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MEMÓRIA DO IE-UFRJ: HOMENAGEM A DAVID KUPFER. PADRÕES DE CONCORRÊNCIA E COMPETITIVIDADE: CONCEITOS E MARCO ANALÍTICO PARA UM PROGRAMA DE PESQUISA RELEVANTE

COMPETITION PATTERNS AND COMPETITIVENESS: CONCEPTS AND ANALYTICAL FRAMEWORK TO RELEVANT RESEARCH PROGRAM

RESUMO

O artigo “Padrões de concorrência e competitividade”, de David Kupfer, propõe um quadro analítico que se tornou referência para trabalhos teóricos e empíricos sobre a relação entre empresa competitiva, mercados e concorrência situados em qualquer espaço econômico e locacional e em qualquer momento do tempo. Proposto e amadurecido como parte do esforço de décadas de investigação e pesquisas empíricas realizadas no âmbito do Instituto de Economia da UFRJ, o texto é republicado neste volume da Revista de Economia Contemporânea integrando uma homenagem ao autor, falecido no início de 2020. Nesta comunicação, faz-se uma apresentação e uma resenha do artigo, situando sua contribuição no campo da análise econômica contemporânea e discutindo as possibilidades da utilização dos conceitos propostos à luz das problemáticas atuais da indústria.

PALAVRAS-CHAVE:
Padrões de concorrência; competitividade; David Kupfer

ABSTRACT

The article “Patterns of competition and competitiveness”, by David Kupfer, proposes an analytical framework that has become a reference for theoretical and empirical work on the relationship between competitive companies, markets, and competition located in any economic and locational space and at any moment of time. Proposed and matured as part of the effort of decades of investigation and empirical research carried out within the scope of the Institute of Economics at UFRJ, the text is being republished in this volume of the Revista de Economia Contemporânea integrating a tribute to the author, who passed away at the beginning of 2020. In this communication, a presentation and review of the article is made, situating its contribution in the field of contemporary economic analysis and discussing the possibilities of using the proposed concepts in light of current industry problems.

KEYWORDS:
Competition patterns; competitiveness; David Kupfer

APRESENTAÇÃO

Não é simples escrever um texto sobre as principais contribuições intelectuais do nosso amigo, parceiro e colega David Kupfer. Por um lado, apresentar em poucas palavras um trabalho complexo como “Padrões de concorrência e competitividade” não fará jus ao que o autor consegue propor. Por outro lado, será difícil segurar a tentação de trazer para o leitor o que mais nos toca no David, essa pessoa única. Tentaremos (não com muito esforço...) não misturar o emocional com o racional, pois temos de ressaltar os traços principais deste trabalho e as contribuições que dele derivaram. Isso faremos nesta breve resenha. Com ela pretendemos, acima de tudo, aguçar o interesse do leitor de primeira viagem e, para aqueles que o conhecem, propor uma releitura do artigo com as lentes da 2ª década do século XXI, sem perder a mirada de 30 anos atrás, quando o artigo foi originalmente publicado.

UMA CONTRIBUIÇÃO ESSENCIAL PARA ANÁLISE DE DINÂMICAS MICROECONÔMICAS

Para começar, pede-se atenção à essência das proposições do artigo “Padrões de concorrência e competitividade”:

  • Concorrência - o referencial para a avaliação de competitividade está na dinâmica do processo de concorrência.

  • Competitividade - refere-se à capacidade de a empresa formular e implementar estratégias que lhe permitam ampliar ou conservar, de forma duradoura, uma posição sustentável no mercado.

  • Empresa competitiva: diz-se das firmas que a cada instante adotam estratégias mais adequadas ao padrão de concorrência que vigora em seu setor de atuação.

  • Padrão de concorrência - corresponde a um conjunto de formas de concorrência que se revelam dominantes em um determinado espaço de competição. É o padrão de concorrência, portanto, a variável determinante, enquanto a competitividade é a variável determinada ou de resultado.

O autor demonstra, ao longo do artigo, o quão vitais são para o entendimento de dinâmicas empresariais e estruturais (ou micro e meso econômicas) os conceitos indissociáveis de concorrência e padrão de concorrência e de competitividade e empresa competitiva. O conceito de dinâmica já afasta, e assim David inicia o texto, os principais preceitos das abordagens estático-comparativas. Para ele, o enfrentamento competitivo das empresas no espaço da concorrência está associado a duas dimensões de dinâmica: mudanças no tempo e mudanças em como uma atividade empresarial ou econômica é realizada.

Posto nesses termos, a essência de nosso entendimento, e para isso queremos chamar atenção, é que o artigo “Padrões de concorrência...” propõe um quadro de referência, ou marco analítico, tanto para trabalhos teórico-conceituais quanto para esforços aplicados, visando orientar estudos empíricos sobre empresas ou atividades econômicas, em qualquer espaço econômico e locacional, em qualquer momento do tempo. Nesse sentido, a contribuição de David tem o mesmo sentido da feita por dois autores que ele certamente prezava:

Our evolutionary theory of economic change is in this spirit; it is not an interpretation of economic reality as a reflection of supposedly constant “given data/’ but a scheme that may help an observer who is sufficiently knowledgeable regarding the facts of the present to see a little further through the mist that obscures the future. (NELSON; WINTER, 1982NELSON, R.; WINTER, S. An evolutionary theory of economic change. Cambridge, MT: Harvard University Press, 1982., p. ix)

Notem, nos conceitos arrolados acima, que a proposição de David prescinde (porque ele a considera infrutífera) da especificação, a priori, de formas de a empresa competir (custo, diferenciação, como definido pela tradicional literatura de organização industrial), tipos diferentes de atividades econômicas (por qualquer tipo de classificação ou taxonomia de atividades existente) ou o estágio de desenvolvimento de uma empresa, setor, região ou país. A contribuição de David é “assetorial”, “ageográfica”, “atemporal” e bem focalizada no processo de concorrência e nas estratégias empresariais, abrindo espaços para desenvolvimentos conceituais e empíricos futuros, como os que o próprio autor esteve envolvido. Essa é a essência da força intelectual do artigo “Padrões de concorrência...”.

DESENHO E ESTRUTURA LÓGICA DO ARTIGO

“Padrões de concorrência e competitividade” foi publicado inicialmente em novembro de 1991 como Texto de Discussão nº 265 do então Instituto de Economia Industrial da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IEI-UFRJ) e, sob o mesmo título, nos Anais do XX Encontro Nacional da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Economia (ANPEC), em 1992. A abordagem é tipicamente narrativa/apreciativa, estruturada de forma lógica-dedutiva1 1 Não se poderia esperar outra coisa de uma pessoa tão lógica-racional como era David. , no melhor estilo de autores que o inspiraram, como Penrose (1995)PENROSE, E. The theory of the growth of the firm. Oxford: Oxford University Press, 1995. e Nelson e Winter (1982NELSON, R.; WINTER, S. An evolutionary theory of economic change. Cambridge, MT: Harvard University Press, 1982.).

Apesar de pequenas diferenças na organização das seções, as duas versões do texto:

  1. Iniciam colocando ao leitor as questões em aberto (seção intitulada “O debate sobre competitividade”), isto é, considerando as dimensões ex-ante e ex-post, que a análise da competitividade implica, além de uma dimensão intertemporal e ligada ao processo de concorrência, o que por sua vez demanda uma formulação conceitual própria.

  2. Propõem-se a analisar criticamente tanto as hipóteses de equilíbrio e condutas maximizadoras quanto a literatura tradicional de organização industrial que aborda as relações entre estrutura, conduta e desempenho e suas dificuldades em tratar as questões de dinâmica temporal e estrutural (seção “Concorrência na teoria microeconômica”).

  3. Exploram outros caminhos (seção “Enfoques alternativos”) a partir, justamente, de contribuições conceituais inspiradas em Schumpeter e Keynes, que tomam as noções de desequilíbrio, inovação e expectativas como elementos centrais e necessários para tratar da dinâmica da concorrência e competitividade.

  4. Avançam (seção “Padrões de concorrência e competitividade”) para derivar a principal contribuição do artigo, expressa na seguinte formulação:

competitividade (microeconômica) é função da adequação das estratégias das empresas individuais ao padrão de concorrência vigente no mercado específico. Em cada mercado vigoraria um dado padrão de concorrência definido a partir da interação entre estrutura e condutas dominantes no setor. Seriam competitivas as firmas que a cada instante adotarem estratégias de conduta (investimentos, vendas, inovação, compras, financiamento, etc..) mais adequadas ao padrão de concorrência setorial. (KUPFER, 1991, p. 25).

O LOCAL: O MOMENTO QUANDO FOI ELABORADO O ARTIGO

O artigo “Padrões de concorrência...” foi elaborado durante um período de extensa produção intelectual tanto teórica/conceitual quanto aplicada/empírica do então IEI-UFRJ. Para além dos estruturalistas clássicos da casa, tais como Maria da Conceição Tavares, Antônio Barros de Castro e Carlos Lessa, nos temas de indústria e inovação, com olhar para a problemática da competitividade, concorrência, organização industrial e classificação de setores, estiveram debruçados Guimarães (1983GUIMARÃES, E. A. Economias de escala e barreiras à entrada: uma formalização. Texto para Discussão, IEI/UFRJ , n. 16, 1983.), Erber (1983ERBER, F. S. O complexo eletrônico - estrutura, evolução histórica e padrão de competição. Texto para Discussão, IEI/UFRJ, n. 19, 1983.), Ferraz (1989FERRAZ, J. C. Heterogeneidade tecnológica da Indústria brasileira: perspectivas e implicações para política. Texto para Discussão, IEI/UFRJ, n. 185, 1989.), Haguenauer, Tavares Jr., Prochnik e Guimarães (1984HAGUENAUER, L.; ARAÚJO Jr., J. T.; PROCHNIK, V.; GUIMARÃES, E. A. Os complexos industriais na economia brasileira. Texto para Discussão, IEI-UFRJ, n. 62, 1984.), Haguenauer (2012[1989])HAGUENAUER, L. Competitividade: conceitos e medidas. Uma resenha da bibliografia recente com ênfase no caso brasileiro. Revista de Economia Contemporânea, v. 16, n. 1, jan./abr. 2012. Disponível em: Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/rec/article/view/24220 . Acesso em 10 out. 2023. [Texto para Discussão, IEI-UFRJ, n. 211, 1989.]
https://revistas.ufrj.br/index.php/rec/a...
e Possas (1985POSSAS, M. L. Estruturas de mercado em oligopólio. São Paulo: Hucitec, 1985., 1987POSSAS, M. L. Dinâmica da economia capitalista. São Paulo: Brasiliense, 1987. ), entre outros. A curiosidade intelectual e o desenvolvimento de ideias estavam em franca ebulição, nos anos 1980, no IEI/UFRJ, levando à proposição de conceitos relativamente novos e convergentes.

Assim, de modo direto ou indireto, esse interessante caldo de cultura contribuiu para o desenvolvimento das ideias propostas no artigo “Padrões de Concorrência...”. O autor deixa isso claro no início do texto, ao introduzir a discussão sobre a problemática de competitividade com uma oportuna e precisa resenha da crítica de Haguenauer (1989) aos conceitos de competitividade associados a desempenho e eficiência - elementos esses diferenciados a partir da noção de competitividade sob a ótica de resultado percebido a posteriori e tendo como drive principal as orientações com origem na demanda e aquela entendida como construção de capacidade prévia sendo, portanto, direcionada e elaborada sob a perspectiva daquele que oferta o produto (Figura 1).

