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UMA TEORIA DE DEPRESSÕES: COMENTÁRIOS

A THEORY OF DEPRESSIONS: COMMENTS

RESUMO

Este texto faz comentários ao artigo intitulado “Is this ‘it’? An outline of a theory of depression”, de autoria do Professor Fernando Cardim de Carvalho. No lugar de fazer comentários críticos de oposição, o objetivo deste texto é dialogar com as ideias de Cardim de Carvalho, por meio de ilustrações com fatos (históricos ou recentes) e conexões com as ideias de J. M. Keynes acerca da Grande Depressão do século XX. Trata-se de uma homenagem ao Professor Fernando Cardim de Carvalho.

PALAVRAS-CHAVE:
depressão; ciclos econômicos; J. M. Keynes

ABSTRACT

This text comments on the article entitled “Is this ‘it’? An outline of a theory of depression,” authored by Professor Fernando Cardim de Carvalho. Instead of making critical opposition comments, the objective of this text is to dialogue with Cardim de Carvalho’s ideas, through illustrations with facts (either historical or recent) and connections with J. M. Keynes’s ideas about the Great Depression of the 20th century. It is a tribute to Professor Fernando Cardim de Carvalho.

KEYWORDS:
depression; business cycles; J. M. Keynes

INTRODUÇÃO 1 1 Este é o primeiro artigo que escrevo na primeira pessoa do singular. Escolhi esse estilo para que possa demostrar com muita ênfase o meu diálogo com as ideias do Professor Fernando Cardim de Carvalho no seu artigo publicado na Revista de Economia Política intitulado “É ‘isso’? Um esboço de uma teoria de depressões”, de 2016. Aproveito esta nota para dizer que tive ao longo de muitos anos um profundo e respeitoso relacionamento acadêmico com o Professor. Fui seu aluno em seis disciplinas durante o mestrado e o doutorado. Fui seu orientando nessas duas etapas. Fomos coautores em dois artigos científicos publicados na Revista de Economia Política e na revista Economia & Sociedade. Foram 30 anos, entre a primeira e a última mensagem que trocamos. Na primeira, ainda por meios não eletrônicos, o Professor me encheu de esperanças sugerindo que eu fizesse o mestrado no Departamento de Economia da UFF, onde era professor. Fui sem hesitar, apesar do curso à época não possuir o reconhecimento que tem hoje. Fui na esperança de desfrutar de sua orientação de forma plena. Não me decepcionei. A esperança contida na sua primeira mensagem se transformou em realidade. Na última mensagem que trocamos, ao final de março de 2018, prestei minha homenagem à Ele intitulando o e-mail com o rótulo “Ao meu querido mestre com carinho”. Mas, dessa vez, sua resposta me encheu de tristeza e de desesperança, era uma despedida. Novamente e dessa vez infelizmente, a sua mensagem se transformou em realidade. Essas duas mensagens marcarão a minha memória para sempre. Mas vou sempre lembrar mais da minha alegria proporcionada por sua primeira mensagem que vibrou em mim durante décadas e continuará vibrando. ,2 2 Agradeço ao parecerista anônimo as suas valiosas recomendações.

O Professor Cardim foi um inovador permanente de assuntos relativos aos temas da macroeconomia e do sistema financeiro. O artigo que publicou na Revista de Economia Política intitulado Is this “it”? An outline of a theory of depression (CARVALHO, 2016CARVALHO, F. J. Is this “it”? An outline of a theory of depression. Revista de Economia Política, v. 36, n. 3, 2016.) é mais uma de suas inovações. Revela a plenitude de sua maturidade teórica e intelectual. Ele buscou teorizar sobre um tema inédito. Não são inéditos artigos, livros e debates sobre os acontecimentos das depressões. Porém, não existem trabalhos que tentaram esboçar uma teoria das depressões. Com a sua modéstia chamou de “um esboço” (an outline), mas o texto é muito mais do que linhas gerais, traços iniciais ou coisa semelhante. É uma teoria das depressões.

Teço comentários variados sobre o artigo do Professor Cardim. Não são críticas apresentando posições opostas. São apenas ilustrações com fatos (históricos ou recentes) e conexões com as ideias de J. M. Keynes durante a Grande Depressão do século XX. Por exemplo, mostro que a depressão do século XIX também foi longa, corroborando a ideia do Professor Cardim de que depressões são processos de extensa duração; que tipos específicos de inflação (como a inflação de custos no Brasil em 2015) podem causar os mesmos efeitos que a deflação provocou nos anos 1930 ao ajudar a empurrar a economia da recessão para a depressão; que Keynes se opôs nos anos 1930 às políticas de austeridade tal como o Professor Cardim sugere ser sua posição em seu artigo (que considero) clássico. Esses são apenas alguns exemplos. Destaco, entretanto, que apresentei comentários sobre quase todos os argumentos inovadores apresentados pelo Professor Cardim no seu artigo.

O artigo está dividido em quatro seções. Na primeira, faço comentários sobre as características de uma depressão que foram delineadas pelo Professor Cardim. Na segunda, tento mostrar a distinção entre recessão e depressão nas visões de Keynes e J. Schumpeter. Na terceira, mostro através de um esquema como uma economia pode sair da normalidade para uma recessão e desta para uma depressão. Na quarta, mostro, a partir das ideias de Keynes, como governos se tornam parte do problema quando decidem adotar políticas de austeridade como caminho de saída de uma depressão.

Escrevo este artigo na primeira pessoa do singular (o que jamais fiz) e uso a palavra Professor iniciada sempre com letra maiúscula como forma de reforçar a minha a homenagem ao maior mestre que tive ao longo da minha carreira acadêmica.

1. EM BUSCA DAS CARACTERÍSTICAS DE UMA DEPRESSÃO

O Professor Cardim de Carvalho, buscando delinear uma depressão econômica, enumerou quatro características daquela conformação. Ele identificou: (a) o fenômeno é internacional; (b) há queda do produto e elevação do desemprego; (c) a crise é de longa duração; e (d) há deflação prolongada de preços. A seguir passo a descrever cada uma dessas características e a fazer alguns comentários sobre as mesmas.

a) O fenômeno é internacional. O Professor argumentou que um número significativo de países em crise, com economias relevantes, seria uma característica da depressão. Em relação ao evento do século passado, mencionou os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a Alemanha, entre outros. Contudo, ressaltou que a profundidade e a duração da crise são diferentes em cada país (CARVALHO, 2016CARVALHO, F. J. Is this “it”? An outline of a theory of depression. Revista de Economia Política, v. 36, n. 3, 2016., p. 453).

