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O SUS E A CRESCENTE MERCANTILIZAÇÃO DOS SERVIÇOS DE SAÚDE NO BRASIL NOS ANOS 2010

SUS AND THE GROWING COMMODIFICATION OF HEALTH SERVICES IN BRAZIL IN THE YEARS 2010S

RESUMO

Este artigo investiga o avanço da mercantilização da saúde no Brasil. Apesar da Constituição de 1988 instituir a saúde como direito da sociedade e dever do Estado, o financiamento do Sistema Único de Saúde nunca foi garantido de forma suficiente. O subfinanciamento se torna constante no sistema de saúde público brasileiro, afetando desproporcionalmente as diferentes parcelas da sociedade. Além da mercantilização do direito social, é observado um avanço da financeirização do setor, com as grandes empresas de saúde atuando de forma mais ativa no mercado de capitais.

PALAVRAS-CHAVE:
Sistema Único de Saúde; mercantilização da saúde; financeirização; Brasil

ABSTRACT

This article investigates the advance of health commodification in Brazil. Despite the 1988 Brazilian Constitution instituting health as a social right and the State’s duty, financing the Unified Health System has never been sufficiently guaranteed. Underfunding has been constant in the Brazilian public health system, disproportionately affecting the different social classes. Beyond the commodification of a social right, an advance in the financialization in the Brazilian health sector is observed, with large health companies acting more actively in the capital market.

KEYWORDS:
Unified Health System; health commodification; financialization; Brazil

INTRODUÇÃO

O direito à saúde universal, assegurado constitucionalmente, é relativamente recente no Brasil. A saúde se torna direito da população e dever do Estado a partir da promulgação da Constituição de 1988 (CF 88), após a redemocratização do país. Antes, a saúde pública era voltada somente aos trabalhadores inseridos no mercado de trabalho formal, e era financiada a partir das contribuições, que incidiam sobre os salários (MARQUES; MENDES, 2012MARQUES, R. M.; MENDES, A. A problemática do financiamento da saúde pública brasileira: De 1985 a 2008. Economia e Sociedade, v. 21, n. 2 (45), p. 345-362, ago. 2012.). No restabelecimento da democracia brasileira, a CF 88 passou a determinar que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (BRASIL, 1988, p. 91)BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.. Já o Sistema Único de Saúde (SUS) deve ser descentralizado, visando a universalidade, equidade e integralidade (PIOLA et al., 2013PIOLA, S. F. et al. Financiamento público da saúde: Uma história à procura de rumo. Brasília, DF: Ipea, jul. 2013. (Texto para Discussão).).

Com o passar do tempo, o texto constitucional se tornou uma carta cheia de boas intenções, mas com pouca efetividade (FAGNANI, 2011FAGNANI, E. A política social do governo Lula (2003-2010): Perspectiva histórica. SER Social, v. 13, n. 28, p. 41-80, jan./jun. 2011.). Há dois motivos que justificam tal interpretação: o financiamento da saúde pública nunca foi suficiente, sequer se aproximando do montante mínimo necessário para assegurar o direito da população à saúde (FAGNANI, 2011FAGNANI, E. A política social do governo Lula (2003-2010): Perspectiva histórica. SER Social, v. 13, n. 28, p. 41-80, jan./jun. 2011.; FUNCIA; OCKÉ-REIS, 2018FUNCIA, F. R.; OCKÉ-REIS, C. O. Efeitos da política de austeridade fiscal sobre o gasto público federal em saúde. In: ROSSI, P.; DWECK, E.; OLIVEIRA, A. L. M. (Eds.). Economia para poucos: Impactos sociais da austeridade e alternativas para o Brasil. São Paulo: Autonomia Literária, 2018.; REIS; PAIM, 2018REIS, C. R.; PAIM, J. S. A saúde nos períodos dos governos Dilma Rousseff (2011-2016). Revista Divulgação em Saúde para Debate, n. 58, p. 101-114, jul. 2018.); e, apesar da instituição de um sistema único e universal, a medicina privada não foi revogada, coexistindo um sistema público de acesso universalizado e um grande setor privado de saúde suplementar (BARROS; PIOLA, 2016BARROS, M. E. D.; PIOLA, S. F. O financiamento dos serviços de saúde no Brasil. In: MARQUES, R. M.; PIOLA, S. F.; ROA, A. C. (Orgs.). Sistema de saúde no Brasil: Organização e financiamento. Rio de Janeiro: ABrES; Brasília, DF: Ministério da Saúde: OPAS/OMS no Brasil, 2016. p. 101-138.; OCKÉ-REIS, 2013OCKÉ-REIS, C. O. Mensuração dos gastos tributários: o caso dos planos de saúde - 2003-2011. Nota Técnica IPEA, n. 5, maio 2013.).

No atual estágio de desenvolvimento do capitalismo, o fenômeno da financeirização influencia as relações econômicas, políticas e sociais, tornando-se uma característica sistêmica do capitalismo contemporâneo, com expressões históricas específicas em cada sociedade. É um processo que abrange vários fenômenos inter-relacionados, nos quais a influência das finanças se estende além dos mercados, atingindo diversas áreas da vida social (VAN DER ZWAN, 2014VAN DER ZWAN, N. Making sense of financialization. Socio-Economic Review, v. 12, p. 99-129, 2014.), afetando diretamente a vida da população. No setor de saúde, as empresas de saúde suplementar são as mais envolvidas nas práticas e na lógica financeira (MARTINS; OCKÉ-REIS; DRACH, 2021MARTINS, N. M.; OCKÉ-REIS, C. O.; DRACH, D. C. Financeirização dos planos de saúde: O caso das operadoras líderes no Brasil (2007-2019). Rio de Janeiro: IE-UFRJ, 2021. (Texto para Discussão, 1/2021).; SESTELO, 2017aSESTELO, J. A. F. Planos e seguros de saúde no Brasil de 2000 a 2015 e a dominância financeira. 2017. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017a.), atuando no mercado de capitais não somente para auferir recursos, mas sobretudo realizando ofertas secundárias - tendência que se acentuou nos últimos anos. De acordo com Martins, Ocké-Reis e Drach (2021MARTINS, N. M.; OCKÉ-REIS, C. O.; DRACH, D. C. Financeirização dos planos de saúde: O caso das operadoras líderes no Brasil (2007-2019). Rio de Janeiro: IE-UFRJ, 2021. (Texto para Discussão, 1/2021).), o processo de financeirização da saúde no Brasil está em curso, exigindo trabalhos que se proponham a explorar esse tema.

Assim, este artigo visa analisar a crescente mercantilização do serviço considerado direito social e dever do Estado com um avanço da financeirização no setor brasileiro de saúde. O trabalho está dividido em três seções. Na primeira, apresentamos o crônico subfinanciamento da saúde pública brasileira; na segunda, discute-se o insuficiente gasto público com saúde; e, na terceira, analisamos a financeirização de algumas empresas de saúde suplementar de capital aberto ativas na Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Observamos a crescente mercantilização e o avanço da financeirização do direito à cidadania, que afeta desproporcionalmente as diferentes parcelas da população. As considerações finais traçam as principais reflexões da pesquisa.

1. O (SUB)FINANCIAMENTO DA SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL

O SUS foi criado em um momento de elevada dívida externa e inflação, sendo caracterizado pela tensão permanente entre os princípios da contenção de gastos e da construção da universalidade (MARQUES; MENDES, 2012MARQUES, R. M.; MENDES, A. A problemática do financiamento da saúde pública brasileira: De 1985 a 2008. Economia e Sociedade, v. 21, n. 2 (45), p. 345-362, ago. 2012.; MENDES; FUNCIA, 2016MENDES, A.; FUNCIA, F. R. O SUS e seu financiamento. In: MARQUES, R. M.; PIOLA, S. F.; ROA, A. C. (Orgs.)..; Brasília, DF: Ministério da Saúde: OPAS/OMS no Brasil, 2016. p. 139-168.). Na ótica da origem dos recursos, o sistema de saúde brasileiro é constituído por dois subsistemas que, por sua vez, são formados por dois segmentos. No subsistema público, temos um segmento de acesso universalizado, que todos os cidadãos têm direito e acesso gratuito, em que a cobertura por outros serviços - privados ou destinados aos servidores públicos - não tira o direito de utilizar o sistema universal de saúde pública, o SUS. No segundo segmento restrito aos servidores públicos (civis e militares). O segundo subsistema é privado, que, por sua vez, é composto pelo segmento de planos e seguros de saúde, voluntariamente aderido pela população e financiado individualmente ou pelo empregador. Há também o sistema out of pocket, cujo pagamento é realizado no ato da prestação do serviço (BARROS; PIOLA, 2016BARROS, M. E. D.; PIOLA, S. F. O financiamento dos serviços de saúde no Brasil. In: MARQUES, R. M.; PIOLA, S. F.; ROA, A. C. (Orgs.). Sistema de saúde no Brasil: Organização e financiamento. Rio de Janeiro: ABrES; Brasília, DF: Ministério da Saúde: OPAS/OMS no Brasil, 2016. p. 101-138.). Nesse sentido, a criação do SUS caminhou em conjunto com a expansão do serviço privado de saúde.

Paim et al. (2011PAIM, J. et al. O sistema de saúde brasileiro: História, avanços e desafios. The Lancet, Séries Saúde no Brasil 1, 2011., p. 20) observam que “o subsistema privado de saúde se imbrica com o setor público, oferecendo serviços terceirizados pelo SUS, serviços hospitalares e ambulatoriais pagos por desembolso direto, medicamentos e planos e seguros de saúde privados”. Ou seja, parte da oferta privada de serviços de saúde é financiada pelo SUS, o restante por fontes privadas. Além de oferecer os serviços através da contratação de planos ou do pagamento direto por parte do demandante, o setor privado de saúde oferta serviços para o SUS (ROCHA, 2021ROCHA, M. A. Restruturação do setor privado de serviços de saúde: Atualidades e perspectivas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2021. (Texto para Discussão, 52: Saúde Amanhã).). Serviços de maior complexidade sanitária e tecnológica são, em sua grande maioria, atendidos por estabelecimentos públicos ou serviços privados conveniados ao sistema público (KAMIA; VARGAS; BRITTO, 2022KAMIA, F; VARGAS, M. A.; BRITTO, J. Mudança estrutural e participação do capital estrangeiro no setor de serviços de saúde brasileiro: uma análise das operações patrimoniais no período 1999-2018. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA INDUSTRIAL, 6., 30 maio-3 jun., Salvador, 2022. Anais […]. Salvador: [s. n.], 2022.).

Ao analisar a expansão das empresas privadas de saúde, Bahia et al. (2016aBAHIA, L.; SCHEFFER, M.; TAVARES, L. R.; BRAGA, I. F. Das empresas médicas às seguradoras internacionais: Mudanças no regime de acumulação e repercussões sobre o sistema de saúde no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 32, Sup. 2, e00154015, 2016a. DOI: 10.1590/0102-311X00154015.
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) pontuam as repercussões contraditórias do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND, 1975-1979), que ocorreu durante o período ditatorial (1964-1985). Os autores observam que, apesar do aumento de recursos para o Ministério da Saúde naquele período, a entidade serviu para financiar a ampliação da capacidade hospitalar privada e alavancar empresas de planos de saúde1 1 De acordo com Bahia et al. (2016a, p. 4), os empréstimos subsidiados por meio do Fundo de Apoio Social (FAT) financiaram investimentos em saúde privada, em vez de ampliar a capacidade da saúde pública. A criação da Amil é um exemplo da expansão empresarial, estimulada por investimentos governamentais, que quintuplicou o número de leitos entre 1974 e 1978 a partir da junção de um conjunto de hospitais. A Amil não é considerada na presente pesquisa porque nos propusemos analisar as empresas de capital aberto que estavam ativas no ano da coleta dos dados, em 2020, e a Amil fechou seu capital na Bovespa em 2013. . Nos anos que seguiram a redemocratização, as críticas à ineficiência dos serviços públicos e os problemas de qualidade dos serviços ofertados pela rede pública, vide a questão do subfinanciamento do SUS, impulsionaram tanto a oferta de planos e seguros de saúde quanto a demanda da população pela continuidade e expansão das coberturas privadas (BAHIA et al., 2016aBAHIA, L.; SCHEFFER, M.; TAVARES, L. R.; BRAGA, I. F. Das empresas médicas às seguradoras internacionais: Mudanças no regime de acumulação e repercussões sobre o sistema de saúde no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 32, Sup. 2, e00154015, 2016a. DOI: 10.1590/0102-311X00154015.
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).

