamente regulatórias. As empresas foram então divididas em cada ano pelas três classes de risco propostas por Minsky- hedge, especulativa e Ponzi.

Para permitir a avaliação das condições de liquidez corrente, seguindo a metodologia minskyana, adaptou-se o indicador de liquidez corrente proposto por Vercelli (2009VERCELLI, A. A Perspective on Minsky moments: the core of the financial instability hypothesis in light of the subprime crisis. The Levy Economics Institute of Bard College. Working Papern. 579. Oct. 2009. Disponível em: <www.levyinstitute.org/pubs/wp_579.pdf>. Acesso em: 18 out. 2018.
www.levyinstitute.org/pubs/wp_579.pdf...
) à contabilidade empresarial brasileira. A equação (1) do referido autor foi substituída pela própria definição tradicional de EBITDA14 14 Ebitda, do inglês, earnings before interest, taxes, depreciation and amortization. Ver Welch (2009). , que mede o fluxo de caixa operacional da empresa.

E b i t d a = R e c e i t a L í q u i d a 15 + D e p r e c i a ç ã o + A m o r t i z a ç õ e s D e s p e s a s O p e r a c i o n a i s 16 (3)

Na equação (3), o EBITDA está sendo apresentado a partir da ótica da sua originação. Entretanto, uma forma alternativa de se apresentar o EBITDA seria identificando o uso que a empresa pode fazer desses recursos, ou seja: pagar impostos sobre seus recebimentos, saldar o serviço de sua dívida, gerar lucro ou investir.

E B I T D A = L u c r o s ( P ) + S e r v i ç o d a D í v i d a ( S D ) + I n v e s t i m e n t o c o m r e c u r s o s p r ó p r i o s ( I r p ) + I m p o s t o d e R e n d a ( T ) (4)

A partir da Equação 4, a condição para uma empresa ser hedge é ter uma receita líquida positiva maior ou iguala suas despesas com juros e amortização (EBITDA ≥ SD). Tomando-se o limite máximo dessa condição, isto é, EBITDA = SD, tem-se que:

S D = E B I T D A o u S D / E B I T D A = 1 (5)

Nessa situação, essa empresa não gera lucro e, portanto, não terá que pagar imposto de renda nem poderá financiar com recursos correntes despesas com investimento (CAPEX). Qualquer gasto com essa última finalidade terá que ser financiado por meio da captação de recursos de terceiros, na forma de dívida ou de ações.

Quanto mais próxima de zero estivera razão descrita na equação (5), menor o comprometimento dos fluxos de caixa gerados pela firma com o pagamento de despesas estritamente financeiras. A empresa poderá acumular lucros, pagar o imposto de renda ou financiar, ao menos, uma parcela do CAPEX com recursos gerados internamente. Já se o valor dessa razão for superior a 1, significa que a empresa não é nem mesmo capaz de cobrir suas despesas com o serviço da dívida, necessitando ir a mercado para atender a suas obrigações.

Desse modo, a razão indicada na equação (5) pode ser utilizada para classificar as empresas de acordo com a taxonomia sugerida por Minsky. Para permitir a utilização desse indicador no setor elétrico brasileiro, o conceito de serviço da dívida passou a ser composto por dois itens da contabilidade empresarial:

S D = D F + D C P (6)

Em (6), DF (Despesa Financeira) =Despesa Corrente de Juros; e DCP (Dívida de Curto Prazo) = Previsão de Despesas com Amortização para os próximos 12 meses.

O indicador construído levando em consideração as equações (5) e (6) será denominado Índice de Fragilidade Financeira (IFF):

I F F = ( D F + D C P ) / E B I T D A (7)

Assim, uma unidade será considerada hedge sempre que seu IFF for igual ou inferior a 1, ou seja:IFF≤1.

Se o IFF for superior a 1, há duas possibilidades de classificação da empresa. Seria uma unidade especulativa se as despesas com juros (DF) fossem inferiores à receita líquida corrente (EBITDA), ou seja: IFF>1 e DF<EBITDA.