Figura 1
Conceitos de competitividade

No âmbito da pesquisa, estavam sendo realizados novos experimentos metodológicos e empíricos na instituição. Destaca-se o projeto “Cenários da indústria brasileira: Formação profissional para os anos 2000” (SENAI, 1992SENAI - SERVIÇO NACIONAL DE APRENDIZAGEM INDUSTRIAL. Cenários da indústria brasileira: formação profissional para os anos 2000. Brasília: SENAI/DN/DPEA, 1992. Mimeo.), que pretendeu investigar as relações entre a adoção de tecnologias digitais (à época denominadas de automação de base microeletrônica), a adoção de novas técnicas organizacionais (como qualidade total e just in time) e a qualificação da mão de obra. Para isso uma nova abordagem de pesquisa foi experimentada: a pesquisa direta a representantes qualificados de empresas industriais. O questionário se baseou no conhecimento, na percepção e nas expectativas que esses indivíduos possuíam sobre a situação presente e a trajetória de crescimento das empresas, sobre a adoção das inovações no presente e no futuro, sobre as consequentes implicações disso sobre a competitividade e, naturalmente, sobre o perfil de qualificação da força de trabalho. O painel de respondentes foi deliberadamente desenhado para reunir informações de empresas potencialmente usuárias das inovações examinadas. A esta pesquisa seminal se seguiram outras, na instituição, que possibilitaram a ampliação da base de dados de 130 para quase 200 empresas de diferentes setores. Foram experimentadas técnicas estatísticas, tais como análise fatorial e análise de agrupamento, para o conjunto da base de dados e, em paralelo, foram realizados estudos orientados, em grande medida, para o entendimento da lógica da concorrência e da competitividade de setores específicos, dois exemplos desses sendo os trabalhos de Afonso (1993AFONSO, M. A. C. Padrão de concorrência e estratégia competitiva: Um estudo do complexo têxtil/calcados. Dissertação (Mestrado em Economia da Indústria e da Tecnologia) - Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, 1993.) e Rocha (1991ROCHA, C. F. L. Trajetórias de crescimento do complexo químico. Dissertação (Mestrado em Economia da Indústria e da Tecnologia) - Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1991.).

Essas pesquisas aplicadas foram funcionais para o desenvolvimento do marco analítico exposto por David Kupfer no “Padrões de concorrência...”. Ao ambiente de debate conceitual se somava, durante o mesmo período de tempo de fermentação de suas ideias, uma base de conhecimento empírico sobre práticas e expectativas de empresas, que propiciava pistas sobre como aprofundar e rebater conceitos às informações reveladas pela pesquisa empírica.

UM PROGRAMA DE PESQUISA SOBRE PADRÕES DE CONCORRÊNCIA

O ambiente de rico debate intelectual e a realização de pesquisas empíricas com novas propostas de abordagem forneceram um ambiente propício para o autor desenvolver suas proposições. Essas, por sua vez, viriam a pavimentar os desdobramentos que o artigo emanou, na forma de um proeminente programa de pesquisas desenvolvido ao longo dos anos subsequentes à publicação do texto.

A âncora desse programa é, sem dúvidas, o projeto “Estudo da competitividade da indústria brasileira” (COUTINHO; FERRAZ, 1994COUTINHO, L.; FERRAZ, J. C. (Coords.) Estudo da competitividade da indústria brasileira. Campinas: Editora Papirus / Editora da Unicamp, 1994.), contratado através de processo competitivo no âmbito do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Científico de Tecnológico (PADCT), do então Ministério de Ciência e Tecnologia. Trata-se de um projeto que, literalmente, “marcou época” pelo marco analítico adotado, o escopo e a profundidade das análises, os debates induzidos, as implicações de política e os desdobramentos de estudos posteriores2 2 No Google Acadêmico, em 10/10/2023, registraram-se 1713 citações ao Estudo da Competitividade da Indústria Brasileira (ECIB) em nome de João Carlos Ferraz. . Para além das parcerias estabelecidas e da disponibilidade de um time de especialistas de alto nível, foi decisiva para o grupo vencer a concorrência do PADCT e lograr a execução tempestiva e com qualidade do projeto a forma de abordagem adotada (Figura 2) - um desdobramento do marco analítico proposto por David Kupfer, elaborado com apoio do pessoal da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Figura 2
A especificação de fatores competitivos empresariais, estruturais e sistêmicos

O ECIB foi realizado em conjunto pelos Institutos de Economia da Unicamp e da UFRJ, em parceria com a Fundação Dom Cabral e a Fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior e outras instituições de pesquisa no país e no exterior, entre agosto de 1992 e dezembro de 1993. A partir do trabalho de 82 especialistas, foram produzidas 96 notas técnicas, das quais 33 se referiam a setores industriais responsáveis por aproximadamente 50% da produção industrial do país. Em paralelo, e com o aprendizado de experiências anteriores, foi realizada uma pesquisa de campo junto a aproximadamente 650 empresas industriais.

A coordenação dos estudos industriais do ECIB foi de David Kupfer e Lia Hageunauer. O marco analítico apresentado no artigo “Padrões de concorrência...” orientou a elaboração dos estudos setoriais. No âmbito do projeto, as avaliações de todos os setores seguiram os mesmos passos:

  • Identificação dos fatores determinantes do sucesso competitivo no setor e definição das estratégias competitivas dominantes verificadas, assim como mudanças esperadas na indústria internacional;

  • Seleção dos fatores mais relevantes, agrupando-os em empresariais, estruturais e sistêmicos e derivando-se, daí, um mapa para definição de quais capacitações e desempenhos são relevantes para o sucesso competitivo da empresa em seu setor de atuação e, portanto, das estratégias competitivas que devem ser implementadas;

  • Diagnóstico da competitividade das empresas brasileiras através da avaliação de capacitações, estratégias e desempenhos nos aspectos identificados como relevantes para a competitividade no setor;

  • Análise dos fatores determinantes da competitividade no setor - empresariais, estruturais e sistêmicos -, considerando em que medida favorecem ou constituem restrições à competitividade das empresas brasileiras;

  • Avaliação da situação presente e a que se pode esperar num futuro próximo;

  • Hierarquização dos principais obstáculos e oportunidades à competitividade da indústria nacional;

  • Proposição de estratégias e ações para o desenvolvimento competitivo dos setores, divididas em ações relacionadas aos fatores empresariais, estruturais e sistêmicos, identificando-se os instrumentos relevantes e atores a serem mobilizados.

No âmbito do ECIB e com base no marco analítico de competitividade e padrões de concorrência, foram especificados três grupos de setores: setores com capacidade competitiva (entre eles, soja e café, petróleo e petroquímica, minério de ferro e siderurgia, e o complexo papel e celulose); setores com deficiências competitivas (como abate, fertilizantes, automobilística, eletrônica de consumo, vestuário, cimento, e móveis); e setores difusores de progresso técnico (informática, máquinas-ferramenta, fármacos, biotecnologia, entre outros).

Concluído o ECIB, foi lançado o livro “Made in Brazil: Desafios competitivos para a indústria brasileira” (FERRAZ; KUPFER; HAGUENAUER, 1996FERRAZ, J. C.; KUPFER, D.; HAGUENAUER, L. Made in Brazil: Desafios competitivos para a indústria. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1996.), um esforço de sistematização de todo o cabedal de conhecimentos e experiências acumulados no projeto3 3 O livro ganhou o prêmio Jabuti de melhor livro de Economia em 1996. No Google Acadêmico, em 10/10/2023, estão registradas 1325 citações ao Made in Brazil em nome de João Carlos Ferraz. . Esse livro foi importante em dois sentidos: permitiu a consolidação de conceitos e do marco analítico originados no artigo “Padrões de concorrência...” e levou à identificação e à análise, inclusive em bases quantitativas, de determinados padrões de concorrência sob os quais se podem “localizar” as mais diferentes atividades industriais.

O livro reafirma o conceito de competitividade do artigo original e aprofunda sua especificação ao associar, de forma dinâmica/temporal, três dimensões da ação empresarial: estratégia, capacitação e desempenho. Ao mobilizar os recursos necessários, a estratégia define, no tempo, o nível e a qualidade da capacitação de uma empresa, em todas as suas áreas de negócio (administrativa, produtiva, vendas, etc.). Isso significa que o grau de capacitação de uma firma em um dado momento está determinado pelas estratégias competitivas adotadas pela firma em um momento anterior. Essa capacitação, por sua vez, constitui uma restrição aos limites “desejados” de uma postulação de estratégia e define, para a empresa, o potencial de seu desempenho tanto produtivo quanto nos mercados.

No entanto, para se avaliar a convergência entre estratégia, capacitação e desempenho de uma empresa, é imprescindível associá-los aos fatores relevantes para o sucesso competitivo (Figura 2), tanto empresariais quanto estruturais e sistêmicos (uma herança do ECIB), que variam de setor a setor, além de verificar a sua importância no presente e o que se pode esperar no futuro próximo, principalmente em ambientes de mudança, econômica, institucional ou tecnológica. Alcança-se, assim, uma análise integrada da firma e de seus fatores determinantes.

Os padrões de concorrência são influenciados pelas características estruturais e comportamentais do ambiente competitivo da empresa, seu setor e mercado de atuação. Eles apresentam duas características decisivas para a avaliação da competitividade: (i) eles são específicos a setores e até mesmo a determinados mercados de bens e serviços e são essas peculiaridades que norteiam as estratégias das empresas; (ii) eles mudam no tempo em função de fatores institucionais (uma regra de barreiras à entrada), econômicos (tamanho e dinamismo de um mercado) e tecnológicos (a força do progresso técnico em destruir ou criar oportunidades). No Made in Brazil, são identificados e especificados quatro padrões de concorrência que podem ser associados a diversos setores: commodities, bens duráveis, bens difusores de progresso técnico e bens tradicionais. A análise empírica segue o seguinte script, para cada de seus subsetores: tendências competitivas internacionais; mercado; configuração da indústria; desempenho e capacitação; estrutura patrimonial e produtiva; regime de incentivos e regulação da concorrência; e, finalmente, os desafios competitivos por enfrentar.

Em sua tese de doutorado (KUPFER, 1998), executada em paralelo à elaboração do Made in Brazil, David teve a oportunidade de aprofundar o entendimento acerca dos quatro grupos industriais definidos com base nos padrões de concorrência acima mencionados, buscando situá-los no contexto pós-liberalização da década de 1990.

Como o próprio conceito de padrões de concorrência pressupõe uma adaptabilidade às mudanças nas dinâmicas competitivas ao longo do tempo, a designação dos quatros grupos industriais foi sofrendo transformações ao longo das décadas. Entre 2010 e 2012, o Grupo de Indústria e Competitividade (GIC/IE-UFRJ) produziu o Boletim da Indústria e Comércio Exterior em parceria com a Agência Brasileira de Promoção às Exportações (APEX) com a finalidade de auxiliar a agência na montagem de um quadro de referência para o trabalho de inteligência comercial desenvolvido. Naquele momento, havia a leitura de que o grupo de commodities deveria ser desagregado em commodities agrícolas e commodities industriais, com o primeiro aglutinando as atividades econômicas industriais intensivas em recursos naturais agrícolas e o segundo incluindo os setores intensivos em recursos naturais energéticos. O grupo de bens duráveis foi desmembrado, com a maior parte dos setores sendo recategorizada no grupo de intensivos em tecnologia (em substituição a difusores do progresso técnico) e uma pequena parte realocada no grupo da chamada indústria tradicional.

