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Memórias: pessoalidade e impessoalidade na representação de sujeito

Memories: the personal and the impersonal in the subject representation

Resumos

O artigo trata das formas de representação consideradas pela psicanálise. Indaga tanto as produções de memórias pessoais, quanto as atribuições de responsabilidade nas organizações sociais totalitárias. Indaga, também, a imbricação entre representação individual e coletiva e a particularidade que assumem as memórias da infância nessa questão.

memórias; escrita; responsabilidade social


This paper concerns forms of representation considered by psychoanalysis. It investigates both the production of personal memories and attributions of responsibility in totalitarian societies. It also examines the relation between individual and collective representation and underlines the special importance of childhood memories in this context.

memories; writing; social responsibility


ARTIGOS

Memórias: pessoalidade e impessoalidade na representação de sujeito

Memories: the personal and the impersonal in the subject representation

Ana Maria Medeiros da Costa

Doutora em Psicologia Clínica, PUC/SP. Psicanalista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Appoa. Rua Cabral, 15/201, 90420-120 Porto Alegre RS, tel. (51) 333-4368. E-mail: aclv@plug-in.com.br

RESUMO

O artigo trata das formas de representação consideradas pela psicanálise. Indaga tanto as produções de memórias pessoais, quanto as atribuições de responsabilidade nas organizações sociais totalitárias. Indaga, também, a imbricação entre representação individual e coletiva e a particularidade que assumem as memórias da infância nessa questão.

Palavras-chave: memórias, escrita, responsabilidade social.

ABSTRACT

This paper concerns forms of representation considered by psychoanalysis. It investigates both the production of personal memories and attributions of responsibility in totalitarian societies. It also examines the relation between individual and collective representation and underlines the special importance of childhood memories in this context.

Keywords: memories, writing, social responsibility.

É de se indagar por que a psicose — mais precisamente a paranóia — tem sua apresentação na psicanálise a partir de uma escrita de "memórias". Foi através do escrito autobiográfico de Daniel Paul Schreber que Freud (1911/1972) descreveu o mecanismo da psicose, inaugurando sua abordagem na comunidade analítica. Esta condição inaugural é tão marcante, que sua elaboração ainda é referência, apesar de Schreber nunca ter consultado Freud, que não se dispunha a trabalhar com a psicose. Não foi a primeira nem a última vez que Freud utilizou-se de textos literários para construir conceitos, mas no caso de Schreber há uma peculiaridade. Os outros escritos serviram como suporte, ou bem analógico, ou bem nomeante (no caso do Édipo), ou bem aplicativo de questões que lhe suscitava a escuta de seus pacientes. Já o caso de Schreber mereceu uma descrição clínica como se fosse um caso em transferência.

Esse simples exemplo já serviria para perguntar acerca do lugar que ocuparia a escrita num percurso de análise. Em Freud, pode-se mesmo sublinhar se escrever não foi o elemento central, o elemento que lhe permitiu até mesmo escutar. Os indícios são muitos e basta lembrar somente dois testemunhos: seu célebre texto sobre a interpretação dos sonhos (FREUD, 1900/1972), que se compõe de inúmeras análises de seus próprios sonhos e que ele situa como um trabalho de luto pela morte de seu pai. Seu trabalho de análise pessoal, que acontece preponderantemente na escrita de cartas a Fliess (FREUD, 1950/1972). É interessante observar que quando Freud escreve nesses dois lugares ele não faz distinção, nem estabelece distância, entre seus processos pessoais e as elaborações de conceitos que propôs como universais.

Uma aproximação a essa questão pode ser pensada em testemunhos de análise híbrida, vamos dizer assim, quando acontecem momentos em que o analisante escreve ao analista, dentro de uma análise clássica, que sempre se dá pela comunicação oral. É corriqueiro que essa escrita aconteça em momentos de maior angústia, ou quando um sonho desperta uma cadeia associativa que se tem necessidade de registrar. Só que, como já dizia Proust (PROUST, 1988), escreve-se para esquecer, e o que foi escrito não passa à comunicação oral subseqüente. Mas, mesmo quando passa, não se trata mais da mesma questão. Em percursos de análise em que a escrita não compõe um movimento eventual, mas passa a integrar o próprio processo, chega-se a pelo menos duas constatações: a escrita é uma resolução em si mesma; escreve-se para o analista (ou, mais precisamente, para a transferência).