Alternativamente, uma unidade seria Ponzi quando, à semelhança das especulativas, apresentar IFF superior à unidade, mas, ao mesmo tempo, suas despesas com amortização (DCP) serem superiores à receita líquida corrente. Além disso, foram também consideradas Ponzi as empresas que apresentaram EBITDA negativo, mesmo que não tivessem despesas com amortização. Assim, as empresas Ponzi obedecem a pelo menos uma das seguintes condições:

Condição 1: EBITDA<0 ou

Condição 2: IFF>1 e

DF>EBITDA

Essa classificação reflete uma preocupação em avaliar as empresas sob uma ótica estritamente financeira, ou seja, reúne de uma forma hierarquizada as informações concernentes à capacidade de a firma poder pagar suas dívidas com recursos gerados pela sua operação corrente17 17 Note-se que nessa metodologia optou-se por não incluir nenhuma margem de segurança. .

Entretanto a visão do regulador não deveria se restringir apenas à preocupação com a exposição das empresas reguladas ao risco financeiro. A liquidez corrente das concessionárias é, sem dúvida, um dos itens que esse órgão de governo deve analisar. Entretanto, sua supervisão inclui também a preocupação com os possíveis impactos que a maior fragilidade de empresas reguladas possa ter sobre a qualidade dos serviços prestados à população. O aumento da fragilidade financeira pode comprometer a capacidade de as concessionárias financiarem seu investimento corrente e consequentemente a qualidade dos serviços prestados, muito antes de a empresa vir a ser obrigada a reestruturar seus passivos.

Por esse motivo se elaborou um segundo indicador de fragilidade financeira que leva em conta essa preocupação de natureza regulatória. Trata-se do Índice de Fragilidade Financeira do Regulador ou IFFR. A diferença do IFFR com relação ao IFF está na presença de uma “margem de segurança”, como recomendado por Minsky, que atende, nesse caso, às necessidades de supervisão do regulador setorial.

O intuito original era incorporar o investimento corrente e o pagamento de dividendos ao indicador original. Entretanto, dificuldades na obtenção de dados levaram à opção por se utilizar, em substituição, a Depreciação Contábil. Esse valor é uma aproximação do investimento mínimo que a empresa deveria fazer para manter a qualidade da sua base de ativos e, consequentemente, dos seus serviços. Assim, o IFFR difere do IFF pela presença da Depreciação Contábil (DC) como um item adicional do numerador, ou seja:

I F F R = ( D F + D C P + D C ) / E B I T D A

Com base no IFFR redefinimos a denominação das três classes de risco originalmente propostas por Minsky de modo a melhor refletir a perspectiva precaucional intrínseca ao trabalho de supervisão do órgão regulador. Assim, as empresas em melhor situação, que apresentaram IFFR igual ou inferior a 1, foram denominadas robustas por não apresentarem risco relevante imediato para o regulador:

I F F R 1

Uma empresa que apresente um IFFR = 1 tem condições para atender com recursos de geração interna às suas obrigações financeiras e, ao mesmo tempo, sustentar um nível de investimento que mantenha sua base de capital sem onerar seu endividamento. Quanto menor o IFFR, maior seria a geração de recursos internos à empresa para financiar por conta própria suas necessidades de investimento líquido, de pagamento de imposto de renda e de distribuição de resultados.

A segunda classe de empresas é formada por unidades que estão expostas a um risco financeiro superior ao das robustas, mas gerenciável. Por esse motivo, precisarão recorrer a um alongamento de suas dívidas em algum momento no futuro próximo para manter em dia o serviço de sua dívida e o financiamento de seu programa mínimo de investimento. O risco de deterioração da qualidade dos serviços existe, mas ainda é baixo. Nesse caso, o IFFR é superior a 1, mas o pagamento dos juros somado ao valor da depreciação contábil é inferior ao EBITDA, ou seja: IFFR>1e DF + DC<EBITDA.

As empresas restantes, as fragilizadas, estão incluídas na pior classificação do risco do ponto de vista regulatório. Nesse caso, além de o IFFR ser superior a 1, o pagamento de juros, somado ao valor da depreciação contábil, é superior ao EBITDA. Do mesmo modo, foram consideradas fragilizadas as firmas que apresentaram EBITDA negativo, independentemente de qualquer outro critério. Assim as empresas fragilizadas obedecem pelo menos a uma das seguintes condições:

Condição 1: EBITDA<0 ou

Condição 2: IFFR>1

DF + DC>EBITDA

Os resultados obtidos com a aplicação do Índice de Fragilidade Financeira e do Índice de Fragilidade Financeira Regulatória permitem que seja feita também uma avaliação quantitativa da fragilidade financeira do setor como um todo. Para tanto foram utilizados os Índices de Fragilidade Financeira Setorial (IFFS) e de Fragilidade Financeira Setorial Regulatório (IFFSR). Esses dois indicadores estão contidos em uma escala que varia de um mínimo de zero a um máximo de 100. O nível zero indica que todas as empresas do setor são hedge ou robustas, conforme os dados utilizados. O valor máximo indica que todas as empresas atingiram os níveis mais elevados de risco, ou seja, são Ponzi ou fragilizadas. O nível 50 indica que a mistura de empresas revela, em média, um quadro especulativo ou exposto ao risco.