Após a promulgação da CF 88, o arcabouço de políticas seguido pelos governos atuou como obstáculo para que o Brasil estabelecesse um sistema público de saúde universal (BAHIA et al., 2016bBAHIA, L.; SCHEFFER, M.; DAL POZ, M.; TAVARES, C. Planos privados de saúde com coberturas restritas: Atualização da agenda privatizante no contexto de crise política e econômica no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 32, n. 12, 2016b. DOI: 10.1590/0102-311X00184516.
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; DRUCK; FILGUEIRAS, 2007DRUCK, G; FILGUEIRAS, L. Política social focalizada e ajuste fiscal: As duas faces do governo Lula. Lusotopie XIV, v. 2, p. 133-146, 2007.; FAGNANI, 2011FAGNANI, E. A política social do governo Lula (2003-2010): Perspectiva histórica. SER Social, v. 13, n. 28, p. 41-80, jan./jun. 2011.; MARQUES; MENDES, 2012MARQUES, R. M.; MENDES, A. A problemática do financiamento da saúde pública brasileira: De 1985 a 2008. Economia e Sociedade, v. 21, n. 2 (45), p. 345-362, ago. 2012.; MENDES; FUNCIA, 2016MENDES, A.; FUNCIA, F. R. O SUS e seu financiamento. In: MARQUES, R. M.; PIOLA, S. F.; ROA, A. C. (Orgs.)..; Brasília, DF: Ministério da Saúde: OPAS/OMS no Brasil, 2016. p. 139-168.; SALVADOR, 2017SALVADOR, E. S. O desmonte do financiamento da seguridade social em contexto de ajuste fiscal. Revista Serv. Soc. Soc., n. 130, p. 426-446, set./dez. 2017.), passando a coexistir um sistema público, universal, com um sistema privado, que não deixou de crescer (BAHIA et al., 2016aBAHIA, L.; SCHEFFER, M.; TAVARES, L. R.; BRAGA, I. F. Das empresas médicas às seguradoras internacionais: Mudanças no regime de acumulação e repercussões sobre o sistema de saúde no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 32, Sup. 2, e00154015, 2016a. DOI: 10.1590/0102-311X00154015.
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; SCHEFFER, 2015SCHEFFER, M. O capital estrangeiro e a privatização do sistema de saúde brasileiro. Cad. Saúde Pública, v. 31, n. 4, p. 663-666, abr. 2015.). Por meio da Constituição, a saúde passa a ser considerada como direito do cidadão e dever do Estado a partir do entendimento de que a saúde não é uma questão exclusivamente biológica a ser resolvida pelos serviços médicos, mas de uma questão social e política a ser abordada no espaço público (PAIM et al., 2011PAIM, J. et al. O sistema de saúde brasileiro: História, avanços e desafios. The Lancet, Séries Saúde no Brasil 1, 2011.). Contudo, a agenda econômica liberal adotada na década de 1990 foi incompatível com a Seguridade Social2 2 O tripé da seguridade social brasileira é composto pela previdência, assistência e saúde. promulgada pela CF 88 (PAIM, 2013)PAIM, J. S. A Constituição cidadã e os 25 anos do Sistema Único de Saúde (SUS). Cad. Saúde Pública, v. 29, n. 10, p. 1927-1953, out. 2013.. As políticas universais foram substituídas por programas residuais, com controles e condicionalidades - i.e., focalizadas3 3 Isto é, tornaram-se políticas direcionadas à parcela da população mais pobre, deixando de visar a equidade e o acesso democrático à sociedade, e buscando evitar convulsões sociais mais sérias — especialmente em ambientes de recessão econômica, desemprego e baixos salários (DRAIBE, 1993). -, prevalecendo as transferências monetárias em vez da garantia da provisão do serviço de forma desmercantilizada (LAVINAS; ARAUJO; BRUNO, 2019LAVINAS, L.; ARAUJO, E.; BRUNO, M. Brazil: From Eliticized to Mass-Based Financialization. Revue de la régulation, v. 25, Spring 2019.). O subfinanciamento do SUS é constante, expressando a contradição entre um sistema de seguridade universal e a adoção de uma agenda ortodoxa liberalizante.

O conjunto de reformas que o país passou na década de 1990 adicionou obstáculos ao financiamento do SUS, com a criação de um mecanismo de desvinculação entre receitas e despesas. O Fundo Social de Emergência, criado em 1994, depois renomeado para Desvinculação das Receitas da União (DRU), instituiu que 20% dos recursos da Seguridade Social poderiam ser alocados para qualquer fim (DRUCK; FILGUEIRAS, 2007DRUCK, G; FILGUEIRAS, L. Política social focalizada e ajuste fiscal: As duas faces do governo Lula. Lusotopie XIV, v. 2, p. 133-146, 2007.; FAGNANI, 2011FAGNANI, E. A política social do governo Lula (2003-2010): Perspectiva histórica. SER Social, v. 13, n. 28, p. 41-80, jan./jun. 2011.; MARQUES; MENDES, 2012MARQUES, R. M.; MENDES, A. A problemática do financiamento da saúde pública brasileira: De 1985 a 2008. Economia e Sociedade, v. 21, n. 2 (45), p. 345-362, ago. 2012.), permitindo que um quinto do total de impostos e contribuições federais destinados à Seguridade Social sejam utilizados de acordo com as conveniências políticas, inclusive para pagamento dos juros da dívida pública, antes que as fontes de financiamento do SUS fossem definidas. Em 2016, com a aprovação da emenda constitucional (EC) 31/2016, a DRU foi prorrogada até 2023 e ampliada para 30%, agravando a problemática do financiamento da Seguridade Social brasileira.

Assim, o direito universal à saúde foi instituído no Brasil sem definição acerca de como se daria o financiamento do SUS. A criação do Orçamento da Seguridade Social (OSS) separado do orçamento fiscal não foi suficiente para garantir a efetividade dos recursos necessários para atender à população, ocorrendo apenas formalmente, sem uma iniciativa articulada e sistêmica dos órgãos responsáveis pela Seguridade Social (MENDES; FUNCIA, 2016MENDES, A.; FUNCIA, F. R. O SUS e seu financiamento. In: MARQUES, R. M.; PIOLA, S. F.; ROA, A. C. (Orgs.)..; Brasília, DF: Ministério da Saúde: OPAS/OMS no Brasil, 2016. p. 139-168.; SALVADOR, 2017SALVADOR, E. S. O desmonte do financiamento da seguridade social em contexto de ajuste fiscal. Revista Serv. Soc. Soc., n. 130, p. 426-446, set./dez. 2017.). Mediante às constantes disputas no interior da Seguridade Social pelos recursos, algumas propostas foram apresentadas para resolver a problemática do financiamento do SUS. Entre elas, vale destacar a criação da Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira (CPMF), em 1997, cujos recursos seriam integralmente destinados à saúde4 4 A totalidade dos recursos arrecadados com a CPMF foi destinada à saúde até o início de 1999. A partir de junho daquele ano, uma parcela da arrecadação passou a ser destinada à Previdência Social, e a alíquota desse tributo aumenta de 0,20% para 0,38% (PIOLA et al., 2013). . Todavia, na medida que tinha como objetivo ampliar o financiamento da saúde, a CPMF atuou somente como estabilizadora. A constante do subfinanciamento se manteve porque os recursos provenientes da CPMF acabaram substituindo recursos de outras fontes de financiamento da saúde (BARROS; PIOLA, 2016BARROS, M. E. D.; PIOLA, S. F. O financiamento dos serviços de saúde no Brasil. In: MARQUES, R. M.; PIOLA, S. F.; ROA, A. C. (Orgs.). Sistema de saúde no Brasil: Organização e financiamento. Rio de Janeiro: ABrES; Brasília, DF: Ministério da Saúde: OPAS/OMS no Brasil, 2016. p. 101-138.; PIOLA et al., 2013PIOLA, S. F. et al. Financiamento público da saúde: Uma história à procura de rumo. Brasília, DF: Ipea, jul. 2013. (Texto para Discussão).).

Só com a promulgação da EC 29/2000 houve maior estabilidade para o financiamento da saúde, ao definir montantes mínimos a serem aplicados pela União, pelos estados (e Distrito Federal) e municípios em Ações e Serviços Públicos de Saúde (ASPS) (BARROS; PIOLA, 2016BARROS, M. E. D.; PIOLA, S. F. O financiamento dos serviços de saúde no Brasil. In: MARQUES, R. M.; PIOLA, S. F.; ROA, A. C. (Orgs.). Sistema de saúde no Brasil: Organização e financiamento. Rio de Janeiro: ABrES; Brasília, DF: Ministério da Saúde: OPAS/OMS no Brasil, 2016. p. 101-138.; PIOLA et al., 2013PIOLA, S. F. et al. Financiamento público da saúde: Uma história à procura de rumo. Brasília, DF: Ipea, jul. 2013. (Texto para Discussão).; MARQUES; MENDES, 2012MARQUES, R. M.; MENDES, A. A problemática do financiamento da saúde pública brasileira: De 1985 a 2008. Economia e Sociedade, v. 21, n. 2 (45), p. 345-362, ago. 2012.), cuja correção corresponderia à variação nominal do PIB5 5 Para mais sobre a falta de regulamentação da EC 29/2000 e a polêmica acerca da base que incidiria a correção (“base fixa” × “base móvel”), ver Piola et al. (2013, p. 19-24). . Apesar de ter sido um importante passo para a construção de um sistema de saúde universal, muitos problemas continuaram sem solução. A EC 29/2000 foi omissa em relação às disputas por recursos existentes no interior da Seguridade Social, não esclarecendo de que modo essa distribuição ocorrerá no interior do OSS, assim como não esclareceu a origem dos recursos para a União (MARQUES; MENDES, 2012MARQUES, R. M.; MENDES, A. A problemática do financiamento da saúde pública brasileira: De 1985 a 2008. Economia e Sociedade, v. 21, n. 2 (45), p. 345-362, ago. 2012.; MENDES; FUNCIA, 2016MENDES, A.; FUNCIA, F. R. O SUS e seu financiamento. In: MARQUES, R. M.; PIOLA, S. F.; ROA, A. C. (Orgs.)..; Brasília, DF: Ministério da Saúde: OPAS/OMS no Brasil, 2016. p. 139-168.). Além da definição das fontes de financiamento ter sido tardia, ocorrendo doze anos após a instituição da saúde como direito universal, a regulamentação da EC foi igualmente lenta, ocorrendo em 2012 (MENDES; FUNCIA, 2016MENDES, A.; FUNCIA, F. R. O SUS e seu financiamento. In: MARQUES, R. M.; PIOLA, S. F.; ROA, A. C. (Orgs.)..; Brasília, DF: Ministério da Saúde: OPAS/OMS no Brasil, 2016. p. 139-168.; PIOLA et al., 2013PIOLA, S. F. et al. Financiamento público da saúde: Uma história à procura de rumo. Brasília, DF: Ipea, jul. 2013. (Texto para Discussão).). A regulamentação da emenda constitucional não expandiu a alocação de recursos para o SUS, mantendo a mesma regra do piso, o qual já era estabelecido para as três esferas do governo pela EC 29/2000 (FUNCIA; OCKÉ-REIS, 2018REIS, C. R.; PAIM, J. S. A saúde nos períodos dos governos Dilma Rousseff (2011-2016). Revista Divulgação em Saúde para Debate, n. 58, p. 101-114, jul. 2018.; PIOLA et al., 2013PIOLA, S. F. et al. Financiamento público da saúde: Uma história à procura de rumo. Brasília, DF: Ipea, jul. 2013. (Texto para Discussão).). Nesse ínterim, a construção de um sistema de saúde público e universal não foi prioridade dos governos - apesar do forte efeito social que o gasto com Seguridade tem (CEPAL, 2015)CEPAL - COMISSÃO ECONÔMICA PARA A AMÉRICA LATINA E O CARIBE. Panorama fiscal de América Latina y el Caribe 2015: Dilemas y espacios de políticas. Santiago: CEPAL, 2015. Disponível em: Disponível em: http://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/37747/1/ S1500053_es.pdf . Acesso em: 31 jan. 2021.
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6 6 Um estudo realizado pela Cepal (2015) em relação ao efeito da política fiscal sobre a distribuição de renda no Brasil indicou que o maior impacto redistributivo é proporcionado pela transferência monetária — que está no âmbito das políticas sociais — e pelo gasto com a Seguridade. No que diz respeito à saúde, o estudo conclui que o gasto público com serviços públicos na saúde é progressivo em termos relativos e contribui para reduzir a desigualdade. .