Que tipo de resolução essa escrita produz? Seria do lado do recalque, seria uma saída sublimatória? A sublimação mereceria uma análise mais detida. Tem-se a tendência de pensá-la como uma saída feliz de um conflito pulsional. Como se houvesse a possibilidade de um transporte absoluto da mundanidade rala de nossos dejetos corporais, ao sublime das letras, das cores, das formas, da estética... Freud (1915/1972) a situou como uma satisfação da pulsão, sem recalque, e a psicanálise sempre lhe deu o valor de uma resolução. No entanto, basta acompanhar um pouco os que dedicam sua vida a esta experiência para reconhecer que, apesar de se impor como uma necessidade, não há propriamente saída do mal estar, trazido pelo conflito, na produção do ato criativo. Diríamos mesmo que esses atos entram na mesma compulsão à repetição que caracteriza o sintoma. Basta lembrar Van Gogh, que no final de sua vida pintou 70 quadros em 70 dias, para constatarmos uma inclinação compulsiva na criação.

Essas considerações não têm o sentido de patologizar o ato criativo. Pelo contrário, talvez tenham mesmo a intenção de enobrecer o sintoma, ou os produtos dos atos humanos, como maneiras diferentes de representação. Mas Freud tem razão num ponto: o ato criativo é uma resolução — uma saída — para algo impossível de se expressar como sintoma.

Retornando à escrita em análise, afirmamos que esta se produz para a transferência. O sentido amplo da experiência inclui o corpo na relação com o semelhante e com o real (como uma determinada produção de ato do sujeito). Enquanto atividade pulsional — inscrita na compulsão à repetição — a experiência é tomada como um saber que não se sabe, mas que busca um sujeito (um Outro que interprete). Pode também ser tomada como uma adequação ao eu. A transferência tem sido bastante abordada, nos escritos de inspiração lacaniana, como um sujeito suposto saber, atribuído ao analista. Então, esse saber inconsciente ganha um sujeito ao custo da neurose de transferência. A clássica proposta lacaniana de fim de análise está colocada na possibilidade de dispensar a necessidade de atribuição de um sujeito suposto saber, ao saber inconsciente. Pois bem, graças à transferência, as formações do inconsciente ganham um endereço único: os sonhos, lapsos, sintomas acabam se particularizando: são para o analista.

Poder-se-ia dizer que, no início de sua produção, Freud escrevia para Fliess. Poderíamos pensar que seus artigos duplicavam suas cartas. Estas, misturavam comunicações de análises de seus sonhos, de seus sintomas, de lembranças da infância, com comunicações de suas construções teóricas. Em muitos momentos, os dois registros não se distinguiam. Indo ainda além: Freud não personalizava suas comunicações mais íntimas, tornando-as um campo de investigação e produção que não lhe pertencia, que ele nomeou como inconsciente e que registrou como um saber que não era seu, mas da psicanálise. O único personalizado nesse momento inicial era Fliess, que tomava como parceiro e endereço de tudo o que produzia. Isto se deu até a publicação de seus textos sobre as formações do inconsciente, em 1900, que marca a mudança de endereço na sua escrita: a passagem de uma personificação para uma comunidade aberta, sem um sujeito situado.

É interessante analisarmos como se produz o rompimento do endereço único inicial de Freud e a possibilidade de que sua produção não se constituísse num atributo pessoal, mas cultural. Podemos afirmar que essa passagem da pessoalidade à cultura, Freud a realiza completamente, testemunhada pelos efeitos que sua obra produz ainda hoje. O rompimento com o que estamos denominando "pessoalidade" acontece a partir de uma acusação de plágio, que Fliess lhe endereça. São muitas as interpretações que se pode fazer desse episódio. Não há dúvida de que Fliess encarnava uma forma de amor de Freud, que o cita em seus textos e reconhece sua influência. Então, Freud não lhe recusa reconhecimento. Talvez a reação de Fliess tenha acontecido no momento em que Freud põe em ato algo que já se prenuncia na maneira como ele trata sua intimidade na escrita das cartas. Ou seja, que sua intimidade não era algo exclusivamente pessoal, era a manifestação de algo cultural, algo que ele precisava revelar ao mundo. Aqui, "revelar" entra mais no registro de uma doação e não no sentido de uma preservação narcísica.