Com essa nova organização, observou-se o que David chamava de “pirâmide” da indústria: na base estariam as commodities no geral, refletindo as principais empresas exportadoras da indústria brasileira que, por sua vez, são conhecidas por serem de grande porte e operarem com elevado nível de escala mínima eficiente; no chamado “miolo”, teríamos as atividades mais intensivas em mão de obra e com menores requerimentos de qualificação e tecnologia; e no topo estariam os setores mais intensivos em tecnologia capazes de difundir o progresso técnico e, portanto, mais exigentes quanto a investimentos em pesquisa e desenvolvimento e necessidade de capital. Esse novo esquema analítico se estendeu de forma aplicada por outros trabalhos e ganhou uma maior atenção e devida justificativa teórica com a tese de doutorado de Julia Torracca (2017TORRACCA, J. F. Coevolução das estruturas de produção e comércio exterior da indústria brasileira: convergência ou desarticulação? Tese (Doutorado em Economia da Indústria e da Tecnologia) - Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.) elaborada sob orientação de David. Atualmente, essa classificação serve de base para muitos trabalhados acadêmicos que buscam compreender a mudança estrutural da indústria brasileira sob diferentes perspectivas, se consolidando como alternativa de categorização à tradicional classificação setorial por intensidade tecnológica largamente difundida pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).

PADRÕES DE CONCORRÊNCIA E COMPETITIVIDADE NA 2ª DÉCADA DO SÉCULO XXI

O aumento da competição internacional, a pandemia de Covid-19, os conflitos entre nações, as ameaças das mudanças climáticas, o surgimento de tecnologias potencialmente disruptivas como a biologia sintética e a aceleração do progresso técnico digital revelam novos desafios para o desenvolvimento produtivo dos países. Na segunda década do século XXI, independentemente do seu estágio de desenvolvimento, empresas e países não têm diante de si trajetórias tecnológicas e/ou modelos de organização de sistemas nacionais de inovação de referência tão claros quanto aqueles vigentes na virada do século. Empresas atualmente líderes de mercado nas bolsas internacionais simplesmente não existiam há 20 anos. Os horizontes a partir dos quais as empresas poderiam desenvolver e implementar suas próprias estratégias estão relativamente difusos, quando comparados a outros momentos do tempo como quando o Brasil empreendeu as suas duas jornadas de catching up industrializantes (Plano de Metas e Planos Nacionais de Desenvolvimento I e II).

O momento histórico importa. Outros fatores, nos níveis estrutural e sistêmico, devem ser considerados na delimitação de drivers competitivos e padrões de concorrência:

  • Globalização e cadeias de valor => a geopolítica da concorrência;

  • Mudança climática e transição energética => a sustentabilidade na concorrência;

  • Políticas industriais => os interesses nacionais “organizando” a concorrência.

Estudo recente realizado para a Confederação Nacional da Indústria (CNI) trouxe evidências de uma das dimensões de transformação acima citadas: o alto dinamismo do progresso técnico e seu impacto sobre sistemas produtivos (IEL/NC et al., 2018IEL/NC et al. Síntese dos resultados. Volume 1 - Tecnologias disruptivas e indústria: Situação atual e avaliação prospectiva. Brasília: IEL/NC, 2018.). Intitulado "Indústria 2027: riscos e oportunidades para o Brasil diante de Inovações disruptivas", o projeto teve em David Kupfer um dos idealizadores e coordenadores e renovou a parceria entre os Institutos de Economia da Unicamp e da UFRJ. Entre outros resultados, o estudo mostrou que em 2017 já se verificavam impactos disruptivos do progresso técnico sobre modelos de negócio e estratégias empresariais de alguns sistemas produtivos e que, até 2027, empresas da maioria dos sistemas produtivos enfrentarão sérias disrupções, como mostra a Figura 3.

Figura 3
Impactos atuais e esperados de clusters tecnológicos sobre sistemas produtivos

No plano institucional, face aos desafios contemporâneos de desenvolvimento e da geopolítica, o chamado eixo Pequim-Tóquio-Washington-Bruxelas vem respondendo com políticas extremamente ativas e não convencionais de apoio à transição energética e carbônica, digitalização, sistemas de saúde, defesa e setores alimentares, entre outros, com uma visão de segurança e soberania com destaque para a redução da dependência externa. De fato, a realidade da década de 2020 informa que a política industrial está ocupando um lugar central nas prioridades políticas de vários países ao redor do mundo para o futuro próximo. Somente durante o governo de Joe Biden, os Estados Unidos introduziram três programas (Infrastructure Investment and Jobs Act, Chips and Science Act e Inflation Reduction Act) que serão apoiados por recursos de cerca de US$ 1,3 bilhão para recuperar o protagonismo científico, tecnológico e competitivo do país. A União Europeia, em 2021, face à crise provocada pela pandemia da Covid-19, propôs o Mecanismo de Recuperação e Resiliência que atribui, aos países membros, 720 mil milhões de euros, sendo 340 mil milhões sob a forma de subvenções (CNI, 2023CNI - CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA INDÚSTRIA. Plano de Retomada da Indústria. Uma nova estratégia, focada em inovação, descarbonização, inclusão social e crescimento sustentável. Brasília: CNI, 2023. Disponível em: Disponível em: https://static.portaldaindustria.com.br/media/filer_public/99/4c/994c17a5-e837-4aea-9de5-54048ec499b5/plano_de_retomada_9mai23_web.pdf . Acesso em 7 out. 2023.
https://static.portaldaindustria.com.br/...
).

À luz das transformações competitivas, tecnológicas, institucionais e ambientais que se verificam pelo mundo, cabe indagar se e o quanto os conceitos esposados no artigo “Padrão de concorrência...” ainda continuam pertinentes. A resposta é um inequívoco “sim” desde que enfrentados os desafios de se dar materialidade substantiva e conceitual a processos de mudança. Os desafios que os analistas interessados na temática enfrentam é dar significado aos conceitos de competitividade, empresa competitiva, concorrência e padrões de concorrência em associação a fenômenos específicos. Tomando-se como exemplo o caso da inteligência artificial generativa, a UBS (2023)UBS. Q-Series: Will generative AI deliver a generational transformation? UBS, 26 maio 2023. Disponível em: Disponível em: https://www.ubs.com/global/en/investment-bank/in-focus/2023/generative-ai.html . Acesso em 09 out. 2023.
https://www.ubs.com/global/en/investment...
se pergunta como a tecnologia impactará os setores em termos de crescimento, custos e concorrência e quais atividades econômicas “sofrerão” impactos dos três vetores. Torna-se necessário, no entanto, especificar como essa tecnologia deve repercutir em modelos de negócio, nos drivers competitivos, nos processos de concorrência e consequentemente nas estruturas de mercado.

PALAVRAS FINAIS

Os conceitos e o modelo analítico associados à noção de padrões de concorrência e competitividade são genéricos o suficiente para serem analiticamente úteis. A sua utilidade, no entanto, depende da incorporação de evoluções e transformações inerentes ao capitalismo.

O artigo “Padrões de concorrência...” propõe um quadro de referência tanto para trabalhos teórico-conceituais quanto para esforços conceituais-aplicados, orientados a estudos empíricos sobre empresas ou atividades econômicas, em qualquer espaço econômico e locacional, em qualquer momento do tempo. Ademais, reforça a importância de se considerar as especificidades e a diversidade das dinâmicas competitivas, compreendendo-se que dentro do que se considera indústria há diferentes regimes competitivos. Essa é a essência da força intelectual do texto.

Diante de processos intensos de mudança, o marco analítico proposto por David auxilia na ancoragem de primeira ordem de conceitos aplicáveis. No entanto, a manifestação concreta do significado de competitividade, empresa competitiva, concorrência e padrões de concorrência demanda o conhecimento dos fenômenos em transformação.

O estudo "Indústria 2027" (IEL/NC et al., 2018IEL/NC et al. Síntese dos resultados. Volume 1 - Tecnologias disruptivas e indústria: Situação atual e avaliação prospectiva. Brasília: IEL/NC, 2018.) avançou nessa direção ao propor que, com a adoção intensiva e abrangente de soluções digitais, os modelos de negócio das empresas tendem a se tornar mais integrados, fortemente conectados a outros serviços e com uma alta carga de inteligência incorporada em processos autônomos, independentes da ação humana. Com isso, novos drivers competitivos são ativados, vantagens competitivas podem ser alcançadas e, na resultante do processo de concorrência, estruturas de mercado podem ser alteradas. Muito provavelmente os mesmos conceitos fundamentais propostos em “Padrões de concorrência...”, com as devidas adaptações, poderão ser funcionais para entender um novo vetor de transformações que está emergindo derivado da mudança climática e da transição energética.

No entanto, sem dúvida alguma continua longo e desafiante o caminho de especificação de situações palpáveis para o sistema “empresa competitiva - mercado e concorrência - setor de atividade”, de maneira a concluir sobre a especificação de um determinado padrão de concorrência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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    » https://www.ubs.com/global/en/investment-bank/in-focus/2023/generative-ai.html
  • 1
    Não se poderia esperar outra coisa de uma pessoa tão lógica-racional como era David.
  • 2
    No Google Acadêmico, em 10/10/2023, registraram-se 1713 citações ao Estudo da Competitividade da Indústria Brasileira (ECIB) em nome de João Carlos Ferraz.
  • 3
    O livro ganhou o prêmio Jabuti de melhor livro de Economia em 1996. No Google Acadêmico, em 10/10/2023, estão registradas 1325 citações ao Made in Brazil em nome de João Carlos Ferraz.
  • 1
    Nesta forma de abordagem, é claro que as economias externas são a princípio disponíveis a todas as empresas que operem na mesma indústria e por isso são neutras em relação à competitividade (microeconômica) de cada uma individualmente.
  • 2
    Uma medida de concentração. (nota do autor)
  • 3
    Desvio da taxa de lucro efetiva em relação a taxa ideal em eficiência alocativa segundo o ótimo de Pareto. (nota do autor)
  • 4
    Com relação ao conceito de incerteza, cabe diferenciá-lo da noção de risco, como proposto por Knight (1921)KNIGHT, F.H. Risk, uncertainity and profits. Boston: Houghton Mifflin, 1921. . Risco caracteriza-se pela existência de estimativas confiáveis de sua probabilidade de ocorrer. A ideia é que se a probabilidade pode ser numericamente aferida, o risco pode ser eliminado ou desprezado, pela sua transformação em um custo conhecido ex-ante. Incerteza caracteriza-se pela inexistência de bases válidas, de qualquer tipo, que permita calculá-la entenda-se, antecipá-la, simplesmente porque não há regra pela qual se reproduza no futuro.
  • 5
    Essa percepção surge da possibilidade de se classificar o pensamento neoschumpeteriano em pelo menos três vertentes: os neodarwinistas (como ALLEN, 1988ALLEN, P. Evolution, innovation and economics. In: DOSI, G.; FREEMAN, C.; NELSON, R.; SILVERBERG, G.; SOETE, L. (Eds.): Technical change and economic theory. London: Francis Pinter, London, 1988. ), os lamarckistas (como NELSON e WINTER, 1982NELSON, R.; WINTER, S. An evolutionary theory of economic change. Cambridge, MT: Harvard University Press, 1982. - vide POSSAS, 1988POSSAS, M. L. Em direção a um paradigma microdinâmico: a abordagem neo-schumpeteriana. In: AMADEO, L. E. (Org.) Ensaios sobre economia política moderna: teoria e história do pensamento econômico. São Paulo: Marco Zero, 1989 [1988 mimeo].) e os institucionalistas (como Freeman, desde sempre, e Dosi, mais recentemente), além de uma corrente mais difusa de corte estruturalista (como em PAVITT, 1984PAVITT, K. Sectoral patterns of technical change: towards a taxonomy and a theory. Research Policy , v. 13, n. 6, p. 343-373, Dec. 1984. , ou mesmo DOSI, 1984DOSI, G. Technical change and industrial transformation. London: MacMillan, 1984., 1985 e outros).
  • 6
    Ver nota 2. (Nota do autor)
  • CLASSIFICAÇÃO JEL: D2; L1; L2; O1; O3.
  • JEL CODES: D2; L1; L2; O1; O3.

