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Sedução, tradução e cura

Seduction: translation and cure

Resumos

A teoria da sedução foi a primeira proposta sistemática de Freud para dar conta de um excedente de excitação que faz uma exigência de tradução ao sujeito humano, constituindo, ao mesmo tempo, o seu aparelho psíquico. Baseando-se na teoria da sedução generalizada, de Laplanche, o texto explora as relações entre as noções de sedução e de tradução e suas conseqüências na situação analítica.

sedução; tradução; cura


The theory of seduction was Freud's systematic proposal to explain how excessive excitement requires a translation by the human subject, which at the same time constitutes the latter's psychic apparatus. The text explores the relationships between the notions of seduction and translation and their influence on the analytic situation, based on Laplanche's theory of generalized seduction.

seduction; translation; cure


ARTIGOS

Sedução, tradução e cura

Seduction: translation and cure

Ronaldo Monte Almeida

Professor da Universidade Federal da Paraíba. Psicanalista. Av. Sergipe, 234, 58030-190 João Pessoa PB, Tel. (83) 224-4628 . E-mail: rmonte@openline.com.br

RESUM O

A teoria da sedução foi a primeira proposta sistemática de Freud para dar conta de um excedente de excitação que faz uma exigência de tradução ao sujeito humano, constituindo, ao mesmo tempo, o seu aparelho psíquico. Baseando-se na teoria da sedução generalizada, de Laplanche, o texto explora as relações entre as noções de sedução e de tradução e suas conseqüências na situação analítica.

Palavras-chaves: sedução, tradução, cura.

ABSTRACT

The theory of seduction was Freud's systematic proposal to explain how excessive excitement requires a translation by the human subject, which at the same time constitutes the latter's psychic apparatus. The text explores the relationships between the notions of seduction and translation and their influence on the analytic situation, based on Laplanche's theory of generalized seduction.

Keywords: seduction, translation, cure.

Em suas teorias sobre o desprazer, a dor e a angústia, assim como em muitas outras passagens de sua obra, Freud sempre se preocupou com as relações entre o psiquismo e o corpo. A teoria da sedução foi a primeira proposta sistemática para dar conta de um excedente de excitação que faria uma exigência de tradução ao sujeito humano, constituindo, ao mesmo tempo, o seu aparelho psíquico numa seqüência tópica. Laplanche retoma os elementos da teoria da sedução, abandonada por Freud em 1897, para construir uma teoria da sedução generalizada que, partindo do mecanismo do recalcamento, explicasse a constituição e a permanência de um inconsciente formado a partir de restos intraduzidos de mensagens enigmáticas emanadas do adulto. Tais resíduos, os objetos-fonte da pulsão, fariam ao psiquismo uma exigência permanente de tradução. O que vamos explorar a seguir são as relações estabelecidas por Laplanche entre as noções freudianas de sedução e de tradução, com suas conseqüências na situação de cura.

Sedução

Entre 1895 e 1897, Freud esteve envolvido com a importância da sedução na etiologia das neuroses. A partir dos decisivos 13 casos clínicos completos, mais tarde ampliados para 18, constatou que todos esses pacientes haviam sido vítimas de experiências sexuais na tenra infância, por parte de adultos ou de crianças maiores. Foi esta constatação clínica que permitiu a Freud elaborar a sua teoria da sedução, com que acreditava ter respondido às questões que sua clínica colocava. Não se tratava, porém, apenas de constatar na clínica a freqüência dos atentados sexuais, nem levantar uma simples hipótese sobre a importância de tais atentados numa série de eventos traumáticos. Com tal teoria, Freud pretendia ter estabelecido, sem contestação, o vínculo entre a sexualidade, o traumatismo e a defesa, mostrando "que é da própria natureza da sexualidade ter um efeito traumático e, inversamente, que só se pode, em última instância, falar de traumatismo e nele descobrir a origem da neurose, na medida que interveio a sedução sexual" (LAPLANCHE & PONTALIS, 1988, p. 27).

Com exceção do Projeto para uma psicologia científica (1895), todos os escritos de Freud referentes à teoria da sedução estão datados de 1896. O artigo sobre A etiologia da histeria (Freud, 1896/1968), baseado em uma conferência realizada na Sociedade de Psiquiatria e Neurologia de Viena, é o mais bem articulado de todos os que tratam do assunto. Por isso, é nele que vamos procurar identificar os passos originais desta descoberta freudiana.