Apesar da EC 29/2000 ter sido um avanço para o SUS, não foi suficiente para garantir sua universalidade (MARQUES; MENDES, 2012MARQUES, R. M.; MENDES, A. A problemática do financiamento da saúde pública brasileira: De 1985 a 2008. Economia e Sociedade, v. 21, n. 2 (45), p. 345-362, ago. 2012.). Como a política macroeconômica seguida durante os anos 2000 se manteve no eixo adotado desde a estabilização monetária, cujo objetivo central era garantir elevados superávits primários e o cumprimento das metas de inflação. Assim, o arcabouço de políticas sociais focalizadas prevaleceu. As constantes pressões para a redução dos gastos públicos para atingir os resultados requeridos pelo tripé macroeconômico tiveram efeito sobre a efetivação dos direitos sociais (BAHIA, 2015BAHIA, L. O SUS de pé, mas combalido. In: SOUZA, P. (Org.). Brasil, sociedade em movimento. São Paulo: Paz e Terra, 2015.). Na saúde, o subfinanciamento e contingenciamento se tornaram regulares.

A prevalência de um arcabouço de políticas sociais focalizadas foi acompanhada por inovações no setor privado de saúde. Bahia (2013BAHIA, L. Financeirização e restrição de coberturas: Estratégias recentes de expansão das empresas de planos e seguros de saúde no Brasil. In: COHN, A. (Org.). Saúde, Cidadania e Desenvolvimento. Rio de Janeiro: E-papers, 2013. p. 65-87.) observa que, durante o início dos anos 2000, as empresas passam a adotar duas estratégias de alavancagem, sendo uma delas a obtenção de recursos através da abertura do capital na bolsa de valores, a qual se expandiu através da abertura de ações e debêntures, associações com bancos de investimentos e empréstimos internacionais. Observamos o início da transformação de um direito social em um ativo financeiro que integra o portfólio de investimentos globais, com investidores distantes e alheios à prestação do serviço (CORDILHA; LAVINAS, 2018AGLIETTA, M. Shareholder value and corporate governance: some tricky questions. Economy and Society, v. 29, n. 1, p. 146-159, 2000.; LAVINAS; GENTIL, 2018LAVINAS, L.; GENTIL, D. L. Brasil anos 2000: A política social sob regência da financeirização. Novos Estudos Cebrap, Dossiê balanço crítico da economia brasileira (2003-2016), maio/ago, p. 191-211, 2018.).

Outra estratégia de alavancagem das empresas privadas de saúde foi a proposta da oferta de planos de saúde “acessíveis”, de cobertura restrita e menor custo (BAHIA, 2013BAHIA, L. Financeirização e restrição de coberturas: Estratégias recentes de expansão das empresas de planos e seguros de saúde no Brasil. In: COHN, A. (Org.). Saúde, Cidadania e Desenvolvimento. Rio de Janeiro: E-papers, 2013. p. 65-87.; BAHIA et al., 2016bBAHIA, L.; SCHEFFER, M.; DAL POZ, M.; TAVARES, C. Planos privados de saúde com coberturas restritas: Atualização da agenda privatizante no contexto de crise política e econômica no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 32, n. 12, 2016b. DOI: 10.1590/0102-311X00184516.
https://doi.org/10.1590/0102-311X0018451...
). De acordo com Bahia (2013BAHIA, L. Financeirização e restrição de coberturas: Estratégias recentes de expansão das empresas de planos e seguros de saúde no Brasil. In: COHN, A. (Org.). Saúde, Cidadania e Desenvolvimento. Rio de Janeiro: E-papers, 2013. p. 65-87.), a proposta configura uma inovação na área comercial das operadoras de saúde suplementar, demandada pelas próprias empresas, as quais buscam o direito de ofertar “planos acessíveis” que não asseguram a cobertura impostas pela lei que regulamentou as atividades das empresas de planos e seguros de saúde (lei federal 9.656/1998). A viabilidade dos “planos acessíveis” ocorreria por duas vias: pelo lado da demanda, através do aumento das despesas diretas das famílias com ações e serviços de saúde, e pelo lado das empresas, através da integração de parte da rede pública do SUS aos serviços credenciados pelos planos de saúde (BAHIA et al., 2016b)BAHIA, L.; SCHEFFER, M.; DAL POZ, M.; TAVARES, C. Planos privados de saúde com coberturas restritas: Atualização da agenda privatizante no contexto de crise política e econômica no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 32, n. 12, 2016b. DOI: 10.1590/0102-311X00184516.
https://doi.org/10.1590/0102-311X0018451...
. É importante pontuar que, apesar do beneficiário desse tipo de plano ter convênio médico privado, os serviços e tratamentos de alto custo continuaram a ser providos pelo SUS devido à baixa cobertura do plano e ao elevado custo dos serviços que demandam alta tecnologia e dos tratamentos mais complicados. A proposta garante ganhos de escala para o setor privado sem ameaçar sua rentabilidade, uma vez que a oferta privada é respaldada pelo Estado, o qual cobre os serviços que os planos se negam a prestar (CORDILHA; LAVINAS, 2018CORDILHA, A. C.; LAVINAS, L. Transformações dos sistemas de saúde na era da financeirização: Lições da França e do Brasil. Ciência e Saúde Coletiva, v. 23, n. 7, p. 2147-2158, 2018.).

Outro fator de peso no subfinanciamento do SUS se refere às vastas desonerações tributárias concedidas ao setor privado de saúde. As desonerações fiscais consistem em gastos indiretos do governo, em que o Estado realiza um pagamento implícito ao reduzir a arrecadação dos tributos - i.e., reduz a receita tributária. De acordo com estudo realizado por Salvador (2017SALVADOR, E. S. O desmonte do financiamento da seguridade social em contexto de ajuste fiscal. Revista Serv. Soc. Soc., n. 130, p. 426-446, set./dez. 2017.), o orçamento da Seguridade Social seria superavitário caso não houvesse renúncias tributárias.

Ocké-Reis (2013)OCKÉ-REIS, C. O. Mensuração dos gastos tributários: o caso dos planos de saúde - 2003-2011. Nota Técnica IPEA, n. 5, maio 2013. observa que nem mesmo a partir de 2007, com o fim da CPMF e o consequente agravamento do financiamento do SUS, as desonerações fiscais foram suavizadas. O autor constata que, em 2005, houve um crescimento real da renúncia fiscal, superando a expansão do gasto público em saúde, que se sustentou até 2009. Ocké-Reis e Gama (2016)OCKÉ-REIS, C. O.; GAMA, F. N. Radiografia do gasto tributário em saúde, 2003-2013. Nota Técnica IPEA, n. 19, maio 2016. constatam que, de 2003 a 2013, o gasto tributário em saúde foi de aproximadamente R$ 230 bilhões (a preços médios de 2013) - um volume expressivo de subsídios concedidos pelo governo ao setor privado se considerarmos o subfinanciamento da saúde pública. O elevado gasto tributário do governo em saúde explica parte da expressiva valorização do mercado de planos de saúde, cujo faturamento quase dobrou e o lucro líquido cresceu mais de duas vezes e meia acima da inflação entre 2003 e 2011 (OCKÉ-REIS, 2013OCKÉ-REIS, C. O. Mensuração dos gastos tributários: o caso dos planos de saúde - 2003-2011. Nota Técnica IPEA, n. 5, maio 2013.). A partir do estudo, “pode-se afirmar que a renúncia fiscal associada aos gastos com planos de saúde contribuiu em torno de 10,79% em 2003 e 9,18% em 2011 para o resultado desse faturamento [do mercado de planos de saúde]” (OCKÉ-REIS, 2013, p. 11)OCKÉ-REIS, C. O. Mensuração dos gastos tributários: o caso dos planos de saúde - 2003-2011. Nota Técnica IPEA, n. 5, maio 2013..

Vale mencionar que, paralelamente ao subfinanciamento do SUS, o setor privado de saúde passou por mudanças estruturais7 7 De acordo com Kamia, Vargas e Britto (2022, p. 3), “as mudanças estruturais observadas no segmento de serviços de saúde estão associadas a três dimensões inter-relacionadas: (i) a dimensão econômica, produtiva e tecnológica, com a introdução de inovações que geram novas oportunidades aumentam a apropriabilidade nos serviços de saúde, alterando suas formas de organização, processos, produtos e mercados; (ii) a dimensão demográfica e epidemiológica da população, que se traduzem em novas demandas de cuidado de saúde; (iii) a dimensão institucional, que envolve desde a atuação de governos e das agências regulatórias até aspectos culturais, como a percepção do direito à saúde pela sociedade”. durante as décadas pós-redemocratização. Entre elas, podemos mencionar a abertura irrestrita à entrada do capital estrangeiro no mercado de serviços de saúde brasileiro. Os defensores da abertura argumentam que o capital estrangeiro seria capaz de aumentar o investimento em saúde privada, liberando recursos para o SUS. Contudo, o crescimento do setor privado drena recursos financeiros, físicos e humanos do sistema público, além de aprofundar a segmentação do sistema de saúde e as disparidades no acesso à saúde (KAMIA; VARGAS; BRITTO, 2022KAMIA, F; VARGAS, M. A.; BRITTO, J. Mudança estrutural e participação do capital estrangeiro no setor de serviços de saúde brasileiro: uma análise das operações patrimoniais no período 1999-2018. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA INDUSTRIAL, 6., 30 maio-3 jun., Salvador, 2022. Anais […]. Salvador: [s. n.], 2022.). Por mais que o capital estrangeiro já operasse no mercado nacional, ainda que de forma velada8 8 A participação do capital estrangeiro era proibida, salvo em casos previsto na Lei dos Planos de Saúde (9.656/1998), que permitiu o capital estrangeiro nos negócios de assistência suplementar (SCHEFFER, 2015). Ao longo da década de 2000, a participação do capital estrangeiro ganhou força nos serviços de saúde, ainda que de forma disfarçada (BAHIA et al., 2016a). , em 2015 ocorre a abertura ampla e irrestrita do mercado de saúde ao capital estrangeiro (KAMIA; VARGAS; BRITTO, 2022KAMIA, F; VARGAS, M. A.; BRITTO, J. Mudança estrutural e participação do capital estrangeiro no setor de serviços de saúde brasileiro: uma análise das operações patrimoniais no período 1999-2018. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA INDUSTRIAL, 6., 30 maio-3 jun., Salvador, 2022. Anais […]. Salvador: [s. n.], 2022.; SCHEFFER, 2015SCHEFFER, M. O capital estrangeiro e a privatização do sistema de saúde brasileiro. Cad. Saúde Pública, v. 31, n. 4, p. 663-666, abr. 2015.).