PADRÕES DE CONCORRÊNCIA E COMPETITIVIDADE*

David Kupfer (in memoriam) a

a Professor do Instituto de Economia da UFRJ. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4217-8304.

1. INTRODUÇÃO

Este texto visa discutir alguns aspectos relacionados ao fenômeno da competitividade, referenciando-se em particular à forte tendência encontrada na literatura recente de identificá-la com algum conjunto de indicadores de desempenho ou eficiência industrial em detrimento da busca de construção de um estatuto teórico próprio para o conceito.

Entende-se que a principal insuficiência que decorre dessa opção assumida pela literatura reside na redução da noção de competitividade a algo que se esgota no produto ou na firma que o produz. Na verdade, e essa é a proposição central desse trabalho, a riqueza do conceito reside na sua percepção como um fenômeno que se plasma no âmbito da indústria, vale dizer, no conjunto de firmas que a constitui, e no mercado, este último não simplesmente como parcela de demanda a ser conquistada ou mantida pela firma, mas como o verdadeiro espaço de concorrência intercapitalista.

Chudnovsky (1990)CHUDNOVSKY, D. La competitividad intemacional: principales questiones conceptuales y metodológicas. Montevideo: CEIPOS, 1990. Mimeo., cotejando treze definições de competitividade recolhidas da literatura recente, propõe a existência de enfoques microeconômicos e macroeconômicos do conceito. No enfoque microeconômico, alinham-se as definições de competitividade centradas sobre a firma. São as definições que associam competitividade à aptidão de uma firma no projeto, produção e vendas de um determinado produto em relação aos seus concorrentes. Essas definições, mesmo que para alguns possam ser generalizadas, por extensão, a países, têm sempre na empresa o sujeito. No enfoque macroeconômico, competitividade aparece como a capacidade de economias nacionais de apresentarem certos resultados econômicos, em alguns casos puramente relacionados com o comércio internacional, em outros, mais amplos com a elevação de nível devida e o bem estar social (CHUDNOVSKY 1990CHUDNOVSKY, D. La competitividad intemacional: principales questiones conceptuales y metodológicas. Montevideo: CEIPOS, 1990. Mimeo.).

No enfoque micro, comenta o autor, o sujeito - a firma - é claramente identificável, e seus gestores são univocamente seus proprietários ou executivos por esses nomeados. Estes, por sua vez, fixam estratégias e tomam as decisões compatíveis, que em última instância irão se refletir sobre o volume de vendas, entenda-se, na participação no mercado ou nas margens de lucro, até porque a longo prazo deve-se esperar uma correlação positiva entre essas duas grandezas. Por essa razão, não haveria maiores dificuldades em conceituar competitividade em nível microeconômico. O mesmo não ocorreria com o enfoque “macro” da competitividade, esse sim complexo e problemático (CHUDNOVSKY, 1990CHUDNOVSKY, D. La competitividad intemacional: principales questiones conceptuales y metodológicas. Montevideo: CEIPOS, 1990. Mimeo.).

As posições desenvolvidas nesse trabalho consideram essa visão no mínimo otimista, pois postula-se que mesmo a nível microeconômico o estabelecimento de uma noção precisa e operacionalizável de competitividade encerra dificuldades ainda longe de serem superadas. A seleção de estratégias competitivas e a tomada de decisão empresarial está longe de ser um processo trivial, mormente em ambientes sujeitos à inovação tecnológica, pois as informações que condicionam esse processo não podem ser completamente obtidas dos sinais emitidos a cada instante pelo mercado.

A noção de competitividade; portanto, não pode prescindir de fundamentos microeconômicos genéricos, que sejam pertinentes com suas particularidades enquanto objeto analítico. Esses fundamentos, por sua vez, são demarcados pela dinâmica do processo de concorrência, em particular, pela interação entre as condições estruturais que o direcionam e as condutas inovativas das empresas que transformam.

O texto a seguir enfoca alguns desses fundamentos. Inicialmente, mapeiam-se alguns pontos do debate sobre competitividade pertinentes à abordagem proposta. Em seguida, discutem-se as noções de concorrência presentes na teoria microeconômica e enfatizam-se suas principais limitações para o tratamento da competitividade. Por fim, sugerem-se alguns elementos preliminares de um enfoque alternativo no qual a competitividade é referenciada à dinâmica da concorrência e a uma formulação exploratória da sua relação com padrões de concorrência.

2. O DEBATE SOBRE COMPETITIVIDADE

Apesar de aparentemente trivial, competitividade ainda é um conceito virtualmente indefinido. São tantos os enfoques, abrangências, preocupações as quais se busca associá-la que não é sem razão que os trabalhos sobre o tema têm por norma iniciarem estabelecendo uma definição própria para o conceito.

Em ampla resenha sobre o assunto, Haguenauer (1989)HAGUENAUER, L. Competitividade: conceitos e medidas. Texto para Discussão, IEI-UFRJ, n. 211, 1989. organiza os vários conceitos de competitividade em duas famílias:

  1. Competitividade como desempenho - nessa vertente, a competitividade é de alguma forma expressa na participação no mercado (market-share) alcançada por uma firma em um mercado em um momento do tempo. A participação das exportações da firma ou conjunto de firmas (indústria) no comércio internacional total da mercadoria apareceria como seu indicador mais imediato, em particular, no caso da competitividade internacional.

  2. Competitividade como eficiência - nessa versão, busca-se de alguma forma traduzir a competitividade através da relação insumo-produto praticada pela firma, i.e., na capacidade da empresa de converter insumos em produtos com o máximo de rendimento ou, o que vem a ser o mesmo, um mínimo de perdas. Nessa versão eficiência, a competitividade é associada à capacidade de uma firma/indústria de produzir bens com maior eficácia que os concorrentes no que se refere a preços, qualidade, ou a relação preço-qualidade, tecnologia, salários e produtividade, estando relacionada às condições gerais ou específicas em que se realiza a produção da firma/indústria vis a vis a concorrência.

Na primeira visão, é a demanda no mercado que, ao arbitrar quais produtos de quais empresas serão adquiridos, estará definindo a posição competitiva das empresas, sancionando ou não as ações produtivas, comerciais e de marketing que as empresas tenham realizado. Na segunda visão, é o produtor que ao escolheras técnicas que utiliza, submetido às restrições impostas pela sua capacitação tecnológica, gerencial, financeira e comercial, estará definindo a sua competitividade.

É sabido que as possibilidades de conciliação entre as duas visões encontram obstáculos. Para os que entendem competitividade como desempenho, a eficiência na utilização de recursos produtivos definiria algumas das eventuais fontes de competitividade existentes em uma firma/indústria, mas nunca à competitividade em si, já que esta depende de vários outros fatores, muitos deles subjetivos ou não mensuráveis. Desse modo, competitividade seria uma variável que sintetiza fatores preço e não preço - estes últimos incluem qualidade de produtos e de fabricação, a capacidade de diferenciação de produtos, a habilidade de servir ao mercado, de negociar e estabelecer relações cooperativas e outros - fatores esses parcial ou totalmente subjetivos. Para os que seguem a vertente “eficiência”, por sua vez, o desempenho no mercado “seria uma provável consequência da competitividade e não sua expressão” (HAGUENAUER, 1989HAGUENAUER, L. Competitividade: conceitos e medidas. Texto para Discussão, IEI-UFRJ, n. 211, 1989. ), haja visto que se considera que é o domínio de técnicas mais produtivas que, em última instância, habilita uma empresa a competir com sucesso, isto é, representa a verdadeira causa da competitividade.

Em termos práticos, a incompatibilidade entre as duas vertentes conceituais pode ser resumida ao seguinte dilema: Na versão desempenho, competitividade é um fenômeno “ex-post”, vale dizer, é o resultado de um vasto conjunto de fatores dentre os quais a eficiência técnica produtiva é apenas um deles e nem sempre o mais importante. Na versão eficiência, competitividade é um fenômeno “ex-ante”, isto é, é um grau de capacitação detido pelas firmas, que se traduz nas técnicas por elas praticadas.

Há, no entanto, outra ordem de problemas com o conceito de competitividade que não está relacionada às dificuldades de conciliação das vertentes desempenho e eficiência, mas às insuficiências apresentadas por ambas, decorrentes do tratamento estático que lhes é habitualmente conferido.

O problema surge do fato de a competitividade ser uma grandeza “ex-post” (veja-se HAGUENAUER, 1989HAGUENAUER, L. Competitividade: conceitos e medidas. Texto para Discussão, IEI-UFRJ, n. 211, 1989. ou POSSAS, 1989POSSAS, M. L. Em direção a um paradigma microdinâmico: a abordagem neo-schumpeteriana. In: AMADEO, L. E. (Org.) Ensaios sobre economia política moderna: teoria e história do pensamento econômico. São Paulo: Marco Zero, 1989 [1988 mimeo].). Sendo assim, não é possível estabelecer relações causais entre ela e outras variáveis igualmente “ex-post”, como o desempenho expresso em market-share, taxa de crescimento, lucratividade ou qualquer outra variável de mesma natureza. Subsistiria então um nítido caráter tautológico em qualquer eventual relação direta que se estabeleça entre competitividade e participação no mercado ou qualquer par de variáveis conhecidas a posteriori. A tautologia fica evidente quando se questionam os dois lados da possível relação: se é competitiva a firma que domina ou cresce no mercado, é igualmente correto que irá dominar ou crescer no mercado justamente a firma que é competitiva. Sendo assim, o que explicaria as diferenças de desempenho entre as firmas seria a taxa de sucesso dos investimentos escolhidos, como sugere Mancke (1974)MANCKE, R. Interfirm profitability differences. The Quarterly Journal of Economics, v. 87, n. 2, p. 183-93, May 1974. , para quem “...one of the most important determinants of many firms EX- POST performance is the magnitude of the sucesses actually realized on what are, initially, large and uncertain investments”.

Na outra versão, eficiência, o problema é de natureza distinta. Na verdade, a discussão sobre eficiência está sempre associada à análise das condições da oferta no que toca as estruturas de custos e suas variações. Com isso, a eficiência aparece como um conceito simétrico ao de economias empresariais internas (escala, escopo, gerenciais, aprendizado e outras)1 1 Nesta forma de abordagem, é claro que as economias externas são a princípio disponíveis a todas as empresas que operem na mesma indústria e por isso são neutras em relação à competitividade (microeconômica) de cada uma individualmente. . O problema está em incorporar nessa abordagem as estratégias empresariais em contexto dinâmico.

Spence (1988) explora um conceito de “dynamic technical efficiency”, que leva em conta o fato de que uma redução de custos produtivos exige algum gasto prévio, que se traduz em sua maior parte em custos fixos para a empresa. “In many markets, firms compete over time by expending resources with the purpose of reducing their costs”. Poder-se-ia generalizar a ideia, entendendo-se que firmas competem através do tempo dispendendo recursos com o propósito de financiar suas estratégias competitivas. Significa isso que o grau de eficiência de uma firma em um dado momento está determinado pelas estratégias competitivas adotadas pela firma em um tempo anterior.

Aceitando-se essas ponderações, constata-se que a análise da competitividade possui caráter intertemporal incontornável. Além disso, ao envolver os gastos realizados pela firma, não há como retirar do centro da discussão o processo de decisão desses gastos, que necessariamente depende de expectativas quanto ao futuro dos empresários e, portanto, se dá sob incerteza. A entrada em cena das noções de tempo e de expectativas exige uma formulação teórica própria e radicalmente distinta das acima mencionadas. Dado uma situação concorrencial, as firmas escolhem estratégias competitivas em função de suas expectativas quanto às que lhe pareçam mais eficientes, mas só posteriormente o desempenho no mercado sancionará o acerto ou erro da escolha. Dessa forma, mesmo a tecnologia não é uma pananceia que assegura o sucesso na conquista ou manutenção de mercados, tanto mais porque a “best practice” relevante neste campo não é a absoluta (a mais avançada das técnicas disponíveis) mas, tautologicamente, a relativa, isto é, a mais competitiva dentre as técnicas existentes. Enfim, a técnica mais produtiva, cuja adoção asseguraria a competitividade, só pode igualmente ser conhecida “a posteriori”.

