Acessibilidade / Reportar erro

ESTRUTURA TRIBUTÁRIA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DE SEU IMPACTO SOBRE A DISTRIBUIÇÃO DE RENDA

BRAZILIAN TAX STRUCTURE: AN ANALYSIS OF ITS IMPACTS ON INCOME DISTRIBUTION

RESUMO

O artigo analisa, utilizando dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018, a influência da política tributária na concentração de renda em dez estados brasileiros. Busca-se contribuir para o debate acerca da tributação e desigualdade partindo da hipótese de que os indicadores de desigualdade podem ser explicados pela regressividade do sistema tributário. Para a aferição da regressividade e do seu impacto na distribuição da renda, medidas pelos índices de Lerman-Yitzhaki e Gini, utiliza-se a metodologia empregada por Silveira e Pintos-Payeras. Os resultados indicam tanto a regressividade como o aumento da desigualdade em todos os estados. Diante da estagnação econômica brasileira e da iminente recessão da economia global, os aspectos estruturais de concentração de renda no Brasil podem acentuar as taxas de pobreza e desigualdade. Entende-se que o sistema tributário é parte integrante desses aspectos estruturais persistentes, razão pela qual propõe-se uma reforma tributária de caráter progressivo.

PALAVRAS-CHAVE:
Concentração de renda; progressividade do imposto; sistema tributário brasileiro

ABSTRACT

The article analyzes, by using data from the Pesquisa de Orçamentos Familiares (Household Budget Survey - POF) 2017-2018, the impact of the tax policy on income concentration in ten Brazilian states. This work aims to contribute to the debate on taxation and inequality from the hypothesis that inequality indicators may be explained by the regressivity of the tax system. To gauge regressivity and its impact on income distribution, measured by the Lerman-Yitzhaki and Gini indices, the methodology employed by Silveira and Pintos-Payeras is used. The results indicated both regressivity and the increase of inequality in all states. Given the Brazilian economic stagnation and the imminent global economic recession, structural aspects of income concentration in Brazil may accentuate poverty and inequality rates. It is understood that the tax system is an integral part of such persistent structural aspects and this is the reason why this work proposes a tax reform of a progressive nature.

KEYWORDS:
Income concentration; tax progressivity; Brazilian tax system

INTRODUÇÃO

Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD, 2019PNUD - PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO. Human Development Report 2019. Beyond income, beyond averages, beyond today: Inequalities in human development in the 21st century. New York: UND, 2019.) sobre indicadores de desigualdade, verifica-se que, considerando o 1% mais rico da população, o Brasil é o segundo país com a maior concentração de renda no grupo analisado. Ao avaliar dados do Instituto de Estatística da Unesco de 2010-2017 (PNUD, 2019PNUD - PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO. Human Development Report 2019. Beyond income, beyond averages, beyond today: Inequalities in human development in the 21st century. New York: UND, 2019.), evidencia-se que o centésimo mais rico da população brasileira detinha 28,3% de toda a renda gerada no país, atrás apenas do Catar (29%). Em relação aos 10% mais ricos, esse percentual, no Brasil, é de 41,9% da renda total (PNUD, 2019PNUD - PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO. Human Development Report 2019. Beyond income, beyond averages, beyond today: Inequalities in human development in the 21st century. New York: UND, 2019.).

Gobetti e Orair (2016GOBETTI, S. W.; ORAIR, R. O. Progressividade tributária: A agenda negligenciada. Texto para discussão/Ipea , n. 2190, p. 5-52, 2016.), ao utilizarem dados da Declaração de Imposto sobre a Renda das Pessoas Físicas (DIRPF), encontram resultado relativamente mais baixo para o centésimo mais rico da população (23,2%). No entanto, como contribuição adicional, o estudo evidencia que o milésimo mais rico da população concentra 8,5% de toda a renda. Assim, em uma comparação com países1 1 Os países em questão, em ordem decrescente de participação do centésimo mais rico no total da renda, são Colômbia, África do Sul, Uruguai, Reino Unido, Coreia, Japão, Austrália, Suécia, Noruega e Dinamarca. para os quais há informações disponíveis para esse quantil da população, os autores conjecturam que essa configuração para o Brasil “dificilmente encontrará outros paralelos no mundo” (GOBETTI; ORAIR, 2016GOBETTI, S. W.; ORAIR, R. O. Progressividade tributária: A agenda negligenciada. Texto para discussão/Ipea , n. 2190, p. 5-52, 2016., p. 25).

Há estudos que indicam uma possível correlação entre o perfil do sistema tributário brasileiro e a desigualdade da distribuição de renda. Por exemplo, Pintos-Payeras (2010)PINTOS-PAYERAS, J. A. Análise da progressividade da carga tributária sobre a população brasileira. Pesquisa e Planejamento Econômico, v. 40, n. 2, p. 153-186, ago. 2010. aplica os índices de Gini e de Lerman-Yitzhaki para verificar que os impostos indiretos contribuem para aumentar a desigualdade; Silveira (2012SILVEIRA, F. G. Equidade fiscal: impactos distributivos da tributação e do gasto social. Comunicados do Ipea, n. 92, p. 1-9, 2012.) avalia a dinâmica do índice de Gini para cada estágio da renda e verifica que a desigualdade cai até a incidência da tributação direta; Castro (2014CASTRO, F. Á. Imposto de renda da pessoa física: Comparações internacionais, medidas de progressividade e redistribuição. 2014. Dissertação (Mestrado em Economia do Setor Público) - Departamento de Economia, Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2014.) utiliza índices de desvio de proporcionalidade (Kakwani e Suits) e índices de capacidade redistributiva (Reynolds-Smolensky, Musgrave-Thin e Pfähler) para analisar a progressividade do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF); Cardoso, Domingues e Britto (2017CARDOSO, D. F.; DOMINGUES, E. P.; BRITTO, G. Assimetrias na tributação da renda do trabalho e do capital: Impactos de modificações na estrutura da tributação da renda de pessoa física no Brasil. Belo Horizonte: UFMG/Cedeplar, 2017. (Texto para Discussão, 557).) utilizam um modelo de Equilíbrio Geral Computável (EGC) para demostrar que uma tributação progressiva da renda da pessoa física ocasionaria queda da desigualdade da renda familiar no Brasil.

Nessa perspectiva, o objetivo do artigo é analisar, com dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2017-2018 (IBGE, 2021IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa de orçamentos familiares 2017-2018. Rio de Janeiro: IBGE, 2021.), em que medida a política fiscal, mais precisamente o desenho do sistema tributário moldado pela política tributária, contribui para a concentração de renda. Parte-se da hipótese de que os indicadores de desigualdade de renda podem ser explicados, de modo geral, pelas características do sistema tributário brasileiro, uma delas é a alta concentração dos impostos indiretos - em detrimento dos impostos diretos, sugerindo regressividade da tributação. Desse modo, com base em uma amostra de dez estados brasileiros, reunidos pelo critério de arrecadação de ICMS em 2017, o artigo pretende mensurar a regressividade do sistema tributário em cada estado e quantificar seu impacto na distribuição de renda familiar per capita pós-tributação. Para realizar esse exercício, será reproduzida a metodologia de cálculo da regressividade da tributação empregada por Silveira (2008">SILVEIRA, F. G. Tributação, previdência e assistência sociais: impactos distributivos. 2008. Tese (Doutorado em Economia Aplicada) - Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008.) e Pintos-Payeras (2010)PINTOS-PAYERAS, J. A. Análise da progressividade da carga tributária sobre a população brasileira. Pesquisa e Planejamento Econômico, v. 40, n. 2, p. 153-186, ago. 2010.. A regressividade da tributação é aferida aplicando-se o índice de Lerman-Yitzhaki e seu impacto na concentração de renda é medido pelo índice de Gini. Como análise complementar, é assumida a função de consumo keynesiana com o objetivo de extrair a propensão marginal a consumir em cada estado e examinar a relação entre a disposição de consumir, a concentração de renda e a regressividade verificada.

Dessa maneira, busca-se contribuir para o debate acerca da tributação e da desigualdade e fornecer estudos adicionais à literatura (teórica e empírica) existente. Os resultados obtidos buscam evidenciar que a redução da desigualdade de renda no país requer, entre outras medidas, alterações tributárias amplas (sistema tributário como um instrumento importante para minimizar disparidades de renda).