A IMPESSOALIDADE TOTALITÁRIA

O "melhor" e o "pior" das produções humanas vêm do mesmo lugar. Por isso, dificilmente se consegue estabelecer, de uma vez para sempre, mecanismos reguladores das relações sociais. Já se denominou de tantas coisas o "pior" da condição humana — demônio, aberração, degeneração, perversão, ou simplesmente "mal" — variações estas conformes à sua descrição pela religião, ciência ou filosofia. Seria o "mal" próprio da natureza do indivíduo, ou lhe seria exterior, vindo das diferentes formas de representação e dominação pelas organizações sociais? Essa pergunta, até hoje, continua aberta, mantendo seu trânsito entre esses dois pólos, na medida que cada um deles não a consegue responder satisfatoriamente.

Iniciamos desta forma uma série de considerações sobre a construção de memórias, talvez por uma particularidade contextual: parece que estamos hoje, pela proliferação de testemunhos biográficos, muito mais convocados a responder pelo que foram os extermínios. A construção de nossas memórias passa inevitavelmente por aí. Esse "responder" tem algumas conseqüências, todas elas relativas à responsabilidade de representar algo, no que está implicada também a construção de um julgamento. Recentemente, foi relançado no Brasil um livro de Arendt (1999), inexplicavelmente esgotado por mais de dez anos, sobre o julgamento de Eichmann, em que ela enfrenta essa questão com bastante coragem. Eichmann era um militar nazista responsável primeiro pela deportação em massa dos judeus e, por último, pela chamada "solução final" (transporte para os campos de extermínio). As duas questões mais instigantes do livro ligam-se à indagação sobre as responsabilidades. A primeira, diz respeito à participação dos líderes das comunidades judaicas junto aos comandos nazistas (também os que foram coordenados por Eichmann). Essa participação tanto dizia respeito à orientação para a não-reação (um dos fatores a que Arendt atribui a passividade dos judeus) quanto à ajuda da escolha de quem seria levado, sob a alegação de "salvar os melhores". Como coloca Arendt (1999), a "aceitação de categorias privilegiadas... fora o começo do colapso moral da respeitável sociedade judaica" (p. 148).

Mas a questão mais provocativa e inquietante toma Eichmann como ponto pivô, sendo a colocação central do livro e que lhe deu o subtítulo: a banalidade do mal. A autora propõe que a tese da acusação, de que Eichmann seria um indivíduo perverso, que sentiria prazer no assassinato dos judeus e que gozaria dos atos que cometeu, não se sustenta. Arendt (1999) o define como alguém de dotes intelectuais "modestos", que antes da organização nazista não se deu bem no que fazia. A justificativa de Eichmann fundamentava-se em que:

"...essa era a nova lei da terra, baseada nas ordens do Führer, tanto quanto podia ver, seus atos eram os de um cidadão respeitador das leis. Ele cumpria seu dever... ele não só obedecia ordens, ele também obedecia à lei." (ARENDT, 1999, p. 148)

Assim, pode-se depreender que a "banalidade do mal" (pelo menos no que diz respeito aos sistemas totalitários), para Arendt (1999), está nessa impossibilidade de restringi-lo a uma natureza individual. Na máquina, na burocracia totalitária e no ideal do Führer, era possível banalizarem-se atos que em outras circunstâncias seriam considerados condenáveis. No fim das contas, Eichmann poderia ser simplesmente considerado como um funcionário eficiente. O que, evidentemente, não o exime da responsabilidade nos atos que cometeu.