Indiscutivelmente, a depressão é um fenômeno internacional. Foi assim no século XX, como indicou o Professor Cardim, mas foi também o que aconteceu na depressão iniciada nos anos 1870. Em 1873, teve seu epicentro na Bolsa de Viena e se espalhou mundo a fora. Dobb (1983DOBB, M. A evolução do capitalismo. São Paulo: Abril Cultural, 1983., p. 223-224) descreveu a primeira depressão na Grã-Bretanha, mas também delineou o seu alcance nos Estados Unidos, Alemanha, Rússia e França.

De fato, a profundidade, a duração e, eu acrescento, as formas de reação são diferentes em cada país. Isso ocorreria porque os canais de transmissão e as estruturas econômicas de cada economia são diferentes. Por exemplo, para a Grã-Bretanha, nos 1930, Keynes propôs como política de reação o investimento público e, para o Brasil naquele mesmo período, Celso Furtado concordou com a política de compra e queima de estoques de café por parte do governo.

Para a Grã-Bretanha, que já era industrializada, com milhões de desempregados nas cidades, Keynes propôs como política reativa o investimento público em obras para que houvesse redução imediata do desemprego e para que tais obras deixassem um legado benéfico da crise para um futuro de melhor qualidade de vida para a sociedade. Nas suas palavras:

Por que não demolir inteiramente o sul de Londres de Westminster a Greenwich, e fazer um bom trabalho aí - colocando para morar nessa área apropriada, próxima do trabalho, uma população muito maior que a atual, em edifícios de longe melhores com todas as facilidades da vida moderna, ainda ao mesmo tempo provendo centenas de acres de praças e avenidas, parques e espaços públicos, tendo, quando tudo finalizado, alguma coisa exuberante aos olhos, e ainda conveniente e útil para a vida humana como um monumento do nosso tempo? Isso empregaria homens? Com certeza, empregaria! (KEYNES, 1933KEYNES, J. M. Essays in persuasion. London: Macmillan, 1933., p. 154)

Para o Brasil, nos anos 1930, que era um país de economia agrária e era o maior exportador mundial de café, Celso Furtado defendeu a política de compra desse produto por parte do governo e a queima dos seus estoques visando o restabelecimento de seu preço. Nas suas palavras:

O que importa ter em conta é que o valor do produto que se destruía era muito inferior ao montante da renda que se criava. Estávamos, em verdade, construindo as famosas pirâmides que anos depois preconizaria Keynes. (FURTADO, 2009FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. (Edição comemorativa de 50 anos). São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 275)

b) Queda profunda do produto e elevação do desemprego. O Professor Cardim argumentou que as retrações seriam profundas se os governos não reagissem impedindo que as economias entrassem em queda livre (CARVALHO, 2016CARVALHO, F. J. Is this “it”? An outline of a theory of depression. Revista de Economia Política, v. 36, n. 3, 2016., p. 453). O ponto central é a recuperação da demanda ou, primeiramente e principalmente, o estancamento da sua redução.

O problema a ser resolvido é a redução da demanda, que é causada, eu acrescento, pela queda dos investimentos (tal como será tratado na próxima seção). Portanto, essa é a variável que causa o problema e, então, é ao mesmo tempo a variável-solução. Existem, obviamente, diversas razões para explicar a queda dos investimentos. Essas razões podem ser desde crises políticas a mudanças de políticas econômicas. Em geral, reformas mais profundas podem estabelecer um novo funcionamento visando impedir que as razões existentes que provocaram a queda dos investimentos possam prevalecer. Contudo, a variável-chave do problema deve ser identificada para que decisões práticas possam ser tomadas. Esse raciocínio apareceu nas palavras de Keynes nos anos de 1930:

O colapso do nível de investimento em 1930 era não-explicado. Naturalmente existiram todo tipo de razões para esse colapso, mas o principal ponto a ser observado é que o colapso do investimento foi a causa da depressão. (KEYNES, 1981KEYNES, J. M. Activities 1929-1931: rethinking employment and unemployment policies. In: MOGGRIDGE, D. E. (Ed.) The Collected Writings of John Maynard Keynes. London: Macmillan, 1981, v. 20., p. 479-480)

Por exemplo, para estancar o processo e recuperar a economia norte-americana em depressão nos anos 1930, o presidente F. D. Roosevelt lançou o muito falado, mas pouco conhecido, New Deal. Era um programa de obras públicas, mas era também um conjunto de reformas. As obras públicas objetivavam estancar a queda da demanda e promover a recuperação da economia. As reformas seriam para estabelecer uma nova institucionalidade para que a economia pudesse funcionar em plena normalidade com reduzido desemprego e para que a sociedade alcançasse um nível de bem-estar satisfatório.

De forma sintética, o New Deal apoiou e/ou promoveu as seguintes medidas: (i) estímulos à agricultura através de subsídios e crédito; (ii) obras públicas voltadas para a geração de empregos (incluía grandes obras, eletrificação rural, pintura de paredes em logradouros públicos, etc.); (iii) ajuda aos estados para manter o emprego e o salário do funcionalismo público e para que realizassem programas de socorro aos miseráveis; (iv) pacto capital-trabalho para garantir a produção, emprego, salários e lucros, além do estímulo à organização dos trabalhadores em sindicatos; (v) garantias aos depositantes junto aos bancos; (vi) regulação do mercado financeiro e de ações; (vii) estabelecimento do salário mínimo, da jornada de 40 horas semanais e da proibição do trabalho infantil; (viii) criação do sistema de seguridade social; e (ix) aprofundamento da progressividade do sistema tributário.3 3 O New Deal foi um conjunto de mais de 50 leis/programas que alcançou praticamente a totalidade das esferas da vida em sociedade: cultura, turismo, agricultura, indústria, sistema financeiro, infraestrutura, serviços públicos etc. O conjunto de leis e suas descrições estão disponíveis no site oficial do projeto The Living New Deal (THE LIVING NEW DEAL, 2018).

O New Deal representou uma reformatação do escopo de atribuições do governo e da política, representou uma nova cultura, ou seja, estabeleceu o princípio que o governo é responsável pelo bem-estar da sociedade.