Em suma, os conceitos de desempenho e eficiência são insuficientes para a discussão sobre competitividade, posto que ambos se reduzem à mensuração, em pontos distintos da sequência intertemporal, dos resultados das diferentes estratégias competitivas adotadas pelas firmas. De fato, tanto as características tecnológicas do processo de produção quanto as formas específicas de comercialização, se estão dadas em um momento do tempo para as firmas de um setor industrial, são o resultado de estratégias específicas adotadas em um momento anterior. Ainda no âmbito da firma, as decisões se dão no tempo, mas não expressam somente escolhas intertemporais ótimas. Isso porque se considera que o futuro é parcialmente desconhecido para as empresas e, portanto, as decisões são tomadas com base em expectativas incertas. O que se postulando é que mais importante que o esclarecimento de divergências de natureza instrumental quanto à correlação da competitividade com o desempenho ou a eficiência de um produto/firma em um mercado, é avançar no desenvolvimento de uma abordagem dinâmica da competitividade que incorpore os aspectos acima mencionados.

Nesta direção, sugere-se que a competitividade não pode ser entendida como uma característica intrínseca de um produto ou de uma firma. Ao contrário, entende-se ser a competitividade um conceito de natureza extrínseca à firma ou ao produto, estando relacionada ao padrão de concorrência vigente no mercado específico considerado. É o padrão de concorrência, portanto, a variável determinante e a competitividade, a variável determinada ou de resultado.

Como princípio geral, a competitividade deve ser entendida como um fenômeno direta e indissoluvelmente ligado ao processo de concorrência, que não se esgota em vinculações de natureza ex-ante ou ex-post. A ideia é desenvolver uma definição de competitividade como sendo a adequação das estratégias adotadas pela firma em relação ao padrão de concorrência vigente na(s) indústria(s) considerada(s).

No entanto, a operacionalização de um conceito de competitividade dentro desse princípio geral exige o estabelecimento de uma série de pontos referentes às noções de concorrência e padrões de concorrência, de grande complexidade, mormente quando se busca incorporar a presença de inovação tecnológica no processo competitivo. As próximas seções do presente trabalho dedicam-se a assinalar alguns comentários sobre esses pontos.

3. AS NOÇÕES DE CONCORRÊNCIA NA TEORIA MICROECONÔMICA

É indiscutível que, ao menos para economistas não filiados à ortodoxia microeconômica, a construção do conceito de concorrência encerra uma grande complexidade. Desde as noções que lhe são preliminares como as de firma, indústria e mercado - tanto mais recheadas de ambiguidades quanto mais se queira aproximá-las da realidade - até a identificação das variáveis básicas descritivas das estruturas dos mercados e das condutas das empresas, a noção de concorrência apresenta-se como um objeto analítico que insiste em se situar além da capacidade explicativa das formulações teóricas disponíveis.

Na tradição neoclássica, a teoria da firma está, de modo geral, subordinada à determinação da existência de um vetor de preços que compatibilize as decisões individuais. Em particular, com algumas suposições acerca das preferências dos agentes, das técnicas produtivas, e supondo-se que os agentes são tomadores de preços, garante-se a existência desse. Neste nível de abstração, é justificável a adoção da hipótese de concorrência perfeita, formalmente similar à suposição de que todos os agentes sejam tomadores de preço.

Desde a sua formulação pioneira, o modelo de concorrência perfeita foi alvo de severo questionamento, em particular, no que toca a baixa aderência de suas premissas à realidade econômica observada. Do debate quanto à existência de preferência dos consumidores, de funções de produção com rendimentos constantes de escala, de estruturas oligopolistas estáveis e outras, foram surgindo diversas revisões das proposições neoclássicas originais.

A partir da década de 1950, as proposições do tipo Estrutura-Conduta-Desempenho (E-C-D) passaram a ocupar o posto de paradigma teórico por excelência das teorias microeconômicas autorrotuladas como verdadeiramente preocupadas com as questões práticas ligadas às empresas, às indústrias e aos mercados. É sob este paradigma que a organização industrial se consolidou como uma disciplina da ciência econômica.

É consensual para os microeconomistas o caráter seminal da obra de Joe S. Bain na constituição da metodologia estrutura-conduta-desempenho como ferramenta básica de análise de organização industrial. Para Davies e Lyons, a citação de trecho de Bain (1959) onde este último afirma que... “The world is one of downward-sloping demand curves, L-shaped cost curves and profit-maximising firms, and against this backcloth ‘market strucuture may logically be expected (and is observed) to influence the conduct of firms in a profits, the interaction of the conduct of competing firms in the same market, and the end performance emerging from the industry” captura a essência do paradigma (DAVIES; LYONS, 1988DAVIES, S.; LYONS, B. Introduction. In: DAVIES, S.; LYONS, B. (Orgs.). Economics of industrial organization. London: Longman, 1988, p. 1-25.).

Na tradição de Bain, que depois passou a ser reconhecida como hipótese estruturalista básica, as condutas não importavam, a ponto de se considerar que a estrutura determinava direta e inequivocamente o desempenho do mercado. Como sintetiza Reid (1985), “in this very simple framework, structure is exclusively represented by a single variable C2 2 Uma medida de concentração. (nota do autor) , conduct is ignored, and performance is judged in terms of the deviation of r from the benchmark r3 3 Desvio da taxa de lucro efetiva em relação a taxa ideal em eficiência alocativa segundo o ótimo de Pareto. (nota do autor) ”.

A partir das formulações pioneiras de Bain, basicamente ligadas à determinação de preços-limite na presença de barreiras à entrada, as teorias de E-C-D foram se aprofundando, mas também se diversificando.

O aprofundamento consistiu, basicamente, na ampliação das variáveis incluídas no esquema analítico original, principalmente quanto aos elementos de conduta como propaganda e pesquisa e desenvolvimento e não somente à política de preços das empresas. A busca desse aprofundamento expressou-se na realização intensiva de pesquisas empíricas de corte econométrico, em particular durante a década de 1960. Este movimento, de certa forma, contribuiu inicialmente para ampliar a crença no poder explicativo do enfoque E-C-D e tornar mais abrangente o seu escopo normativo.

Mas certos resultados empíricos e principalmente certos questionamentos teóricos levaram a um processo de revisão do paradigma e à busca de diversificação das teorias de organização industrial. Neste processo, o questionamento crítico de alguns dos supostos fundamentais da teoria terminou por expor graves lacunas na concepção original. De certa forma, as tentativas de completar a teoria, ao contrário de bem sucedidas, acabaram por desfigurá-la seriamente.

Uma das lacunas dos enfoques E-C-D pioneiros surgia do desprezo conferido a qualquer influência significativa que as condutas das firmas pudessem jogar no processo de concorrência. A resposta foi a aceitação da existência de causalidades menos rígidas, que se expressavam em uma relação interativa entre as variáveis de estrutura, conduta e desempenho. Com isso, passou-se a avaliar empiricamente todos os possíveis “feedbacks” entre as três categorias. Claro está que a força organizadora de um modelo teórico em que “tudo depende de tudo o mais” sai enfraquecida diante da múltipla causalidade das relações e da necessidade de encontrar soluções simultâneas para elas. Isso só poderia ser analiticamente apreendido em situações concretas de mercado, onde o conhecimento das particularidades do objeto estudado propiciaria a identificação das principais conexões causais e o descarte das demais. Essa constatação jogou o “mainstream” das teorias de organização industrial em um beco sem saída, pavimentado por inúmeros estudos de caso pouco generalizáveis.

Uma outra lacuna do paradigma E-C-D era a sua incapacidade de lidar com a existência de diferenciais de lucratividade entre empresas em uma mesma indústria. O problema é que, empiricamente, um dado grau de concentração de uma indústria pode abrigar variadas distribuições de tamanhos das empresas. Mesmo que se aceite correlação entre o grau de concentração e lucros excessivos em uma indústria, não há porque imaginar que todas as firmas de uma indústria concentrada partilhem esses lucros excessivos entre si. Como ademais, muitas das grandes firmas são diversificadas, pareceria mais pertinente que a unidade analítica adequada para as análises de organização industrial passasse a ser as grandes empresas e não mais as indústrias, tornando questionável o próprio objeto das análises de E-C-D (sobre esse tópico ver GEROSKY, 1988GEROSKY, P. Competition policy and the structure-performance paradigm. In: DAVIES, S.; LYONS, B. (Orgs.). Economics of industrial organization . London: Longman , 1988, p. 166-191;).

Mas o principal questionamento com que o paradigma se defrontou foi a chamada questão da endogeneidade. Conforme aponta Gerosky (1988)GEROSKY, P. Competition policy and the structure-performance paradigm. In: DAVIES, S.; LYONS, B. (Orgs.). Economics of industrial organization . London: Longman , 1988, p. 166-191;, se cada firma escolhe seu nível de produção (e preços) em função de suas curvas de custos, funções de demanda e de expectativas que mantenham sobre a conduta das firmas rivais, o preço de mercado e os “outputs” de todas as firmas, para uma indústria em equilíbrio, são conjuntamente determinados. Isso por sua vez implica que tanto o grau de concentração quanto os lucros sejam variáveis endogenamente determinadas e não possam guardar relações de causalidade pré-definidas. Ambas dependem, na verdade, das variáveis exógenas, assumidas como sendo as curvas de custo, as funções demanda e as expectativas de ação e reação dos concorrentes que cada empresa apresenta.

Claro está que sendo pertinente a questão da endogeneidade, a noção de concorrência ver-se-ia obrigada a dar conta de variáveis muito mais complexas. E ainda mais, essas variáveis incluiriam a própria conduta das firmas, baseada em expectativas de ação e reação, um objeto de apreensão muito mais difícil.

A hipótese da endogeneidade constituiu o ponto de partida, já na década de 1970, de uma corrente alternativa de análise da organização industrial baseada em teoria dos jogos, na qual as premissas do tipo E-C-D foram deixadas de lado. Segundo Davies e Lyons (1988)DAVIES, S.; LYONS, B. Introduction. In: DAVIES, S.; LYONS, B. (Orgs.). Economics of industrial organization. London: Longman, 1988, p. 1-25., na teoria dos jogos (que os autores denominam “New Industrial Organization”), formula-se um comportamento de equilíbrio das firmas onde estas ajustam quantidades, preços ou outras variáveis, de forma cooperativa ou não, resgatando assim os modelos de Cournot, Bertrand, Nash ou outros, basicamente ligados aos primórdios das teorias do oligopólio (em geral, duopólios).

Comparada metodologicamente com o paradigma E-C-D, as condições básicas e as condutas são as variáveis exógenas na teoria dos jogos, enquanto a estrutura o desempenho são variáveis endógenas. As condutas são firmemente baseadas em expectativas, podendo, como é feito em jogos mais sofisticados, ser introduzidas incertezas quanto ao futuro [se bem que mais no sentido do risco de Knigth (1921) do que da incerteza propriamente dita, Davies e Lyons, 1988DAVIES, S.; LYONS, B. Introduction. In: DAVIES, S.; LYONS, B. (Orgs.). Economics of industrial organization. London: Longman, 1988, p. 1-25.]4 4 Com relação ao conceito de incerteza, cabe diferenciá-lo da noção de risco, como proposto por Knight (1921). Risco caracteriza-se pela existência de estimativas confiáveis de sua probabilidade de ocorrer. A ideia é que se a probabilidade pode ser numericamente aferida, o risco pode ser eliminado ou desprezado, pela sua transformação em um custo conhecido ex-ante. Incerteza caracteriza-se pela inexistência de bases válidas, de qualquer tipo, que permita calculá-la entenda-se, antecipá-la, simplesmente porque não há regra pela qual se reproduza no futuro. .

