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UMA HOMENAGEM A DAVID KUPFER

IN HONOR OF DAVID KUPFER

Resumo

Professor da UFRJ de 1985 a 2019, colunista do Valor Econômico de 2004 a 2019, editor da REC/IE-UFRJ de 2010 a 2019 e pesquisador emérito do CNPq nomeado em 2019, David Kupfer notabilizou-se por sua visão dinâmica da evolução da indústria brasileira e seu olhar crítico e pragmático sobre o papel da indústria na promoção do desenvolvimento econômico do país. Falecido em fevereiro de 2020, David Kupfer é homenageado neste dossiê, que traz seis artigos originais abordando temas e questões que lhe eram caros, como problemas da indústria brasileira, política industrial e de inovação e as relações entre estrutura produtiva e comércio. O dossiê inclui também o artigo “Padrões de concorrência e competitividade”, da autoria de David, publicado originalmente em 1991 como Texto para Discussão nº 265 do IEI-UFRJ e uma referência no estudo das dinâmicas empresariais e estruturais no país.

Palavras-chave:
David Kupfer; editorial; dossiê; organização industrial; política industrial

Abstract

Professor at UFRJ from 1985 to 2019, columnist for Valor Econômico from 2004 to 2019, editor of REC/IE-UFRJ from 2010 to 2019, and emeritus researcher for CNPq appointed in 2019, David Kupfer stood out for his dynamic vision on the evolution of Brazilian manufacturing and his critical and pragmatic view of the role of the industrial sector in promoting economic development. David Kupfer, who passed away in February 2020, is honored in this dossier, which contains six original articles addressing themes and issues dear to him, such as problems in Brazilian industry, industrial and innovation policy, and the relationship between productive structure and trade. The dossier also includes the article “Patterns of competition and competitiveness,” written by David and initially published in 1991 as IEI-UFRJ Discussion Paper nº 265, which has become a reference in the study of business and structural dynamics in the country.

Keywords:
David Kupfer; editorial; special issue; industrial organization; industrial policy

APRESENTAÇÃO

David faleceu prematuramente em fevereiro de 2020, pouco antes da propagação da pandemia da Covid-19 ao Brasil - e muitas vezes imaginamos como teria ele reagido ao confinamento e às restrições colocadas pela pandemia... Ele havia terminado há pouco seu mandato de quatro anos na Direção do Instituto de Economia da UFRJ, onde além de professor (desde 1985) atuou como pesquisador e líder do Grupo de Indústria e Competitividade (GIC), diretor de pós-graduação e editor desta revista, entre outras funções. No IE (quando ainda Instituto de Economia Industrial), ele defendeu sua dissertação de mestrado (KUPFER, 1986KUPFER, D. Tecnologia industrial básica e seus aspectos institucionais no Brasil. Dissertação (Mestrado em Economia da Indústria e da Tecnologia) - Instituto de Economia Industrial, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1986. ) e sua tese de doutorado (KUPFER, 1998KUPFER, D. Trajetórias de reestruturação na indústria brasileira. Tese (Doutorado em Economia da Indústria e da Tecnologia) - Instituto de Economia Industrial, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1998. ) - aquela sobre tecnologia industrial básica, essa sobre a reestruturação da indústria brasileira. Sua trajetória acadêmica não se restringiu à atuação na UFRJ: além de ter lecionado na Universidade Federal Fluminense (UFF) e sido pesquisador no Instituto Nacional de Tecnologia (INT), participou de comissões de avaliação da Coordenação de Avaliação de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e do Conselho Deliberativo da Associação Nacional de Programa de Pós-Graduação em Economia (ANPEC). Em 2019, o Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Tecnológica (CNPq) reconheceu sua contribuição enquanto pesquisador nomeando-o Pesquisador Emérito naquele ano (ver CNPQ, 2020CNPQ - CONSELHO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO. Relatório de Gestão - 2019. Brasília, DF: CNPq, 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.gov.br/cnpq/pt-br/acesso-a-informacao/auditorias/copy_of_RelatriodeGestode2019.pdf/view . Acesso em 13 nov. 2023.
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; PROFESSOR..., 2019PROFESSOR da UFRJ recebe título de pesquisador emérito do CNPq. Conexão UFRJ, 12 mar. 2019. Disponível em: Disponível em: https://conexao.ufrj.br/2019/03/professor-da-ufrj-recebe-titulo-de-pesquisador-emerito-do-cnpq/ . Acesso em 13 nov. 2023.
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).