Keynes, em carta aberta ao presidente Roosevelt, publicada no jornal The New York Times de 31 de dezembro de 1933, escreveu:

Você está empenhado em dupla tarefa, recuperação e reforma: a recuperação da contração e a aprovação das reformas empresariais e sociais, que estão muito atrasadas. Para a primeira, velocidade e resultados rápidos são essenciais. A segunda pode ser urgente também; mas a pressa será prejudicial, e a sabedoria de propósito de longo alcance é mais necessária que a realização imediata. Será através do aumento do prestígio de sua Administração pelo sucesso na recuperação em tempo curto que você terá a força motriz para realizar uma reforma de longo alcance. (KEYNES, 1982KEYNES, J. M. Activities 1931-1939: world crises and politics in Britain and America. In: MOGGRIDGE, D. E. (Ed.) The Collected Writings of John Maynard Keynes. London: Macmillan, 1982, v. 21., p. 290)

A depressão dos anos 1930 nos Estados Unidos demostrou que tais conformações podem ser superadas a partir de gastos governamentais com obras públicas, mas também que são uma oportunidade para a realização de reformas estruturais. Naquele caso, a base das reformas foi estabelecer uma institucionalidade para evitar novas crises e elevar o nível de bem-estar social.

c) Longa duração da crise. O Professor Cardim argumentou que, após as economias terem mergulhado na crise, de acordo com a característica anterior, a recuperação dessas economias consumiria um tempo prolongado. O tempo seria mais longo se fosse considerada como recuperação a volta à mesma tendência (de taxa) de crescimento do período pré-crise. Ele sugeriu que tal tendência somente poderia ser alcançada se a economia fosse impulsionada por uma força exógena de estímulo à demanda, tal como o New Deal ou os gastos com a Segunda Guerra Mundial nos Estados Unidos (CARVALHO, 2016CARVALHO, F. J. Is this “it”? An outline of a theory of depression. Revista de Economia Política, v. 36, n. 3, 2016., p. 453).

De fato, tanto no século XIX quanto no século XX, as crises foram bastante longas. Por exemplo, os Estados Unidos, no século passado, somente recuperaram uma taxa de desemprego semelhante àquela do ano de 1929 quatorze anos depois, em 1943 (UNITED STATES DEPARTMENT OF LABOR, 2018). Dobb descreveu a longa duração da crise do século XIX: “[a] Grande Depressão, iniciada em 1873, [foi] interrompida por surtos de recuperação em 1880 e 1888, e continuada até meados dos anos 1990...” (DOBB, 1983DOBB, M. A evolução do capitalismo. São Paulo: Abril Cultural, 1983., p. 214).

O tempo da crise depende da reação de governos. Contudo, nos séculos passados, governantes ainda não conheciam o receituário de combate aos choques recessivos e o estancamento dos seus sintomas, que se prolongavam. Keynes, com sua argumentação teórica, e o presidente Roosevelt, com suas decisões práticas (o New Deal), foram os grandes inovadores. Porém, hoje, a experiencia histórica e os tratamentos já são conhecidos. Portanto, as crises nos dias de hoje somente serão prolongadas se os governos não fizerem a opção pelos conhecimentos e as experiências já acumuladas, tal como Krugman alertou fazendo referência aos acontecimentos da década atual:

Na Grande Depressão, os líderes tinham uma desculpa: ninguém realmente compreendia o que estava acontecendo nem sabia como resolver a situação. Os líderes de hoje não têm essa desculpa. Temos tanto o conhecimento quanto as ferramentas para acabar com esse sofrimento. (KRUGMAN, 2012KRUGMAN, P. Um basta à depressão econômica. Rio de Janeiro: Campus-Elsevier, 2012., p. 16)

Quanto à crise econômica iniciada em 2008/2009, embora alguns países já tenham recuperado o nível de produto pré-crise, as taxas de desemprego, de forma geral, continuam mais altas do que eram anteriormente a 2008. Por exemplo, Grécia, Espanha, Itália, França, Portugal, Canadá e Holanda, em 2017, tiveram ainda taxas de desemprego maiores do que as taxas que obtiveram 2008 (ver Tabela 1).4 4 Joseph Stiglitz em agudo artigo de opinião se contrapôs à ideia que começa a tomar força de que o que existe é uma estagnação secular, ou seja, que novas tecnologias conformaram uma estrutura econômica de taxas de desemprego mais elevadas - que não são, portanto, possíveis de serem reduzidas. Disse ele: “Há muitas lições a serem aprendidas quando refletimos sobre a crise de 2008, mas a mais importante é que o desafio era - e permanece - político, não econômico: não há nada que inerentemente impeça que nossa economia seja administrada de maneira a garantir pleno emprego e prosperidade para todos. A estagnação secular era apenas uma desculpa para políticas econômicas erradas” (STIGLITZ, 2018). Paul Krugman caracteriza a situação enfrentada pela economia mundial após a crise 2008 de forma bastante categórica. Em 2012, escreveu: “o melhor ponto de partida para raciocinarmos sobre essa recessão contínua, eu diria, é aceitar o fato que estamos em depressão” (KRUGMAN, 2012KRUGMAN, P. Um basta à depressão econômica. Rio de Janeiro: Campus-Elsevier, 2012., sem numeração de página).

Tabela 1
Taxas de desemprego, países selecionados

Nenhuma economia relevante recuperou as taxas de crescimento que possuíam anteriormente à crise iniciada em 2008/2009. Portanto, concluo, em acordo com as ideias do Professor Cardim, que faltam impulsos dados por forças exógenas para que haja uma recuperação econômica integral, isto é, nível de produto, taxa de emprego e taxas de crescimento do período pré-crise.

d) Deflação prolongada de preços dos produtos. O Professor Cardim argumentou que essa foi uma marca da depressão nos anos 1930 nos Estados Unidos. Contudo, ressaltou que esse fenômeno não se repetiu nos Estados Unidos na década atual. Em seguida, destacou que foi nesse contexto que Irving Fisher elaborou a sua teoria da dívida-deflação. Também mencionou que Minsky se apoiou na teoria de Fisher para explicar a dinâmica de queda de preços de ativos líquidos, especialmente em momentos de crise (CARVALHO, 2016CARVALHO, F. J. Is this “it”? An outline of a theory of depression. Revista de Economia Política, v. 36, n. 3, 2016., p. 453-454).

Na depressão dos anos 1930, Fisher observou que havia uma queda de preços porque os empresários tinham urgência de encontrar demandantes para seus produtos, já que tinham que honrar com seus compromissos financeiros junto aos bancos. As despesas eram certas, mas as receitas eram incertas. Havia uma deflação de preços de produtos. Porém, em uma visão mais abrangente Fisher-Minsky, havia também deflação de preços de ativos, já que tudo era liquidado em busca de recursos para enfrentar as despesas financeiras que tinham sido assumidas.