A questão da endogeneidade levou a outros desdobramentos, expressos nas teorias de contestabilidade. Também aqui, a estrutura da indústria é o resultado da determinação conjunta dos “planos” de produção (preços e quantidades) das firmas que a constituem. Diferentemente da teoria dos jogos, no entanto, o mecanismo de equilíbrio na contestabilidade é devido à entrada e saída de empresas nas indústrias em que a configuração endógena resultante é não sustentável. O equilíbrio é assim assegurado pela existência de “free competition” no sentido clássico e não propriamente por ações e reações das empresas rivais em uma dada indústria. Em outras palavras, o importante nas teorias de mercados contestáveis é a concorrência potencial e não a real e esta é definida pela existência ou não de “sunk costs” significativos para o entrante. Na verdade, para essa teoria, estrutura e mesmo condutas pouco importam porque o desempenho é consequência precípua das condições básicas (entenda-se, funções de custos, em particular os “sunk costs”) dos mercados. Por exemplo, se a função de custos é subaditiva em toda a faixa relevante de quantidades transacionadas na indústria, o monopólio resultante é socialmente ótimo, desde que a subaditividade seja a única razão que desestimule a entrada de novos concorrentes.

Apesar de todas as críticas acima sumarizadas, muitos economistas permaneceram fiéis ao paradigma E-C-D. Para Geroski, um dos seus mais entusiasmados defensores,

both as research program and as a guide to action, the S-P paradigm has been very sucessfull. It has provided an organizing set of ideas, an impressive body of empirical results suggesting that market structure is systematically linked with market performance, and has led policy makers to be concerned with the level of and increases in the industry concentration in the formulation of their policy objectives. (GEROSKI, 1988)

Mas a verdade é que a chegada dos anos 1980 encontrou o “mainstream” seriamente fragmentado. Com Scherer, o paradigma E-C-D havia perdido causalidade, a ponto de esse autor, para muitos o responsável pelo mais completo e preciso manual dessa linha teórica, se auto qualificar como um behaviourista (SCHERER, 1970SCHERER, F. M. Industrial market structure and economic performance. Chicago: Rand McNally, 1970. ). A vertente empiricista econométrica mostrava-se esgotada, enredada em discussões de natureza muito mais estatísticas que econômicas. A teoria da contestabilidade levava a conclusões literalmente inversas ao pensamento habitual. A corrente autodenominada Nova Organização Industrial, apoiada no instrumental da teoria dos jogos, enfatizava a tal ponto a rivalidade concorrencial, expressa em suposições sobre as condutas das empresas, que levou um dos seus principais teóricos a perguntar: “Does market structure matter?” (SCHMALENSEC, 1988).

4. LIMITAÇÕES E ENFOQUES ALTERNATIVOS

Do exposto na seção anterior verifica-se que a visão microeconômica dominante se escorou nos preceitos de teorias de concorrência, que por mais que se distinguissem em termos de hipóteses, formulações, modelagens e conclusões, apresentavam um importante ponto em comum: o caráter determinístico. Em outras palavras, o mainstream das teorias microeconômicas, neoclássicas ou de organização industrial, postulavam a concorrência como um estado (nas versões ortodoxas) ou um processo (nas versões não ortodoxas) no qual as firmas agiam de forma “bem comportada”, cumprindo com exatidão as determinações impostas pelas especificidades estruturais de seus mercados de atuação ou por regras de conduta sujeitas a resultados de equilíbrio.

Já na década de 1970, as teorias de organização industrial bem como os objetivos de política industrial passaram a se deparar firmemente com temas como progresso técnico, competitividade internacional e outros de apreensão muito além do arsenal analítico disponível nas teorias E-C-D e suas revisões. Mais ainda, em sintonia com o debate macroeconômico da época, passou-se a buscar meios de incluir a incerteza quanto ao futuro nessas formulações teóricas

O problema é que, apesar de ser interessante para a discussão sobre a determinação dos preços em mercados oligopolizados, a tradição do equilíbrio parcial abstrai diversos elementos fundamentais para a análise do processo de concorrência das firmas sob condição estrutural, particularmente ao assumir conhecidos pelas firmas as técnicas de produção existentes, a curva de demanda, o preço dos insumos e o conjunto de estratégias possíveis das demais firmas.

A questão aqui colocada não se refere à existência de informação incompleta por parte dos agentes, mas sim à existência de uma defasagem temporal entre a tomada de decisões por parte da firma, sejam elas de produção e/ou de investimento, e a venda do produto. De fato, nas análises tradicionais abstrai-se a existência do tempo, justificável na discussão de algumas questões, mas não na análise do processo de concorrência.

No que se refere à decisão de investimento, por exemplo, supõe-se, regra geral, que os agentes conheçam as técnicas alternativas, a curva de demanda e os preços relativos a fim de decidir sobre um conjunto ótimo de estratégias a serem selecionadas. Se de fato é razoável assumir que as firmas conheçam estas variáveis no momento da decisão de investimento, o relevante para o processo decisório é a expectativa por elas nutridas quanto ao comportamento futuro das mesmas, posto a existência de uma defasagem temporal entre a decisão de investimento e o momento em que este começará a render seus frutos.

A rigor, nem mesmo na discussão sobre as decisões de curto prazo, como as de produção, esta abstração é justificável, posto que se a firma conhece os custos envolvidos, como os dos insumos contratados, as receitas obtidas só poderão ser conhecidas ao final do período. Desta forma, mesmo na tradição neoclássica, a hipótese de “maximização da taxa de lucros” (ou como nas derivações dessa tradição, de outra função objetivo qualquer, como as vendas) deve ser substituída por “maximização das expectativas de taxa de lucros” (ou de outra função objetivo). Neste caso, portanto, as expectativas das firmas acerca do futuro são essenciais para a análise do processo de concorrência.

Em essência, ao postular a existência e a unicidade de um equilíbrio de mercado, o método do “mainstream” se apoia na premissa de maximização de alguma função objetivo como regra de conduta das empresas e no marginalismo como regra d cálculo empresarial. Daí surgem as suas limitações centrais.

A adoção de hipóteses de condutas maximizadoras por parte das firmas implica: a) supor condições de acesso e processamento de informações muito mais amplas e menos onerosas do que se pode esperar na prática e b) de previsão do futuro muito mais certeiras que um mundo de incertezas é capaz de proporcionar. Esse é o cerne, p. ex., da crítica estabelecida por Simon ainda na década de 1950, quando da formulação das teorias behaviouristas da firma. Além disso, a suposição de um comportamento maximizador por parte das firmas implica a introdução de uma temporalidade definida, pois o máximo de uma função só pode ser determinado para um período de tempo pré-determinado. A própria análise de barreiras à entrada elaborada por Bain (1951) supunha uma condição de entrada em que as firmas entrantes potenciais decidiam com base na expectativa de lucros a serem obtidos imediatamente após a entrada. Salvo se o longo prazo puder ser reduzido a uma sequência de curtos prazos independentes, essa premissa limita de forma irreal a tomada de decisão das empresas (mesmo que elas pudessem conhecer com certeza esse valor).

A viabilização do marginalismo como método de cálculo, por sua vez, implica um marco analítico estático ou estático-comparativo, já que o cálculo marginal somente é adequado a condições estáveis (ou previsíveis) das curvas de oferta e demanda (deslocamentos ao longo da curva e não deslocamentos das curvas). Essas condições estáveis, mesmo que aceitas tão somente como hipóteses de trabalho, impõem limitações severas ao escopo das formulações teóricas daí derivadas. Como aponta Guimarães (1979)GUIMARÃES, E. A. Organização industrial: a necessidade de uma teoria. Política e Planejamento Econômico, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 517-24, 1979. , o mainstream microeconômico sempre se mostrou mais preocupado como fenômeno da formação dos preços, deixando de lado a preocupação de estudar o processo de crescimento da firma. E não poderia ser diferente até porque o processo de crescimento é em si mesmo “desestabilizador” e obviamente não pode ser suficientemente apreendido pela estática comparativa (a respeito da inclusão do progresso técnico neste comentário, veja-se POSSAS, 1988POSSAS, M. L. Em direção a um paradigma microdinâmico: a abordagem neo-schumpeteriana. In: AMADEO, L. E. (Org.) Ensaios sobre economia política moderna: teoria e história do pensamento econômico. São Paulo: Marco Zero, 1989 [1988 mimeo].).

A rejeição dessas premissas implica a ausência de equilíbrio e isso é evidentemente incompatível com postulações mecanicistas estáticas. Entretanto, apesar de as críticas externas ao paradigma E-C-D, acima formuladas, já estarem postas sobre a mesa do debate há várias décadas, só recentemente começaram a ganhar corpo teorias realmente independentes dessa concepção, lideradas por um crescente grupo de autores ditos evolucionistas ou “neo-schumpeterianos”.

É claro que postulações não determinísticas foram elaboradas, em paralelo, dentre as quais as emanadas da escola austríaca ou dos próprios behaviouristas supracitados. O porquê de elas não terem se tornado dominantes é um tema que só recentemente tem sido explorado de forma mais sistemática pelos estudiosos da metodologia em economia. Como apontam Clark e Juma (1988)CLARK, N.; JUMA, C. Evolutionary theories in economic thought. In: DOSI, G.; FREEMAN, C.; NELSON, R.; SILVERBERG, G.; SOETE, L. (Eds.): Technical change and economic theory . London: Francis Pinter, London , 1988, p.197-218. , a partir de Marshall, a ciência econômica deu clara e crescente preferência aos modelos mecânicos sobre os biológicos, correndo em direção oposta à percorrida pelas ciências naturais. Nesse sentido, é bastante curiosa a transcrição de uma afirmativa do próprio Marshall, datada de 1923: “There is a fairly close analogy between the early stages of economic reasoning and the devices of physical statics...I think that in the later stages of economics better analogies are to be got from biology rather than from physics” (citado em CLARK; JUMA, 1988CLARK, N.; JUMA, C. Evolutionary theories in economic thought. In: DOSI, G.; FREEMAN, C.; NELSON, R.; SILVERBERG, G.; SOETE, L. (Eds.): Technical change and economic theory . London: Francis Pinter, London , 1988, p.197-218. ).

As tentativas de teorizar sobre o desequilíbrio por parte dos autores “neo-schumpeterianos” têm estimulado a construção de um novo paradigma microeconômico de natureza não determinística. E o caminho que tem se mostrado mais profícuo é o que toma por base visões evolucionistas do processo de concorrência.

Esses autores têm como preocupação central a lógica do processo de inovação e os impactos deste sobre a atividade econômica. Este é, claramente, um programa de pesquisas muito amplo e, neste contexto, as colocações sobre o processo de concorrência são ainda muito dispersas, fato que indica que ainda há um longo caminho a percorrer. Se concordam em substituir a noção de equilíbrio pela de trajetórias de evolução, em enfatizar o papel da mudança tecnológica na conformação das estruturas de mercado e no processo de mudança estrutural ou na atribuição de papel ativo por parte das firmas na definição da direção dessas mudanças, as formalizações dessas relações, em termos das variáveis-chave e das regularidades e causalidades relevantes é ainda pouco convergente5 5 Essa percepção surge da possibilidade de se classificar o pensamento neoschumpeteriano em pelo menos três vertentes: os neodarwinistas (como ALLEN, 1988), os lamarckistas (como NELSON e WINTER, 1982 - vide POSSAS, 1988) e os institucionalistas (como Freeman, desde sempre, e Dosi, mais recentemente), além de uma corrente mais difusa de corte estruturalista (como em PAVITT, 1984, ou mesmo DOSI, 1984, 1985 e outros). . Mas é exatamente nas sugestões trazidas por esses autores que vão se buscar alguns critérios para o tratamento conjunto da concorrência e da competitividade. É o que trata o próximo capítulo.