Seguindo uma linha de raciocínio próxima a Arendt, Calligaris (1991) propõe denominar isso que torna o "mal" banal como uma saída perversa. Só que o autor propõe a perversão como uma patologia social e não sexual (como seria tradicional dentro da psiquiatria e da psicanálise). No referido trabalho, ele se propõe a analisar o caso de Speer, arquiteto de Hitler, começando por sua frase: "a guerra era inevitável porque havia os meios técnicos para fazê-la". Calligaris (1991) aproxima esta frase das reações contra o desenvolvimento da técnica, encontradas desde os heideggerianos, passando por Arendt e Jaspers. O autor diz que não acha suficiente pensar que o desenvolvimento técnico enquanto tal seja alienante, ou seja, que implique necessariamente num exercício, propondo que algo mais deve ser juntado a esse pensamento.

"...o que chama triunfo da técnica, da instrumentalidade, só é triunfo na medida que os homens mesmos funcionem como parte integrante desta técnica, quero dizer, funcionem como instrumentos".

Como "efeito da técnica" ele propõe que se leia:

"...efeito do interesse e da paixão humana em sair do sofrimento neurótico banal... reduzindo a própria subjetividade a uma instrumentalidade". (CALLIGARIS, 1991, p. 110)

O autor atribui a paixão da instrumentalidade a uma tentativa de saída da ignorância do saber e querer neuróticos, que se sustentam de uma suposição de saber ao pai nunca completamente positivada. É então que propõe a saída perversa da neurose:

"Sendo impossível chegar a conhecer o saber paterno suposto, a opção é abdicar da própria singularidade de sujeito, aliená-la, construindo — de preferência coletivamente — um semblante de saber paterno que por isso mesmo seja sabido e compartilhado." (CALLIGARIS, 1991, p. 112)

A conseqüência é a transformação do sujeito em instrumento de um saber assim estabelecido. É então que o gozo não está em matar pessoas e sim em ser um "funcionário exemplar". O autor não atribui a paixão da instrumentalidade somente aos episódios do totalitarismo, colocando-a como uma condição cotidiana e abrangente de saída da neurose.

Gostaríamos de nos deter um momento na expressão "perversão". Na psicanálise, ela foi originalmente utilizada por Freud (1905/1972) para designar desvios pulsionais na infância — a sexualidade perversa polimorfa. Já Lacan a sugere como designação de toda versão do pai (père-version, em francês). Talvez essas duas propostas não sejam divergentes. A perversão polimorfa indica uma condição de desnaturação da pulsão. Ou seja, a perda de seu objeto "natural", o que provocaria uma desmedida na sua expressão, pela multiplicação de objetos substitutivos. É aí que podemos situar uma questão um pouco controversa no texto de Freud (1905/1972) dos Três ensaios. Ele diz ali que a cultura é dique, refreia o pulsional. Mas o que ele não diz é que a desnaturação — ou seja, a própria cultura — é o que provoca a desmedida, o desenfreamento. Se a pulsão tivesse objeto natural, ela estaria contida — refreada — pelo próprio objeto. É aqui que podemos encontrar proximidade com o texto lacaniano: por termos constituído versões do pai, pelo nosso funcionamento depender disso, o pulsional desgarrou-se da natureza e a lei se confunde com a transgressão. Ou seja, o pai significa em si a perversão da natureza e suas referências podem trazer a desmedida e o desenfreamento.

Na natureza, a lei são os ciclos de procriação e preservação. Já para nós, a mãe — pelo olhar do pai (onde se representaria a lei) — divide-se entre satisfação e desejo, sendo que uma coisa termina por confundir-se com a outra. Nunca mais encontramos a "mãe natureza", a mãe pura necessidade, que enfim pudesse ser acalmada.

Algo que mereceria um melhor desenvolvimento, dentro das colocações de Calligaris (1991) que destacamos, diz respeito à afirmação de que a perversão seria social e não sexual. Poderia ficar subentendido que o que é sexual não é social e vice-versa, questão que não se sustenta dentro da psicanálise. Acreditamos que essa colocação liga-se à imagem corriqueira da perversão como definindo uma prática erótica, sendo a isso que o autor se contrapõe.