Esses resultados foram obtidos de duas formas. A primeira, a simples, fez uso da frequência de empresas em cada classe de risco a cada ano. A segunda, a ponderada, levou em conta cada evento multiplicado pelo valor da depreciação da empresa naquele ano, de modo a refletir o tamanho relativo de cada um deles. Os diferenciais de tamanho entre as empresas do setor de distribuição brasileiro, qualquer que seja o ponto de vista adotado (número de clientes, base de ativos, faturamento), é muito grande. As 10 maiores empresas respondiam por mais de 60% de todas as despesas regulatórias em 2015.

O cálculo do IFFS ponderado pela depreciação regulatória obedeceu à seguinte equação:

I F F S t P o n d e r a o = ( 0 × i = 1 j D C i t H e d g e + 0.5 × i = j + 1 k D C i t E s p e c u l a t i v o + 1.0 × i = k + 1 n D C i t P o n z i ) i = 1 n D C i x t × 100

Os índices simples e ponderado referentes ao IFFR seguiram a mesma racionalidade usando os dados obtidos a partir desse último indicador, em lugar do IFFS.

5 A Evolução do IFF e do IFFR das distribuidoras de energia entre 2007 e 2015

5.1 Evolução do IFF

A Tabela 1 apresenta os resultados da aplicação do Índice de Fragilidade Financeira para as distribuidoras brasileiras do setor elétrico entre 2007 e 2015. O número de empresas da amostra variou a cada ano entre 62 e 64.18 18 A variação no número de empresas na amostra se deve a fusões de empresas ou à incompletude de dados, que, no entanto, não comprometeram os resultados da amostra uma vez que ocorreram em anos isolados em empresas de muito pequeno porte. Os resultados revelam que, em 2007, as empresas distribuidoras se encontravam em situação financeira muito favorável. O quadro geral era caracterizado por um nível muito baixo de fragilidade financeira. Existiam 48 empresas, ou 75% do total, em situação hedge. As restantes dividiam-se de maneira quase equitativa entre as duas outras classes de risco. Em 2015, o universo das firmas hedge atingiu o valor mínimo de 25 ou 40% do total.

Tabela 1
Empresas Distribuidoras por Classe de Risco de acordo com o IFF

Em compensação, o número de distribuidoras em situação especulativa aumentou quase quatro vezes. Em 2007, eram apenas sete, perfazendo pouco mais de 10% do total. Em 2015 eram 27, ou seja, 44% do universo. Houve uma redução praticamente contínua no número de empresas hedge ao mesmo tempo em que aumentava a quantidade das especulativas. Isto, por si só, é um sinal de que, do ponto de vista global, houve um aumento gradual da fragilização financeira do setor de distribuição de energia elétrica.

O número das empresas Ponzi se manteve relativamente estável entre o início e o fim do período. Passaram de nove para dez. Entretanto, entre 2008 e 2013, houve um aumento das empresas classificadas nessa classe de risco. Essa variação revela que a sobrevida dessas novas empresas Ponzi nessa classe de risco foi limitada no tempo, como previsto por Minsky.

O surpreendente, do ponto de vista minskyano, nos dados da Tabela 1, é a presença de um número expressivo de empresas, algumas de maior porte, na categoria Ponzi por um período relativamente longo; nove anos. Como se pode ver na Tabela 2, isso é explicado pelo fato de serem todas elas controladas pelo poder público. As sete mais importantes pertencem ao Governo Federal, sendo controladas pela sua holding setorial, a Eletrobras.19 19 As empresas distribuidoras controladas pela Eletrobras eram: CEAL, CELG, CEPISA, CEA, CERON, Eletroacre e Amazonas. Entre as restantes, existem algumas municipais de menor porte e algumas estaduais como, a Central Elétrica de Brasília, a CEEE, a CELG e a CELESC.