1. REGRESSIVIDADE DO SISTEMA TRIBUTÁRIO BRASILEIRO: EVIDÊNCIAS EMPÍRICAS DE SEU IMPACTO NA CONCENTRAÇÃO DE RENDA

Rocha (2002ROCHA, S. O impacto distributivo do imposto de renda sobre a desigualdade de renda das famílias. Pesquisa e Planejamento Econômico , v. 32, n. 1, abr. 2002.) utiliza dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) para medir o impacto redistributivo do IRPF entre os anos 1981 e 1999. A autora encontrou uma redução do índice de Gini nacional de 4,05%, ou seja, de 0,617 para 0,592 (ROCHA, 2002ROCHA, S. O impacto distributivo do imposto de renda sobre a desigualdade de renda das famílias. Pesquisa e Planejamento Econômico , v. 32, n. 1, abr. 2002., p. 99). No entanto, devido à elevada desigualdade da distribuição de renda bruta, o efeito distributivo do IRPF é limitado. A despeito disso, são relacionadas características do IRPF que podem contribuir para maior impacto distributivo, a saber, menores deduções por dependente, limite de isenção e maior grau de progressividade das alíquotas.

Pintos-Payeras (2010)PINTOS-PAYERAS, J. A. Análise da progressividade da carga tributária sobre a população brasileira. Pesquisa e Planejamento Econômico, v. 40, n. 2, p. 153-186, ago. 2010. considera o impacto dos tributos indiretos sobre a despesa monetária familiar, baseado na POF 2002-2003. A regressividade do sistema tributário está associada, segundo o autor, à significativa participação dos impostos indiretos - especificamente ICMS, PIS e Cofins, que oneram as classes de renda mais inferiores. À medida que a renda per capita aumenta, a regressividade tende a suavizar (PINTOS-PAYERAS, 2010PINTOS-PAYERAS, J. A. Análise da progressividade da carga tributária sobre a população brasileira. Pesquisa e Planejamento Econômico, v. 40, n. 2, p. 153-186, ago. 2010., p. 173), considerando que, entre a primeira faixa de renda per capita (até R$ 120) e a última (R$ 3.840 ou mais) a carga média de ICMS cai 71,57% (de 10,94% para 3,11%). Padrão similar é observado para o PIS e a Cofins. Ao calcular o índice de Lerman-Yitzhaki para o Brasil, adotando a renda como base, obtém valor igual a -0,099 para a carga tributária total (e elevação de Gini após a incidência tributária).

Um estudo realizado pelo Ipea utiliza dados da POF e da PNAD, nos anos de 2002-2003 e 2008-2009, para investigar a possível ação redistributiva empreendida pelo Estado brasileiro. O estudo avalia o comportamento do índice de Gini em cada uma das etapas da renda segundo a intervenção do Estado. Pode-se verificar que há sucessivas quedas no índice de Gini quando o governo oferece os benefícios, seguido da tributação direta da renda. Analisando o estágio da tributação direta, para o ano de 2003, constata-se uma redução de Gini de 0,617 para 0,605; e, para o ano de 2009, de 0,586 para 0,571. Ao passo que, no estágio em que é realizada a tributação indireta da renda, verifica-se um aumento de Gini tanto para 2003 quanto para 2009. Em termos numéricos, o índice aumenta, respectivamente, de 0,605 para 0,633 e de 0,571 para 0,598. O estudo conclui que o “gasto social e os tributos incidentes sobre as famílias apresentam, em seu conjunto, um efeito progressivo. Observa-se, todavia, uma regressividade na incidência tributária total da tributação, devido ao predomínio dos tributos indiretos sobre a base de arrecadação” (SILVEIRA, 2012SILVEIRA, F. G. Equidade fiscal: impactos distributivos da tributação e do gasto social. Comunicados do Ipea, n. 92, p. 1-9, 2012., p. 4).

Fernandes, Campolina e Silveira (2019FERNANDES, R. C.; CAMPOLINA, B.; SILVEIRA, F. G. Imposto de renda e distribuição de renda no Brasil. Texto para discussão/Ipea, n. 2449, p. 5-43, fev. 2019.) calculam as variações no índice de Gini à medida que os diferentes estágios da tributação ocorrem. Nesse caso, há três cenários distintos no que se refere à configuração do IRPF, a saber: (a) o IRPF de 2019; (b) o IRPF que taxa lucros e dividendos à alíquota linear de 15%; e (c) o IRPF que taxa lucros e dividendos a alíquotas progressivas. Em todos os cenários analisados pelos autores, o Gini aumenta depois da incidência da tributação indireta. No cenário (a), há um aumento de 2,80% (de 0,6857 para 0,7049); no (b), 2,74% (de 0,6816 para 0,7003); e no (c), 2,70% (de 0,678 para 0,696) (FERNANDES; CAMPOLINA; SILVEIRA, 2019FERNANDES, R. C.; CAMPOLINA, B.; SILVEIRA, F. G. Imposto de renda e distribuição de renda no Brasil. Texto para discussão/Ipea, n. 2449, p. 5-43, fev. 2019., p. 34).

Silveira et al. (2013SILVEIRA, F. G.; REZENDE, F.; AFONSO, J. R.; FERREIRA, J. Fiscal equity: Distribuitional impacts of taxation and social spending in Brazil. International Policy Centre for Inclusive Growth, n. 115, p. 3-54, 2013. Working Paper.) utilizam o índice de Kakwani para aferir a progressividade a cada etapa da tributação, com dados da POF 2002-2003 e 2008-2009. Para o período 2002-2003, verifica-se que depois da incidência dos impostos indiretos (renda pós-tributação), o índice varia de 0,122 para -0,125; para 2008-2009, os valores são, respectivamente, 0,1423 e -0,130 (SILVEIRA et al., 2013SILVEIRA, F. G.; REZENDE, F.; AFONSO, J. R.; FERREIRA, J. Fiscal equity: Distribuitional impacts of taxation and social spending in Brazil. International Policy Centre for Inclusive Growth, n. 115, p. 3-54, 2013. Working Paper., p. 44). Assim, para ambos os casos, percebe-se que o teste realizado pelos autores evidencia o caráter regressivo da carga tributária.

Outros estudos analisam o desempenho do IRPF, a partir do qual podem-se aplicar os princípios da equidade horizontal e vertical com relativa facilidade. Conforme ressaltam Viol, Rodrigues e Paes (2002VIOL, A. L.; RODRIGUES, J. J.; PAES, N. L. A progressividade no consumo: Tributação Cumulativa e sobre o Valor Agregado. Brasília, DF: Ministério da Fazenda, 2002. (Estudo Tributário, 4)., p. 7): “Não é por acaso que as políticas tributárias de cunho redistributivo se apoiam basicamente nesse imposto, pois fica garantido, ao menos teoricamente, que o contribuinte não poderá transferir a outrem a carga tributária que lhe é imposta”. Apesar disso, como afirmam Zockun et al. (2007ZOCKUN, M. H.; ZYLBERSTAJN, H.; SILBER, S.; RIZZIERI, J.; PORTELA, A.; PELLIN, E.; AFONSO, L. E. (Coord.). Simplificando o Brasil: Propostas de reforma na relação econômica do governo com o setor privado. São Paulo: FIPE, mar. 2007. (Texto para Discussão, 3)., p. 18), a progressividade dessa tributação direta se torna insuficiente para contrabalançar o caráter regressivo da tributação indireta. Os autores utilizam dados da Secretaria da Receita Federal e verificam que o IRPF perde a intensidade da progressividade determinada pelas alíquotas nominais. Esse fato se verifica por conta dos abatimentos e das deduções aos quais o IRPF está sujeito.