Também é observada uma crescente estratégia de fusões e aquisições das empresas de saúde, tanto em operações domésticas quanto estrangeiras, o que, por um lado, ampliou o grau concentração do mercado de saúde privado e, por outro, aumentou sua internacionalização (BAHIA et al., 2016aBAHIA, L.; SCHEFFER, M.; TAVARES, L. R.; BRAGA, I. F. Das empresas médicas às seguradoras internacionais: Mudanças no regime de acumulação e repercussões sobre o sistema de saúde no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 32, Sup. 2, e00154015, 2016a. DOI: 10.1590/0102-311X00154015.
https://doi.org/10.1590/0102-311X0015401...
; KAMIA; VARGAS; BRITTO, 2022KAMIA, F; VARGAS, M. A.; BRITTO, J. Mudança estrutural e participação do capital estrangeiro no setor de serviços de saúde brasileiro: uma análise das operações patrimoniais no período 1999-2018. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA INDUSTRIAL, 6., 30 maio-3 jun., Salvador, 2022. Anais […]. Salvador: [s. n.], 2022.; ROCHA, 2021ROCHA, M. A. Restruturação do setor privado de serviços de saúde: Atualidades e perspectivas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2021. (Texto para Discussão, 52: Saúde Amanhã).). Rocha (2021ROCHA, M. A. Restruturação do setor privado de serviços de saúde: Atualidades e perspectivas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2021. (Texto para Discussão, 52: Saúde Amanhã).) percebe um processo de concentração no setor ao verificar que, em 2020, havia cerca de setecentas operadoras médico-hospitalares concentrando o total de beneficiários, com as dez maiores operadoras concentrando 40% desse total de beneficiários. O autor pontua ainda que a assimilação das tecnologias digitais também foi um fator importante para a transformação dos padrões de concorrência do setor desde a década de 1990. O avanço da microeletrônica aumentou a complexidade tecnológica de diversos serviços de saúde, e a introdução de novas tecnologias, que elevava os custos fixos para hospitais e laboratórios, incentivou o processo de concentração ao induzir a ampliação da escala de operação das empresas de saúde. Assim, a assimilação de novas tecnologias foi acompanhada pela expansão do setor de saúde privado e pelo aumento do número de fusões entre as empresas do setor. A respeito dos investimentos necessários para adquirir tais tecnologias, Rocha (2021, p. 14)ROCHA, M. A. Restruturação do setor privado de serviços de saúde: Atualidades e perspectivas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2021. (Texto para Discussão, 52: Saúde Amanhã). observa que foi necessário “expandir o número de atendimentos das unidades clínicas e hospitalares e das análises laboratoriais, favorecendo a estratégia de atuação dos fundos financeiros no financiamento da concentração empresarial do setor”.

Assim, o subfinanciamento da saúde pública e os constantes incentivos à expansão do setor e ao consumo de saúde privada foram acompanhados por mudanças estruturais no setor de saúde suplementar. A expansão do setor privado de saúde atingiu tal magnitude que fez com que as empresas que ofertam planos e seguros privados estejam entre os maiores grupos empresariais do país (BAHIA et al., 2016aBAHIA, L.; SCHEFFER, M.; TAVARES, L. R.; BRAGA, I. F. Das empresas médicas às seguradoras internacionais: Mudanças no regime de acumulação e repercussões sobre o sistema de saúde no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 32, Sup. 2, e00154015, 2016a. DOI: 10.1590/0102-311X00154015.
https://doi.org/10.1590/0102-311X0015401...
; MARTINS; OCKÉ-REIS; DRACH, 2021MARTINS, N. M.; OCKÉ-REIS, C. O.; DRACH, D. C. Financeirização dos planos de saúde: O caso das operadoras líderes no Brasil (2007-2019). Rio de Janeiro: IE-UFRJ, 2021. (Texto para Discussão, 1/2021).). Esse processo de crescente mercantilização da saúde atinge um novo estágio com a proeminência de aspectos financeiros na operação das empresas, como discutiremos à frente.

2. O GASTO PÚBLICO COM SAÚDE E A CRESCENTE MERCANTILIZAÇÃO DO DIREITO SOCIAL

A proposta de atenção universal e equidade no acesso à saúde não é sustentável sem a garantia de recursos. Desde o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias de 1988 - que, como resposta à questão do financiamento, permanecia sem acordo, determinou que ao menos 30% do OSS (excluído o seguro-desemprego) deveria ser destinado ao setor de saúde -, a determinação orçamentária não é cumprida pela equipe econômica do governo federal, assim como não foi mantida na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) a partir de 1993.

Não obstante os estrangulamentos do financiamento do SUS, o acesso à saúde foi ampliado, com aumento de 55% para 76,2% da proporção de pessoas que consultaram médicos entre 2003 e 2019 (BAHIA, 2015BAHIA, L. O SUS de pé, mas combalido. In: SOUZA, P. (Org.). Brasil, sociedade em movimento. São Paulo: Paz e Terra, 2015.; IBGE, 2019cIBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa Nacional de Saúde: Brasil, 2019. Rio de Janeiro: IBGE, 2019c.). Contudo, a maior procura por serviços públicos de saúde ocorre em concomitância com a maior procura por alternativas de assistência à saúde no setor privado, justificado pelo insuficiente gasto com ASPS. Apesar de a despesa per capita do governo geral com saúde ter aumentado ao longo do tempo, percebemos que a despesa privada com saúde também apresentou crescimento acentuado (Gráfico 1).

Gráfico 1
Despesa per capita com saúde do Brasil em dólares internacionais (Paridade do Poder de Compra, PPC), 2000-2018

A pesquisa especial realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2019a)IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Conta-satélite de saúde: Brasil, 2010-2017. Rio de Janeiro: IBGE, 2019a. sobre o perfil e evolução do setor de saúde evidencia a menor participação do governo nas despesas com consumo final de bens e serviços de saúde. Mesmo com o SUS e o direito à saúde pública assegurado constitucionalmente, as famílias assumem a maior parte das despesas com saúde. A despesa com consumo final de bens e serviços de saúde do Brasil aumentou de 8% para 9,2% do PIB entre 2010 e 2017; desses, o aumento da participação das famílias e instituições sem fins lucrativos (ISFL)9 9 As ISLF representaram 0,1 p.p. do consumo final de bens e serviços de saúde das famílias entre 2010 a 2017. foi mais significativo, de 4,4% em 2010 para 5,4% em 2017, enquanto o governo apresentou crescimento mais tímido, passando de 3,6% para 3,9% durante aquele período (Gráfico 2).

Gráfico 2
Indicadores Brasil: despesas com consumo final de bens e serviços de saúde como percentual do PIB, segundo setores institucionais, 2010-2017

A elevada despesa familiar com o consumo final de bens e serviços de saúde não surpreende ao analisarmos as despesas privadas com saúde como porcentagem das despesas correntes com saúde. Realizando comparações internacionais - quando analisamos a despesa corrente total (público e privado) em saúde como proporção do PIB -, verifica-se que o gasto do Brasil é próximo ao de países onde a saúde também constitui um direito universal. De acordo com os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS, 2020), em 2019, a despesa corrente com saúde do Brasil como proporção do PIB (9,6%) foi próxima à despesa de países como Espanha (9,1%), Portugal (9,5%), Reino Unido (10,1%), Canadá (10,8%) e Suécia (10,9%), que também têm um sistema público e universal de saúde. Todavia, quando analisamos a despesa corrente per capita em dólares internacionais, percebemos que o gasto do Brasil é inferior, o que reflete o nível de renda menor do Brasil em comparação com esses países. O que chama a atenção é a significativa participação da despesa privada do país na distribuição do gasto com saúde, de modo que o perfil das despesas brasileiras se assemelha ao de países10 10 É importante ressaltar que nenhum dos países reconhecidos por possuírem um sistema de saúde público e universal tem população da magnitude da brasileira, reforçando a insuficiência do gasto público brasileiro em atender à toda população. onde a saúde não constitui um direito universal e dever do Estado (Tabela 1) (SOARES; SANTOS, 2014SOARES, A.; SANTOS, N. R. Financiamento do Sistema Único de Saúde nos governos FHC, Lula e Dilma. Saúde Debate, v. 38, n. 100, p. 18-25, jan./mar. 2014.).

Tabela 1
PIB per capita e despesas per capita com saúde de países selecionados, em 2019, em dólares internacionais (PPC)

Em renda per capita, os dados do Banco Mundial mostram que o PIB per capita brasileiro só supera o do Paraguai, sendo inferior aos demais países listados na Tabela 1. Em termos da despesa corrente per capita (pública e privada) em saúde, os dados da OMS mostram que, em comparação internacional, a despesa brasileira é baixa para um país onde a saúde constitui um direito universal e dever do Estado. Países que não dispõe de um sistema de saúde público universal, como Chile e Estados Unidos, têm despesa per capita superior à brasileira - contudo, vale mencionar, o PIB per capita em PPC desses países também é maior que o do Brasil.

O Brasil apresenta um elevado gasto privado com saúde para um país que dispõe de um sistema público e universal. Enquanto a despesa per capita do governo geral em saúde foi de US$ 610, a despesa privada em saúde atingiu US$ 885 em 2019. As despesas do governo geral com saúde, como porcentagem da despesa total em saúde, da Espanha (70,6%), Portugal (61%), Reino Unido (79,5%), Canadá (70%) e Suécia (84,9%) têm um valor elevado diante do Brasil (41%), que é inferior. É verdade que o PIB per capita de todos esses países também é bastante superior ao do Brasil. Isso não invalida o fato de que o gasto privado com saúde supera o público em um país que tem um sistema único de saúde que deve garantir a universalidade, equidade e integralidade ao acesso, assegurado pela Constituição. Isso indica que o gasto com saúde no país deveria ser ampliado - especialmente o gasto público, considerando que a saúde no Brasil configura um direito social e um dever do Estado. O Brasil é o único país com sistema universal de saúde onde o gasto privado supera o público (BARROS; PIOLA, 2016BARROS, M. E. D.; PIOLA, S. F. O financiamento dos serviços de saúde no Brasil. In: MARQUES, R. M.; PIOLA, S. F.; ROA, A. C. (Orgs.). Sistema de saúde no Brasil: Organização e financiamento. Rio de Janeiro: ABrES; Brasília, DF: Ministério da Saúde: OPAS/OMS no Brasil, 2016. p. 101-138.).