Tabela 2
Empresas Ponzi por Tipo de Controlador

Durante todo o período analisado, as distribuidoras privadas representaram uma parcela menor da categoria Ponzi. A maior frequência delas se verificou em 2013 como resultado da reestruturação das distribuidoras do Grupo Rede, que, no entanto, deixaram de integrar essa classe de risco após a extinção desse grupo. A AES-Sul, também privada, ingressou no rol das empresas Ponzi em 2015, mas foi adquirida por outro grupo no ano seguinte. O restante se refere a empresas de menor porte.

O subsídio público recorrente explica a permanência das empresas públicas na categoria Ponzi por um longo período. Na prática, são os sucessivos aportes de capital o que as mantém em operação. Caso contrário, a exemplo das empresas do extinto Grupo Rede, teriam sido obrigadas a sofrer algum tipo de reestruturação logo depois de ingressarem nessa classe de risco por absoluta falta de financiamento de mercado.

5.2 A Evolução do Indicador de Fragilidade Financeira para o Regulatório (IFFR)

A aplicação do Índice de Fragilidade Financeira para o Regulador à mesma amostra mostra uma fragilização ainda maior do setor diante da situação retratada na Tabela 1. Isso já era esperado, uma vez que o IFFR é mais conservador que o IFF por incluir a Depreciação Contábil. Entretanto o quadro evolutivo é muito semelhante.

Como se pode observar na Tabela 3, ao longo do período o número de empresas que estavam na melhor classificação - robusta - reduziu de 39, em 2007, para 15, em 2015. Sua participação na amostra ao longo desse intervalo passou de 61% para 24%. Há dois momentos principais nessa trajetória de redução das empresas classificadas como robustas. Primeiro há uma redução associada à crise financeira internacional de 2008-2009: a participação das empresas robustas no total cai 19 pontos percentuais entre 2008 e 2009. Segundo, inaugura-se uma trajetória de maior fragilização após 2012, acentuada, em particular, no ano de 2015, quando o indicador de participação percentual alcança seu menor nível ao longo da série.

Tabela 3
Número de Empresas Distribuidoras por Classe de Risco de acordo com IFFR

Por outro lado, as firmas classificadas como expostas aumentaram de 10 para 30 entre 2007 e 2015, o que representa uma elevação de 16% para 48% na participação sobre o total. No caso das empresas classificadas na pior classe de risco - as fragilizadas -, a exemplo do que se observou na Tabela 1, não houve aumento significativo entre o primeiro e o último ano coberto pela pesquisa: em 2007 eram 15 empresas e 2015 eram 17 - ou, respectivamente, 23% e 28% do total. Nesse intervalo variaram entre um mínimo de 13 e um máximo de 20 firmas.

O maior número absoluto de empresas em pior situação de risco financeiro é digno de nota. Devido à inclusão de um colchão de segurança adicional, de modo a garantir um investimento mínimo das firmas no setor, algumas das empresas que já eram Ponzi na Tabela 1 aparecem como fragilizadas em um número maior de anos. Mais empresas do Grupo Rede foram classificadas como fragilizadas e há também a presença de mais empresas sob o controle de governos estaduais como fragilizadas, particularmente em 2015. Além das distribuidoras estaduais já citadas, agregam-se ao grupo a CEMIG, a LIGHT e a COPEL.

Em especial, alguns fatores colaboraram para que, em 2015, um número maior de distribuidoras tivesse em pior situação financeira. A forte desvalorização cambial ocorrida no ano teve um grande impacto nas distribuidoras mais dependentes da energia fornecida pela Usina de Itaipu, cujos contratos são dolarizados. O aumento do valor da moeda americana também impactou negativamente as dívidas contraídas em moeda estrangeira. Além disso, houve também aumentos de custos referentes ao uso mais intensivo de usinas térmicas nesse período. Esses dois últimos fatores impactaram imediatamente nos custos correntes de algumas concessionárias, que, no entanto, tiveram que aguardar por uma compensação apenas no momento do reajuste anual de suas tarifas. Nesse intervalo tiveram que se descapitalizar para financiar esse aumento de custos em um momento em que as taxas de juros de mercado eram ascendentes.