Outra questão relevante que a literatura aponta é o tratamento diferenciado que a renda recebe, em termos de incidência tributária, dependendo de sua fonte de recebimento. Silveira (2008">SILVEIRA, F. G. Tributação, previdência e assistência sociais: impactos distributivos. 2008. Tese (Doutorado em Economia Aplicada) - Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008.) utiliza dados da POF 2002-2003 para demonstrar que a tributação da renda comporta outras dimensões que têm em conta não somente o nível de renda propriamente dito, mas também sua origem. Nesse sentido, ao considerar os 5% e 1% mais ricos, os tributos diretos representam 4,5% e 5,7% das rendas, incidência semelhante a que recai nas famílias nos 3º e 4º décimos de renda, cujos rendimentos provêm do trabalho assalariado (SILVEIRA, 2008">SILVEIRA, F. G. Tributação, previdência e assistência sociais: impactos distributivos. 2008. Tese (Doutorado em Economia Aplicada) - Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008., p. 100). No que se refere à renda do capital, a Lei 9.249/95 institui em dois de seus artigos os juros sobre capital próprio e a isenção de lucros e dividendos. Resumidamente, o primeiro é um artifício técnico-contábil que, em vez de incidir a alíquota de 34% (CSLL e IRPJ) sobre a parcela de lucro da empresa, há uma incidência na fonte de alíquota de 15% quando é repassada aos acionistas. O segundo implica em que os rendimentos (derivados de lucros ou dividendos) dos acionistas ou sócios das pessoas jurídicas não são tributáveis, quer seja na fonte quer seja na declaração de ajuste anual. Uma das consequências desse paradigma, como apontado por Salvador (2014SALVADOR, E. As implicações do Sistema Tributário Brasileiro nas desigualdades de renda. Brasília, DF: Inesc, 2014., p. 7), é que o ônus tributário recai sobre a população mais pobre, dado que propicia uma transferência de tributação para a renda do trabalho. Relatório da Oxfam Brasil (2017OXFAM BRASIL. A distância que nos une. Um retrato das desigualdades brasileiras. OXFAM, 25 set., 2017., p. 45) também atribui a perda de progressividade das alíquotas efetivas do IRPF, depois da faixa dos 40 salários-mínimos, à isenção de impostos sobre lucros e dividendos e à limitação de alíquotas do IRPF. Fernandes, Campolina e Silveira (2019FERNANDES, R. C.; CAMPOLINA, B.; SILVEIRA, F. G. Imposto de renda e distribuição de renda no Brasil. Texto para discussão/Ipea, n. 2449, p. 5-43, fev. 2019., p. 29), ao analisar dados da DIRPF de 2008, evidenciam que a queda das alíquotas efetivas nos estratos superiores de renda pode ser explicada pela maior concentração de rendimentos de capital à medida que a renda aumenta.

Castro (2014CASTRO, F. Á. Imposto de renda da pessoa física: Comparações internacionais, medidas de progressividade e redistribuição. 2014. Dissertação (Mestrado em Economia do Setor Público) - Departamento de Economia, Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2014.), Gobetti e Orair (2016GOBETTI, S. W.; ORAIR, R. O. Progressividade tributária: A agenda negligenciada. Texto para discussão/Ipea , n. 2190, p. 5-52, 2016.) e Fernandes, Campolina e Silveira (2019FERNANDES, R. C.; CAMPOLINA, B.; SILVEIRA, F. G. Imposto de renda e distribuição de renda no Brasil. Texto para discussão/Ipea, n. 2449, p. 5-43, fev. 2019.) realizam simulações pertinentes, derivadas de propostas alternativas de mudanças na legislação do IRPF. Nesse sentido, Castro (2014)CASTRO, F. Á. Imposto de renda da pessoa física: Comparações internacionais, medidas de progressividade e redistribuição. 2014. Dissertação (Mestrado em Economia do Setor Público) - Departamento de Economia, Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2014. lança cinco diferentes hipóteses simuladas para o ano de 2012, com dados da Receita Federal, e analisa os resultados obtidos com base em índices de progressividade para cada situação apresentada. Depois de aplicadas as medidas de progressividade, o autor conclui que “alterações promovidas por meio da tributação do capital levam a um maior potencial redistributivo por fornecerem valores maiores de arrecadação extra e por serem mais concentradas nas faixas de renda mais alta” (CASTRO, 2014CASTRO, F. Á. Imposto de renda da pessoa física: Comparações internacionais, medidas de progressividade e redistribuição. 2014. Dissertação (Mestrado em Economia do Setor Público) - Departamento de Economia, Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2014., p. 97). Gobetti e Orair (2016GOBETTI, S. W.; ORAIR, R. O. Progressividade tributária: A agenda negligenciada. Texto para discussão/Ipea , n. 2190, p. 5-52, 2016., p. 26) estimam, a partir de dados da Receita Federal, que uma receita de R$ 149,7 bilhões, para o ano de 2013, foi gerada pela atual estrutura do IRPF, assim como houve redução da desigualdade, pelo índice de Gini, em 2,78%. Os autores analisam quatro conjunturas com o intuito de aferir o efeito das diferentes modificações da legislação do IRPF. Em todas as conjunturas analisadas, além de maior arrecadação possibilitada por um redesenho da tributação do imposto de renda, houve também redução da desigualdade. Por fim, Fernandes, Campolina e Silveira (2019FERNANDES, R. C.; CAMPOLINA, B.; SILVEIRA, F. G. Imposto de renda e distribuição de renda no Brasil. Texto para discussão/Ipea, n. 2449, p. 5-43, fev. 2019., p. 31) estimam, com base em dados da Receita Federal, o impacto distributivo do IRPF em dois cenários distintos que buscam medir as variações na distribuição da renda, pelo índice de Gini, após a incidência daquele imposto. Assim, é possível verificar que, quando introduzida a tributação sobre os lucros e dividendos, o IRPF contribui para a redução da desigualdade de renda e para o aumento da arrecadação.

2. METODOLOGIA E BASE DE DADOS

Para analisar em que medida o sistema tributário contribui para a concentração de renda e quantificar seu impacto na distribuição de renda familiar per capita pós-tributação será reproduzida, para determinados estados brasileiros, a metodologia de cálculo da regressividade da tributação empregada por Silveira (2008">SILVEIRA, F. G. Tributação, previdência e assistência sociais: impactos distributivos. 2008. Tese (Doutorado em Economia Aplicada) - Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008.) e Pintos-Payeras (2010)PINTOS-PAYERAS, J. A. Análise da progressividade da carga tributária sobre a população brasileira. Pesquisa e Planejamento Econômico, v. 40, n. 2, p. 153-186, ago. 2010., utilizando microdados da POF 2017-2018, disponibilizados pelo IBGE (2021)IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa de orçamentos familiares 2017-2018. Rio de Janeiro: IBGE, 2021..

A POF é uma pesquisa domiciliar, com duração de 12 meses, realizada de junho de 2017 a maio de 2018, com cobertura nacional, abrangendo uma amostra de 75 mil domicílios em cerca de 1.900 municípios do Brasil. Dado que parte-se da hipótese de que os indicadores de desigualdade podem ser explicados pela regressividade do sistema tributário, a POF é útil por possuir abertura para o gasto com os principais tributos diretos: IRPF, contribuições previdenciárias (INSS), IPVA, IPTU, além de uma categoria residual que contém outras deduções sobre a renda do trabalho.

Para realizar a análise interestadual, optou-se pela seleção de dez estados da Federação, com base no montante de arrecadação de ICMS. Entre esses dez estados, foram selecionados os cinco que mais arrecadaram ICMS e os cinco que tiveram menor arrecadação em 2017. Esse critério de seleção justifica-se por permitir a comparação de dois polos teóricos: de um lado, os estados com atividade produtiva mais dinâmica e, de outro, aqueles menos dinâmicos. Dessa forma, pretende-se dispor de uma amostra heterogênea, usando como proxy da atividade econômica do estado o seu poder arrecadatório. Paralelamente, essa seleção traz os estados mais e menos ricos, em termos de PIB, assim como os mais e menos populosos, o que torna relativamente desnecessária a arrecadação estadual per capita como proxy. Assim, entre os estados que mais arrecadaram em 2017, em ordem decrescente, estão São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Paraná; e, entre os que menos arrecadaram, também em ordem decrescente, estão Sergipe, Tocantins, Acre, Roraima e Amapá.

Os estados serão agrupados pelo índice de Gini da renda inicial, uma vez que se pretende avaliar o impacto tributário sobre estados que partam aproximadamente da mesma distribuição de renda. Serão utilizados, como elementos de comparação, a propensão marginal a consumir, o índice de progressividade de Lerman-Yitzhaki e a variação do índice de Gini pós-tributação.

A carga tributária indireta é estimada incidindo um fator tributário, conforme detalha o Quadro 1, sobre as despesas com bens e serviços declarados pelas famílias na POF.