Posso dizer que, nos anos 1930, havia forte pressão contracionista sobre o lado do ativo do balanço das empresas em busca do equilíbrio com o seu lado do passivo. Eram as receitas provenientes da venda dos produtos e os recursos advindos da venda de títulos (lado do ativo do balanço), ambos em queda, que buscavam enfrentar as dívidas bancárias (lado do passivo do balanço) das empresas. Essa pressão desequilibradora levou muitas empresas à falência. Havia a inibição da atividade empresarial contribuindo para o aprofundamento da recessão, porque quanto menores as receitas esperadas menos estímulos existiriam para a produção.

O mesmo efeito pode ter ocorrido no Brasil recentemente, embora de forma inédita. Na recessão enfrentada em 2015/2016, não houve deflação de preços de produtos, mas sim inflação. Grande parte daquela inflação foi causada por um aumento abrupto e acentuado dos preços do óleo diesel, gasolina e energia elétrica. Como consequência da inflação, o Banco Central (formatado em regime de meta de inflação) elevou drasticamente a taxa básica de juros da economia encarecendo o crédito bancário.

Somente no mês de março de 2015, a tarifa de energia elétrica foi elevada em 22%. Além disso, a gasolina e o óleo diesel tiveram elevados aumentos nos meses de fevereiro e novembro de 2015. Com o objetivo de controlar a inflação decorrente desses aumentos, o Banco Central elevou a taxa de juros básica da economia aumentando o custo financeiro de produção das empresas. A taxa anual média de juros das operações de crédito na modalidade capital de giro para as empresas subiu de 22% em dezembro de 2014 para quase 30% em janeiro de 2016. Portanto, emergiram mais pressões do lado do passivo do balanço das empresas.5 5 A fonte de todos os dados desse parágrafo é BCB (2018).

No Brasil dos anos 2015 e 2016, houve também pressão desequilibradora sobre o balanço das empresas, tal como nos anos 1930. Os custos das empresas subiram, tanto custos reais (óleo diesel e energia elétrica) quanto custos financeiros (taxa de juros). Ao mesmo tempo, as suas receitas tendiam à redução devido à queda das vendas e do consumo decorrentes do desemprego. Do mês de março até dezembro de 2015, o consumo de energia elétrica por parte das indústrias caiu mais de 8%, o que indica queda da produção, do consumo e das receitas das empresas. Tal como nos anos 1930, houve pressão para a redução da atividade produtiva e, em alguns casos, rumo à falência.

Nos anos 1930, o aumento da carga desequilibradora de balanços veio pela redução de receitas e seu impacto negativo no caixa das empresas; no Brasil recente, o peso da carga negativa pode ter vindo de forma potencializada. Houve queda das receitas e aumento das despesas. A pressão pode ter sido dupla: redução do caixa (pressão negativa sobre o ativo) e aumento das despesas (pressão negativa sobre o passivo). Portanto, a deflação e tipos específicos de inflação associados ao regime de metas de inflação podem contribuir para aprofundar um processo recessivo e levar economias à depressão.6 6 Caracterizo a economia brasileira após 2014 como tendo entrado em estado de depressão. Ver Sicsú (2018 e 2019).

2. A DISTINÇÃO ENTRE UMA RECESSÃO E UMA DEPRESSÃO

“O ponto central de uma teoria de depressões deve ser a distinção entre depressões e recessões cíclicas normais” (CARVALHO, 2016CARVALHO, F. J. Is this “it”? An outline of a theory of depression. Revista de Economia Política, v. 36, n. 3, 2016., p. 455). Segundo o Professor Cardim, a recessão é, para a maioria dos economistas, uma fase normal de um ciclo. A dinâmica capitalista movimentaria a economia em fases: recessões, recuperações, expansões e prosperidade. Em contraste, afirmou o Professor Cardim, a depressão é um fenômeno específico, anormal, que não seria transitório. Então, estaria fora de uma trajetória cíclica e, portanto, não teria fase/cenário precedente ou decorrente.

É crucial a distinção que foi apresentada pelo Professor Cardim: normalidade de uma recessão versus anormalidade de uma depressão.7 7 O Professor Cardim usou o conceito marshalliano. Segundo Marshall: “o emprego do termo normal implica a predominância de certas tendências, que se afiguram ser mais ou menos firmes e persistentes na sua atuação, sobre outras relativamente excepcionais e intermitentes. A doença é uma condição normal do homem. Mas uma longa existência transcorrida sem qualquer doença é anormal. (...) Em todos os casos, os resultados normais são os que se podem esperar...” (MARSHALL, 1985, p. 47). Apresentação mais detalhada sobre o conceito de normalidade definido por Marshall pode ser encontrada em Sicsú (1999). Detalhes sobre a herança metodológica que Alfred Marshall deixou para Keynes e os pós-keynesianos foram apresentados e discutidos em outra obra do Professor Cardim (CARVALHO, 1992, capítulo 2). Sendo assim, a questão decisiva seria identificar ainda durante uma queda ou próximo a ela se a economia ingressou numa recessão normal ou numa depressão anormal. Penso que quatro variáveis são os elementos principais a serem analisados: emprego, produto, crédito e investimento. São esses quatro elementos que formaram a base da análise de J. Schumpeter e de J. M. Keynes sobre o tema.

Schumpeter construiu uma configuração econômica que batizou de espiral viciosa (vicious spiral) para estabelecer a distinção entre uma contração recessiva normal e uma contração anormal que caracterizaria uma depressão. Segundo Schumpeter (1939), existiria um tipo específico de contração do produto que configuraria uma depressão. Tal contração deveria ser acompanhada por uma queda acentuada do emprego e do volume de crédito. Tão importante quanto as variações de nível seria a dinâmica das oscilações. As três variáveis produto/emprego/crédito deveriam se retroalimentar de forma errática em movimentos para baixo e por algum tempo. Isso configuraria uma contração anormal, uma depressão.

Para Schumpeter, ao se referir aos anos de 1931 e 1932, “[a] Espiral Viciosa [foi] a característica mais marcante daqueles anos” (1939, p. 925). A existência dessa espiral, segundo o autor, seria o suficiente para caracterizar uma depressão. A existência dessa conformação seria a demonstração que houve uma transformação qualitativa: de uma recessão, que é algo normal, para uma depressão, que é anormal. Vejamos as palavras de Schumpeter referindo-se à espiral viciosa, que foi considerada por ele como o elemento novo do cenário que analisou:

(...) sabemos que o processo assim designado é, em maior ou menor grau, uma característica de qualquer depressão. É, de fato, o grande responsável por transformar a “liquidação normal” da recessão na “liquidação anormal” da depressão. (SCHUMPETER, 1939SCHUMPETER, J. Business cycles. New York and London: McGraw-Hill Book Company, 1939., p. 925)8 8 Para Schumpeter (1939), o termo liquidação significava uma revisão descendente de níveis de variáveis e operações, ou seja, um rebaixamento contínuo do nível de variáveis tais como: produto, emprego e crédito. Diante de uma situação anormal, tal rebaixamento acontecia de forma profunda e errática.