5.3 O Índice Fragilidade Financeira Setorial (IFFS) e o de Fragilidade Financeira Setorial Regulatório (IFFSR)

O Gráfico 1 apresenta a evolução do IFFS, em suas duas versões, simples e ponderado, referente aos dados obtidos a partir do Índice de Fragilidade Financeira (IFF). Como era de se esperar, houve um aumento sustentado do indicador ao longo do período. O índice simples mostrou um aumento de 20 para 38 e o ponderado de oito para 29. A despeito de o indicador setorial praticamente ter dobrado de valor entre 2007 e 2015, os níveis absolutos de fragilidade setorial apurados ao final do período não chegam a ser preocupantes.

Gráfico 1
Evolução do Índice de Fragilidade Financeira Setorial (IFFS)

Houve uma evolução na direção de uma condição mais especulativa, mas que sempre permaneceu abaixo do nível 50. Isso significa dizer que predominou uma mistura entre comportamentos hedge e especulativos. A ponderação pelos valores da depreciação mostra que foram as empresas de menor porte as que mais responderam pela fragilização do setor. Entretanto, a partir de 2013, a diferença se estreitou entre os indicadores simples e ponderado em boa medida por causa do aumento da fragilização de duas distribuidoras de maior porte do sistema, CEMIG e Light, ambas controladas pelo mesmo grupo econômico estatal, o governo do Estado de Minas Gerais.

O Gráfico 2 apresenta a evolução do Índice de Fragilidade Financeira Setorial para o Regulador (IFFSR), igualmente nas formas simples e ponderada. A situação retratada é em linhas gerais a mesma que se observa no Gráfico 1. Observa-se um processo sustentado de fragilização.

Gráfico 2
Evolução do Índice de Fragilidade Financeira Regulatória Setorial (IFFRS)

Entretanto há duas diferenças importantes. A primeira é que o nível de fragilização financeira apurado revela uma situação mais aguda, pelo fato de a depreciação contábil ter sido levada em conta. Entre 2007 e 2015, o índice simples passou de 31 para 52, mostrando que a mistura entre os três níveis de fragilidade financeira já atingiu o nível setorial de exposição ao risco. O indicador ponderado, apesar de inferior em quase todos os anos, mostra uma diferença cada vez menor diante do simples e chega a apresentar uma margem pequena em 2014 e 2015. Assim, quando se leva em conta a Depreciação Contábil, já não se pode mais afirmar que as empresas de menor porte são as principais responsáveis pela maior fragilidade e pela crescente fragilidade do setor.

6 Considerações Finais

A teoria da instabilidade financeira minskyana (TIF) tem o mérito de permitir explicar por que as economias capitalistas sofrem crises financeiras profundas de forma recorrente na história. Por esse motivo, os economistas que trabalham com essa perspectiva normalmente se voltam para aplicá-la com um foco estritamente macroeconômico.

A TIF se baseia na existência de comportamento recorrente das unidades econômicas de aceitarem correr cada vez mais risco na medida em que períodos de estabilidade se prolongam. Para lidar com essa "microeconomia", Minsky propõe que as empresas sejam classificadas em três tipos - hedge, especulativa ou Ponzi - conforme o nível de risco que carregam em seu balanço.

Essa metodologia foi muito pouco aplicada a estudos setoriais, em boa medida porque a perspectiva minskyana se concentrou na visão macro do sistema econômico. Os estudos aplicados se restringiram a analisar o setor financeiro, pela sua importância sistêmica, ou aos vários setores produtivos de forma simultânea, para identificar o impacto macro da fragilização financeira de todas as unidades econômicas.

Este trabalho analisou a evolução da fragilidade financeira do setor de distribuição de energia elétrica no Brasil entre 2007 e 2015 a partir da metodologia proposta por Minsky. Como se trata de um setor regulado pelo governo, o risco de mercado dessas empresas é substantivamente menor que o das firmas que operam em segmentos em que a demanda não é cativa. Além disso, os contratos de concessão oferecem a esses prestadores de serviço a possibilidade de renegociação em casos de desequilíbrio econômico-financeiro.

Apesar de o setor não enfrentar um risco elevado de mercado, a distribuição de energia elétrica tornou-se um objeto interessante de análise de risco financeiro pelo fato de um de seus grandes grupos ter sofrido um colapso financeiro não previsto pelo regulador. Essa surpresa criou uma demanda por indicadores financeiros antecedentes que pudessem municiar a atuação da ANEEL no futuro. Nas avaliações das empresas e do setor foram utilizados dois tipos de indicadores. O primeiro seguiu a visão estritamente financeira proposta por Minsky, o Índice de Fragilidade Financeira. O segundo procurou ter uma aderência maior aos objetivos da atividade de acompanhamento do regulador, o Índice de Fragilidade Financeira do Regulador.