Quadro 1
Hipóteses simplificadoras para estimação da carga tributária indireta

A fim de determinar se um tributo é progressivo ou regressivo utiliza-se o índice desenvolvido por Lerman e Yitzhaki (1995LERMAN, R.; YITZHAKI, S. Changing ranks and the inequality impacts of taxes and transfers. National Tax Journal, v. 48, n. 1, p. 45-59, mar. 1995. DOI: 10.1086/NTJ41789122.
https://doi.org/10.1086/NTJ41789122....
). Os autores foram pioneiros ao salientar a importância de considerar a ordenação das rendas finais, isso é, o resultado da renda depois da incidência do imposto, em termos de ordenação. O índice de Lerman-Yitzhaki é representado pela Equação 1:

π L Y = C Z * - G z (1)

Em (1), G z é o índice de Gini da renda final e C * z , a razão de concentração do imposto baseada na ordenação da renda final.

A propensão marginal a consumir estadual é calculada através de uma regressão linear robusta do consumo familiar per capita, como variável de resposta, e a renda familiar pós-tributação per capita, como variável explicativa. A propensão marginal a consumir pode ser utilizada para investigar a relação entre variações na distribuição de renda e seus impactos na propensão marginal a consumir para o Brasil, como realizado por Leite (2015LEITE, F. P. Como o grau de desigualdade afeta a propensão marginal a consumir? Distribuição de renda e consumo das famílias no Brasil a partir dos dados das POF 2002-2003 e 2008-2009. Economia e Sociedade, v. 24, n. 3 (55) , p. 617-650, dez. 2015. DOI: 10.1590/1982-3533.2015v24n3art5.
https://doi.org/10.1590/1982-3533.2015v2...
) e Pinheiro (2017PINHEIRO, T. J. Análise econométrica do consumo das famílias. In: ENCONTRO DE ECONOMIA, 3., 2017, Ponta Grossa. Anais […] . Ponta Grossa: Universidade Estadual de Ponta Grossa, Faculdade de Ciências Econômicas, 2017. p. 1-15.). Rodríguez (2016RODRÍGUEZ, F. J. P. Marginal Propensity to Consume in USA by data ordered to percentiles. Cantabria: UniCan, 2016.) estima a propensão marginal a consumir para a economia norte-americana, utilizando microdados de pesquisas domiciliares, para verificar que aquela pode ser influenciada por variáveis de consumo ou renda no nível real ou per capita. O ponto de convergência entre os estudos citados é a utilização da função keynesiana de consumo. Por simplicidade, partem da premissa de que existe uma relação entre consumo familiar (C) e renda familiar (Y), que pode ser descrita por uma regressão linear.

Foram detectados problemas com heterocedasticidade (apontados pelo teste de Breusch-Pagan), ainda que não tenha apresentado autocorrelação dos resíduos (comprovado pelo teste de Durbin-Watson). Como as amostras dos estados apresentaram quantidades significativas de outliers, para contornar esse problema específico, foram realizadas regressões robustas por meio da estimação MM. Este método é apresentado por Susanti et al. (2014SUSANTI, Y.; PRATIWI, H.; SRI SULISTIJOWATI, H.; TWENTY, L. M estimation, S estimation, and MM estimation in robust regression. International Journal of Pure and Applied Mathematics, v. 91, n. 3, p. 349-360, 2014. DOI: 10.12732/ijpam.v91i3.7.
https://doi.org/10.12732/ijpam.v91i3.7....
), que afirmam que o Método de Mínimos Quadrados Ordinários (MQO) não é recomendado em análises de regressão que contenham valores extremos. Além disso, a estimação por MM permite ter estimativas mais eficientes e maior valor de breakdown (SUSANTI et al., 2014SUSANTI, Y.; PRATIWI, H.; SRI SULISTIJOWATI, H.; TWENTY, L. M estimation, S estimation, and MM estimation in robust regression. International Journal of Pure and Applied Mathematics, v. 91, n. 3, p. 349-360, 2014. DOI: 10.12732/ijpam.v91i3.7.
https://doi.org/10.12732/ijpam.v91i3.7....
, p. 356), isso é uma medida de robustez dos estimadores em relação a outliers.

Por fim, ressalta-se que para analisar o impacto da tributação na distribuição de renda foi utilizada, como ponto de partida e parâmetro, a distribuição de renda verificada antes da intervenção estatal, em termos de política tributária, em cada estado. Nesse sentido, o ponto de partida é a renda inicial e, o de chegada, a renda pós-tributação. Dessa maneira, objetiva-se contribuir, a partir de dados recentes, para a discussão a respeito da relação entre tributação e desigualdade no Brasil.

3. O AUMENTO DA DESIGUALDADE INTERESTADUAL SOB A PRERROGATIVA DE TRIBUTAR DO GOVERNO

Depois de avaliadas as evidências empíricas a respeito da regressividade do sistema tributário nacional - tanto para o período 2002-2003 quanto para 2008-2009 - e seu impacto para a concentração de renda, pretende-se, com este estudo, corroborar com as tendências observadas. A justificativa para tal expectativa deve-se ao fato de as disfunções apontadas pelos estudos ainda permanecerem válidas. Os estudos analisados mostraram que, apesar de o IRPF ser considerado progressivo, há elementos que o tornam menos eficaz nesse sentido, como a não revisão da Lei 9.249/95 e a perda de progressividade para as rendas mais altas. Além disso, verifica-se na Carga Tributária Bruta (CTB) de 2017 que há uma alta concentração da tributação indireta, circunstância que contribui para a regressividade. De fato, pelos dados da Receita Federal, analisando a tributação por tipo de base de incidência, observa-se que os bens e serviços forneceram 48,44% da arrecadação total. Esse montante é quase equivalente à soma (49,92%) dos outros três tipos de base principais: folha de salários, renda e propriedade (BRASIL, 2018BRASIL. Ministério da Fazenda. Receita Federal. Carga tributária no Brasil 2017. Análise por tributos e bases de incidência. Brasília, DF: Receita Federal/Cetad, 2018.).

Após a ordenação dos estados, segundo o índice de Gini da renda inicial, eles foram subdivididos de acordo com características semelhantes, como o índice de progressividade de Lerman-Yitzhaki, propensão marginal a consumir e variação do índice de Gini pós-tributação, conforme Tabela 1.

Tabela 1
Quadro geral: Índices selecionados e suas variações (ordem decrescente de Gini da renda inicial)

3.1. RIO DE JANEIRO E SÃO PAULO

Esses dois estados se caracterizam por terem apresentado índice de Gini da renda inicial entre os mais altos, acima da média de 0,508, e a carga tributária menos regressiva de todos os estados, considerando a renda pós-tributação. A carga tributária direta de ambos os estados apresentou quase neutralidade, uma vez que seus índices de Lerman-Yitzhaki estão bem próximos de zero. De fato, o índice de Gini das rendas inicial e disponível, no caso do Rio de Janeiro, mantém-se constante, enquanto em São Paulo ele tem uma variação de 1,15%. Adicionalmente, esses estados exibiram variação do índice de Gini abaixo da média (7,73%).

Quando se considera a incidência do tributo indireto (resultando na carga tributária total), ambos os índices de Lerman-Yitzhaki ficam ainda mais negativos, com variações de 184,92% para São Paulo e 225,28% para o Rio de Janeiro. Constata-se, além disso, variação percentual do índice de Gini total de aproximadamente 6% para o primeiro e 3,3% para o segundo. Essa variação é a mais baixa do conjunto dos estados e pode ser consistente com o fato de Pintos-Payeras (2010)PINTOS-PAYERAS, J. A. Análise da progressividade da carga tributária sobre a população brasileira. Pesquisa e Planejamento Econômico, v. 40, n. 2, p. 153-186, ago. 2010. ter encontrado que a região sudeste apresentava a menor carga tributária indireta para os três primeiros estratos de renda.

O resultado da distribuição (final) de renda pode ser visualizado pelos gráficos abaixo (Figuras 1 e 2). A diferença da regressividade entre ambos os estados é notada pela diferença entre a curva de Lorenz da renda pós-tributação e a curva de concentração da carga tributária. Em ambos os casos, as curvas de Lorenz da renda inicial e disponível estão praticamente sobrepostas, o que indica pouco efeito da tributação direta na distribuição de renda (a quase neutralidade evidenciada previamente). Nota-se, porém, um maior deslocamento para baixo da curva de Lorenz da renda pós-tributação, em relação à curva da renda disponível, no caso de São Paulo. Em outras palavras, apesar de a distribuição de renda no Rio de Janeiro ser mais desigual, o impacto da tributação em São Paulo foi relativamente maior.