David era engenheiro químico de formação e isso marcou profundamente sua trajetória intelectual e seu trabalho como economista industrial - seus conhecimentos dos processos produtivos e do funcionamento da produção certamente lhe permitiam completar sua visão econômica da indústria e entender melhor o funcionamento dos diferentes setores e complexos.

Ao longo de sua vida profissional, David teve atuação além dos muros acadêmicos. Nos múltiplos estudos dos quais participou e naqueles que coordenou - inclusive aqueles em parceria com colegas de outras universidades, em especial do Instituto de Economia da Unicamp -, David esteva em contato direto com o setor empresarial, policy markers e outros grupos da sociedade civil. Nessa seara, duas experiências se destacam: sua atuação como Assessor da Presidência do BNDES entre 2011 e 2014 e sua participação como membro do Conselho Superior de Economia da FIESP de 2004 até seu falecimento. Ambas lhe deram a oportunidade de discutir de perto e contribuir para o desenho de políticas industriais e de inovação. David foi ainda colunista do jornal Valor Econômico durante 15 anos (até 2019): publicou cerca de 180 colunas mensais - um material muito rico que revela seu amplo conhecimento e visão abrangente acerca da indústria brasileira.

Essa experiência eclética e variada fez com que David se tornasse, ao longo do tempo, um dos principais economistas industriais do país. Suas reflexões e inquietudes acerca da evolução da indústria brasileira e da incapacidade da indústria brasileira de ganhar peso, densidade e sofisticação desde meados dos anos 1980 abarcaram trabalhos conceituais e empíricos, compreendendo aqui tanto a dimensão positiva quanto a normativa, e se caracterizaram por forte rigor analítico (e por se organizar com frequência em “três partes”...). Tal característica impulsionou seu interesse por um leque variado de temas - guardando sempre alguma relação com a evolução da indústria brasileira - e, também, estimulou a montagem de bases de dados e a sistematização de informações que permitissem aprofundar o conhecimento acerca da indústria. O estudo sobre os investimentos chineses no Brasil (KUPFER; FREITAS, 2018) seja talvez o último exemplo dessa dupla dimensão de seu trabalho: nele, David coordenou a montagem de uma base de dados inédita para completar uma lacuna informacional sobre os investimentos chineses no Brasil, tema que ele reconhecia como muito relevante para o desempenho da indústria brasileira diante da crescente importância das relações Brasil-China e também do processo de catching up, vivenciado pela China, apoiado no fortalecimento de seu setor manufatureiro.

Dentre os muitos projetos de pesquisa dos quais David participou, três foram particularmente marcantes. O primeiro foi o Estudo da Competitividade da Indústria Brasileira - ECIB (COUTINHO; FERRAZ, 1994), no qual David coordenou os estudos setoriais junto com Lia Haguenauer. Este trabalho-se tornou um marco conceitual e analítico para estudos da indústria brasileira e está na origem da criação do GIC/IE-UFRJ1 1 Oriundo do ECIB, o livro “Made in Brazil” (FERRAZ; KUPFER; HAGUENAUER, 1996) foi agraciado com o Prêmio Jabuti. . O segundo reeditou a parceria com os colegas do Instituto de Economia da Unicamp: o estudo “Perspectivas do Investimento no Brasil” (KUPFER; LAPLANE, 2010KUPFER, D.; LAPLANE, M. (Coords.) Perspectivas do investimento no Brasil. Rio de Janeiro: Synergia: UFRJ, Instituto de Economia; Campinas: UNICAMP, Instituto de Economia, 2010.) teve como objetivo compreender, mais uma vez, a situação da estrutura produtiva brasileira e propor políticas promotoras de desenvolvimento. O terceiro grande projeto dessa lista foi o “Indústria 2027: Riscos e oportunidades para o Brasil diante de inovações disruptivas” (IEL/NC et al, 2018), que David coordenou junto com João Carlos Ferraz e Luciano Coutinho e que teve como objetivos investigar os impactos de tecnologias disruptivas (especialmente as digitais) sobre a indústria brasileira e fornecer subsídios para a formulação de estratégias empresariais e políticas públicas para lidar com as oportunidades e os riscos trazidos por essas inovações.