Keynes apresentou sua visão sobre o tema, aliás com era de costume, com argumentos isolados em situações diferentes. Cabendo sempre ao analista se debruçar sobre as “peças” e montar o “quebra-cabeças”. Tal tarefa foi muito facilitada por Keynes em virtude da nitidez de suas ideias e das metáforas esclarecedores que muitas vezes utilizou.

Keynes avaliava que a depressão era o resultado de uma paralisação da economia. Segundo ele, “a máquina tinha sido simplesmente travada como resultado de uma confusão” (KEYNES, 1933KEYNES, J. M. Essays in persuasion. London: Macmillan, 1933., p. 139). A depressão dos anos 1930 teria sido um resultado de uma “confusão colossal”, isto é, um conjunto de fatores que paralisaram as decisões de investimento. Contudo, não importariam as causas econômicas, sociais ou políticas, que levaram à suspensão das decisões de investimento. Importaria apenas o diagnóstico da máquina econômica e do funcionamento de suas peças. A economia estaria travada, segundo Keynes, porque tinha havido um problema no seu partidor (magneto), que eram os investimentos (Keynes utilizou a expressão magneto que pode ser entendida como “motor de arranque”).

Esse é o ponto crucial para Keynes: as decisões de investimento foram paralisadas e não havia condições para que fossem reativadas novamente. Avaliava que houve um problema no sistema de crédito ao investimento: “um golfo (...) foi colocado entre as ideias dos emprestadores e dos tomadores para o propósito de investimento de capital genuinamente novo” (KEYNES, 1933KEYNES, J. M. Essays in persuasion. London: Macmillan, 1933., p. 145). Para Keynes, essa é a característica chave de uma depressão. A queda acentuada do produto e a elevação do desemprego são os sinais aparentes de uma depressão. Isso seria visto por todos. Entretanto, a causa de a economia permanecer estacionada nesse estado seria a suspensão das decisões de investimento. Com as decisões de investimento e suas operações de crédito paralisadas, Keynes afirmou:

(...) não pode existir uma verdadeira recuperação, em meu julgamento, até que as ideias de emprestadores e tomadores produtivos sejam colocadas juntas novamente; em parte, emprestadores se tornando dispostos para emprestar em termos mais amigáveis e para um espaço geográfico mais amplo, e em parte, tomadores recuperando seus bons espíritos e, então, se tornando mais dispostos a tomar emprestado. (KEYNES, 1933KEYNES, J. M. Essays in persuasion. London: Macmillan, 1933., p. 145)

Keynes em 1930 identificava a situação como sendo extremamente perigosa, era uma retração profunda. Era preciso religar a máquina a partir do seu partidor, que eram os investimentos de capital. Caso contrário, “a retração pode[ria] passar para uma depressão (...) que poderia durar por anos com perdas não esperadas de riqueza material e de estabilidade social” (1933, p. 146). Em outras palavras, a economia nos anos 1929-1930 passou de uma recessão para uma depressão por falta dos investimentos.

Em suma, para Keynes, a profundidade e a duração da depressão, assim como a sua existência, permanência ou saída, deveriam ser explicadas pela variável investimento. Foi por isso que passou a propor e defender que somente o governo através de investimentos públicos poderia agir e ser bem-sucedido diante de uma depressão. Afirmou ele:

Eu enfatizo muito a política das autoridades públicas. São elas que devem começar o movimento de partida da atividade. Você não pode esperar que os indivíduos gastem muito mais quando já estão, alguns deles, se endividando. Você não pode esperar que empresários se lancem em ampliações dos negócios enquanto eles estão tendo perdas. (KEYNES, 1982KEYNES, J. M. Activities 1931-1939: world crises and politics in Britain and America. In: MOGGRIDGE, D. E. (Ed.) The Collected Writings of John Maynard Keynes. London: Macmillan, 1982, v. 21., p. 148)

Enquanto Schumpeter destacou uma dinâmica própria, a espiral viciosa, para fazer a distinção entre uma recessão e uma depressão, Keynes preferiu enfatizar a variável-causa, o investimento, que ao mesmo tempo era a variável-solução, como o elemento distintivo.

3. POR QUE HÁ CHOQUES QUE LEVAM À DEPRESSÃO

Uma questão decisiva é a explicação do porquê há choques negativos sobre o produto que são absorvidos e configuram uma recessão passageira e há choques dessa natureza que conformam uma depressão de longa duração. A contribuição do Professor Cardim é extraordinária nesse ponto. É bastante original e criativa. Ele utilizou o conceito de normalidade que Keynes herdou de Marshall: a experiência passada é o principal input para a formação da noção do que é normal e do que não seria (CARVALHO, 2016CARVALHO, F. J. Is this “it”? An outline of a theory of depression. Revista de Economia Política, v. 36, n. 3, 2016., p. 457).

As flutuações cíclicas seriam, então, normais. Logo, as recessões como parte dos ciclos econômicos também seriam normais, embora não desejadas, mas seriam sempre superadas. Contudo, pode ocorrer um choque de alta intensidade que “supera as defesas construídas pelos agentes de tal forma que a economia não pode mais prosseguir com sua operação regular” (CARVALHO, 2016CARVALHO, F. J. Is this “it”? An outline of a theory of depression. Revista de Economia Política, v. 36, n. 3, 2016., p. 457).

O Professor Cardim concluiu que a estabilidade do sistema dependeria então da largura de um corredor de normalidade (ideia elaborada a partir dos trabalhos de Axel Leijonhufvud). Em outras palavras, dependeria do quão expostos a choques adversos estão os agentes econômicos, do quão efetivas são as defesas para compensar possíveis perdas e de como o choque é processado pelos agentes em termos de reorientar suas decisões para manter/recuperar suas posições. Essas condições podem variar ao longo do tempo. Portanto, a largura do corredor de normalidade também pode variar.

A depressão ocorreria, segundo o Professor Cardim, quando o choque é suficientemente intenso para superar as barreiras construídas pelos agentes e romper os limites do corredor de normalidade. A economia sairia da posição original para a depressão e poderia se “acostumar” a ela, configurando um novo corredor de normalidade em torno da posição de elevado desemprego.