Figura 1
Curvas de Lorenz e de concentração dos tributos do Rio de Janeiro

Figura 2
Curvas de Lorenz e de concentração dos tributos de São Paulo

A análise pela ótica da propensão marginal a consumir permite verificar que os resultados encontrados corroboram com os valores encontrados por Pinheiro (2017PINHEIRO, T. J. Análise econométrica do consumo das famílias. In: ENCONTRO DE ECONOMIA, 3., 2017, Ponta Grossa. Anais […] . Ponta Grossa: Universidade Estadual de Ponta Grossa, Faculdade de Ciências Econômicas, 2017. p. 1-15.), que dispôs ambos os estados na faixa que varia entre 0,48 e 0,55 para a POF 2008-2009. Uma hipótese levantada anteriormente, para a variação da regressividade tributária no Rio de Janeiro ser maior - cuja variação total do índice de Lerman-Yitzhaki foi aproximadamente 225%, contra 184% em São Paulo, pode decorrer de sua propensão marginal a consumir. Percebe-se, no entanto, que a propensão marginal a consumir de São Paulo é maior que a do Rio de Janeiro (0,525 e 0,453, respectivamente). É preciso, porém, avaliar como a dinâmica desses indicadores se comporta nos outros estados.

3.2. MINAS GERAIS, SERGIPE E RIO GRANDE DO SUL

Essa seleção representa os estados que tiveram índice de Gini da renda inicial menor que a média (0,508), variação total do índice de Gini pelo menos tão alta quanto a média (7,73%) e cuja incidência da tributação invariavelmente resultou no índice de progressividade negativo. Nota-se que a tributação direta em Minas Gerais é próxima de zero (negativo), assim como os outros estados do grupo, e foi a mais regressiva de todas (ver Tabela 1). De fato, avaliando o índice de Gini da renda disponível, percebe-se que o de Minas Gerais teve a variação mais expressiva, de 2%, contra um aumento e uma queda de 0,2% no Rio Grande do Sul e Sergipe, respectivamente. A quase constância do índice de Gini no Rio Grande do Sul e em Sergipe é condizente, portanto, com o índice de Lerman-Yitzhaki próximo da neutralidade na tributação direta.

Quando se considera a incidência da carga tributária total, todos os índices ficam ainda mais negativos, como antecipado anteriormente. Porém, apesar de a regressividade da carga tributária em Minas Gerais ser a maior de todas (principalmente levando em consideração o valor relativamente mais alto do índice de progressividade na tributação direta), o que teve a maior variação desse índice, no cômputo geral, foi em Sergipe. De fato, enquanto em Minas Gerais o índice aproximadamente triplicou (236%) e, no Rio Grande do Sul, quadruplicou (351%), em Sergipe foi quase multiplicado por quinze (1.401%). Acontece o inverso, no entanto, em relação ao impacto no índice de Gini total. Enquanto em Minas Gerais, o mais desigual na renda inicial, houve maior variação no índice de Gini, de 10,8%, seguido do Rio Grande do Sul, de 8,1%, em Sergipe a variação foi 6,1%. Minas Gerais continuou o mais desigual do grupo, porém constata-se a ultrapassagem do Rio Grande do Sul em relação a Sergipe.

O impacto da tributação na distribuição de renda pode ser verificado nas Figuras 3 a 5, a seguir. É possível verificar graficamente que o efeito da tributação direta em Minas Gerais é o único perceptível através da curva de Lorenz, da renda inicial para a renda disponível, enquanto nos outros estados as duas curvas se confundem (a quase neutralidade da tributação direta). Em relação à curva de concentração dos tributos, a magnitude da variação da regressividade em Sergipe (1.401%) é notada pela ultrapassagem dessa curva da reta de perfeita igualdade. Além disso, constata-se que essa regressividade mais crítica atingiu, aproximadamente, os 10% mais pobres, ficando ligeiramente menos regressiva conforme avança nos percentis maiores de população. Em Minas Gerais, também há alta regressividade, principalmente nos primeiros percentis da população, mas não acontece de ultrapassar a reta de perfeita igualdade. No Rio Grande do Sul, que é o segundo mais regressivo do grupo na carga tributária total, também se percebe a ultrapassagem da curva de concentração de tributos, porém em menor magnitude comparada a Sergipe.

Figura 3
Curvas de Lorenz e de concentração dos tributos de Minas Gerais

Figura 4
Curvas de Lorenz e de concentração dos tributos de Sergipe

Figura 5
Curvas de Lorenz e de concentração dos tributos de Rio Grande do Sul

A alta variação do índice de Gini de quase 11% em Minas Gerais, em comparação aos outros estados do mesmo grupo, também é constatada pelo salto da curva de Lorenz da renda pós-tributação. Enquanto nos outros estados a curva de Lorenz é ligeiramente movimentada para baixo (principalmente em Sergipe), a de Minas Gerais é nitidamente afastada. Assim, a alta regressividade de Sergipe e a variação significativa do índice de Gini em Minas Gerais são corroboradas.

Para introduzir mais um elemento de análise, é interessante examinar a propensão marginal a consumir dos estados e, como ressaltado anteriormente, Sergipe registrou o valor mais alto. Para a POF 2008-2009, Pinheiro (2017PINHEIRO, T. J. Análise econométrica do consumo das famílias. In: ENCONTRO DE ECONOMIA, 3., 2017, Ponta Grossa. Anais […] . Ponta Grossa: Universidade Estadual de Ponta Grossa, Faculdade de Ciências Econômicas, 2017. p. 1-15.) calculou a faixa da propensão marginal a consumir desse estado como entre 0,48 e 0,55, e a de Minas Gerais e Rio Grande do Sul entre 0,44 e 0,47. Assim, é provável que a propensão marginal a consumir de Sergipe se aproxime mais da dos outros estados, ainda que seja um pouco maior. Ao relacionar a propensão marginal a consumir e a variação do índice de progressividade desses estados, percebe-se que a maior propensão marginal a consumir é acompanhada por impacto maior na variação do índice de Lerman-Yitzhaki. De fato, na comparação entre Minas Gerais, Sergipe e Rio Grande do Sul, tem-se propensões marginais a consumir de 0,680, 0,810 e 0,690, respectivamente, enquanto suas respectivas variações do índice de progressividade foram 236%, 1.401% e 351%, no sentido da regressividade. Assim, percebe-se que a mais alta propensão marginal a consumir apresentada por Sergipe, provocou a maior queda do índice de Lerman-Yitzhaki de todos os estados. Diferentemente do caso de São Paulo e Rio de Janeiro, nos quais a maior propensão marginal a consumir pode indicar maior variação no índice de progressividade.

3.3. ACRE, RORAIMA E TOCANTINS

A característica deste grupo consiste em todas as unidades federativas possuírem índice de Gini quase integralmente acima da média dos dez estados (0,508). Além disso, apresentaram variação positiva desse índice, tanto entre as rendas disponível e inicial como na variação total, entre as rendas pós-tributação e inicial. Outra característica a ser levada em conta neste grupo é a variação total do índice de Gini acima da média (7,7%). Destaca-se, também, que neste grupo está presente a maior parte dos extremos entre os dez estados. O Acre, por exemplo, apresentou a maior desigualdade da renda inicial (0,567) e ainda maior na renda pós-tributação (0,641), padrão similar ao observado por Pintos-Payeras (2010)PINTOS-PAYERAS, J. A. Análise da progressividade da carga tributária sobre a população brasileira. Pesquisa e Planejamento Econômico, v. 40, n. 2, p. 153-186, ago. 2010.. O estado do Acre apresentou a maior desigualdade da renda inicial (0,567) entre os dez estados e ainda maior depois da incidência da carga tributária, na renda pós-tributação (0,641) (ver Tabela 1).