Em termos teóricos - e para além de sua alma de engenheiro -, a produção de David reflete a influência da literatura estruturalista latino-americana e da literatura neoschumpeteriana. Seus trabalhos são ao mesmo tempo fruto e parte importante da tradição analítica (no plano teórico e no metodológico) do Instituto de Economia da UFRJ, nascido Instituto de Economia Industrial. Integrante deste dossiê, o texto de Ferraz e Torracca (2023FERRAZ, J. C.; TORRACCA, J. Padrões de concorrência e competitividade: conceitos e marco analítico para um programa de pesquisa relevante. Revista de Economia Contemporânea , v. 27, e232719, 2023. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/198055272719.
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) apresentando a republicação do “Padrões de concorrência e competitividade...” é bem elucidativo ao localizar o trabalho seminal de David (KUPFER, 1991KUPFER, D. Padrões de concorrência e competitividade. Texto para Discussão, IEI-UFRJ, n. 265, 1991. Disponível em: Disponível em: https://pantheon.ufrj.br/bitstream/11422/15518/1/DKupfer.pdf . Acesso em 13 nov. 2023.
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) relativamente ao de seus colegas e à tradição de pesquisa da instituição.

Por conta desse diálogo, a sua interpretação das atividades industriais não se circunscrevia à uma análise setorial. Ele entendia que o regime competitivo nos quais as empresas atuam é conformado pelo ambiente macroeconômico, pela estrutura de incentivos e de regulação dos fluxos de mercadorias, de capital e de tecnologia, e pela própria estrutura produtiva e comercial. Essa visão implica uma abordagem da economia industrial para além das fronteiras nacionais, ou seja, requer a adoção da perspectiva de uma “economia industrial aberta” em que a indústria nacional interage com o exterior via fluxos de comércio ou de investimento direto e é logicamente passível de ser afetada por desalinhamentos cambiais - sendo este um tema presente em diversas de suas colunas publicadas no Valor Econômico e em trabalhos desenvolvidos em parceria com Julia Torracca, incluindo sua tese de doutorado, desenvolvida sob a orientação de David (TORRACCA, 2017TORRACCA, J. F. Coevolução das estruturas de produção e comércio exterior da indústria brasileira: convergência ou desarticulação? Tese (Doutorado em Economia da Indústria e da Tecnologia) - Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.).

A respeito da questão normativa, David entendia a importância de se considerar o conjunto das políticas capazes de afetar as decisões da empresa, não se restringindo somente à política industrial, mas considerando também sua articulação a políticas de inovação e a de comércio, de modo a não reproduzir nas políticas ditas “microeconômicas” a esquizofrenia verificada na combinação das políticas macroeconômicas e as políticas de incentivo à produção. Esse tema está presente em diversos de seus trabalhos e, em especial, em uma de suas últimas colunas publicadas no Valor Econômico, quando analisou a “doença industrial brasileira” (KUPFER, 2019KUPFER, D. Doença industrial brasileira. Valor Econômico , 14 out. 2019. Disponível em: Disponível em: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/a-doenca-industrial-brasileira.ghtml . Acesso em 13 nov. 2023.
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). O argumento de David é de que tal doença, associada aos crescentes custos industriais brasileiros, estaria na origem da estagnação verificada na produtividade industrial, da baixa densidade das cadeias produtivas domésticas e da consequente perda de competitividade, além de responder pelo “um distanciamento cada vez maior [da indústria brasileira] da fronteira tecnológica internacional” (KUPFER, 2019KUPFER, D. Doença industrial brasileira. Valor Econômico , 14 out. 2019. Disponível em: Disponível em: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/a-doenca-industrial-brasileira.ghtml . Acesso em 13 nov. 2023.
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). Essa doença resultaria de uma estratégia de minimização de investimentos por parte das empresas industriais operando no Brasil resultante, entre outros, “dos elevados graus de instabilidade e incerteza que rondam a economia brasileira e de idiossincrasias do sistema financeiro nacional” (idem).