Freud (1896/1968) começa o artigo estabelecendo uma analogia entre o método psicanalítico e os novos procedimentos da arqueologia que, em suas descobertas auto-explicativas, fariam falar as pedras dos velhos monumentos: saxa Loquuntur! Da mesma maneira que as pedras, os sintomas da histeria poderiam se fazer ouvir como testemunhas da história da origem da doença, uma vez que, segundo o método descoberto por Breuer, tais sintomas, com exceção dos estigmas, "são determinados por certas experiências do paciente que operam de maneira traumática e que são reproduzidas na sua vida psíquica sob a forma de símbolos mnêmicos" (p.192-3). Partindo da premissa e do método de Breuer, Freud (1896/1968) pretende agora demonstrar como conseguiu elaborar a sua teoria da sedução, atingindo a descoberta básica de que

"as experiências sexuais infantis constituem a precondição fundamental da histeria, isto é, constituem, realmente, a disposição para esta, e que são elas que criam os sintomas histéricos — mas não o fazem imediatamente, permanecendo inicialmente sem efeito e só exercendo uma ação patogênica depois, quando emergem após a puberdade sob forma de lembranças inconscientes". (p. 212)

Tal descoberta vem preencher uma lacuna deixada em aberto desde o seu primeiro artigo sobre As neuropsicoses de defesa (1984/1968). Ali, Freud (1896/1968) já havia considerado que "a eclosão da histeria podia ser inevitavelmente atribuída a um conflito psíquico que emerge quando uma idéia incompatível detona uma defesa por parte do ego e solicita um recalque" (p. 210, 211). Restava, por essa época, estabelecer as circunstâncias em que se operava essa defesa, cujo resultado era substituir a lembrança aflitiva por um sintoma histérico. Agora, Freud (1896/1968) se considera apto a preencher essa lacuna:

"a defesa cumpre seu propósito de arremessar a idéia incompatível fora da consciência se há cenas sexuais infantis presentes no sujeito (até então normal) sob a forma de lembranças inconscientes, e se a idéia que tinha de ser recalcada puder ser posta em conexão lógica e associativa com uma experiência infantil desse tipo". (p. 211)

Ficavam, desde então, firmemente vinculadas às noções de traumatismo, sexualidade infantil recalque e posterioridade. O reconhecimento do papel do conflito defensivo na gênese das psiconeuroses de defesa não reduz a função etiológica do traumatismo. Articulando estreitamente as noções de defesa e traumatismo, a teoria da sedução "constitui uma tentativa para explicar o fato, descoberto pela clínica (Estudos sobre a histeria), de que o recalcamento se exerce eletivamente sobre a sexualidade" (LAPLANCHE & PONTALIS, 1988, p. 27).

O método de investigação descoberto por Breuer permitia alcançar as cenas infantis a partir dos sintomas, ao mesmo tempo em que surtia efeito terapêutico, devolvendo a idéia recalcada ao seu devido lugar, usurpado pelo sintoma na cadeia associativa, de onde tinha sido expulsa pelo processo de defesa. Tal instrumento arqueológico-terapêutico levaria a atenção do paciente a

"retroagir de seu sintoma à cena na qual, e através da qual, o sintoma assomou; e, tendo assim localizado a cena, removemos o sintoma, realizando, durante a reprodução da cena traumática, uma correção subseqüente do curso psíquico dos eventos que então ocorreram". (FREUD, 1896/1968, p. 193)

Em todos os sintomas analisados, em inúmeros sujeitos, chegou-se naturalmente a um número correspondente de cenas traumaticamente operativas. Para se tornar operativa, uma cena tinha que satisfazer a duas condições: em primeiro lugar, possuir "suficiente adequabilidade para servir como determinante". Em segundo lugar, possuir a "necessária força traumática" (FREUD, 1896/1968, p.193).

Aqui, porém, Freud encontra o seu primeiro desapontamento. Em lugar da cena que satisfaz ao requisito da operatividade traumática, o que costuma aparecer, com muito maior freqüência, são cenas que apresentam uma entre as três seguintes possibilidades, todas desfavoráveis à compreensão: 1) a cena em que o sintoma apareceu pela primeira vez é inadequada, não tendo o seu conteúdo nenhuma relação com a natureza do sintoma; 2) mesmo tendo relação com o sintoma, a cena revela-se inócua, incapaz de produzir qualquer efeito terapêutico; 3) a cena apresenta-se simultaneamente como inócua e sem relação com a natureza do sintoma.