Em relação ao índice de progressividade da tributação direta, ainda que próximo de zero, estados deste grupo tiveram acima da média (exceto Acre), tendo Roraima o valor mais expressivo dos dez estados. O mesmo acontece em relação ao impacto da carga tributária total no índice de Lerman-Yitzhaki, em que Acre, agora, é o expoente. Em termos percentuais, a queda do índice de progressividade deste estado foi 580%, contra 73% para Roraima e 236% em Tocantins. Assim, ao relacionar a variação desse índice à variação total do índice de Gini, percebe-se uma correspondência, na medida em que se tem o percentual de 13,2% no Acre, contra 7,6% em Roraima e 10,5% em Tocantins. Ou seja, Roraima apresentou a menor variação do índice de Gini do grupo, considerando que, como visto anteriormente, a variação do índice de Lerman-Yitzhaki foi a menor do grupo e de todos os estados. Em suma, diferentemente dos Grupos 1 e 2 (RJ e SP; MG, SE e RS, respectivamente), há uma correspondência entre as variações do índice de Lerman-Yitzhaki e de Gini.

O resultado na distribuição de renda pode ser visualizado através das curvas de Lorenz, nas Figuras 6 a 8 a seguir. A alta regressividade descrita anteriormente pode ser avaliada através da curva de concentração dos tributos. Percebe-se que, diferentemente do que foi visto até agora, essas curvas são as que estão mais longe das respectivas curvas de Lorenz, o que fornece a dimensão gráfica da regressividade. Pela ótica da tributação direta, verifica-se que a curva de Lorenz da renda disponível sofre um ligeiro deslocamento para baixo em todos os estados. Levando em consideração a variação do índice de Gini entre as rendas inicial e disponível, a magnitude desses deslocamentos varia de acordo com cada estado. Observa-se que, no caso do Acre, que teve uma variação do Gini de 1,8%, a curva de Lorenz da renda disponível sofre uma pequena, porém visível, translação. No caso de Roraima, a variação do Gini em questão foi 1,0%. Comparado ao estado anterior, esse fato não é graficamente visível, uma vez que as curvas de Lorenz se encontram aproximadamente sobrepostas. No caso de Tocantins, que é o estado que apresenta maior variação do Gini nesse sentido, de 2,4%, nota-se que a partir do vigésimo percentil há um descolamento entre as curvas de Lorenz.

Figura 6
Curvas de Lorenz e de concentração dos tributos do Acre

Figura 7
Curvas de Lorenz e de concentração dos tributos de Roraima

Figura 8
Curvas de Lorenz e de concentração dos tributos de Tocantins

No que se refere à curva de concentração dos impostos, a regressividade também é clara, tendo em vista que todas as curvas cruzam, nos primeiros percentis, a reta de perfeita igualdade. O estado de Roraima se destaca, visto que sua curva de concentração dos tributos oscila em torno da reta de perfeita igualdade, distanciando-se da curva de Lorenz nos vinte primeiros percentis. Acre, que é o mais regressivo na carga tributária total entre os dez estados analisados, é o que apresenta a curva de concentração de tributos mais afastada em relação às curvas de Lorenz, seguido de Tocantins e Roraima. Observando as curvas de Lorenz da renda pós-tributação, todos os estados tiveram um avanço nítido no aumento da desigualdade de distribuição de renda.

Ao avaliar a propensão marginal a consumir do grupo, verifica-se que Roraima apresentou o menor valor entre os dez estados, acompanhado por Tocantins e Acre (ver Tabela 1). Os resultados corroboram a análise de Pinheiro (2017PINHEIRO, T. J. Análise econométrica do consumo das famílias. In: ENCONTRO DE ECONOMIA, 3., 2017, Ponta Grossa. Anais […] . Ponta Grossa: Universidade Estadual de Ponta Grossa, Faculdade de Ciências Econômicas, 2017. p. 1-15.) que encontrou propensão marginal a consumir baixa para Roraima, comparada à de Tocantins e Acre, apesar de os estados estarem dispostos em faixas maiores para aquele índice. Além disso, nota-se que a propensão marginal a consumir foi correspondente à variação total do índice de Lerman-Yitzhaki. Em outras palavras, o Acre, que tem a maior propensão marginal a consumir, apresentou maior variação no índice de progressividade, de aproximadamente 580%. À segunda maior propensão marginal a consumir do grupo, a de Tocantins, também corresponde a segunda maior variação do índice de progressividade, de 236%. Para Roraima, cujo sistema tributário apresentou ligeira variação da regressividade, isso é, uma queda de 73% do índice de Lerman-Yitzhaki, tem-se a menor propensão marginal a consumir de todos os dez estados. A aparente relação entre maior propensão marginal a consumir e impacto no índice de progressividade está consistente com os resultados encontrados para o Grupo 2 analisado nesta seção.

3.4. AMAPÁ E PARANÁ

A principal característica deste grupo é ter praticamente todos os indicadores abaixo da média do conjunto dos dez estados. Esses dois estados mostraram variação total do índice de Gini aproximadamente igual, assim como o índice de Lerman-Yitzhaki da carga tributária total e a propensão marginal a consumir (ver Tabela 1).

Em relação à tributação direta, o Amapá teve, na prática, progressividade, porque, ainda que o índice de Lerman-Yitzhaki tenha sido próximo de zero, seu valor foi positivo. De fato, este é o único exemplo, de todos os dez estados, que apresenta tributação direta positiva, mesmo que perto de zero. O resultado da progressividade é percebido no índice de Gini da renda disponível, que vai para 0,493, uma queda de 0,7%. De maneira inversa, o Paraná apresentou um aumento de 0,8% do índice de Gini entre a renda inicial e a disponível. Depois da incidência da tributação indireta, o índice de progressividade apresenta regressividade para ambos e aproximadamente de mesma magnitude. É interessante notar que, assim como o Amapá foi o único estado a apresentar tributação direta positiva, também foi o que teve maior queda no índice de progressividade, passando de pouco mais de zero para -0,074. Este resultado indica que a tributação indireta no Amapá é comparativamente mais regressiva do que no Paraná, já que esse estado partiu de uma situação de progressividade da tributação direta para o mesmo patamar do índice de Lerman-Yitzhaki depois da tributação indireta. De fato, enquanto a variação do índice de progressividade no Amapá apresentou uma queda de 7.093%, no Paraná foi de 259%. Assim como no Grupo 3, a maior variação do índice de Lerman-Yitzhaki correspondeu a maior variação total do índice de Gini: 7,2% para o Amapá e 4,6% para o Paraná. Pintos-Payeras (2010)PINTOS-PAYERAS, J. A. Análise da progressividade da carga tributária sobre a população brasileira. Pesquisa e Planejamento Econômico, v. 40, n. 2, p. 153-186, ago. 2010. calculou que o Paraná foi o estado que teve a menor carga tributária indireta para o estrato que vai até dois salários-mínimos.

A dinâmica da tributação desses dois estados e o impacto na concentração de renda podem ser visualizados através das curvas de Lorenz e de concentração dos tributos, conforme Figuras 9 e 10, a seguir. Graficamente, é possível verificar que a tributação direta (índice positivo), no caso do Amapá, contribuiu ligeiramente para a redução da concentração de renda, uma vez que a curva de Lorenz da renda disponível se desloca para cima. No caso do Paraná, praticamente acontece o mesmo que nos outros estados analisados até aqui: a curva de Lorenz da renda disponível se confunde com a da renda inicial. Em relação à curva de concentração de tributos, no caso do Amapá verifica-se que, abaixo do décimo percentil, os tributos ultrapassam ligeiramente a reta de perfeita igualdade, tornando-se mais regressivo nas camadas mais pobres da população. Além disso, a partir desse percentil, a distância entre a curva de concentração de tributos e a curva de Lorenz se torna bastante reduzida. Assim, depois do Rio de Janeiro, o índice de Gini do Paraná foi o que menos sofreu variação total depois da tributação das rendas. Em termos numéricos, a variação total do índice de Gini foi 4,6% - bem abaixo da média dos estados, de 7,7%. O resultado pode ser visualizado através da transladação da curva de Lorenz da renda pós-tributação. Enquanto no Paraná ela acontece de maneira sutil, somado ao fato de que a partir do octogésimo percentil as três curvas de Lorenz se confundem, no Amapá a transladação é perceptível.