O presente dossiê da REC reflete apenas parcialmente a abrangência de sua obra. Uma importante contribuição de David ao pensamento sobre a economia industrial está presente no artigo “Padrões de concorrência e competitividade” (KUPFER, 1991KUPFER, D. Padrões de concorrência e competitividade. Texto para Discussão, IEI-UFRJ, n. 265, 1991. Disponível em: Disponível em: https://pantheon.ufrj.br/bitstream/11422/15518/1/DKupfer.pdf . Acesso em 13 nov. 2023.
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), originalmente publicado como Texto para Discussão do IE-UFRJ e apresentado em uma edição do Encontro Nacional da ANPEC. Embora já bastante conhecido e utilizado pela comunidade acadêmica nacional, o texto ganha finalmente uma publicação em um periódico, selando (ainda que tardiamente) sua incorporação ao corpus de conhecimento do campo. Neste dossiê, o texto vem precedido de uma apresentação por João Carlos Ferraz e Julia Torracca (2023FERRAZ, J. C.; TORRACCA, J. Padrões de concorrência e competitividade: conceitos e marco analítico para um programa de pesquisa relevante. Revista de Economia Contemporânea , v. 27, e232719, 2023. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/198055272719.
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), que mostram sua relevância, além de construir sua genealogia e demonstrar sua atualidade, apontando para possíveis aplicações dos conceitos desenvolvidos no contexto atual.

Além da republicação do “Padrões de concorrência...”, este dossiê traz seis artigos originais, selecionados após uma chamada para trabalhos aberta para a comunidade acadêmica no 2º semestre de 2021. Dois textos fazem diagnósticos da evolução da indústria brasileira, enquanto os demais se dedicam a temas relacionados à política industrial na concepção abrangente e interativa de David.

O artigo de Araújo, Peres e Araujo (2023ARAUJO, E.; PERES, S. C.; ARAUJO, E. L. Desindustrialização e heterogeneidade subsetorial: padrões internacionais e desafios para a economia brasileira. Revista de Economia Contemporânea, v. 27, e232720, 2023. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/198055272720.
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) busca entender a evolução da indústria brasileira nos últimos 25 anos à luz das transformações observadas na estrutura produtiva dos países em torno do globo. O artigo dialoga com a preocupação de David com o baixo crescimento da indústria brasileira, do que resulta sua perda de importância no PIB e a que ele atribuiu o que chamou de “doença brasileira”. Nessa análise, considera-se a heterogeneidade setorial das atividades manufatureiras - outro tema recorrente em diferentes trabalhos de David (por exemplo, KUPFER; ROCHA, 2005KUPFER, D.; ROCHA, F. Determinantes setoriais do desempenho das empresas industriais brasileiras. In: DE NEGRI, J.; SALERMO, M. (Eds.). Inovações, padrões tecnológicos e desempenho das firmas industriais brasileiras. Brasília: IPEA, 2005.) -, mostrando como difere o processo de transformação estrutural difere entre os países de diferentes níveis de desenvolvimento.

O tema de desindustrialização também é explorado por Lacerda e Severian (2023LACERDA, A. C. de; SEVERIAN, D. Política industrial e desindustrialização no Brasil: inspirações de David Kupfer ao debate. Revista de Economia Contemporânea , v. 27, e232724, 2023. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/19805527232724.
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), que se inspiram nas ideias de David para discutir os desafios da política industrial no contexto atual. Os autores discutem as diferentes visões acerca da desindustrialização brasileira, tendo como ponto de partida a análise de David acerca dos impactos da abertura comercial e da ancoragem monetária sobre o parque produtivo nacional. Tal análise é complementada pela avaliação dos efeitos primarizadores do boom de commodities dos anos 2000 sobre a especialização comercial brasileira, em virtude de seus efeitos sobre os termos de troca e a taxa de câmbio. Mais uma vez, faz-se referência à interação entre as dimensões macro e microeconômicas presentes na obra de David e discutido no artigo de Furtado (2023FURTADO, J. Fundamentos industriais da estabilidade macroeconômica para o desenvolvimento. Revista de Economia Contemporânea , v. 27, e232725, 2023. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/198055272725.
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) desta edição. O artigo se encerra dando a esta discussão um olhar de futuro ao considerar requisitos e fatores que podem contribuir para o desenho de estratégias para “recolocar o Brasil no caminho do desenvolvimento sustentável”, como sugerem os autores.