A esse desapontamento do ponto de vista puramente investigativo, segue-se outro, considerado por Freud (1896/1968) especialmente doloroso para os terapeutas: quando a cena evocada não possui adequabilidade e efetividade traumática, não ocorre nenhum proveito terapêutico, permanecendo inalterado o quadro sintomático. Isto levaria qualquer um que não tivesse a sua tenacidade a renunciar ao trabalho por ele mesmo reconhecido como cansativo. Aferrando-se à hipótese de que os sintomas poderiam ser resolvidos quando, a partir deles, se percorre o caminho de volta à lembrança de uma experiência traumática, se a lembrança obtida não corresponder à expectativa, só resta continuar no caminho e ir um pouco além. Comunicando ao paciente que a cena encontrada nada explica, que provavelmente por trás dela deve existir algo realmente importante, chega-se à conclusão de que a primeira cena é apenas um elo de ligação na cadeia de associação que levará "do sintoma histérico à cena que é de fato traumaticamente operativa e que é satisfatória em ambos os casos, tanto terapêutica como analiticamente" (p. 195). Esta obstinação em perseguir a lembrança traumática a partir dos sintomas levou Freud (1896/1968) a uma importante conclusão que serviria de base à sua teoria psicológica da histeria: "nenhum sintoma histérico pode emergir de uma experiência real isolada, mas que em todos os casos a lembrança de experiências mais antigas, despertadas em associação com ela, atua na causação do sintoma" (p. 197).

De início, pareceu assombroso que os sintomas histéricos tivessem sua origem em lembranças. Principalmente porque essas lembranças não se introduzem na consciência do paciente no momento em que o sintoma se apresenta pela primeira vez. Mas havia uma descoberta mais importante a ser feita:

"Qualquer que seja o caso e qualquer que seja o sintoma que tomemos como ponto de partida, no fim chegamos invariavelmente ao campo da experiência sexual. Portanto, aqui, pela primeira vez, parece que descobrimos uma precondição etiológica dos sintomas histéricos." (FREUD, 1896/1968, p. 199)

Uma vez convergindo ao campo da experiência sexual, as cadeias associativas levavam a um pequeno número de lembranças que em sua maioria ocorriam na puberdade. Seria de esperar que, ao reviver essas lembranças, o paciente se livrasse dos seus sintomas histéricos. Mas aí surge um novo desapontamento: essas lembranças, em geral, eram "surpreendentemente triviais", faltando a elas a força necessária à operatividade traumática. Sua suposição básica fez parecer óbvio que as causas determinantes dos sintomas deveriam repousar em experiências ainda mais remotas. E mais uma vez nada havia a fazer senão persistir no caminho da cadeia associativa, fazendo-a retroagir ainda mais. Tal persistência levou o fluxo de lembranças ao período mais precoce da infância em que, segundo a concepção da época, a vida sexual do indivíduo ainda não se desenvolvera.

Chega-se agora a um impasse que a elaboração teórica resolve em lugar do empirismo do método. Se as cadeias associativas levam a experiências traumáticas ocorridas em um período da vida isento de sexualidade, naturalmente teria de ser abandonada a hipótese de uma etiologia sexual para a histeria. Recorre-se a uma solução de compromisso, supondo que mesmo na infância o indivíduo esteja sujeito a leves excitações sexuais e que as experiências sexuais infantis influenciam decisivamente o futuro desenvolvimento sexual. Baseia tal suposição na analogia com os organismos em geral, onde uma interferência danosa em um órgão ainda imaturo ou em uma função em processo de desenvolvimento teria efeitos mais graves e duradouros do que se ocorresse em época mais madura.

Se for aceito que a reação anormal às experiências sexuais da puberdade, revelada na inadequação traumática da cena evocada desse período, esteja baseada em experiências sexuais da infância, ter-se-ia encontrado uma etiologia para a histeria em substituição a até então inexplicada hipótese da predisposição hereditária. A perseverança em direcionar a análise à mais tenra infância, até onde for capaz de alcançar a memória, levou à reprodução de experiências cujos traços particulares e relações específicas com os sintomas da doença posterior permitiam ser consideradas como a procurada etiologia da neurose.