Não é uma mera coincidência - porque trocava muitas ideias com o Professor Cardim sobre os artigos que escrevia -, mas, em 1999, publiquei artigo que reproduzia uma figura bastante semelhante às ideias que o Professor Cardim apresentou na construção de sua teoria de depressões. Dividi aquela figura, reproduzida a seguir, em duas partes: o corredor de normalidade e a região de crise. Considero essa figura uma visão prática do significado teórico do que era o planejamento na visão de Keynes, que ia além do receituário das políticas econômicas. Referia-se também, e talvez principalmente, à construção de regras e instituições econômicas que deveriam ser duradouras. Todo esse arcabouço - instituições, regras e instrumentos de políticas econômicas - deveria ser estabelecido em tempos de normalidade (SICSÚ, 1999SICSÚ, J. O conceito de normalidade econômica marshalliano e o discricionarismo monetário de Keynes. Nova Economia, v. 9, n. 1, 1999., p. 165).

Figura 1
Crise e Normalidade

Quando uma economia está na região A (da figura), suas instituições e regras são suficientes para garantir que sua trajetória se mantenha dentro dos limites estabelecidos pelas metas (de crescimento e/ou emprego, por exemplo) sem a variação de intensidade de quaisquer políticas econômicas. Quando a economia adentra a região B, suas regras e instituições não estão sendo suficientes para evitar que a economia deslize para a região C, em que a economia entraria em crise. Políticas econômicas seriam necessárias para fazer a economia retornar à região A. Porém, se, por ventura, a economia adentrou a região C, um plano global de reformulação de regras e instituições, assim como políticas emergenciais são imprescindíveis. Esse foi o caso do New Deal.

As regiões A e B conformam um corredor de normalidade. Tal corredor é aquele espaço em que as políticas econômicas quando utilizadas alcançam os efeitos esperados e a economia permanece dentro da sua tendência de crescimento, apesar de poder ter sofrido, na pior das hipóteses, uma recessão. A região C seria aquela em que a crise pode ter o nome de depressão. Entretanto, pode ter sido também atingida por uma hiperinflação. Sinteticamente, se a economia está em crise, estará fora do corredor de normalidade.

O Professor Cardim considerava que a economia poderia se acostumar a uma condição que chamo de crise e em torno dessa posição poderia se configurar uma nova área de normalidade. Gostaria de argumentar que isso pode ocorrer. Contudo, em áreas de crises os parâmetros comportamentais9 9 No modelo de Keynes, descrito na sua Teoria Geral do Emprego do Juro e da Moeda, que é resumido pelo princípio da demanda efetiva, os parâmetros comportamentais são: a eficiência marginal do capital, a preferência pela liquidez e a propensão a consumir. Ver Keynes (1973). podem mudar de forma repentina e abrupta em função de novos choques. Ressalte-se que uma economia estará muito mais suscetível a choques malignos em regiões de crise exatamente porque é uma característica dessas regiões a redução da eficácia de instituições, regras e políticas econômicas que poderiam neutralizar movimentos exógenos negativos.

4. POR QUE GOVERNOS SÃO PARTES DO PROBLEMA

Quando uma economia mergulha em crise e vai em direção a uma depressão, governos podem utilizar políticas de contenção da queda. Se bem-sucedidos, governos podem escolher políticas para recuperar a economia, isto é, fazê-la crescer novamente e reaver o nível de emprego pré-crise (CARVALHO, 2016CARVALHO, F. J. Is this “it”? An outline of a theory of depression. Revista de Economia Política, v. 36, n. 3, 2016., p. 462-463).

Duas escolas de pensamento sugerem políticas de recuperação: a keynesiana, com políticas fiscais de gastos expansivos, e a aquela que proporia políticas econômicas de austeridade e reformas estruturais para reduzir custos empresariais e incentivar a produção. Segundo Cardim de Carvalho:

Nos anos 2010, um intenso debate começou entre os proponentes das políticas de austeridade e os proponentes keynesianos de políticas de administração da expansão da demanda agregada. Como nos anos 1930, o primeiro grupo prevaleceu (até agora, pelo menos) especialmente na Europa Ocidental, mas também nos Estados Unidos (depois de um tempo curto e limitado com um “pacote de estímulo keynesiano” que foi adotado em 2009). Uma consequência da prevalência das políticas de austeridade e de programas de auto ajustamento tem sido o prolongamento do período no qual as economias permanecem prostradas. (CARVALHO, 2016CARVALHO, F. J. Is this “it”? An outline of a theory of depression. Revista de Economia Política, v. 36, n. 3, 2016., p. 464)

O Professor Cardim relembra uma passagem da Teoria Geral de Keynes que é absolutamente esplêndida para caracterizar esses períodos prologados de paralisia econômica com o produto contraído: “em verdade, a economia parece capaz de permanecer numa crônica condição de atividade sub-normal por considerável período sem qualquer tendência para uma recuperação ou para um completo colapso” (KEYNES, 1973KEYNES, J. M. The general theory of employment, interest, and money. London: Macmillan, 1973., p. 249).

Sua conclusão é a de que, nas condições descritas por Keynes, os canais privados de estímulo estão bloqueados: “[a] ameaça de desemprego reduziria a propensão a consumir. A demanda de investimento dificilmente seria realizada” (CARVALHO, 2016CARVALHO, F. J. Is this “it”? An outline of a theory of depression. Revista de Economia Política, v. 36, n. 3, 2016., p. 466), já que existiria ampla capacidade ociosa e temores acentuados de perdas. Nesse sentido, as políticas de austeridade e reformas estruturais estariam reforçando os instintos econômicos paralisantes ou contracionistas.

A análise do Professor Cardim é absolutamente precisa. Ele sempre foi um entusiasta do ativismo das políticas econômicas e sempre rejeitou as políticas de austeridade. Aqui, nesses últimos comentários, gostaria tão somente de apresentar a rejeição de Keynes à adoção de políticas de austeridade naquela época. Portanto, estarei tão somente mostrando coincidências entre o debate dos anos 1930 e aquele que ocorre nos dias de hoje.

Em fevereiro de 1931, o governo britânico formou um comitê para identificar as causas do deficit orçamentário e suas possíveis soluções. O nome oficial do fórum era Comitê sobre os Gastos Nacionais, mas ficou conhecido como Comitê May porque foi chefiado pelo servidor público especialista em finanças George May. Em julho de 1931, o Comitê May apresentou seu relatório. O relatório May de sugestões ao governo continha uma visão que era a de procurar em qualquer situação o equilíbrio do orçamento através do corte de gastos públicos porque qualquer gasto governamental adicional apenas ocuparia o lugar do gasto privado na economia, expulsando-o.