O artigo de Iasco-Pereira e Libânio (2023)IASCO-PEREIRA, H. C.; LIBÂNIO, G. Investimentos externos diretos da China no Brasil: a presença de empresas chinesas na economia brasileira nos séculos XX e XXI. Revista de Economia Contemporânea , v. 27, e232721, 2023. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/198055272721.
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documenta a intensificação das relações sino-brasileiras e analisa o perfil dos investimentos chineses no Brasil. Os autores, a partir da análise setorial da instalação de empresas de origem chinesa no país, corroboram algumas tendências apontadas por Kupfer e Freitas (2018). As principais dizem respeito à tendência à diversificação setorial dos investimentos chineses (em contraste com a baixa diversificação dos fluxos de comércio bilaterais, sobretudo do lado das exportações) e a atuação em setores de maior intensidade tecnológica e/ou infraestrutura, relevantes para o desenvolvimento produtivo e para o crescimento de longo prazo. Tais características evidenciam a relevância do estudo das estratégias das empresas chinesas para a compreensão da evolução da indústria brasileira, incluindo o aperfeiçoamento das estatísticas e informações disponíveis, a exemplo dos esforços empreendidos anteriormente por Kupfer e Freitas (2018).

O artigo de Diegues, Roselino, Ferreira e Garcia (2023DIEGUES, A. C.; ROSELINO, J. E.; FERREIRA, M. J. B.; GARCIA, R. de C. The renewal of the debate on industrial policy: limitations and suggestion for a normative typology based on the dialogue between neo-Schumpeterians. Revista de Economia Contemporânea , v. 27, e232723, 2023. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/198055272723.
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) realiza um esforço de natureza teórica e normativa em busca de compatibilização e complementação entre as visões neoschumpeteriana e desenvolvimentista acerca das orientações de política industrial mais eficazes e, sobretudo, mais alinhadas ao cenário tecno-produtivo atual, caracterizado pela fragmentação produtiva, internacionalização da produção via cadeias globais de valor, servitização e mudanças tecnológicas abrigadas sob o rótulo da indústria 4.0. Esse artigo compartilha dois aspectos com alguns trabalhos de David: a busca de um quadro analítico para discussão da política industrial e o esforço de compreensão de como os fatores de diferentes naturezas afetam a capacidade de catching-up dos países. Trabalhos mais recentes de David se interessaram pela (in)capacidade da indústria brasileira de se aproximar da fronteira tecnológica, dado que, segundo ele, boa parte da indústria brasileira ainda se encontrava no estágio 2.0 (ver KUPFER, 2016KUPFER, D. Indústria 4.0 Brasil. Valor Econômico, 08 ago. 2016. Disponível em: Disponível em: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/industria-4-0-brasil.ghtml . Acesso em 13 nov. 2023.
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).

No artigo de Botelho e Avellar (2023BOTELHO, M. dos R. A.; AVELLAR, A. P. M. de. A contribuição de David Kupfer para a análise da política de inovação brasileira nos anos 2000. Revista de Economia Contemporânea , v. 27, e232722, 2023. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/198055272722.
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), as autoras analisam a política de inovação brasileira nos anos 2000 com base nos dados da Pintec. Elas se apoiam em diversas contribuições de David, revisitando seus estudos acerca das políticas industriais e seus efeitos desde a liberalização da economia nos anos 1990. Na avaliação de David, a liberalização comercial teria levado à acentuação da heterogeneidade estrutural da indústria brasileira, com uma especialização crescente em setores e produtos de menor valor agregado. Ao reconhecer os problemas associados a ausência dos setores tecnologicamente mais avançados - setores intensivos em conhecimento, identificados pelo autor como o “setor ausente” no atual estágio de desenvolvimento industrial brasileiro - David enxergava no baixo grau de inovatividade das empresas um dos problemas centrais para a indústria brasileira. Ele postula, então, que as políticas industriais devem estar articuladas à política de inovação de forma a incentivar a inovação tecnológica e a aproximar as empresas e os setores chaves da fronteira tecnológica. As autoras encontram resultados compatíveis com a avaliação de David, ao constatar a redução do ritmo inovativo das empresas e da abrangência dos programas de apoio governamental, bem como o aumento da heterogeneidade entre as empresas industriais.