5. PADRÕES DE CONCORRÊNCIA E COMPETITIVIDADE

Esta seção visa apresentar uma tentativa de integrar a discussão no campo da concorrência com o debate sobre competitividade. Busca-se aqui organizar esses argumentos, de forma exploratória, visando estabelecer um conceito de competitividade compatível com o processo de concorrência capitalista, com progresso técnico, e com as formulações microeconômicas que visam analisá-lo.

Antes de mais nada, cabe reconhecer que a ideologia neoliberal, na medida em que se torna cada vez mais hegemônica como consequência de certos sucessos ou principalmente de certos insucessos que a história vem registrando no período recente, tem se apropriado dessa questão de maneira teoricamente insatisfatória, ofuscando com isso vários aspectos extremamente relevantes da relação entre empresa, mercado, concorrência e competitividade.

Interessa aqui explorar uma noção de concorrência na qual esta é entendida, como sugere Possas (1985POSSAS, M. L. Estruturas de mercado em oligopólio. São Paulo: Hucitec, 1985. ),

como o motor básico da dinâmica capitalista, i.e., é o processo definidor das margens de lucro: é o processo de enfrentamento dos vários capitais (as firmas) em um espaço econômico (a indústria ou o mercado), mediato pelas estruturas de mercado, pois aí se configuram as especificidades dos ramos de atividade capitalista, que os distinguem entre si no processo competitivo. (Possas, 1985POSSAS, M. L. Estruturas de mercado em oligopólio. São Paulo: Hucitec, 1985. )

Essa mediação poderia ser traduzida na noção de padrão de concorrência, que “amarra” tanto a inserção da firma na estrutura produtiva (tipo de produtos, requerimentos tecnológicos e financeiros, estruturas de custos e interdependência setorial) quanto as estratégias empresariais de concorrência (políticas de preço, financeira, de vendas, de expansão e de inovação), ambas elementos a um só tempo “estruturais” e de “decisão” (POSSAS, 1985POSSAS, M. L. Estruturas de mercado em oligopólio. São Paulo: Hucitec, 1985. ).

Apesar de resultados concretos relacionados à possibilidade do estabelecimento de padrões de concorrência como ferramenta microeconômica para a análise setorial se encontrarem ainda distantes de serem alcançados, o apelo contido nessas ideias estimula fortemente a busca desse objetivo.

Por essa razão, sugere-se que associado à noção de concorrência possa ser formulado um conceito correlato de padrão de concorrência, nos seguintes termos: Em cada espaço de competição (mercado ou indústria, região ou nação) vigoraria um padrão de concorrência definido como um conjunto de formas de concorrência que se revelam dominantes nesse espaço. O universo de formas possíveis de concorrência engloba preço, qualidade, habilidade de servir ao mercado, esforço de venda, diferenciação de produto, etc. O padrão de concorrência seria, portanto, um vetor particular que contém uma ou mais dessas formas, resultante da interação das forças concorrenciais presentes no espaço de competição (as características estruturais e as condutas praticadas pelas firmas que nele atuam). Em outras palavras, as empresas buscariam adotar, em cada instante, estratégias de conduta (investimentos, inovação, vendas, compras, financiamento, etc.) voltadas para capacitá-las a concorrer por preço, esforço de venda, diferenciação de produtos e etc., compatíveis com o padrão de concorrência setorial.

Se existem esses padrões de concorrência, cabe questionar como cada um deles se define no interior de um espaço concorrencial específico. A questão transfere-se então para como as características estruturais de um mercado e as condutas das empresas que nele atuam interagem no estabelecimento ou transformação das formas de concorrência dominantes.

Essa questão sempre foi um divisor de águas no mainstream das teorias microeconômicas. Conforme sumarizado na seção anterior, dispõe-se, a rigor, de formulações que privilegiam um ou outro sentido de determinação, sem que, no entanto, nenhuma teoria verdadeiramente integrativa seja disponível.

Com fins puramente analíticos, propõe-se imaginar que os dois sentidos de causalidade sejam verificáveis. Mercados específicos, em momentos do tempo igualmente específicos, apresentariam o predomínio de uma ou outra direção causal.

Um primeiro caso corresponderia à visão na qual a estrutura é definida endogenamente ao mercado, em função da técnica (estado da arte) e das transformações trazidas por inovações tecnológicas, através de seus efeitos sobre indivisibilidades, estruturas de custos, graus de barreiras à entrada e saída no setor e outras variáveis estruturais a elas associadas. Nesse caso, o esforço inovativo das firmas ao mudar essas variáveis redefine a estrutura da indústria (número e tamanho das firmas, relação capital produto, grau de diferenciação de produto, grau de economia de escala e escopo, etc.).

Um segundo caso seria aquele em que a estrutura da indústria é considerada dada e estável o suficiente para condicionar as condutas das firmas, que, como já dito, corresponde às visões do tipo estrutura-conduta-desempenho ortodoxas ou não. Desde um ponto de vista das teorias do progresso técnico, poder-se-ia tentar associar esse segundo caso a uma situação na qual a estrutura de mercado foi definida por condutas inovativas adotadas no passado, mas já absorvidas, i.e., que não causam mais transformações - situação em que se poderia enquadrar um setor em estágio de maturidade tecnológica. Como será mencionado posteriormente, essa condição é exageradamente rígida e pode ser relaxada sem maiores prejuízos para a argumentação.

Ocorre que, na presença de incertezas quanto ao futuro, esse segundo caso é eminentemente teórico. Na prática, não há como garantir que uma inovação recém ou prestes a ser introduzida inicie um período de transformações estruturais (p. ex. disparando um processo de rejuvenescimento), ou por outra, que se possa garantir a condição de estabilidade da estrutura. Em função disso, é lícito considerar o primeiro caso como geral e esse segundo caso como particular.

Cabe então explorar o conceito de incerteza subjacente a formulação acima. Na economia neoclássica, a incerteza, quando ocorre, pode ser reduzida à informação incompleta ou imperfeita. Em vista disso, os agentes se comportam racionalmente gerando probabilidades a partir das quais realizam seus cálculos maximizadores.

Claro está que postulações dessa natureza deixam em aberto um vasto espaço teórico para formulações que considerem conceitos menos “domesticáveis” de incerteza6 6 Ver nota 2. (Nota do autor) e que tampouco estejam preocupadas com a existência e a unicidade de situações de equilíbrio. Esse espaço foi ocupado e continuamente ampliado ao longo da década de 1980 pelos pensamentos pós-keynesiano e neoschumpeteriano, dos quais - em particular do segundo - foram extraídas várias das ideias expostas a seguir.

Diante da incerteza, no senso acima definido, não há evidentemente como lidar “racionalmente” com o futuro. Ao contrário, a possibilidade de formação de expectativas de longo prazo por parte dos agentes econômicos estará subordinada à vigência de um estado de confiança no futuro, necessariamente subjetivo e por isso mesmo volátil. Enquanto esse estado de confiança perdurar, deverá ter lugar um comportamento convencional por parte dos agentes que, por assim dizer, é cego diante das incertezas que possam interferir sobre as suas previsões de longo prazo. Keynes foi suficientemente enfático sobre a essencialidade da existência dessa convenção para possibilitar o cálculo da eficiência marginal do capital e a tomada de decisão capitalista naquilo que envolva o longo prazo.

A contribuição neoschumpeteriana a essa questão está centrada na ênfase conferida à inovação tecnológica como fonte de incerteza, tanto mais explosiva quanto mais radical for essa inovação. Cabe observar que, mesmo que não se deva postular a existência de uma única corrente de pensamento neoschumpeteriano, a imprevisibilidade do processo de invenção-inovação e o reconhecimento do caráter transformador que o progresso técnico traz sobre as condições econômicas vigentes antes de sua introdução, condições essas que norteiam as previsões empresariais, são seguramente pontos em comum entre todas elas.

Em outras palavras, em contexto de significativa mudança técnologica, o montante dos investimentos (em particular em P&D) a realizar e dos retornos proporcionados torna-se virtualmente imprevisível, independentemente do estado de confiança dos agentes na economia. Recorrendo à linguagem de Shackle, a decisão de investir no desenvolvimento e introdução de uma nova tecnologia seria de natureza ainda mais crucial que a decisão de investir keynesiana.

Diante dessas fontes adicionais de incerteza, as condições de cristalização de um comportamento convencional envolvidos ganham particularidades. Dosi (1988)DOSI, G.; ORSENIGO, L. Coordination and transformation: an overview of strucutures, behaviours and change in evolutionary environments. In: DOSI, G.; FREEMAN, C.; NELSON, R.; SILVERBERG, G.; SOETE, L. (Eds.): Technical change and economic theory . London: Francis Pinter, London , 1988, p. 13-37. trata longamente dessa questão, em uma perspectiva fortemente keynesiana Para o autor, devido à natureza do processo inovativo, deve-se esperar a existência de um “gap” de informação - em relação à inovação, a informação é sempre imperfeita - e um “gap” de competência - a capacidade de processar informações é limitada pelo desconhecimento das ligações causais da inovação com o meio ambiente - que causam incertezas, e não risco como poderia sugerir um “racionalista” (POSSAS, 1988POSSAS, M. L. Em direção a um paradigma microdinâmico: a abordagem neo-schumpeteriana. In: AMADEO, L. E. (Org.) Ensaios sobre economia política moderna: teoria e história do pensamento econômico. São Paulo: Marco Zero, 1989 [1988 mimeo]., enfatiza essa contribuição da corrente neoschumpeteriana) na formação de expectativas no processo decisório.

A isso se sobreporia uma outra fonte de incerteza, derivada da inumerabilidade das condições que regem o futuro, além do próprio futuro ser, ao menos em parte, endogenamente definido. Significa isso que, por exemplo, “avanços tecnológicos futuros dependem de modo complexo e imprevisível de decisões alocativas tomadas no presente por um conjunto relativamente grande de agentes não colusivos”. Em suma, a incerteza associada à inovação é tanto mais não calculável e não eliminável quanto mais autônoma e individual forem as condutas de um conjunto de agentes, em geral heterogêneos em termos de suas competências, expectativas, etc. (DOSI, 1988DOSI, G.; ORSENIGO, L. Coordination and transformation: an overview of strucutures, behaviours and change in evolutionary environments. In: DOSI, G.; FREEMAN, C.; NELSON, R.; SILVERBERG, G.; SOETE, L. (Eds.): Technical change and economic theory . London: Francis Pinter, London , 1988, p. 13-37. , p.18, passim).

Para Dosi, a existência de incerteza necessariamente implica em instituições. Em ambientes não estacionários e complexos, são as instituições que moldam as visões de mundo, as convenções de conduta, percepções de oportunidades e interação entre os agentes. Essas instituições, por sua vez, teriam as finalidades de estabelecer/estabilizar comportamentos (podendo ser internas à firma: suas regras, normas de conduta, crenças, “gestalten”, ou externas à firma: outras organizações, leis, etc.) e de organizar as interações e a coordenação entre os diversos agentes econômicos (DOSI, 1988DOSI, G.; ORSENIGO, L. Coordination and transformation: an overview of strucutures, behaviours and change in evolutionary environments. In: DOSI, G.; FREEMAN, C.; NELSON, R.; SILVERBERG, G.; SOETE, L. (Eds.): Technical change and economic theory . London: Francis Pinter, London , 1988, p. 13-37. ).