Os indicadores de fragilidade financeira das empresas e os do regulador mostraram aderência à realidade. Captaram a crescente fragilização financeira no setor de distribuição de energia, principalmente a partir de 2012, quando, entre outros fatores, houve uma mudança desfavorável no regime hidrológico acompanhada por alterações regulatórias e por uma forte desvalorização cambial. Dessa forma, os resultados obtidos com a aplicação desses indicadores estão de acordo com os eventos que tiveram impacto sobre o desempenho econômico das empresas do setor elétrico brasileiro.

Os resultados mostram que, ao longo desse período, houve um aumento relevante da fragilidade financeira, tanto entre as distribuidoras de menor quanto entre as de maior porte. Essa degradação foi crescente no tempo, na medida em que o número de empresas não expostas ao risco financeiro - as empresas hedge ou robustas - foi reduzindo em favor das que apresentam algum risco financeiro, mas em condições administráveis - as chamadas especulativas ou expostas.

O número de empresas em situação crítica - as Ponzi ou fragilizadas - não se alterou entre o início e o final do período, apesar de ter se mantido em um nível elevado. A permanência de empresas nessa classe de risco por muito tempo é uma característica incomum. De acordo com a literatura, as firmas não deveriam permanecer em situação crítica por muito tempo; apenas pelo prazo suficiente para que se processem novos aportes de capital, fusões, aquisições ou falências. Entretanto, no caso brasileiro, isso não ocorreu pelo fato de essas distribuidoras serem controladas pelo poder público. Entretanto, as empresas privadas que se tornaram Ponzi ou fragilizadas tiveram o comportamento previsto pela teoria minskyana.

A aplicação da metodologia minskyana aos dados das empresas de distribuição do setor elétrico brasileiro entre 2007 e 2015 mostrou que a TIF pode ser instrumento poderoso de diagnóstico da evolução da situação financeira das empresas de um setor específico. Foi possível classificar um conjunto heterogêneo de empresas em classes de risco e com isso evidenciar que o uso desse instrumento teria auxiliado as atividades de acompanhamento da ANEEL naquele período. O risco financeiro das empresas do setor seria hierarquizado, de forma a orientar adequadamente o trabalho da agência.

A fragilidade financeira não é um instrumento de previsibilidade de situações de disrupção corporativa, tais como as recuperações judiciais ou as falências. Seu papel não está em prever tais situações, mas sim em possibilitar sua prevenção na medida em que identifica fragilidades fundamentais nos balanços das empresas. Ao mesmo tempo, a fragilidade financeira se diferencia de vários dos instrumentos de avaliação de empresas pela sua simplicidade e transparência.

O Índice de Fragilidade Financeira proposto por Minsky carrega em seu bojo a preocupação de analista de risco do mercado financeiro ou das agências reguladoras setoriais. Apesar de o Índice de Fragilidade Financeira ter se mostrado aderente evolução das condições financeiras do setor da distribuição de energia elétrica, a realidade regulatória recomendou o uso de um indicador ainda mais conservador, fazendo uso do conceito de “margens de segurança” desenvolvido pelo próprio Minsky. Como as distribuidoras estão menos expostas aos riscos de mercado que as empresas tradicionais, o regulador setorial deveria fazer uso de indicadores mais robustos que os usuais. Nesse sentido foi desenvolvido um indicador adicional, o Índice de Fragilidade Financeira Regulatório, que pretende atender melhor às necessidades do regulador, dada a disponibilidade de dados.

Os Indicadores de Fragilidade Financeira, além de se prestarem ao acompanhamento setorial, podem também ser utilizados como instrumento de análise no sentido de identificar os determinantes macroeconômicos, setoriais e gerenciais envolvidos no processo de fragilização financeira, tanto no nível das empresas e de seus grupos controladores quanto no do setor como um todo. Trata-se de uma linha de pesquisa que deveria vir a ser desenvolvida no futuro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • MINSKY, H. P. The financial-instability hypothesis: capitalist processes and the behavior of the economy. Hyman P. Minsky Archive. Paper 282. 1982. Disponível em: <http://digitalcommons.bard.edu/hm_archive/282>. Acesso em: 18 out. 2018.
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  • PEDROSA, I. Firms’ leverage ratio and the Financial Instability Hypothesis (FIH): an empirical investigation for the United States economy (1970-2014). Mimeo, 2017.
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  • WELCH, I. Corporate finance: an introduction. Prentice Hall, 2009.
  • CLASSIFICAÇÃO JEL:

    G31; G38; L59; L94
  • 1
    Este trabalho foi fruto de uma pesquisa que contou com o apoio financeiro do Programa de Pesquisa e Desenvolvimento da Agência Nacional de Energia Elétrica e os autores agradecem às sugestões dos pesquisadores do Grupo de Estudos de Energia Elétrica (Gesel) do Instituto de Economia da UFRJ, particularmente de Roberto Brandão, e também do parecerista anônimo dessa revista, que muito contribuiu para o aprimoramento do texto original.
  • 2
    O projeto de pesquisa e desenvolvimento do "Índice de Sustentabilidade Econômico-Financeira das Distribuidoras de Energia Elétrica" foi comandado pelo Grupo do Setor Elétrico do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro com o objetivo de dotar a ANEEL de metodologia, bancos de dados e indicadorespara o acompanhamento financeiro das empresas concessionárias (distribuidoras).
  • 3
    Intitulado The Consequences to the Banks of the Collapse of Money Values.
  • 4
    O termo “congelados”, nesse caso, refere-se à iliquidez do crédito, ou seja, à dificuldade que os devedores encontram para pagar suas dívidas e de os bancos conseguirem vender esses créditos rapidamente, sem incorrer em perdas muito elevadas.
  • 5
    Para fazer frente a suas despesas correntes as empresas contam com recursos de quatro fontes: receitas de sua atividade fim; rendas de contratos, tais como juros e aluguéis; resultados da venda de ativos; e disponibilidade de dinheiro em caixa.
  • 6
    O termo hedge não possui uma tradução adequada na língua portuguesa e se refere, no caso, a uma unidade econômica que apresenta um relativo equilíbrio nas condições de seus ativos e passivos, em termos de unidades de conta, taxas de juros e prazo; na linguagem coloquial financeira brasileira trata-se de uma condição em que ativos e passivos de uma empresa ou de uma operação financeira estão "casados".
  • 7
    Existem ainda empresas que atenderiam aos critérios de Ponzi porque são projetos de longo prazo de implantação, masque ainda estão em situação pré-operacional e que, portanto, não geram receitas. Esses casos, no entanto, não são objeto de preocupação do ponto da TIF.
  • 8
    Ver Minsky (1975; 1980; 1982; 1986).
  • 9
    O índice de cobertura de juros (ICJ) é composto pela renda líquida mais os gastos com juros no numerador e pelo gasto com jurosno denominador: ICJ = Renda Líquida + Gastos com Juros/Gastos com Juros (MULLIGAN, 2013, p. 452).
  • 10
    Esse valor (quatro) foi determinado de forma arbitrária pelo autor (NISHI, 2016, p. 7).
  • 11
    Os autores têm como referência a metodologia empregada por Bacic (1990) para analisar os segmentos das maiores empresas brasileiras na década de 1980.
  • 12
    O serviço da dívida inclui tanto as despesas com juros quanto com amortização.
  • 13
    Essa apresentação formal das condições da empresa Ponzi difere da apresentada por Vercelli por não explicitar, por motivos de simplificação, a existência de um elemento positivo ao final do contrato de empréstimo.
  • 14
    Ebitda, do inglês, earnings before interest, taxes, depreciation and amortization. Ver Welch (2009).
  • 15
    Receita Líquida = Receita Bruta de Vendas - Devoluções de Vendas - Descontos Comerciais - Impostos sobre Vendas.
  • 16
    Custo do Produto Vendido + Despesas Operacionais com administração da empresa e com o suporte à venda dos produtos (publicidade, comissões de vendas etc.).
  • 17
    Note-se que nessa metodologia optou-se por não incluir nenhuma margem de segurança.
  • 18
    A variação no número de empresas na amostra se deve a fusões de empresas ou à incompletude de dados, que, no entanto, não comprometeram os resultados da amostra uma vez que ocorreram em anos isolados em empresas de muito pequeno porte.
  • 19
    As empresas distribuidoras controladas pela Eletrobras eram: CEAL, CELG, CEPISA, CEA, CERON, Eletroacre e Amazonas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    04 Jul 2017
  • Aceito
    18 Jun 2018
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