O elevado gasto privado com saúde é acompanhado por uma elevada inflação do setor, cuja variação em valor foi mais expressiva do que a variação em volume. É importante pontuar que a elevada inflação do setor decorre da tendência de custos e preços crescentes - e que, dado o subfinanciamento do SUS, o tamanho do gasto privado com saúde é pressionado. A pesquisa especial do IBGE (2019a)IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Conta-satélite de saúde: Brasil, 2010-2017. Rio de Janeiro: IBGE, 2019a. indica que a variação em valor do consumo final de bens e serviços de saúde foi positiva e crescente entre 2011 e 2014 (respectivamente, 10,4% e 15,2%), desacelerando em 2015 (8,9%), em grande medida devido à crise econômica brasileira de 2015. Ainda assim, a variação em valor não chega a ficar negativa, tendo apresentado, em 2017, o menor resultado da série (4,3%). Já a variação em volume foi expressivamente menor, oscilando no período, sem apresentar crescimento constante. Partindo de 2011 (3,6%), a variação em volume do consumo final de bens e serviços de saúde chega a 4,4% no pré-crise, desacelerando em 2015 (1,1%). Em 2016, houve a única variação negativa da série (−1,5%), voltando a variar positivamente em 2017 (0,6%). Entre os componentes da inflação do setor de saúde, a mais pronunciada é a inflação dos planos de saúde. Entre 2000 e 2018, a taxa acumulada da inflação dos planos de saúde (382%) foi expressivamente maior que a taxa acumulada da inflação da saúde11 11 Não considera o item “plano de saúde” e o subgrupo “cuidados pessoais” para evitar a retroalimentação do índice. como um todo (180%) e do IPCA (208%). Isso indica que há um deslocamento da tendência dos preços gerais (inclusive saúde) com a dos planos de saúde, uma vez que o crescimento médio anual deste último (8,71%) foi expressivamente maior que o do IPCA (5,96%) e do IPCA-Saúde (5,51%) (OCKÉ-REIS; FIUZA; COIMBRA, 2019OCKÉ-REIS, C. O.; FIUZA, E. P. S.; COIMBRA, P. H. H. Inflação dos planos de saúde, 2000-2018. Nota técnica IPEA, n. 54, maio 2019.).

A maior despesa privada com saúde e a elevada inflação do setor se refletem no comprometimento do orçamento familiar, que cresceu nos últimos anos. A Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) indica que a parcela dos gastos das famílias destinados à saúde aumentou, assim como cresceu a procura por planos e seguros de saúde (Quadro 1).

Quadro 1
Distribuição das despesas médias mensais familiares, segundo os tipos de despesas

O maior comprometimento da renda familiar com bens e serviços de saúde indica o avanço da mercantilização da saúde. A pesquisa especial do IBGE (2019a)IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Conta-satélite de saúde: Brasil, 2010-2017. Rio de Janeiro: IBGE, 2019a. aponta que, enquanto o consumo do governo com bens e serviços de saúde (pública e privada) apresentou um crescimento real acumulado de 16,4% entre 2010 e 2017, o consumo final de saúde privada das famílias cresceu 48,7%12 12 Segundo pesquisa do IBGE (2019a), a preços de 2017, o consumo final do governo com saúde pública em 2010 foi de R$ 167,8 bilhões, e com saúde privada, R$ 42,9 bilhões. Em 2017, esses valores foram, respectivamente, de R$ 201,6 bilhões e R$ 43,6 bilhões. Já o consumo final de saúde privada das famílias passou de R$ 155,4 bilhões em 2010 para R$ 231,1 bilhões em 2017. . O menor crescimento do consumo do governo no período da pesquisa (2010-2017) é reflexo da agenda de políticas econômicas adotada na época, orientada pela oferta e marcada por vastas desonerações e subsídios. A saúde não foi prioridade dos governos, e a política social se restringiu às políticas de transferência de renda com condicionalidades, sendo mantido o subfinanciamento do SUS (REIS; PAIM, 2018REIS, C. R.; PAIM, J. S. A saúde nos períodos dos governos Dilma Rousseff (2011-2016). Revista Divulgação em Saúde para Debate, n. 58, p. 101-114, jul. 2018.). Com efeito, a participação das despesas com saúde do governo no consumo final passa de 18,9% em 2010 para 19,2% em 2017, ao passo que as famílias apresentam evolução mais expressiva, passando de 7,3% para 8,3%, respectivamente. Assim, enquanto a participação das despesas com saúde do governo apresentou um tímido aumento de 0,2 p.p., a das famílias avançou 1,1 p.p. no período.

Apesar do principal gasto das famílias com saúde em 2017 ter sido referente à saúde privada, correspondendo a 66,8% do total das despesas com saúde (IBGE, 2019a)IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Conta-satélite de saúde: Brasil, 2010-2017. Rio de Janeiro: IBGE, 2019a., esse crescimento ocorre em paralelo ao aumento da demanda por serviços públicos. A Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), realizada em 2019, identifica que 64,6% das pessoas (8,9 milhões) que ficaram internadas em hospitais utilizaram o SUS (IBGE, 2019c)IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa Nacional de Saúde: Brasil, 2019. Rio de Janeiro: IBGE, 2019c.. Contudo, os resultados da pesquisa expressam as disparidades no acesso à saúde privada, sendo a parcela da população mais vulnerável a mais dependente do sistema público de saúde.

Percebe-se aquilo que Bahia (2013BAHIA, L. Financeirização e restrição de coberturas: Estratégias recentes de expansão das empresas de planos e seguros de saúde no Brasil. In: COHN, A. (Org.). Saúde, Cidadania e Desenvolvimento. Rio de Janeiro: E-papers, 2013. p. 65-87.) identificou como um dos novos requerimentos à expansão da privatização da saúde impostos durante a redemocratização: a construção da narrativa que partia de dois pressupostos, “o sistema de saúde público exclusivo para pobres (não pagantes) e a superioridade da eficiência e qualidade da administração de fundos coletivos e estabelecimentos de saúde por agentes privados” (BAHIA, 2013BAHIA, L. Financeirização e restrição de coberturas: Estratégias recentes de expansão das empresas de planos e seguros de saúde no Brasil. In: COHN, A. (Org.). Saúde, Cidadania e Desenvolvimento. Rio de Janeiro: E-papers, 2013. p. 65-87., p. 69). Trata-se de uma narrativa que busca legitimar a coexistência de um sistema público com um setor privado que não foi revogado, nem desincentivado, mesmo diante da construção de um sistema de saúde universal. A universalidade do SUS acabou sendo convertida em uma espécie de focalização, direcionada àqueles que não podem arcar com os custos dos serviços de saúde privados e aos diagnósticos que demandam tratamentos mais complexos e custosos, em vez de ser efetivamente universal. De fato, mais de três décadas após a Constituição, é possível perceber que, com a política focalizada do SUS, o serviço público se tornou direcionado à população mais pobre. A PNS (IBGE, 2019c)IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa Nacional de Saúde: Brasil, 2019. Rio de Janeiro: IBGE, 2019c. evidencia que 95% das pessoas sem rendimento, ou que recebem até ¼ do salário mínimo e que se internaram, utilizaram os serviços do SUS - proporção bastante superior se comparado às pessoas que recebem mais de cinco salários mínimos (6,8%). A disparidade se repete ao analisar aqueles que têm planos de saúde, em que 86,8% das pessoas com renda superior a cinco salários mínimos possuíam plano médico de saúde em 2019, proporção bastante superior àqueles cujo rendimento é de até ¼ do salário mínimo (2,2%). Vale ressaltar que o cenário de crise econômica de 2015, e a consequente queda da renda e o aumento do desemprego, acentuou a segmentação do acesso ao mercado privado de saúde, cada vez mais restrito àqueles que dispõem de maiores rendimentos e melhores contratos de trabalho.

3. O AVANÇO DA FINANCEIRIZAÇÃO DAS EMPRESAS DE SAÚDE

A mercantilização da saúde avança. Como observado por Bahia (2013BAHIA, L. Financeirização e restrição de coberturas: Estratégias recentes de expansão das empresas de planos e seguros de saúde no Brasil. In: COHN, A. (Org.). Saúde, Cidadania e Desenvolvimento. Rio de Janeiro: E-papers, 2013. p. 65-87.), uma das estratégias de alavancagem que as empresas que atuam no setor de saúde passaram a adotar a partir dos anos 2000 foi a de abrir o capital na bolsa de valores. Kamia, Vargas e Britto (2022KAMIA, F; VARGAS, M. A.; BRITTO, J. Mudança estrutural e participação do capital estrangeiro no setor de serviços de saúde brasileiro: uma análise das operações patrimoniais no período 1999-2018. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA INDUSTRIAL, 6., 30 maio-3 jun., Salvador, 2022. Anais […]. Salvador: [s. n.], 2022.) argumentam que, com o passar do tempo, transformações institucionais, tecnológicas e econômicas geraram novas necessidades de financiamento e organização da produção, e de inovação dos serviços de saúde, o que promoveu uma mudança estrutural no sistema de saúde brasileiro ao introduzir movimentos de conglomeração e de entrada de capital estrangeiro nos serviços de saúde. Houve uma ampliação do grau de internacionalização do setor com a crescente participação de fundos financeiros na estrutura acionária das empresas de serviços de saúde (ROCHA, 2021ROCHA, M. A. Restruturação do setor privado de serviços de saúde: Atualidades e perspectivas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2021. (Texto para Discussão, 52: Saúde Amanhã).). As empresas do setor de saúde passaram a se associar com bancos de investimentos e a se expandir através da abertura de ações e debêntures. Em meio ao cenário de subfinanciamento do SUS; dos incentivos ao consumo privado de saúde, através das desonerações tributárias; do crescimento da renda e da expansão do mercado de trabalho formal no Brasil nos anos 2000 - que expandiu a demanda por serviços de saúde privados, sejam financiados individualmente ou resultado dos benefícios dos contratos de trabalho formal -; e do avanço da financeirização, o setor de saúde se tornou ainda mais interessante para investidores privados.

A financeirização é um fenômeno do capitalismo contemporâneo, que pode ocorrer em países centrais ou periféricos, caracterizada pela crescente importância das finanças em diversos aspectos da vida13 13 Krippner (2005) pontua que a financeirização é um padrão de acumulação no qual os lucros ocorrem principalmente através de canais financeiros, em vez de produtivos. Entre as transformações resultantes do processo de financeirização, é observada a elevação da importância do setor financeiro em relação ao setor real; a transferência de renda do setor real para o setor financeiro; e o consequente aumento da desigualdade de renda e a estagnação salarial. Essas transformações ocorrem tanto no nível macro, com a desaceleração do crescimento e a maior fragilidade financeira, quanto no micro, com seus efeitos sobre a organização, gerenciamento, financiamento e investimentos das empresas (PALLEY, 2007). . Por ser um fenômeno abrangente, multidimensional e multifacetado, a definição mais usada foi a de Epstein (2005)ESPTEIN, G. Financialization and the World Economy. Cheltenham: Edward Elgar, 2005., que define amplamente o processo de financeirização como o crescente papel de motivos, mercados, atores e instituições financeiras na operação da economia real, doméstica e internacionalmente. As finanças passaram a desempenhar um papel catalítico na extensão, expansão e intensificação da acumulação capitalista (BONIZZI; KALTENBRUNNER; POWELL, 2020BONIZZI, B.; KALTENBRUNNER, A.; POWELL, J. Subordinate financialization in emerging capitalist economies. In: MADER, P.; MERTENS, D.; VAN DER ZWAN, N. (Eds.) The Routledge international handbook of financialization. London: Routledge, 2020. p. 177-187.), com efeitos sobre o ciclo econômico e sobre a vida cotidiana das pessoas.