Completando a sua linha de raciocínio, Freud (1896/1968) afirma que essas experiências sexuais infantis, muito mais uniformes que as cenas da puberdade que lhes precederam, não são despertadas por uma impressão sensorial qualquer. Tratavam-se de "experiências sexuais afetando o próprio corpo do sujeito — de intercurso sexual (no sentido mais amplo)" (p. 203). Encontra-se pronto, agora, para apresentar a tese que, devido à importância que lhe atribuía, poderia ser considerada uma caput nili na neuropatologia: "Na base de todo caso de histeria, há uma ou mais ocorrências de experiência sexual prematura, ocorrências que pertencem aos primeiros anos da infância, mas que podem ser reproduzidas através do trabalho da psicanálise, a despeito das décadas interpostas" (p. 203).

Tais cenas também estariam presentes nos casos de neurose obsessiva e na paranóia, sendo a sua combinação com outros fatores patogênicos que determinariam a escolha da neurose. As objeções contra a autenticidade das cenas infantis são rebatidas imediatamente com vários argumentos. Em primeiro lugar, os pacientes nada sabem sobre essas cenas antes de se submeterem à análise. Apenas a compulsão mais forte do tratamento pode induzi-los a reproduzi-las.1 1 Compulsão, aqui, deve ser entendida como o comportamento obstinado do médico em se sobrepor às resistências do paciente, através da aplicação sistemática da técnica de pressão. A indignação com que o paciente reage ao ser avisado da emergência dessas cenas, o desgosto e a relutância com que as reproduz, as sensações violentas que apresenta durante a sua reprodução, acompanhadas de vergonha, e a tentativa de negar a sua importância mesmo depois de reproduzidas são, para Freud (1896/1968), provas irrefutáveis da sua veracidade: "Por que os pacientes me garantiriam enfaticamente sua descrença, se o que eles querem desacreditar é alguma coisa que — por qualquer motivo — eles próprios inventaram?" (p. 204).

Quando Freud abandonou a hipnose, sua luta contra a resistência mostrou que a recusa à rememoração encobria a repulsa a uma cena em que um adulto ou criança mais velha teria, com atos ou palavras, realizado um atentado sexual a um indivíduo que ainda não possuía, por conta da tenra idade, condições para compreender por inteiro o sentido do atentado. Só depois, com o advento da puberdade, tal acontecimento seria recordado em conexão com outro evento mais recente, de caráter fortuito, adquirindo, então, todo o seu significado sexual, de onde adviria a sua força traumática. Só nesse segundo tempo, o da efetivação do trauma pela lembrança do evento, é que se efetivaria o recalque, ou seja, a cena do atentado seria alijada da memória, ficando em seu lugar a cena fortuita do segundo momento.

Ao se deter, junto com Pontalis, no modelo de funcionamento psíquico proposto por Freud com sua teoria da sedução, Laplanche (1988) observa primeiro que a ação do traumatismo se decompõe em vários tempos, deixando sempre supor a existência de, pelo menos, dois acontecimentos: uma primeira "cena de sedução", em que a criança sofre o atentado sexual, sem que isto lhe cause uma excitação sexual. Qualificar tal cena de traumática implicaria em abandonar o modelo somático do trauma, pois aí não ocorre um afluxo de excitações externas, nem o extravasamento das "defesas". Tal cena só poderia ser qualificada de sexual

"na medida em que o é, exteriormente, para o adulto. A criança não tem à sua disposição nem as condições somáticas de excitação, nem as representações para integrar o evento; é sexual em si, embora não adquira qualquer significação sexual para o sujeito: é 'sexual pré-sexual'". (p. 28)

A segunda cena, por sua vez, seria muito menos traumática do que a primeira, por sua aparência anódina e isenta de violência. Ocorrendo após a puberdade, sua eficácia devia-se apenas ao fato de evocar a primeira cena, através de certos traços associativos. Será, então,

"a lembrança da primeira cena que deflagra o recrudescimento de excitação sexual, tomando o 'eu' de surpresa e deixando-o desarmado, sem condições de utilizar defesas normalmente voltadas para o exterior e suscitando, assim, a entrada em ação de uma defesa patológica ou 'processo primário póstumo': a lembrança é recalcada". (LAPLANCHE & PONTALIS, 1988, p. 29)