O Comitê, através de seu relatório, sugeriu políticas cujo principal objetivo era buscar a diminuição de despesas públicas visando à redução dos deficit. Para tanto, segundo Keynes, o relatório sugeriu “a redução do poder de compra dos cidadãos britânicos” e, então, chamou a atenção que “seria absurdo fingir que o processo pode[ria] parar professores e policiais” (KEYNES, 1933KEYNES, J. M. Essays in persuasion. London: Macmillan, 1933., p. 157). Keynes foi o principal opositor dessas ideias.

Segundo o relatório, o governo deveria reduzir gastos para tomar menos empréstimos. A redução de salários do funcionalismo, além de auxiliar na redução do deficit público, teria um efeito positivo sobre a redução das importações. Haveria redução de compras de bens importados: “por exemplo, se o seguro-desemprego é reduzido, os desempregados terão que apertar seus cintos e comer menos produtos importados” (KEYNES, 1933KEYNES, J. M. Essays in persuasion. London: Macmillan, 1933., p. 158).

Isso seria benéfico para a balança comercial; mas, quando essa redução de demanda atingisse os produtores locais, eles teriam perdas, então, Keynes destacou: “...eles terão que reduzir gastos ou dispensar alguns dos seus trabalhadores, isto é, terão que seguir o exemplo do Governo...” (KEYNES, 1933KEYNES, J. M. Essays in persuasion. London: Macmillan, 1933., p. 159).

Keynes concluiu que a política de corte de gastos públicos faria exatamente o efeito inverso: no lugar de reduzir o deficit, ele seria aumentado devido à elevação do desemprego com respectivo aumento do dispêndio com o seguro-desemprego e, também, em decorrência da queda nas receitas tributárias em virtude da redução dos lucros e salários (1933, p. 159). Segundo Keynes, o corte de gastos públicos faz o inverso do que faria o endividamento público para realização de obras (KEYNES, 1933KEYNES, J. M. Essays in persuasion. London: Macmillan, 1933., p. 159).

Em uma depressão, Keynes sentenciou, “todos os governos têm grandes déficits (sic)” (KEYNES, 1933KEYNES, J. M. Essays in persuasion. London: Macmillan, 1933., p. 161). O ponto focal para ele não era a existência de deficit, mas sim onde deveriam ser utilizados os recursos tomados emprestados para cobrir os deficit públicos:

É muito melhor, de qualquer forma, que os empréstimos sejam tomados para financiar obras, se essas obras forem de alguma utilidade, que para o propósito de pagar seguro-desemprego (ou bônus para veteranos). (KEYNES, 1933KEYNES, J. M. Essays in persuasion. London: Macmillan, 1933., p. 161)

Keynes concluiu suas críticas às políticas de austeridade sugeridas pelo relatório May afirmando a responsabilidade que tinha com a administração fiscal do orçamento britânico. Afirmou que tinha duas políticas de administração fiscal: aquela que deveria ser utilizada durante a depressão, que priorizaria a busca incessante de espaços orçamentários para a realização de gastos com obras públicas - e dispensaria inclusive a alimentação do Fundo de Amortização,10 10 O Fundo de Amortização era uma forma de o governo demonstrar capacidade de pagar parte de sua dívida feita através de emissão de títulos antes que atingissem a maturidade. Ao eliminar gradualmente sua dívida ou ao demonstrar essa capacidade, o emissor de títulos aumenta as chances de atrair novos credores que são mais preocupados com o risco de inadimplência. e outra, para ser usada:

[q]uando a retração tiver acabado, quando a demanda dos empresários por novos capitais tenha recuperado o normal, o emprego esteja bom, a renda dos tributos esteja crescendo, então será o momento de restaurar o Fundo de Amortização e de olhar criticamente os investimentos menos produtivos do Estado. (KEYNES, 1933KEYNES, J. M. Essays in persuasion. London: Macmillan, 1933., p. 162)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Prestei essa simples homenagem ao Professor Cardim, certamente, da forma que ele mais admirava: através do debate de ideias e da busca de somar esforços para a construção de interpretações da realidade feitas a partir das ideias de Keynes conectadas com acontecimentos históricos.

Sua ideia de esboçar uma teoria sobre as depressões já é extraordinária, mas o conteúdo que apresentou pode ser considerado muito mais, é um clássico. Delineou as características de uma depressão, mostrou teoricamente os movimentos que ocorrem de uma recessão para uma depressão e, finalmente, tratou das políticas de estancamento da queda e de políticas de recuperação.

Apresentei comentários baseados em fatos históricos e recentes para reforçar, se é que isso é possível, os argumentos apresentados pelo Professor Cardim. Destaco as contribuições baseadas nas ideias de Keynes para quem a causa de uma depressão é a paralisação das decisões de investimento; a passagem de uma recessão para uma depressão é a saída, sugerida por Keynes, de um estado normal para um estado anormal; e, por último, políticas emergenciais de enfrentamento de uma depressão dependem da iniciativa das autoridades públicas aplicando políticas de gastos em obras públicas - já que todos os demais canais de demanda estão fechados.