A possibilidade de realizar novos arranjos de estrutura financeira para minimizar os riscos dos desenvolvedores de projetos de investimento tornou áreas estratégicas da infraestrutura social e urbana interessantes para investidores financeiros, que encontram nos serviços tradicionalmente providos pelo Estado novos espaços de revalorização dos ativos (KARWOWSKI, 2019KARWOWSKI, E. Towards (de)financialisation: the role of the state. Cambridge Journal of Economics, v. 43, p. 1001-1027, 2019.; LAVINAS; ARAÚJO; BRUNO, 2019LAVINAS, L.; ARAUJO, E.; BRUNO, M. Brazil: From Eliticized to Mass-Based Financialization. Revue de la régulation, v. 25, Spring 2019.; LAVINAS; GENTIL, 2018LAVINAS, L.; GENTIL, D. L. Brasil anos 2000: A política social sob regência da financeirização. Novos Estudos Cebrap, Dossiê balanço crítico da economia brasileira (2003-2016), maio/ago, p. 191-211, 2018.). Como a acumulação de capital em uma economia financeirizada é mais lenta e volátil (STOCKHAMMER, 2007STOCKHAMMER, E. Some stylized facts on the finance-dominated accumulation regime. Amherst: Political Economy Research Institute, University of Massachusetts, Jul. 2007. (Working Paper, 142).), áreas que tipicamente não são atrativas para investidores financeiros se tornam interessantes mesmo quando esses investidores não estão diretamente ligados com a provisão do serviço, pois encontram nessas áreas canais de revalorização e acumulação. Na área da saúde, esse reflexo pode ser observado pelo valor de mercado das empresas de plano de saúde e das seguradoras, que passou de R$ 12,2 bilhões em 2002 para R$ 40,4 bilhões em 2015 (em valores constantes de 2015) (LAVINAS; GENTIL, 2018, p. 194)LAVINAS, L.; GENTIL, D. L. Brasil anos 2000: A política social sob regência da financeirização. Novos Estudos Cebrap, Dossiê balanço crítico da economia brasileira (2003-2016), maio/ago, p. 191-211, 2018.. Essa tendência de expansão não é linear ao crescimento da renda per capita e a ampliação da capacidade de consumo das famílias (BAHIA, 2013BAHIA, L. Financeirização e restrição de coberturas: Estratégias recentes de expansão das empresas de planos e seguros de saúde no Brasil. In: COHN, A. (Org.). Saúde, Cidadania e Desenvolvimento. Rio de Janeiro: E-papers, 2013. p. 65-87.).

A temática das privatizações não é suficiente para explicar a transferência das responsabilidades do Estado para o setor privado, pois, no contexto de uma economia financeirizada, os investimentos e a provisão dos serviços passam a ter como meta prioritária o lucro dos acionistas14 14 A lógica da governança corporativa e a maximização do valor do acionista são transformações que ocorreram no âmbito das empresas diante da financeirização da economia (AGLIETTA, 2000). , que, em sua grande maioria, correspondem a grupos financeiros internacionais distantes e alheios ao conteúdo dos serviços prestados (LAVINAS; GENTIL, 2018LAVINAS, L.; GENTIL, D. L. Brasil anos 2000: A política social sob regência da financeirização. Novos Estudos Cebrap, Dossiê balanço crítico da economia brasileira (2003-2016), maio/ago, p. 191-211, 2018.). Cordilha e Lavinas (2018CORDILHA, A. C.; LAVINAS, L. Transformações dos sistemas de saúde na era da financeirização: Lições da França e do Brasil. Ciência e Saúde Coletiva, v. 23, n. 7, p. 2147-2158, 2018.) afirmam que a importância dos investimentos financeiros no balanço das instituições de saúde vem crescendo porque essas instituições se tornaram grandes investidores institucionais. O problema se agrava quando consideramos que, além desses investidores não estarem diretamente relacionados à prestação do serviço, os interesses especulativos não têm horizonte de longo prazo, estando descolados de qualquer projeto de desenvolvimento nacional (LAVINAS; GENTIL, 2018)LAVINAS, L.; GENTIL, D. L. Brasil anos 2000: A política social sob regência da financeirização. Novos Estudos Cebrap, Dossiê balanço crítico da economia brasileira (2003-2016), maio/ago, p. 191-211, 2018..

O estudo de Martins, Ocké-Reis e Drach (2021MARTINS, N. M.; OCKÉ-REIS, C. O.; DRACH, D. C. Financeirização dos planos de saúde: O caso das operadoras líderes no Brasil (2007-2019). Rio de Janeiro: IE-UFRJ, 2021. (Texto para Discussão, 1/2021).) identifica que, a respeito do avanço da financeirização no setor de saúde, as operadoras servem cada vez mais como ativo, ou plataforma, para a acumulação financeira de outros atores. Os autores não identificam uma alteração na lógica interna de acumulação das empresas. Contudo, verificam que as operadoras líderes aderem à lógica de preconização dos acionistas, característica de um processo de financeirização. Concluem, assim, que o processo de financeirização da saúde no Brasil ainda está em curso, não apresentando uma forma acabada, como em países com maior grau de desenvolvimento15 15 Para uma análise pormenorizada sobre os planos e seguros de saúde e dominância financeira, ver Sestelo (2017a) e Mattos et al. (2022). .

Bruno e Caffé (2017BRUNO, M.; CAFFÉ, R. Estado e financeirização no Brasil: Interdependências macroeconômicas e limites estruturais ao desenvolvimento. Economia e Sociedade, v. 26, Número Especial, p. 1025-1062, dez. 2017.) defendem que a redução substancial da oferta pública dos serviços fundamentais à população é um reflexo do processo de financeirização em curso no Brasil, permitindo a criação e a ampliação de nichos de mercado de interesse do setor bancário-financeiro privado. Com efeito, temos uma financeirização multifacetada: por um lado, temos a “financeirização das massas”, ou “financeirização do dia a dia”, processo cuja financeirização atinge a vida da população ao transformar direitos em bens trocáveis e comercializáveis; por outro, temos a financeirização da política social, que possibilita a transformação de um direito social em ativos financeiros definidos por risco e retorno16 16 Não poderíamos deixar de mencionar as facetas do processo de financeirização. Contudo, elas fogem do escopo desse trabalho, que visa aprofundar o debate acerca dos tipos de financeirização de forma mais ampla. Para uma revisão acerca desses temas, indicamos alguns trabalhos, como Lavinas, Araújo e Bruno (2019), Karwowski e Centurion-Vicencio (2018), Lavinas (2017), Sestelo et al. (2017b), Fine (2012), Lapavitsas (2011). .

Essa é uma das faces mais perversas do aprofundamento do processo de financeirização: a transformação de um direito social em ativo financeiro, mercantilizando uma área da infraestrutura social que deveria ser garantida pelo Estado. Além da mercantilização de um direito por si só ser uma questão polêmica, o maior protagonismo do setor de saúde privada é ainda mais grave se considerarmos que os objetivos pelos quais a provisão privada responde são diferentes dos objetivos perseguidos pelo setor público. Como qualquer serviço privado, o de saúde é orientado pela lógica da rentabilidade, buscando a lucratividade, e não a garantia ao acesso (BARROS; PIOLA, 2016BARROS, M. E. D.; PIOLA, S. F. O financiamento dos serviços de saúde no Brasil. In: MARQUES, R. M.; PIOLA, S. F.; ROA, A. C. (Orgs.). Sistema de saúde no Brasil: Organização e financiamento. Rio de Janeiro: ABrES; Brasília, DF: Ministério da Saúde: OPAS/OMS no Brasil, 2016. p. 101-138.).

O setor privado é incapaz de ter objetivos sociais ex-ante devido à sua lógica e natureza mercantil voltada ao lucro e à revalorização dos capitais. Os efeitos sociais derivados de tais investimentos são resultados necessários à atividade de produção e oferta de tais produtos e serviços - o objetivo final não é a provisão de qualidade e a garantia ao acesso, mas o lucro que tal investimento resulta, tendo objetivos sociais ex-post, i.e., como um efeito derivado, não intencional. O Estado é o único agente econômico capaz de ter objetivos sociais ex-ante devido à lógica e natureza não lucrativa do setor público17 17 Agradeço ao professor Miguel Bruno por este insight em seu comentário durante a banca de defesa da dissertação de mestrado da autora, na qual este artigo se baseou. .

A mercantilização da saúde por si só já é preocupante se considerarmos a tamanha desigualdade social e de renda do Brasil. A financeirização da saúde traz um agravante: a lógica do serviço de saúde privado não é mais a lógica da oferta privada, mas a maximização do lucro dos acionistas, visto que o setor está envolto pela lógica financeira. O processo de financeirização da saúde avança com a possibilidade da abertura do capital na bolsa de valores, a partir de 2004, que permitiu que as empresas que atuam no setor de saúde se envolvessem em práticas e operassem na lógica financeira. Bahia et al. (2016aBAHIA, L.; SCHEFFER, M.; TAVARES, L. R.; BRAGA, I. F. Das empresas médicas às seguradoras internacionais: Mudanças no regime de acumulação e repercussões sobre o sistema de saúde no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 32, Sup. 2, e00154015, 2016a. DOI: 10.1590/0102-311X00154015.
https://doi.org/10.1590/0102-311X0015401...
) subdivide a trajetória das empresas de planos e seguros de saúde em três ciclos:

O primeiro é demarcado pelas relações entre as políticas previdenciárias voltadas à proteção de trabalhadores especializados e o surgimento das empresas pioneiras entre os anos 1960 e 1980. O segundo se estende dos anos 1990 até os anos 2000, e tem como marcas a comercialização de planos empresariais e individuais no contexto de implementação do SUS. O período mais recente caracteriza-se pela presença de empresas cuja origem do capital é internacional e que desempenham atividades de intermediação financeira. (BAHIA et al., 2016aBAHIA, L.; SCHEFFER, M.; TAVARES, L. R.; BRAGA, I. F. Das empresas médicas às seguradoras internacionais: Mudanças no regime de acumulação e repercussões sobre o sistema de saúde no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 32, Sup. 2, e00154015, 2016a. DOI: 10.1590/0102-311X00154015.
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, p. 53)

A fim de analisar com mais detalhes esse processo, foram observadas as ofertas de títulos mobiliários das empresas do setor de saúde de capital aberto ativas na Comissão de Valores Mobiliários (CVM, 2020). Em 2020, sete empresas do setor de saúde tinham capital aberto e estavam ativas na bolsa de valores: Diagnóstico da América (DASA); Fleury; Qualicorp; Centro Imagem e Diagnóstico; Instituto Hermes Pardini; NotreDame Intermédica; e HapVida. Dois tipos de ofertas foram considerados: as realizadas através da Instrução CVM nº 400 (ICVM 400) e da Instrução CVM nº 476 (ICVM 476).

A ICVM 400 consiste na oferta “tradicional” de valores mobiliários, que tem um elevado custo de manutenção. Para realizar ofertas pela ICVM 400 a empresa deve cumprir uma série de requisitos: ser organizada sob a forma de sociedades anônimas (SA) e realizar prospectos e publicação de anúncio de início e encerramento de ofertas. As ofertas realizadas pela ICVM 400 são voltadas ao público em geral, com número irrestrito de investidores. Os valores mobiliários ofertados são restritos: ações, debêntures e demais valores mobiliários com emissões registradas na CVM.

Já a ICVM 476, criada em 2009, consiste em uma oferta com uma dispensa automática de registro, apesar de ser considerada pública. É uma oferta menos custosa que a ICVM 400 porque os procedimentos são mais simplificados, sem necessidade de registro na CVM, tornando a oferta mais acessível às companhias e facilitando o acesso do mercado. Esse tipo de oferta não requer nenhuma forma específica de organização societária, assim como não tem exigências informacionais. Por ser uma oferta com dispensa automática de registro, é voltada apenas para investidores profissionais - instituições financeiras autorizadas pelo BCB, fundos de investimento, investidores não residentes, entre outros -, com a oferta sendo realizada apenas para 75 investidores, dos quais cinquenta podem efetivar o investimento. Os valores mobiliários ofertados são mais variados, incluindo debêntures não conversíveis, notas comerciais, certificados de recebíveis imobiliários (CRI), certificados de recebíveis do agronegócio (CRA), entre outros.