A própria dificuldade em pensar esse esquema explicativo, designado por Freud de proton pseudos, faz com que ele conserve, aos olhos de Laplanche e Pontalis (1988), "um valor exemplar quanto à significação da sexualidade humana"(p. 29), à medida que introduz dois importantes enunciados em relação aos tempos em que ocorrem as duas cenas: num primeiro tempo, "a sexualidade irrompe literalmente de fora para dentro, penetrando por efração num 'mundo da infância' que se supõe inocente, onde ela se enquista como um evento brutal sem provocar reação de defesa; o evento não é patogênico per se"(p. 29). Por outro lado, no segundo tempo, "tendo o impulso da puberdade desencadeado o despertar fisiológico da sexualidade, há produção de desprazer e a origem desse desprazer é procurada na lembrança do evento primordial, evento do exterior convertido em evento do interior, 'corpo estranho' internalizado que irrompe agora do próprio íntimo do sujeito" (p. 30).

Esta é a forma surpreendente, alcançada por Freud, de resolver a questão do traumatismo, respondendo, de uma só vez, a duas questões aparentemente excludentes, enunciadoras de uma problemática que continuará presente ao longo da sua obra e de alguns de seus seguidores: a) "É um afluxo de excitação externa (...) que traumatiza o sujeito, de acordo com o modelo de uma efração física?" Ou, pelo contrário, é b) "a excitação interna, a pulsão, que, à falta de exutório, coloca o sujeito em estado de aflição?" (LAPLANCHE & PONTALIS, 1988, p. 30, 31).

Respondendo a este impasse, Laplanche e Pontalis (1988) afirmam que, com a teoria da sedução, todo traumatismo provém simultaneamente do exterior e do interior. De um outro externo, de onde provém a sexualidade e desse outro interiorizado produtor das reminiscências de que sofrem os histéricos, em que os autores já reconhecem a origem da noção de fantasia. A intenção significante do outro externo, portanto, restaria toda no objeto estranho internalizado.

SEDUÇÃO GENERALIZADA

Esta "solução sedutora" que Freud logo haveria de abandonar, será mais tarde retomada por Laplanche (1992) para, a partir daí, construir a sua teoria da sedução generalizada. Para Laplanche, a verdadeira teoria da sedução freudiana "articulava o depósito de um primeiro real, um primeiro acontecimento, e a eficácia que adquiria em se tornando reminiscência, corpo estranho interno" (p. 266). O que faltava a essa teoria, e o que Laplanche se propõe realizar, seria demonstrar "a natureza desse primeiro depósito, destes primeiros indícios externos-internos, e diferenciar este real de uma simples percepção objetiva, de uma simples imagem" (Idem). Essas primeiras inscrições, os famosos traços de percepção (Wahrnehmungszeichen) do Projeto de 1895, têm um duplo estatuto, possuindo ou não uma intenção significante, a depender do lugar de onde seja considerado. Pressupomos uma tópica originária que inclua um agente da sedução originária, depositante desses traços que seriam percebidos pelo infante como significantes enigmáticos.

Recorremos ao seio como exemplo concreto do que seja um significante enigmático porque, sendo aparentemente o órgão natural da lactação, recebe um investimento sexual e inconsciente pela mulher. Tal investimento, pelo que contém de perverso, seria percebido, suspeitado pelo bebê como fonte deste obscuro questionamento: "que quer ele de mim?" Esta confrontação adulto-criança engloba uma relação essencial de atividade-passividade que não deve ser definida "nem pela iniciativa do gesto, nem pela penetração, nem por qualquer outro elemento comportamental. A passividade está toda inteira na inadequação para simbolizar o que ocorre em nós, vindo da parte do outro" (LAPLANCHE, 1992, p. 263).

Se é essa passividade ao que vem do outro que caracteriza a situação originária, é necessário salientar que esse outro, por sua vez, é também passivo em relação ao seu próprio isso, esse discurso em terceira pessoa, de si mesmo ignorado. O psiquismo parental é, por certo, mais rico que o da criança. Mas esta maior riqueza não seria sinônimo de perfeição, uma vez que o adulto traz na clivagem do seu próprio inconsciente a marca da sua imperfeição.

É neste contexto assimétrico que se opera a sedução originária, em que a imaturidade da criança se confronta com um significante enigmático, uma cadeia de mensagens carregada em si de sentido e de desejos, mensagens enigmáticas que à criança não é dado decifrar. "O esforço para ligar o traumatismo que acompanha a sedução originária resulta no recalque destes primeiros significantes ou de seus derivados metonímicos" (LAPLANCHE, 1992, p. 279). Deixados de fora dessa primeira tentativa de ligação, esses restos dessignificados ou não-significados permanecem como objetos inconscientes ou representações de coisas inconscientes, constituindo-se, desta forma, em objetos-fonte da pulsão.