Figura 9
Curvas de Lorenz e de concentração dos tributos de Amapá

Figura 10
Curvas de Lorenz e de concentração dos tributos de Paraná

Quanto à propensão marginal a consumir, observa-se que no Amapá ela é equivalente a 0,308, enquanto no Paraná, 0,435. De modo que, com exceção de Tocantins e Roraima, esses valores são os mais baixos entre os dez estados. Pinheiro (2017PINHEIRO, T. J. Análise econométrica do consumo das famílias. In: ENCONTRO DE ECONOMIA, 3., 2017, Ponta Grossa. Anais […] . Ponta Grossa: Universidade Estadual de Ponta Grossa, Faculdade de Ciências Econômicas, 2017. p. 1-15.) calculou a propensão marginal a consumir do Amapá maior que a do Paraná: [0,48-0,55] versus [0,44-0,47]. Além disso, igualmente ao que ocorreu no Grupo 1, a propensão marginal a consumir mais alta não correspondeu maior variação do índice de Lerman-Yitzhaki. De fato, enquanto a propensão marginal a consumir no Amapá é mais baixa que no Paraná, suas respectivas variações no índice de progressividade foram 7.093,13 % e 259,81%.

Ressalta-se que a análise segmentada por grupos de estados fornece alguns insights a respeito dos padrões e das exceções entre os índices selecionados. Assim, ordenar os estados segundo o índice de Gini da renda inicial permitiu a identificação de que, na média, os cinco estados mais desiguais antes da tributação apresentaram menor propensão marginal a consumir. Esse resultado corrobora com a análise de Leite (2015LEITE, F. P. Como o grau de desigualdade afeta a propensão marginal a consumir? Distribuição de renda e consumo das famílias no Brasil a partir dos dados das POF 2002-2003 e 2008-2009. Economia e Sociedade, v. 24, n. 3 (55) , p. 617-650, dez. 2015. DOI: 10.1590/1982-3533.2015v24n3art5.
https://doi.org/10.1590/1982-3533.2015v2...
, p. 624) ao evidenciar que “quão mais desigual é a distribuição de renda, menor é a propensão marginal a consumir e vice-versa”. Além disso, identificou-se para a metade dos grupos que houve um impacto maior na variação do índice de Lerman-Yitzhaki quanto maior fosse a propensão marginal a consumir (ver Tabela 1). Isso parece intuitivo na medida em que, considerando a estrutura tributária concentrada na tributação indireta, a alta disposição de consumir, dada pela propensão marginal a consumir, penaliza mais os consumidores. Além disso, com exceção dos Grupos 1 e 2, maior variação do índice de Lerman-Yitzhaki correspondeu a maior variação total do índice de Gini. Esse resultado também é intuitivo, considerando que o próprio índice de progressividade se baseia no índice de Gini da renda pós-tributação. No entanto, nas exceções mencionadas anteriormente, maior variação do índice de Lerman-Yitzhaki não implicou que os estados tenham ficado correspondentemente mais desiguais. Desse modo, percebe-se que, ainda que a propensão marginal a consumir contribua para maior variação do índice de Lerman-Yitzhaki, e que este contribua para a variação do índice de Gini, a variação é dependente do valor que o índice de Lerman-Yitzhaki atinge. De maneira geral, todos os sistemas tributários dos estados analisados se mostraram regressivos e, paralelamente, foi encontrado um aumento da desigualdade em todos eles. Porém, a análise dos resultados sugere que, partindo-se de estados com distribuição de renda inicial semelhante, a magnitude das desigualdades pós-tributação depende não só da regressividade do sistema tributário como também da propensão marginal a consumir.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A desigualdade persistente no Brasil pode ser atribuída a diversos fatores históricos e estruturais, entre os quais a herança deixada pelos três séculos de escravidão; o patrimonialismo, característico na administração pública brasileira e que permitiu a confusão entre os bens públicos e privados; políticas sociais voltadas a grupos menos necessitados; a estrutura tributária regressiva etc. Diante desses pontos, percebe-se a importância que a política estatal pode ter tanto na expansão quanto na mitigação da desigualdade de renda. Nessa perspectiva, o artigo procurou investigar o efeito da política tributária, consolidada sobretudo no desenho do sistema tributário, sobre a concentração de renda no Brasil.

Ainda que a análise tenha sido concentrada em dez estados, escolhidos pelo critério do montante arrecadado de ICMS (principal imposto estadual), a amostra representa, em alguma medida, a heterogeneidade regional em termos fiscais. Além disso, a presença do estado de São Paulo na amostra permitiu uma extrapolação para o sistema tributário nacional, premissa estabelecida por Silveira (2008">SILVEIRA, F. G. Tributação, previdência e assistência sociais: impactos distributivos. 2008. Tese (Doutorado em Economia Aplicada) - Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008.), a partir da qual o estado foi utilizado como representativo do Brasil. Através da replicação da metodologia empregada por Silveira (2008)">SILVEIRA, F. G. Tributação, previdência e assistência sociais: impactos distributivos. 2008. Tese (Doutorado em Economia Aplicada) - Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008. e Pintos-Payeras (2010)PINTOS-PAYERAS, J. A. Análise da progressividade da carga tributária sobre a população brasileira. Pesquisa e Planejamento Econômico, v. 40, n. 2, p. 153-186, ago. 2010., buscou-se, assim, aceitar ou rejeitar a hipótese de que, em primeiro lugar, a estrutura tributária regressiva poderia contribuir para o aumento da desigualdade de renda. Na incidência da tributação direta, a maioria dos estados apresentou índices de progressividade próximos de zero e negativos (regressivos), outros estados apresentaram neutralidade na prática, e uma exceção foi encontrada no Amapá, havendo progressividade. Depois da incidência da tributação indireta, houve um agravamento unânime do índice de Lerman-Yitzhaki para todos os estados. No cômputo geral, a carga tributária total causou variação positiva do índice de Gini, o que permitiu validar a hipótese de que o desenho do sistema tributário contribui para o aumento da desigualdade.

Apesar de ter havido aumento na desigualdade de renda para todos os estados, pôde-se identificar diferentes magnitudes de variações dos índices de progressividade e de Gini. Como subproduto da primeira análise realizada, propôs-se investigar a relação entre a propensão marginal a consumir, os índices de Lerman-Yitzhaki e Gini na determinação da desigualdade de renda. Em outras palavras, buscou-se avaliar se a maior propensão marginal a consumir, combinada com a regressividade da carga tributária, seria traduzida em impacto mais expressivo na desigualdade de renda. O que foi identificado preliminarmente é que, para a maioria dos grupos, a maior propensão marginal a consumir implicou em maior variação do índice de progressividade. Esse resultado é intuitivo uma vez que, na presença de alta regressividade, maior propensão marginal a consumir implica em maior sujeição ao sistema regressivo. Porém, foi identificado, de forma preliminar, que o impacto no índice de Gini não depende tão somente da variação do índice de Lerman-Yitzhaki, mas sobretudo pelo valor final que este atinge.

Além disso, foi verificado que todos os estados, exceto Tocantins e Roraima, apresentaram consumo familiar per capita médio mais elevado do que a renda inicial familiar per capita média. Algumas possíveis razões para isso são: a) o fato de algumas despesas estarem superestimadas, já que as despesas a prazo foram consideradas e são registradas pelo montante na POF; b) o fato de as famílias se endividarem e contraírem empréstimos, o que não é contabilizado como renda mensal declarada; c) a questão da subdeclaração da renda. Esses itens podem fornecer uma explicação parcial da regressividade na tributação direta, ainda que o índice de progressividade estivesse próximo de zero. Além disso, a amostragem centrada na área urbana pode ter superestimado o efeito do IPTU, que em alguns casos a literatura aponta como regressivo. Isto posto, a fim de ter um quadro mais fidedigno em termos de distribuição de renda no Brasil, a questão apontada sobre a captação de renda nas pesquisas domiciliares deve ser mitigada. De modo a captar rendas no topo da distribuição e abrandar possíveis distorções, sugere-se a utilização de dados tributários, como DIRPF, combinados com dados de pesquisas domiciliares, metodologia adotada por Medeiros, Souza e Castro (2015MEDEIROS, M.; SOUZA, P. H. G. F.; CASTRO, F. Á. A estabilidade da desigualdade de renda no Brasil, 2006 a 2012: estimativa com dados do imposto de renda e pesquisas domiciliares. Revista Ciência e Saúde Coletiva, v. 20, n. 24, p. 971-986, Rio de Janeiro, abr. 2015. DOI: 10.1590/1413-81232015204.00362014.
https://doi.org/10.1590/1413-81232015204...
).