A partir das informações dos dois tipos de ofertas, analisou-se a distribuição do número de investidores por tipo de investidor para verificar quais deles investem nessas empresas (Tabela 2).

Tabela 2
Distribuição das ações emitidas pelas empresas do setor de saúde por número de investidores (em %)

Até 2018, é expressiva a quantidade de investidores do tipo pessoas físicas no setor de saúde. As exceções foram as emissões realizadas em 2019 e 2020, cuja emissão em 2019 da NotreDame Intermédica foi quase proporcional entre os investidores do tipo pessoa física, os fundos de investimento e os investidores estrangeiros; e da Hapvida, cuja participação mais representativa está em “Outros”18 18 Na compra da Hapvida em 2019, “Outros” é referente à “Subscritores da oferta prioritária”. Na compra da NotreDame Intermédica, em 2020, “Outros” é referente à “Sociedade corretora de títulos, valores mobiliários”. . A emissão de 2020 destoa das anteriores uma vez que grande parte dos investidores que adquiriram as ações ofertadas pela NotreDame Intermédica foram os fundos de investimento, com menor participação dos investidores estrangeiros. Essa diferença decorre do tipo de oferta realizada. As emissões da HapVida (2019) e da NotreDame Intermédica (2019 e 2020) foram pela ICVM 476, que é voltada para investidores profissionais - pessoas físicas e jurídicas só podem participar desse tipo de oferta se detiverem investimentos financeiros em valor superior a R$ 10 milhões.

À primeira vista, as informações sugerem que, com a abertura do capital das empresas da bolsa de valores, um maior número de pessoas físicas passou a investir em saúde a partir da compra dos valores mobiliários ofertados, sendo a participação majoritária até 2019. Todavia, quando buscamos a distribuição das ações emitidas, percebemos que a participação de investidores do tipo pessoa física é ínfima (Tabela 3).

Tabela 3
Distribuição das ações emitidas pelas empresas por quantidade de valores mobiliários (em %)

A partir da Tabela 3 conseguimos identificar os reais investidores do sistema de saúde privado brasileiro. Apesar do vasto número de investidores do tipo pessoa física, a quantidade de títulos mobiliários auferida por eles é superficial. Olhando para a oferta realizada pela NotreDame Intermédica em 2018: enquanto mais de 63% do total de investidores era do tipo pessoa física, eles foram responsáveis pela aquisição de apenas 4,9% dos títulos ofertados. Os investidores estrangeiros, em contrapartida, apesar de representarem um número menor de compradores (16,8%), auferiram 70,8% dos títulos ofertados.

Percebemos que os fundos de investimento e os investidores estrangeiros que atuam no mercado de capitais se tornaram os grandes investidores do sistema de saúde privada no Brasil, adquirindo a maior parte das ações ofertadas pelas empresas - isto é, os investidores da saúde privada brasileira não estão diretamente ligados à prestação e garantia da qualidade do serviço, configurando uma mudança estrutural no setor de saúde privada com a possibilidade do capital estrangeiro passar a atuar no setor (BAHIA et al., 2016aBAHIA, L.; SCHEFFER, M.; TAVARES, L. R.; BRAGA, I. F. Das empresas médicas às seguradoras internacionais: Mudanças no regime de acumulação e repercussões sobre o sistema de saúde no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 32, Sup. 2, e00154015, 2016a. DOI: 10.1590/0102-311X00154015.
https://doi.org/10.1590/0102-311X0015401...
; KAMIA; VARGAS; BRITTO, 2022KAMIA, F; VARGAS, M. A.; BRITTO, J. Mudança estrutural e participação do capital estrangeiro no setor de serviços de saúde brasileiro: uma análise das operações patrimoniais no período 1999-2018. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA INDUSTRIAL, 6., 30 maio-3 jun., Salvador, 2022. Anais […]. Salvador: [s. n.], 2022.; ROCHA, 2021ROCHA, M. A. Restruturação do setor privado de serviços de saúde: Atualidades e perspectivas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2021. (Texto para Discussão, 52: Saúde Amanhã).; SCHEFFER, 2015SCHEFFER, M. O capital estrangeiro e a privatização do sistema de saúde brasileiro. Cad. Saúde Pública, v. 31, n. 4, p. 663-666, abr. 2015.). A relação das empresas com o setor bancário também fica mais estreita uma vez que os bancos privados são os intermediários financeiros da distribuição dos valores mobiliários19 19 Alguns bancos privados atuam como intermediários financeiros líderes das ofertas públicas, como o Banco Itaú (Centro Imagem Diagnóstico; Instituto Hermes Pardini e NotreDame Intermédica), o Banco Bradesco (Fleury), o Banco BTG Pactual (HapVida), o Banco UBS SA (Diagnóstico da América, DASA) e o Bank of America Merrill Lynch Banco Múltiplo SA (Qualicorp). . De acordo com Lavinas e Gentil (2018LAVINAS, L.; GENTIL, D. L. Brasil anos 2000: A política social sob regência da financeirização. Novos Estudos Cebrap, Dossiê balanço crítico da economia brasileira (2003-2016), maio/ago, p. 191-211, 2018.), o interesse desses tipos de investidores está nos dividendos das empresas e na revenda das ações no mercado secundário. De fato, esse comportamento é identificado a partir dos dados da CVM.

É possível identificar uma mudança nas ofertas no decorrer dos anos. As ofertas realizadas no âmbito da ICVM 400 foram sobretudo20 20 Todas as ofertas realizadas pela Diagnóstico da América, Qualicorp, Centro Imagem e Diagnóstico, Instituto Hermes Pardini, HapVida (uma em 2018) e NotreDame Intermédica (uma em 2018), foram ofertas mistas realizadas pela ICVM 400. A Fleury foi a única empresa que realizou oferta primária pela ICVM 400. Nenhuma realizou oferta secundária. ofertas mistas. Com o surgimento da ICVM 476 se observa uma maior quantidade de ofertas secundárias. O caso da NotreDame Intermédica, empresa que mais realizou ofertas no período, explicita bem essa mudança. A empresa realizou um total de sete ofertas entre 2018 e 2020 - uma pela ICVM 400 e seis pela ICVM 476 -, descatando-se das demais empresas analisadas. Em 2018, a empresa realizou três ofertas: uma pela ICVM 400, mista, e duas pela ICVM 476. A primeira oferta, realizada em 2018 pela ICVM 476, foi uma oferta primária, que auferiu R$ 312 milhões, seguida por uma oferta secundária, que ocorreu no mesmo dia e adquiriu R$ 2.741.700.000.

Comportamento semelhante é observado em 2019. Das três ofertas que a empresa realizou, duas foram ofertas secundárias,21 21 Das três ofertas realizadas pela empresa em 2019, a primeira foi uma oferta secundária que aportou R$ 2.666.250.000. A segunda foi primária, de R$ 3.705.000.000. E a terceira também foi uma oferta secundária, que aportou R$ 1.296.750.000. assim como a única realizada em 2020. A única oferta primária que a empresa realizou em 2019 ocorreu no mesmo dia de uma oferta secundária. Assim, das seis ofertas realizadas pela NotreDame Intermédica pela ICVM 476, apenas duas foram ofertas primárias, evidenciando que a atuação da empresa está mais voltada ao mercado secundário, de transferências de propriedade e elevado retorno no curto prazo, do que ao mercado primário visando a obtenção de recursos. Como bem observam Martins, Ocké-Reis e Drach (2021MARTINS, N. M.; OCKÉ-REIS, C. O.; DRACH, D. C. Financeirização dos planos de saúde: O caso das operadoras líderes no Brasil (2007-2019). Rio de Janeiro: IE-UFRJ, 2021. (Texto para Discussão, 1/2021).), a adesão às operações de recompra de ações sinaliza a incorporação da preconização dos acionistas na atividade das operadoras.

Observamos que, com o avanço da financeirização na saúde, o objetivo final do investimento deixa de ser a provisão e a qualidade do serviço, e passa a ser a maximização dos lucros.22 22 Cordilha e Lavinas (2018, p. 2154) observam que “entre 2015 e 2016, enquanto o resultado do setor suplementar com a atividade direta de saúde caiu cerca de R$ 800 milhões no segmento de seguros de assistência médico-hospitalar, seu resultado financeiro aumentou em R$ 2,8 bi. Assim, em 2016, o déficit “técnico” de R$ 120 milhões contrasta com um superávit financeiro de R$ 6,8 bi”. Especialmente no âmbito da ICVM 476, o objetivo das ofertas é, sobretudo, auferir retornos de curto prazo. Isso indica um processo de priorização dos resultados de curto prazo em vez daqueles que seriam mais produtivos para o desenvolvimento do setor - assim como para o crescimento econômico -, como a pesquisa, o desenvolvimento tecnológico e inovador, a aproximação de prestadores de serviços e indústrias do setor, e a formação e capacitação da força de trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O direito à saúde no Brasil, assegurado constitucionalmente, tem cada vez mais dificuldades de se efetivar. A mercantilização da saúde avança no país, acompanhada pelo avanço da financeirização das empresas de saúde, que se acentuou no período recente. O crônico e histórico subfinanciamento do SUS e as vastas desonerações tributárias ao consumo de saúde privada podem ser identificados como estímulos à mercantilização da saúde. Esses fatores, somados à possibilidade de novos arranjos financeiros, explicam o avanço da financeirização do setor. A financeirização avança sobre a saúde brasileira em consonância com o subfinanciamento do setor público, os estímulos do governo ao consumo de serviços de saúde privada e a crescente mercantilização da saúde.

A política de austeridade fiscal permanente, em vigor de 2017 a 2022, agrava os processos que foram abordados. O Novo Regime Fiscal brasileiro (EC 95/2016), o “teto de gastos”, estabelece a correção do orçamento federal do SUS pela variação nominal do PIB, propondo um piso para saúde com crescimento real igual a zero. Essa é uma questão problemática por diversas frentes: devido à mercantilização do serviço, que se afasta de seu caráter de direito universal; devido ao impacto que tem sobre as famílias, afetando sua renda e qualidade de vida; e devido ao avanço da financeirização, uma vez que os interesses especulativos não têm horizonte de longo prazo, distanciando-se de projetos de desenvolvimento - assim como atender às necessidades sociais não está no escopo de tais investimentos. É esperado que a política de austeridade, ao estrangular as possibilidades de financiamento da saúde pública, reforce todos esses processos.