Resumindo, Laplanche parte da hipótese de que é a sedução, a interferência de um outro, que opera o desvio da sexualidade em relação à autoconservação, fazendo incidir no somático os traços de um desejo impossível de ser traduzido pela sua condição de inconsciente no próprio sujeito desejante. Depositados no corpo do infante, esses traços permanecem nas bordas do psiquismo incipiente, fixados neste espaço-limite, de onde passam a emitir uma exigência permanente de tradução.

TRADUÇÃO

A noção de tradução está presente desde cedo no texto freudiano, tendo um papel primordial para a compreensão dos seus primeiros modelos do aparelho psíquico. No início da inesgotável Carta 52, endereçada a Fliess em 6 de dezembro de 1896 (FREUD, 1892-1899/1968), Freud informa que está trabalhando com a hipótese de que o aparelho psíquico se constitui por um processo de estratificação em que os traços de memória se submeteriam, periodicamente, a uma retranscrição, de acordo com novas circunstâncias. Essas transcrições sucessivas representariam a operação psíquica de épocas sucessivas da vida, na fronteira das quais necessariamente se efetuaria a tradução do material psíquico, de acordo com as características dos neurônios que dariam suporte a estas transcrições. Este aparelho tradutor baseia-se na tendência à nivelação quantitativa, sendo cada reescritura necessária para adequar a excitação às características da via neuronal que lhe facilitará o trânsito na parte do trajeto de uma determinada jurisdição.

Ao percorrer um determinado caminho, uma certa excitação recebe uma significação diferente, de acordo com as características de cada trecho do percurso entre a percepção e a consciência. A cada nova transcrição existe a possibilidade de permanecerem sem tradução determinadas partes do texto da versão anterior, por conta do desprazer que tal tradução geraria. Tais relíquias restariam anacrônicas no discurso atual de um determinado período, sendo, além do mais, passadas para o período posterior em sua forma arcaica não traduzida, em que causariam maior estranheza. Esta sucessão de traduções, seria uma tentativa permanente do aparelho psíquico em se livrar de um excesso de excitação gerado pelos traços de percepção (Wahrnehmungszeichen) que desde a sua porta de entrada, o sistema perceptivo, vem exigindo uma tarefa impossível de tradução. E o desprazer causado pela ineficiência de cada transcrição proposta provocará o ataque e dissolução desta organização provisória, permanecendo a exigência de uma reestruturação dos signos, da qual surgirão novos sentidos.

Mas ainda resta saber se estes traços de percepção pertencem já à ordem dos signos, ou se seu estatuto é meramente psicológico, ainda do lado de fora do circuito pulsional. Permaneçamos ainda na Carta 52, em que a clínica mostra que os sintomas das psiconeuroses, tais como ataques de vertigem e acessos de choro, têm como alvo uma outra pessoa. Mas não uma pessoa comum. É um outro pré-histórico, inesquecível, uma pessoa "que nunca é igualada por nenhuma outra posterior" (FREUD, 1892-1899/1968, p. 239). E o exemplo dado logo em seguida nos indica esse outro: a mãe. Se na sucessão de gerações é necessário um perverso para gerar um histérico, não é o pai, mas a mãe que Freud coloca no lugar desse outro pré-histórico, inesquecível, inigualável. Inigualável, porque não vai ser nunca substituído; inesquecível, mas apenas em um dos lugares do aparelho psíquico. E o seu "inesquecimento", a sua eterna permanência deve-se exatamente ao seu caráter sexual pré-histórico. Um sexual pré-sexual, pois pertence à ordem pulsional do outro, implantando a sexualidade pelo seu caráter mesmo de intraduzível. É anterior à palavra, apresentando-se a um infans sem capital significante para nomeá-lo.