Essas idéias levam o autor a afirmar que...

If richer institutional knowledge is required in order to narrow down the wide set of possible cs of any innovative environment consistent with some set of latent technological opportunities, market-delivered information and profit goals, then economic theory faces the task of achieving robust ‘stylization’ of different types of firm, the ways they emerge and the influence that these organizational forms have on firms behaviour and performance. (DOSI, 1988DOSI, G.; ORSENIGO, L. Coordination and transformation: an overview of strucutures, behaviours and change in evolutionary environments. In: DOSI, G.; FREEMAN, C.; NELSON, R.; SILVERBERG, G.; SOETE, L. (Eds.): Technical change and economic theory . London: Francis Pinter, London , 1988, p. 13-37. )

Tal afirmação permite identificar o processo de concorrência, em particular, a sua relação com padrões de concorrência - esse último como uma síntese das “regularidades estruturais” - como um elemento central de uma nova “microdinâmica” que ainda está por ser construída.

Supõe-se inicialmente uma situação onde o padrão de concorrência vem se mantendo estável e, por isso, é perceptível e aceito por todos ou quase todos os integrantes da indústria, o que corresponde ao caso particular mencionado anteriormente. Nesse caso, o padrão de concorrência vem se mantendo estável e por isso é perceptível e aceito por todos ou quase todos os integrantes da indústria. Efetivamente, não é necessário supor ausência absoluta de inovações, bastando que essas estejam ocorrendo de forma previsível, ao longo do que, em termos neoschumpeterianos, define-se como uma trajetória tecnológica (DOSI,1982DOSI, G. Technological paradigms and technological trajectories: a suggested interpretation of the determinants and directions of technical change. Research Policy, v. 11, n. 3, p. 147-62, jun. 1982.) ou uma trajetória natural (NELSON; WINTER,1977NELSON, R.; WINTER, S. In search of a useful theory of innovation. Research Policy , v. 6, n. 1, p. 36-76, Jan. 1977. ). Em termos keynesianos, estar-se-ia em uma situação na qual os agentes não estão revendo substancialmente seus planos de investimento por influência de expectativas quanto aos efeitos do progresso técnico futuro sobre os critérios de cálculo da eficiência marginal do capital. Claro está que as previsões de longo prazo seguem regidas pelo estado de confiança na economia, mas se este existe o “amanhã parecerá com o hoje”.

Nesse caso, uma firma adotará estratégias desviadas do padrão de concorrência apenas se o percebe equivocadamente ou se não está capacitada a adotá-las mesmo que as perceba. Isto é, nos termos de Dosi (1988)DOSI, G.; ORSENIGO, L. Coordination and transformation: an overview of strucutures, behaviours and change in evolutionary environments. In: DOSI, G.; FREEMAN, C.; NELSON, R.; SILVERBERG, G.; SOETE, L. (Eds.): Technical change and economic theory . London: Francis Pinter, London , 1988, p. 13-37. , devido ao “gap” de informação ou ao “gap” de competência respectivamente, a empresa:

  1. pode não perceber qual o padrão de concorrência dominante porque não há informação perfeita quanto ao mercado e às atitudes dos concorrentes. Evidentemente, o erro ou acerto quanto à escolha dos projetos que consubstanciam uma dada estratégia só poderá ser conhecido a posteriori; e

  2. pode não estar capacitada a adotar as estratégias corretas porque este é um processo cumulativo que envolve aprendizado e, portanto, exige tempo e que para ser acelerado implica o aporte de recursos adicionais desproporcionalmente grandes. Daqui surge uma defasagem temporal entre a opção por uma estratégia e o momento em que esta é efetivamente implementada.

Se há incerteza quanto ao futuro, é correto imaginar que esta será tanto mais relevante quanto maior for a defasagem entre o momento da tomada de decisão e o da efetiva implementação de uma estratégia competitiva adequada aos princípios gerais de uma trajetória. Entretanto, devido ao processo de aprendizado, quanto mais estável for o padrão de concorrência, menores são as possibilidades de avaliação incorreta das estratégias as bem sucedidas ao mesmo tempo que são maiores as chances de as empresas estarem capacitadas para elas.

No entanto, se se pensa o caso geral, isto é, aquele em que há significativa mudança estrutural motivada pela introdução de inovações “radicais”, surge a condição mais drástica de incerteza. Qual das estratégias competitivas mudará o padrão de concorrência? Evidentemente, esse conhecimento não é disponível “ex-ante”, e mesmo passado um período de tempo suficiente para se avaliar os resultados obtidos pelas estratégias concorrenciais inovadoras, nada garantirá que essas mesmas estratégias serão bem sucedidas se repetidas ou imitadas, pelo próprio fato delas estarem transformando a estrutura industrial.

Essa situação corresponderia à introdução de uma inovação primária ou radical e/ou à corrente de inovações secundárias a ela associadas, de efeitos virtualmente imprevisíveis sobre a estrutura do mercado e o padrão de concorrência. Caracteristicamente, estar-se-ia em uma fase de mudança do paradigma tecnológico a la Dosi.

Nessas fases, o resultado das decisões de investir em estratégias competitivas, em particular, naquelas relacionadas à inovação, não são corretamente informados pelos sinais de mercado emitido no presente. No plano microeconômico, os agentes se ressentem da ausência de qualquer base segura para estabelecer previsões de longo prazo, correspondendo assim à situação de ruptura do estado de confiança da macroeconomia keynesiana. Em oposição ao caso particular, mesmo na vigência de um estado de confiança keynesiano, há razões microeconômicas que impedem que “o amanhã se pareça com o hoje”.

As considerações tecidas anteriormente, fortemente inspiradas em Dosi (1988)DOSI, G.; ORSENIGO, L. Coordination and transformation: an overview of strucutures, behaviours and change in evolutionary environments. In: DOSI, G.; FREEMAN, C.; NELSON, R.; SILVERBERG, G.; SOETE, L. (Eds.): Technical change and economic theory . London: Francis Pinter, London , 1988, p. 13-37. , levam a que se afirme que nesse caso alguma forma de convenção deve ser estabelecida, enfatizando o papel das instituições extra-mercado.

O problema central, no entanto, é como reconhecer no presente o padrão de concorrência que estará vigorando no mercado específico, quando da maturação dos investimentos realizados, se este padrão está em profunda transformação. Essa questão é válida inclusive no caso aqui denominado particular, em que o padrão de concorrência tem se mostrado estável e parece fácil de ser reconhecido, mas nunca poderá haver certeza de sua estabilidade futura.

6. PADRÕES DE CONCORRÊNCIA E COMPETITIVIDADE

A análise do processo de concorrência realizada nas seções anteriores buscou enfatizar duas premissas centrais:

- O tempo é fator decisivo no processo de concorrência na medida em que as estratégias competitivas adotadas pelas empresas não rendem frutos imediatamente.

- Existe incerteza em relação ao futuro, o que implica a incapacidade de a empresa avaliar com precisão as suas estratégias, as estratégias que estão sendo adotadas pelos concorrentes e, por fim, o próprio padrão de concorrência setorial.

Interessa, portanto, analisar o fenômeno da competitividade quando se leva em consideração essas duas premissas. Nesse quadro, a ideia inicial é bastante simples: As firmas adotam estratégias competitivas de acordo com a avaliação que fazem do seu desempenho no passado e, principalmente, com base em suas expectativas sobre o futuro. Dessa forma, as firmas em um dado mercado, atuando autônoma e interdependentemente, tendem a reformular continuamente as suas estratégias competitivas em decorrência de variações, dentre outros, dos seu estoque de capital, da demanda, dos preços dos fatores de produção, do estado da arte das técnicas, das estratégias das demais competidoras e das expectativas.

Após todas essas considerações, chega-se à proposição central desse trabalho: Competitividade (microeconômica) é função da adequação das estratégias das empresas individuais ao padrão de concorrência vigente no mercado específico. Em cada mercado vigoraria um dado padrão de concorrência definido a partir da interação entre estrutura e condutas dominantes no setor. Seriam competitividade as firmas que a cada instante adotarem estratégias de conduta (investimentos, vendas, inovação, compras, financiamento, etc.) mais adequadas ao padrão de concorrência setorial.

No caso particular, o padrão de concorrência sendo estável, forneceria ele próprio o guia para avaliação da competitividade. A competitividade das firmas seria medida pelo desvio de suas estratégias em relação àquelas coerentes com o padrão de concorrência vigente.

No caso geral, no entanto, essa avaliação perderia qualquer caráter determinístico, pois ficaria em aberto a possibilidade de uma determinada estratégia empresarial transformar o padrão de concorrência. Nesse caso, o esforço inovativo das firmas ao mudar essas variáveis, redefiniria constantemente a estrutura da indústria (número e tamanho das firmas, relação capital/produto, grau de diferenciação de produto, grau de economia de escala e escopo, etc.) e o padrão de concorrência vigente.

É importante observar que em ambos os casos o conceito de competitividade permanece o mesmo. Um vetor de estratégias adotados por uma empresa pode ser adequado ao padrão de concorrência existente ou pode modificá-lo com sucesso, i.e., se impor ao mercado. Nesse caso, a empresa competitiva está, igualmente, adotando estratégias próximas ao padrão de concorrência, só que futuro, uma situação que apenas poderia ser verificada a posteriori.

Competitividade é enfim um fenômeno “ex-post” que, porém, não é captado pelo desempenho corrente da firma no mercado. O desempenho no mercado hoje estará indicando a competitividade da empresa em algum momento do passado. Entre esse momento e o presente, diferentes firmas possivelmente adotaram novas e diferentes estratégias, com base em expectativas incertas de retorno. É daí que surge a mudança que permite que uma firma não competitiva se torne competitiva e vice-versa, rompendo a tautologia expressa na associação de competitividade a variáveis ligadas ao desempenho corrente, como feito na abordagem convencional do tema (ver seção 2).

O problema central é como conhecer o padrão de concorrência vigente em um mercado específico, inclusive no caso particular em que este parece estável, sendo fácil de ser reconhecido, mas nunca com certeza quanto a sua estabilidade. Por essa razão, a conclusão final a que se pode chegara respeito da competitividade é a virtual impossibilidade de avaliá-la “ex-ante” de forma inequívoca. É possível, no entanto, através de estudos prospectivos mapear expectativas dos agentes econômicos quanto à mudança do padrão de concorrência em um futuro determinado e utilizá-las como guia para avaliação da adequação das estratégias adotadas no presente pelas empresas. Se essas expectativas se mostrarem convencionais (convergentes) dispor-se-á de um critério aceitável de avaliação de competitividade e de atuação sobre ela. O problema resume-se à construção de taxonomias adequadas. Do contrário, estar-se-á na ausência de qualquer critério econômico válido. A competitividade torna-se então um assunto para as instituições políticas voltadas para o longo prazo.

* Este texto é uma condensação de capítulo do relatório “Competitividade, Inovação e Modernização: Perspectivas para a Indústria Brasileira”, elaborado no IEI/UFRJ para a Fundação Banco do Brasil. O autor deseja agradecer a Marcos Lisboa a contribuição dada a uma primeira versão do artigo e a João Carlos Ferraz, Paulo Guilherme Correa, Lia Haguenauer e Marco Antonio Maciel assim como os demais membros da equipe da pesquisa pelos comentários e correções. Todos estão obviamente isentos de responsabilidade pelas eventuais falhas remanescentes. (Nota do autor)

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    10 Out 2023
  • Aceito
    10 Out 2023
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