Com efeito, é esperado que as disparidades sociais se agravem visto que o serviço público de saúde necessariamente se manterá insuficiente pelos próximos anos. Foge do escopo deste trabalho se aprofundar nessa questão, mas pesquisas futuras devem acompanhar a evolução da mercantilização e da financeirização da saúde durante o período de vigência da regra fiscal. Como é possível perceber, foi depois da crise de 2015-2016 e da instituição do novo regime fiscal que a financeirização das empresas de saúde se acelerou. Os efeitos esperados dessa agenda sobre a população, no que diz respeito especificamente ao acesso à saúde, são negativos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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    » https://databank.worldbank.org/source/world-development-indicators
  • 1
    De acordo com Bahia et al. (2016aBAHIA, L.; SCHEFFER, M.; TAVARES, L. R.; BRAGA, I. F. Das empresas médicas às seguradoras internacionais: Mudanças no regime de acumulação e repercussões sobre o sistema de saúde no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 32, Sup. 2, e00154015, 2016a. DOI: 10.1590/0102-311X00154015.
    https://doi.org/10.1590/0102-311X0015401...
    , p. 4), os empréstimos subsidiados por meio do Fundo de Apoio Social (FAT) financiaram investimentos em saúde privada, em vez de ampliar a capacidade da saúde pública. A criação da Amil é um exemplo da expansão empresarial, estimulada por investimentos governamentais, que quintuplicou o número de leitos entre 1974 e 1978 a partir da junção de um conjunto de hospitais. A Amil não é considerada na presente pesquisa porque nos propusemos analisar as empresas de capital aberto que estavam ativas no ano da coleta dos dados, em 2020, e a Amil fechou seu capital na Bovespa em 2013.
  • 2
    O tripé da seguridade social brasileira é composto pela previdência, assistência e saúde.
  • 3
    Isto é, tornaram-se políticas direcionadas à parcela da população mais pobre, deixando de visar a equidade e o acesso democrático à sociedade, e buscando evitar convulsões sociais mais sérias — especialmente em ambientes de recessão econômica, desemprego e baixos salários (DRAIBE, 1993DRAIBE, S. As políticas sociais e o neoliberalismo. Revista USP, n. 17, 1993.).
  • 4
    A totalidade dos recursos arrecadados com a CPMF foi destinada à saúde até o início de 1999. A partir de junho daquele ano, uma parcela da arrecadação passou a ser destinada à Previdência Social, e a alíquota desse tributo aumenta de 0,20% para 0,38% (PIOLA et al., 2013PIOLA, S. F. et al. Financiamento público da saúde: Uma história à procura de rumo. Brasília, DF: Ipea, jul. 2013. (Texto para Discussão).).
  • 5
    Para mais sobre a falta de regulamentação da EC 29/2000 e a polêmica acerca da base que incidiria a correção (“base fixa” × “base móvel”), ver Piola et al. (2013PIOLA, S. F. et al. Financiamento público da saúde: Uma história à procura de rumo. Brasília, DF: Ipea, jul. 2013. (Texto para Discussão)., p. 19-24).
  • 6
    Um estudo realizado pela Cepal (2015)CEPAL - COMISSÃO ECONÔMICA PARA A AMÉRICA LATINA E O CARIBE. Panorama fiscal de América Latina y el Caribe 2015: Dilemas y espacios de políticas. Santiago: CEPAL, 2015. Disponível em: Disponível em: http://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/37747/1/ S1500053_es.pdf . Acesso em: 31 jan. 2021.
    http://repositorio.cepal.org/bitstream/h...
    em relação ao efeito da política fiscal sobre a distribuição de renda no Brasil indicou que o maior impacto redistributivo é proporcionado pela transferência monetária — que está no âmbito das políticas sociais — e pelo gasto com a Seguridade. No que diz respeito à saúde, o estudo conclui que o gasto público com serviços públicos na saúde é progressivo em termos relativos e contribui para reduzir a desigualdade.
  • 7
    De acordo com Kamia, Vargas e Britto (2022KAMIA, F; VARGAS, M. A.; BRITTO, J. Mudança estrutural e participação do capital estrangeiro no setor de serviços de saúde brasileiro: uma análise das operações patrimoniais no período 1999-2018. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA INDUSTRIAL, 6., 30 maio-3 jun., Salvador, 2022. Anais […]. Salvador: [s. n.], 2022., p. 3), “as mudanças estruturais observadas no segmento de serviços de saúde estão associadas a três dimensões inter-relacionadas: (i) a dimensão econômica, produtiva e tecnológica, com a introdução de inovações que geram novas oportunidades aumentam a apropriabilidade nos serviços de saúde, alterando suas formas de organização, processos, produtos e mercados; (ii) a dimensão demográfica e epidemiológica da população, que se traduzem em novas demandas de cuidado de saúde; (iii) a dimensão institucional, que envolve desde a atuação de governos e das agências regulatórias até aspectos culturais, como a percepção do direito à saúde pela sociedade”.
  • 8
    A participação do capital estrangeiro era proibida, salvo em casos previsto na Lei dos Planos de Saúde (9.656/1998), que permitiu o capital estrangeiro nos negócios de assistência suplementar (SCHEFFER, 2015SCHEFFER, M. O capital estrangeiro e a privatização do sistema de saúde brasileiro. Cad. Saúde Pública, v. 31, n. 4, p. 663-666, abr. 2015.). Ao longo da década de 2000, a participação do capital estrangeiro ganhou força nos serviços de saúde, ainda que de forma disfarçada (BAHIA et al., 2016aBAHIA, L.; SCHEFFER, M.; TAVARES, L. R.; BRAGA, I. F. Das empresas médicas às seguradoras internacionais: Mudanças no regime de acumulação e repercussões sobre o sistema de saúde no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 32, Sup. 2, e00154015, 2016a. DOI: 10.1590/0102-311X00154015.
    https://doi.org/10.1590/0102-311X0015401...
    ).
  • 9
    As ISLF representaram 0,1 p.p. do consumo final de bens e serviços de saúde das famílias entre 2010 a 2017.
  • 10
    É importante ressaltar que nenhum dos países reconhecidos por possuírem um sistema de saúde público e universal tem população da magnitude da brasileira, reforçando a insuficiência do gasto público brasileiro em atender à toda população.
  • 11
    Não considera o item “plano de saúde” e o subgrupo “cuidados pessoais” para evitar a retroalimentação do índice.
  • 12
    Segundo pesquisa do IBGE (2019a)IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Conta-satélite de saúde: Brasil, 2010-2017. Rio de Janeiro: IBGE, 2019a., a preços de 2017, o consumo final do governo com saúde pública em 2010 foi de R$ 167,8 bilhões, e com saúde privada, R$ 42,9 bilhões. Em 2017, esses valores foram, respectivamente, de R$ 201,6 bilhões e R$ 43,6 bilhões. Já o consumo final de saúde privada das famílias passou de R$ 155,4 bilhões em 2010 para R$ 231,1 bilhões em 2017.
  • 13
    Krippner (2005KRIPPNER, G. R. The financialization of the american economy. Socio-Economic Review, v. 3, p. 173-208, 2005.) pontua que a financeirização é um padrão de acumulação no qual os lucros ocorrem principalmente através de canais financeiros, em vez de produtivos. Entre as transformações resultantes do processo de financeirização, é observada a elevação da importância do setor financeiro em relação ao setor real; a transferência de renda do setor real para o setor financeiro; e o consequente aumento da desigualdade de renda e a estagnação salarial. Essas transformações ocorrem tanto no nível macro, com a desaceleração do crescimento e a maior fragilidade financeira, quanto no micro, com seus efeitos sobre a organização, gerenciamento, financiamento e investimentos das empresas (PALLEY, 2007PALLEY, T. I. Financialization: what it is and why it matters. [S. l.]: The Levy Economics Institute and Economics for Democratic and Open Societies, Dec. 2007. (Working Paper, 525).).
  • 14
    A lógica da governança corporativa e a maximização do valor do acionista são transformações que ocorreram no âmbito das empresas diante da financeirização da economia (AGLIETTA, 2000AGLIETTA, M. Shareholder value and corporate governance: some tricky questions. Economy and Society, v. 29, n. 1, p. 146-159, 2000.).
  • 15
    Para uma análise pormenorizada sobre os planos e seguros de saúde e dominância financeira, ver Sestelo (2017aSESTELO, J. A. F. Planos e seguros de saúde no Brasil de 2000 a 2015 e a dominância financeira. 2017. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017a.) e Mattos et al. (2022MATTOS, L. V. et al. Financeirização, acumulação e mudanças patrimoniais em empresas e grupos econômicos do setor saúde no Brasil. Cad. Saúde Pública, v. 38, Sup. 2, e00175820, 2022.).
  • 16
    Não poderíamos deixar de mencionar as facetas do processo de financeirização. Contudo, elas fogem do escopo desse trabalho, que visa aprofundar o debate acerca dos tipos de financeirização de forma mais ampla. Para uma revisão acerca desses temas, indicamos alguns trabalhos, como Lavinas, Araújo e Bruno (2019LAVINAS, L.; ARAUJO, E.; BRUNO, M. Brazil: From Eliticized to Mass-Based Financialization. Revue de la régulation, v. 25, Spring 2019.), Karwowski e Centurion-Vicencio (2018)KARWOWSKI, E.; CENTURION-VICENCIO, M. Financialising the State: recent developments in fiscal and monetary policy. Financial Geography Working Paper, 2018., Lavinas (2017)LAVINAS, L. How social developmentalism reframed social policy in Brazil. New political economy, 2017. DOI: 10.1080/13563467.2017.1297392.
    https://doi.org/10.1080/13563467.2017.12...
    , Sestelo et al. (2017bSESTELO, J. A. F. et al. A financeirização das políticas sociais e da saúde no Brasil do século XXI: Elementos para uma aproximação inicial. Economia e Sociedade, v. 26, Número Especial, p. 1097-1126, dez. 2017b.), Fine (2012FINE, B. Financialization and social policy. In: UTTING, P.; RAZAVI, S.; BUCHHOLZ, R.V. (Eds.). The global crisis and transformative social change. London: Palgrave Macmillan, 2012. (International Political Economy).), Lapavitsas (2011LAPAVITSAS, C. Theorizing financialization. Work, employment and society, v. 25, n. 4, p. 611-626, 2011.).
  • 17
    Agradeço ao professor Miguel Bruno por este insight em seu comentário durante a banca de defesa da dissertação de mestrado da autora, na qual este artigo se baseou.
  • 18
    Na compra da Hapvida em 2019, “Outros” é referente à “Subscritores da oferta prioritária”. Na compra da NotreDame Intermédica, em 2020, “Outros” é referente à “Sociedade corretora de títulos, valores mobiliários”.
  • 19
    Alguns bancos privados atuam como intermediários financeiros líderes das ofertas públicas, como o Banco Itaú (Centro Imagem Diagnóstico; Instituto Hermes Pardini e NotreDame Intermédica), o Banco Bradesco (Fleury), o Banco BTG Pactual (HapVida), o Banco UBS SA (Diagnóstico da América, DASA) e o Bank of America Merrill Lynch Banco Múltiplo SA (Qualicorp).
  • 20
    Todas as ofertas realizadas pela Diagnóstico da América, Qualicorp, Centro Imagem e Diagnóstico, Instituto Hermes Pardini, HapVida (uma em 2018) e NotreDame Intermédica (uma em 2018), foram ofertas mistas realizadas pela ICVM 400. A Fleury foi a única empresa que realizou oferta primária pela ICVM 400. Nenhuma realizou oferta secundária.
  • 21
    Das três ofertas realizadas pela empresa em 2019, a primeira foi uma oferta secundária que aportou R$ 2.666.250.000. A segunda foi primária, de R$ 3.705.000.000. E a terceira também foi uma oferta secundária, que aportou R$ 1.296.750.000.
  • 22
    Cordilha e Lavinas (2018CORDILHA, A. C.; LAVINAS, L. Transformações dos sistemas de saúde na era da financeirização: Lições da França e do Brasil. Ciência e Saúde Coletiva, v. 23, n. 7, p. 2147-2158, 2018., p. 2154) observam que “entre 2015 e 2016, enquanto o resultado do setor suplementar com a atividade direta de saúde caiu cerca de R$ 800 milhões no segmento de seguros de assistência médico-hospitalar, seu resultado financeiro aumentou em R$ 2,8 bi. Assim, em 2016, o déficit “técnico” de R$ 120 milhões contrasta com um superávit financeiro de R$ 6,8 bi”.
  • 23
    CLASSIFICAÇÃO JEL: B50; E62; I10.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2022
  • Aceito
    15 Mar 2023
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