REFERÊNCIAS

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    » https://www3.bcb.gov.br/sgspub/localizarseries/localizarSeries.do?method=prepararTelaLocalizarSeries
  • CARVALHO, F. J. Is this “it”? An outline of a theory of depression. Revista de Economia Política, v. 36, n. 3, 2016.
  • CARVALHO, F. J. Mr.Keynes and the Post Keynesians. Chetelhan: Edward Elgar, 1992.
  • DOBB, M. A evolução do capitalismo. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
  • FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. (Edição comemorativa de 50 anos). São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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  • KEYNES, J. M. Activities 1929-1931: rethinking employment and unemployment policies. In: MOGGRIDGE, D. E. (Ed.) The Collected Writings of John Maynard Keynes. London: Macmillan, 1981, v. 20.
  • KEYNES, J. M. The general theory of employment, interest, and money. London: Macmillan, 1973.
  • KEYNES, J. M. Essays in persuasion. London: Macmillan, 1933.
  • KRUGMAN, P. Um basta à depressão econômica. Rio de Janeiro: Campus-Elsevier, 2012.
  • MARSHALL, A. Princípios de economia. São Paulo: Abril Cultural, 1985, v. 1.
  • SCHUMPETER, J. Business cycles. New York and London: McGraw-Hill Book Company, 1939.
  • SICSÚ, J. Brasil: não foi apenas uma recessão, é uma depressão. Revista de Economia Contemporânea, v. 23, n. 1, jan./abr. 2019.
  • SICSÚ, J. A economia da depressão está de volta? Texto para Discussão do IE-UFRJ, n. 9, 2018. [no prelo, Revista Economia & Sociedade]
  • SICSÚ, J. O conceito de normalidade econômica marshalliano e o discricionarismo monetário de Keynes. Nova Economia, v. 9, n. 1, 1999.
  • STIGLITZ, J. The myth of secular stagnation. Project Syndicate, 28 ago. 2018. Disponível em: <https://www.project-syndicate.org/commentary/secular-stagnation-excuse-for-flawed-policies-by-joseph-e-stiglitz-2018-08?barrier=accesspaylog>. Acesso em: 12 set. 2018.
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  • UNITED STATES DEPARTMENT OF LABOR. Labor force, employment, and unemployment, 1929-39: Estimating Methods. BLS, 2018. Disponível em: <https://www.bls.gov/opub/mlr/1948/article/pdf/labor-force-employment-andunemployment-1929-39-estimating-methods.pdf>. Acesso em: 06 ago. 2018.
    » https://www.bls.gov/opub/mlr/1948/article/pdf/labor-force-employment-andunemployment-1929-39-estimating-methods.pdf
  • CLASSIFICAÇÃO JEL:

    E12; E32; E66.
  • 1
    Este é o primeiro artigo que escrevo na primeira pessoa do singular. Escolhi esse estilo para que possa demostrar com muita ênfase o meu diálogo com as ideias do Professor Fernando Cardim de Carvalho no seu artigo publicado na Revista de Economia Política intitulado “É ‘isso’? Um esboço de uma teoria de depressões”, de 2016. Aproveito esta nota para dizer que tive ao longo de muitos anos um profundo e respeitoso relacionamento acadêmico com o Professor. Fui seu aluno em seis disciplinas durante o mestrado e o doutorado. Fui seu orientando nessas duas etapas. Fomos coautores em dois artigos científicos publicados na Revista de Economia Política e na revista Economia & Sociedade. Foram 30 anos, entre a primeira e a última mensagem que trocamos. Na primeira, ainda por meios não eletrônicos, o Professor me encheu de esperanças sugerindo que eu fizesse o mestrado no Departamento de Economia da UFF, onde era professor. Fui sem hesitar, apesar do curso à época não possuir o reconhecimento que tem hoje. Fui na esperança de desfrutar de sua orientação de forma plena. Não me decepcionei. A esperança contida na sua primeira mensagem se transformou em realidade. Na última mensagem que trocamos, ao final de março de 2018, prestei minha homenagem à Ele intitulando o e-mail com o rótulo “Ao meu querido mestre com carinho”. Mas, dessa vez, sua resposta me encheu de tristeza e de desesperança, era uma despedida. Novamente e dessa vez infelizmente, a sua mensagem se transformou em realidade. Essas duas mensagens marcarão a minha memória para sempre. Mas vou sempre lembrar mais da minha alegria proporcionada por sua primeira mensagem que vibrou em mim durante décadas e continuará vibrando.
  • 2
    Agradeço ao parecerista anônimo as suas valiosas recomendações.
  • 3
    O New Deal foi um conjunto de mais de 50 leis/programas que alcançou praticamente a totalidade das esferas da vida em sociedade: cultura, turismo, agricultura, indústria, sistema financeiro, infraestrutura, serviços públicos etc. O conjunto de leis e suas descrições estão disponíveis no site oficial do projeto The Living New Deal (THE LIVING NEW DEAL, 2018).
  • 4
    Joseph Stiglitz em agudo artigo de opinião se contrapôs à ideia que começa a tomar força de que o que existe é uma estagnação secular, ou seja, que novas tecnologias conformaram uma estrutura econômica de taxas de desemprego mais elevadas - que não são, portanto, possíveis de serem reduzidas. Disse ele: “Há muitas lições a serem aprendidas quando refletimos sobre a crise de 2008, mas a mais importante é que o desafio era - e permanece - político, não econômico: não há nada que inerentemente impeça que nossa economia seja administrada de maneira a garantir pleno emprego e prosperidade para todos. A estagnação secular era apenas uma desculpa para políticas econômicas erradas” (STIGLITZ, 2018).
  • 5
    A fonte de todos os dados desse parágrafo é BCB (2018).
  • 6
    Caracterizo a economia brasileira após 2014 como tendo entrado em estado de depressão. Ver Sicsú (2018 e 2019).
  • 7
    O Professor Cardim usou o conceito marshalliano. Segundo Marshall: “o emprego do termo normal implica a predominância de certas tendências, que se afiguram ser mais ou menos firmes e persistentes na sua atuação, sobre outras relativamente excepcionais e intermitentes. A doença é uma condição normal do homem. Mas uma longa existência transcorrida sem qualquer doença é anormal. (...) Em todos os casos, os resultados normais são os que se podem esperar...” (MARSHALL, 1985, p. 47). Apresentação mais detalhada sobre o conceito de normalidade definido por Marshall pode ser encontrada em Sicsú (1999). Detalhes sobre a herança metodológica que Alfred Marshall deixou para Keynes e os pós-keynesianos foram apresentados e discutidos em outra obra do Professor Cardim (CARVALHO, 1992, capítulo 2).
  • 8
    Para Schumpeter (1939), o termo liquidação significava uma revisão descendente de níveis de variáveis e operações, ou seja, um rebaixamento contínuo do nível de variáveis tais como: produto, emprego e crédito. Diante de uma situação anormal, tal rebaixamento acontecia de forma profunda e errática.
  • 9
    No modelo de Keynes, descrito na sua Teoria Geral do Emprego do Juro e da Moeda, que é resumido pelo princípio da demanda efetiva, os parâmetros comportamentais são: a eficiência marginal do capital, a preferência pela liquidez e a propensão a consumir. Ver Keynes (1973).
  • 10
    O Fundo de Amortização era uma forma de o governo demonstrar capacidade de pagar parte de sua dívida feita através de emissão de títulos antes que atingissem a maturidade. Ao eliminar gradualmente sua dívida ou ao demonstrar essa capacidade, o emissor de títulos aumenta as chances de atrair novos credores que são mais preocupados com o risco de inadimplência.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    28 Nov 2018
  • Aceito
    05 Jun 2019
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