Lacan (1998), quando analisa a aproximação de Sade a Kant, também se situa por esse viés. Ao equiparar a alcova sadiana com a academia, o faz com fundamento em uma regra que, nos dois casos, se quer universal: o gozo em Sade e a lei moral em Kant, fundamentada na razão prática. O que vai interessar aqui é o caráter de universalidade, que, para se afirmar, exclui a consideração com o que seja da ordem dos bens, seja do sujeito, seja do outro (é por aí que o autor situa "estar bem no mal"). A lei em Kant é o encontro de um imperativo categórico — logo, uma abstração que não tem objeto, se impondo em todos os casos — que faz de cada um, ao mesmo tempo, sujeito e objeto da lei. Essa proposta de inter-relação de Kant com Sade foi certamente inspirada na afirmação freudiana de que o supereu contém o imperativo categórico kantiano. É aí onde Lacan (1998) constrói essa ironia de situar o supereu (o que seria representante da lei) como imperativo do gozo, produzindo essa junção entre a academia (onde primeiro aparece o discurso do mestre) e a alcova (lugar do enlace dos corpos). Com a colocação de que ali onde o supereu diz "goza!", o sujeito só pode responder "ouço", Lacan lembra as duas impossibilidades de totalização: a de um universal abstrato de uma lei sem corpo (a "objetivação" da academia) e a de um encontro absoluto de corpos fora de um discurso.

No que diz respeito ao universal, é interessante retomar Calligaris (1991) na sua abordagem do termo "totalitário" (ligado à sua análise do totalitarismo): ele se situa tanto na referência associativa (quem não se associasse seria reduzido a instrumento na morte), quanto na alienação total do sujeito à sua posição instrumental. Nesse sentido, perdem-se as fronteiras entre privado e público:

"...o princípio básico de um regime totalitário é efetivamente uma gestão total da vida cotidiana... A esfera da vida privada desaparece progressivamente... Entende-se então que, do meu ponto de vista, o ideal político nunca é mais do que a procura de um equilíbrio instável entre uma alienação necessária para a vida social e a resistência à sua inércia totalitária." (CALLIGARIS, 1991, p.116)

Importa, aqui, pensar um pouco nessa questão das fronteiras entre privado e público. Nela, se tematizam coisas bastante relevantes. Essa espécie de separação é o que garante a impossibilidade de realização de um universal: seja como língua, seja como lei, seja como identidade. Nesse sentido, a passagem à cultura, enquanto realização plena de um reconhecimento, nunca se efetua completamente. O "equilíbrio instável", colocado por Calligaris (1991), diz respeito a isso. É isso também que interpela a psicanálise, seja como um debate interno a ela, seja como sua justificativa social. Se a psicanálise se propusesse a "curar" a neurose — num sentido médico — entraria na promessa de eliminar o que faz resistência a uma língua universal. O que é impressionante de se constatar é que a língua das neuroses é a mesma da cultura. Freud situa isso muito bem. Por isso, suas análises culturais não se diferenciam de suas análises individuais. A organização da neurose obsessiva, por exemplo, pode situá-la como uma expressão religiosa. No entanto, ela não é comunicável, não é compartilhável, como é a religião.

É no supereu que Freud vai situar o elemento híbrido, o elemento de passagem de uma língua à outra: da mãe ao pai, ou também do incesto à cultura, como se queira. Essa passagem, como continua se realizando pela vida afora, implica na manutenção de elementos heterogêneos e a própria referência ao pai contém esses elementos.

MEMÓRIAS DE INFÂNCIA

Perec (1995) foi um dos judeus a testemunhar, na sua infância, os eventos da Segunda Guerra Mundial. Ele não teve uma história muito diferente de outros que viveram esse contexto e, também como tantos outros, decide escrever seu testemunho. No entanto, deve-se ressaltar, é um dos poucos a se tornar escritor.