A análise realizada permitiu visualizar a inter-relação entre desigualdade e tributação. De um lado, a desigualdade pode ser combatida sob um sistema tributário que possibilite o estímulo do investimento produtivo e a arrecadação do Estado convertida em políticas sociais, como saúde, educação e proteção social. Por outro lado, o sistema tributário deve ser tal que o simples ato de tributar não acarrete desigualdade, o que pode ser mitigado por impostos mais progressivos. Face à estagnação econômica brasileira e à iminente recessão da economia global, os aspectos estruturais da desigualdade no Brasil podem causar o recrudescimento das taxas de pobreza e desigualdade. Entende-se que que o sistema tributário é parte integrante desse aspecto estrutural de desigualdade persistente, razão pela qual propõe-se uma reforma tributária de caráter progressivo.

Tal reforma passa necessariamente por uma ampliação da base de incidência da tributação direta, por meio da progressividade da tributação dos lucros e dividendos; da revisão dos juros sobre o capital próprio; do aumento do número de alíquotas do imposto de renda; da revisão de renúncias fiscais viabilizadas por dedutibilidade de gastos de saúde e educação na declaração de imposto de renda; da maior participação da taxação sobre o patrimônio, principalmente os bens de luxo atualmente isentos. Em compensação, propõe-se a redução da participação da tributação indireta na carga tributária total, assim como sua simplificação através da fusão dos principais impostos sobre bens e serviços aqui analisados, como IPI, PIS/Cofins, ICMS, ISS, entre outros. Dessa forma, é possível conduzir o sistema tributário brasileiro às melhores práticas internacionais, com uma estrutura tributária moderna baseada em um IVA. No entanto, não se pode negligenciar o conflito federativo que pode emergir dessa tentativa, o qual, em todo o caso, também está presente na atual configuração, como é o caso da guerra fiscal entre os estados. Note-se que a guerra fiscal é apontada pela literatura como agente de distorção do sistema tributário, entre outras causas. Nesse sentido, uma reforma tributária progressiva requer um debate amplo entre os vários setores da sociedade e as esferas de governo, a fim de que sejam sanadas as atuais distorções e, sobretudo, propicie mais equidade na tributação.

REFERÊNCIAS

  • BRASIL. Ministério da Fazenda. Receita Federal. Carga tributária no Brasil 2017. Análise por tributos e bases de incidência. Brasília, DF: Receita Federal/Cetad, 2018.
  • CARDOSO, D. F.; DOMINGUES, E. P.; BRITTO, G. Assimetrias na tributação da renda do trabalho e do capital: Impactos de modificações na estrutura da tributação da renda de pessoa física no Brasil. Belo Horizonte: UFMG/Cedeplar, 2017. (Texto para Discussão, 557).
  • CASTRO, F. Á. Imposto de renda da pessoa física: Comparações internacionais, medidas de progressividade e redistribuição. 2014. Dissertação (Mestrado em Economia do Setor Público) - Departamento de Economia, Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2014.
  • FERNANDES, R. C.; CAMPOLINA, B.; SILVEIRA, F. G. Imposto de renda e distribuição de renda no Brasil. Texto para discussão/Ipea, n. 2449, p. 5-43, fev. 2019.
  • GOBETTI, S. W.; ORAIR, R. O. Progressividade tributária: A agenda negligenciada. Texto para discussão/Ipea , n. 2190, p. 5-52, 2016.
  • IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa de orçamentos familiares 2017-2018. Rio de Janeiro: IBGE, 2021.
  • LEITE, F. P. Como o grau de desigualdade afeta a propensão marginal a consumir? Distribuição de renda e consumo das famílias no Brasil a partir dos dados das POF 2002-2003 e 2008-2009. Economia e Sociedade, v. 24, n. 3 (55) , p. 617-650, dez. 2015. DOI: 10.1590/1982-3533.2015v24n3art5.
    » https://doi.org/10.1590/1982-3533.2015v24n3art5.
  • LERMAN, R.; YITZHAKI, S. Changing ranks and the inequality impacts of taxes and transfers. National Tax Journal, v. 48, n. 1, p. 45-59, mar. 1995. DOI: 10.1086/NTJ41789122.
    » https://doi.org/10.1086/NTJ41789122.
  • MEDEIROS, M.; SOUZA, P. H. G. F.; CASTRO, F. Á. A estabilidade da desigualdade de renda no Brasil, 2006 a 2012: estimativa com dados do imposto de renda e pesquisas domiciliares. Revista Ciência e Saúde Coletiva, v. 20, n. 24, p. 971-986, Rio de Janeiro, abr. 2015. DOI: 10.1590/1413-81232015204.00362014.
    » https://doi.org/10.1590/1413-81232015204.00362014.
  • OXFAM BRASIL. A distância que nos une. Um retrato das desigualdades brasileiras. OXFAM, 25 set., 2017.
  • PINHEIRO, T. J. Análise econométrica do consumo das famílias. In: ENCONTRO DE ECONOMIA, 3., 2017, Ponta Grossa. Anais […] . Ponta Grossa: Universidade Estadual de Ponta Grossa, Faculdade de Ciências Econômicas, 2017. p. 1-15.
  • PINTOS-PAYERAS, J. A. Análise da progressividade da carga tributária sobre a população brasileira. Pesquisa e Planejamento Econômico, v. 40, n. 2, p. 153-186, ago. 2010.
  • PNUD - PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO. Human Development Report 2019. Beyond income, beyond averages, beyond today: Inequalities in human development in the 21st century. New York: UND, 2019.
  • ROCHA, S. O impacto distributivo do imposto de renda sobre a desigualdade de renda das famílias. Pesquisa e Planejamento Econômico , v. 32, n. 1, abr. 2002.
  • RODRÍGUEZ, F. J. P. Marginal Propensity to Consume in USA by data ordered to percentiles. Cantabria: UniCan, 2016.
  • SALVADOR, E. As implicações do Sistema Tributário Brasileiro nas desigualdades de renda. Brasília, DF: Inesc, 2014.
  • SILVEIRA, F. G. Equidade fiscal: impactos distributivos da tributação e do gasto social. Comunicados do Ipea, n. 92, p. 1-9, 2012.
  • ">SILVEIRA, F. G. Tributação, previdência e assistência sociais: impactos distributivos. 2008. Tese (Doutorado em Economia Aplicada) - Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008.
  • SILVEIRA, F. G.; REZENDE, F.; AFONSO, J. R.; FERREIRA, J. Fiscal equity: Distribuitional impacts of taxation and social spending in Brazil. International Policy Centre for Inclusive Growth, n. 115, p. 3-54, 2013. Working Paper.
  • SUSANTI, Y.; PRATIWI, H.; SRI SULISTIJOWATI, H.; TWENTY, L. M estimation, S estimation, and MM estimation in robust regression. International Journal of Pure and Applied Mathematics, v. 91, n. 3, p. 349-360, 2014. DOI: 10.12732/ijpam.v91i3.7.
    » https://doi.org/10.12732/ijpam.v91i3.7.
  • VIOL, A. L.; RODRIGUES, J. J.; PAES, N. L. A progressividade no consumo: Tributação Cumulativa e sobre o Valor Agregado. Brasília, DF: Ministério da Fazenda, 2002. (Estudo Tributário, 4).
  • ZOCKUN, M. H.; ZYLBERSTAJN, H.; SILBER, S.; RIZZIERI, J.; PORTELA, A.; PELLIN, E.; AFONSO, L. E. (Coord.). Simplificando o Brasil: Propostas de reforma na relação econômica do governo com o setor privado. São Paulo: FIPE, mar. 2007. (Texto para Discussão, 3).
  • 1
    Os países em questão, em ordem decrescente de participação do centésimo mais rico no total da renda, são Colômbia, África do Sul, Uruguai, Reino Unido, Coreia, Japão, Austrália, Suécia, Noruega e Dinamarca.
  • 2
    CLASSIFICAÇÃO JEL: H22; H23.

APÊNDICE

Tabela 1
Cargas tributárias direta e indireta sobre as classes de renda familiar per capita (São Paulo)
Tabela 2
Alíquotas médias e modais dos impostos indiretos, por Grupos de Despesas em % (São Paulo)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    27 Jul 2020
  • Aceito
    16 Mar 2023
Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro Avenida Pasteur, 250 sala 114, Palácio Universitário, Instituto de Economia, 22290-240 Rio de Janeiro - RJ Brasil, Tel.: 55 21 3938-5242 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: rec@ie.ufrj.br