O artigo de Furtado (2023FURTADO, J. Fundamentos industriais da estabilidade macroeconômica para o desenvolvimento. Revista de Economia Contemporânea , v. 27, e232725, 2023. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/198055272725.
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) retoma e desenvolve um tema muito caro a David, que é a interação entre a dimensão macro e microeconômica. Para nosso homenageado, uma das razões pelas quais as políticas macroeconômicas não são capazes de gerar ciclos de crescimento sustentado na economia brasileira é a desconsideração das fragilidades da estrutura produtiva. Furtado busca responder à inquietude manifesta em diversos trabalhos de David acerca da razão pela qual a economia brasileira tem se mostrado incapaz de sustentar investimentos capazes de gerar ciclos expansão que produzam efeitos dinâmicos e de retroalimentação. Essa preocupação perpassa o trabalho de David desde os estudos dos anos 1990, inclusive sua tese de doutorado, até chegar às discussões mais recentes sobre a “doença brasileira” (KUPFER, 2019KUPFER, D. Doença industrial brasileira. Valor Econômico , 14 out. 2019. Disponível em: Disponível em: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/a-doenca-industrial-brasileira.ghtml . Acesso em 13 nov. 2023.
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, 2017KUPFER, D. O nó górdio. Valor Econômico , 11 set. 2017. Disponível em: Disponível em: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/o-no-gordio.ghtml . Acesso em 13 nov. 2023.
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). Em todos esses trabalhos, está o reconhecimento da debilidade do processo de investimento no Brasil, que impede a superação das fragilidades da estrutura produtiva que, por sua vez, impede um ciclo virtuoso e sustentado de crescimento econômico.

***

É inspirador fazer este sobrevôo - ainda que injustamente rápido - da trajetória do professor, pesquisador e amigo David Kupfer, assim como da produção de colegas investigadores do campo da economia que, de alguma forma, se inspiraram, ampararam e referenciaram na obra de David. Desejamos boa leitura às pessoas leitoras!

REFERÊNCIAS

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    » http://dx.doi.org/10.1590/198055272720
  • BOTELHO, M. dos R. A.; AVELLAR, A. P. M. de. A contribuição de David Kupfer para a análise da política de inovação brasileira nos anos 2000. Revista de Economia Contemporânea , v. 27, e232722, 2023. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/198055272722
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  • FERRAZ, J. C.; TORRACCA, J. Padrões de concorrência e competitividade: conceitos e marco analítico para um programa de pesquisa relevante. Revista de Economia Contemporânea , v. 27, e232719, 2023. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/198055272719
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  • LACERDA, A. C. de; SEVERIAN, D. Política industrial e desindustrialização no Brasil: inspirações de David Kupfer ao debate. Revista de Economia Contemporânea , v. 27, e232724, 2023. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/19805527232724
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  • PROFESSOR da UFRJ recebe título de pesquisador emérito do CNPq. Conexão UFRJ, 12 mar. 2019. Disponível em: Disponível em: https://conexao.ufrj.br/2019/03/professor-da-ufrj-recebe-titulo-de-pesquisador-emerito-do-cnpq/ Acesso em 13 nov. 2023.
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  • TORRACCA, J. F. Coevolução das estruturas de produção e comércio exterior da indústria brasileira: convergência ou desarticulação? Tese (Doutorado em Economia da Indústria e da Tecnologia) - Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
  • 1
    Oriundo do ECIB, o livro “Made in Brazil” (FERRAZ; KUPFER; HAGUENAUER, 1996) foi agraciado com o Prêmio Jabuti.
  • 2
    Classificação JEL: L1; L5; L6.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023
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