O autor intitulou W ou a memória da infância (PEREC, 1995) a uma construção autobiográfica. São duas histórias paralelas — desenvolvidas em capítulos alternados — aparentemente sem relação uma com a outra. Uma delas trata da história de W, a ficção de uma ilha — a Terra do Esporte — da qual só restou um sobrevivente. Na outra o autor nos comunica uma tentativa de reconstrução de memórias de sua infância. Como o próprio título do livro nos sugere, as duas histórias são equivalentes, ou seja, uma pode ser substituída pela outra — é isso que o "ou", que liga as duas, nos sugere. Sobre o "W" — essa letra solta que aparece enigmaticamente no título — Perec faz uma série de associações e transformações no interior da narrativa (até mesmo sua associação com a suástica). Perec (1995) começa assim as memórias:

"Não tenho nenhuma memória da infância. Até os doze anos mais ou menos, minha história se resume em poucas linhas: perdi meu pai aos quatro anos, minha mãe aos seis; passei a guerra em diversos pensionatos... Em 1945, a irmã de meu pai e seu marido me adotaram... Não tenho recordações da infância: eu fazia essa afirmação com segurança, quase com uma espécie de desafio. Não precisavam me interrogar sobre essa questão. Ela não estava inscrita no meu programa. Estava dispensado dela. ...uma outra história, ...a História com H maiúsculo, havia respondido em meu lugar: a guerra, os campos de concentração." (p. 13)

Por outro lado, o relato paralelo — a ficção de W — coloca, no primeiro capítulo, o seguinte:

"Não importa o que aconteça, não importa o que eu faça, eu era o único depositário, a única memória viva, o único vestígio daquele mundo. Isso, mais que qualquer outra consideração, me levou a escrever." (PEREC, 1995, p.10)

São dois relatos muito paradoxais. Começa pela sua apresentação, em que precisamos passar de um a outro, sem estados intermediários. O tempo inteiro ficamos nos indagando sobre os elos: onde eles estão, como se explicitam? O outro paradoxo é de que nas memórias da infância, ali onde esperaríamos encontrar a intimidade, a familiaridade e a auto-representação do narrador, o que aparece é a estranheza e a distância. São outros que falam, na ausência absoluta de reconhecimento pelo eu: são tentativas de descrição a partir de fotos, tentando reconstituir personalidades e cenas, bem como a partir de relatos de outros (da tia, principalmente). Ficamos, como o narrador, enquanto observadores de uma história reconstituída quase artificialmente. Contraditoriamente, o mundo anônimo da Terra do Esporte, onde nada de singular sobrevive (até mesmo os nomes próprios são designações das provas e competições), começa a envolver-nos, a angustiar-nos, começa a nos fazer memória. Na ilha W impera o ideal olímpico, em que as constantes provas determinam os dias e a vida. Um ideal de competição, higiênico e estético, que vai progressivamente, na narrativa, fazendo-se cada vez mais e mais cruel, até tornar-se insuportável. É ali onde reconhecemos uma organização totalitária.

Não é surpreendente a afirmação "não tenho nenhuma memória da infância". Freud (1905/1972) já sugeriu que a amnésia é o componente normal das "memórias" infantis, que sucumbem ao recalque, independente de eventos reconhecidamente traumáticos. Mas o que sim surpreende é a afirmação do sentimento de ser dispensado de responder pela infância, entrando ali uma história anônima: História com H maiúsculo. É somente nessas colocações mais radicais que é possível perceber o paradoxo que faz parte de nossa "normalidade" de exílio. Todos somos convocados a responder pela infância, a responder por um momento que aparentemente não nos diz respeito, porque se trata preponderantemente da encarnação do desejo de nossos pais. Ou seja, somos convocados ao impossível de responder por um desejo que nos gerou, um desejo impronunciável, enigmático (que nem os genitores conseguem expressar). No entanto, talvez essa simples banalidade constitua a diferença em relação a organizações totalitárias. Nesse sentido, responder pela infância pode ser o que permita a saída de posições instrumentais, na medida que o mundo à nossa volta nos "olha", nos diz respeito. Essa é, pelo menos, a posição da psicanálise.

BIBLIOGRAFIA

Recebido em 25/5/2000. Aceito em 13/8/2000.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Fev 2009
  • Data do Fascículo
    Dez 2000

Histórico

  • Aceito
    13 Ago 2000
  • Recebido
    25 Maio 2000
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