TRADUÇÃO E RECALQUE

Uma vez que somente a sexualidade é objeto do recalque, pela sua própria condição de indecifrável no tempo da sedução, temos que a pulsão, toda pulsão, seria sexual. Sua constituição se daria pelo mesmo movimento que diferencia o aparelho psíquico: o recalque originário. A metapsicologia de 1915 nos ensina que o recalcamento se constitui em duas fases. A primeira delas é denominada de recalque originário, primordial (Urverdrängung), em que é negada a admissão ao consciente à representação (Vorstellung) representante (Repräsentantz) psíquico da pulsão. A segunda etapa, o recalcamento propriamente dito, também denominado por Freud de pós-pressão (Nachdrängen) recai sobre os derivados psíquicos do representante recalcado na primeira fase ou sobre certas seqüências de pensamento que, vindos de algum lugar, tenham estabelecido um vínculo associativo com esse representante (cf. FREUD, 1915/1988, p.191). Pelo parentesco com o material não traduzido do recalque originário, esses derivados são enviados ao inconsciente, de onde, aproveitando-se da força do originário, insistem sempre em ser retraduzidos. Os lapsos e os sintomas são resultados visíveis dessas tentativas de tradução.

O recalque originário é a condição necessária para a separação entre os sistemas psíquicos inconsciente e pré-consciente-consciente e, conseqüentemente, para a constituição da instância do eu. Sendo o recalque originário contemporâneo ao nascimento do eu, "a situação do significante enigmático é diferente (...) segundo o eu exista como instância ou não"(LAPLANCHE, 1987a, p.133). Em um primeiro tempo, em que existe apenas um eu-corpo, o significante enigmático seria externo, fixado na periferia do eu, ou melhor, na periferia do indivíduo, notadamente naqueles pontos chamados de zonas erógenas. Lembremos o exemplo do seio. Em um segundo tempo, o tempo mesmo do recalque, aquele que permite o nascimento do eu-instância, o objeto-fonte, como resto recalcado do significante enigmático, torna-se interno. Nesta nova condição, permanece externo em relação ao eu, cravado em sua periferia. Uma vez que o eu é mais restrito do que o indivíduo, o objeto-fonte situa-se num espaço externo-interno: interno ao indivíduo, age externamente em relação ao eu.

É aí, nesse espaço de transição entre o traço e o signo, que se localiza a fonte de onde emerge toda a energia pulsional, pois a pulsão não é, neste contexto teórico, um ser mítico, uma força biológica, nem mesmo um conceito limite entre o somático e o psíquico. Para Laplanche (1992), a pulsão "é o impacto sobre o indivíduo e sobre o eu da estimulação constante exercida, desde o interior, pelas representações-coisas recalcadas que se pode designar como objetos-fontes da pulsão" (p. 239). Implantado no interior do indivíduo, situado na periferia do eu, este objeto é caracterizado por uma espécie de intencionalidade que desconhece a si própria. É deste lugar que ele faz sinal e exige a tradução impossível de uma mensagem de si mesma ignorada.

A CURA

Verifiquemos agora uma nova concepção do trabalho de análise que guarda uma estreita correlação com o modelo tradutivo do aparelho psíquico desenhado por Freud entre 1895 e 1900. Numa releitura que não é apenas uma simples substituição de termos, queremos sublinhar que essa exigência de tradução "potencialmente infinita da escritura subjetiva é a condição de possibilidade do psiquismo" (BIRMAN, 1993, p. 31). Desde os primórdios da teoria psicanalítica, o sujeito humano é concebido como ser de tradução. A psicanálise somente se constitui como uma modalidade de saber fundado na tradução, na medida que, desde os primórdios, o sujeito é o resultado de um trabalho permanente de tradução. Se "aquilo que o sujeito empreende na experiência analítica é o que sempre foi realizado pelo psiquismo desde os seus primórdios" (Idem), o sujeito só demanda por análise quando esse processo de tradução é perturbado, fazendo com que se perturbe também o fluxo da sua existência. Será na análise que ele irá encontrar novas propostas de escritura para essa exigência permanente do objeto-fonte.

Para Laplanche (1987a), a situação analítica, ao reinstaurar uma situação originária, é, ela mesma, transferência. "O fundamento da relação com o outro originário é a sedução originária, e o fundamento da relação com a análise reatualiza, ou leva ao absoluto, esta relação" (p.156). Se aceitamos que a situação analítica é o lugar onde se relança ao trabalho a relação originária aos enigmas provenientes do outro, consistindo este trabalho num movimento permanente de tradução, podemos conceber o trabalho de análise como uma descontrução dos mitos e ideologias que o eu elaborou em resposta a esses enigmas, pela destradução dos textos que lhes servem de veículo.

Mas é preciso, nos lembra Laplanche (1977), nunca negligenciar "que o próprio eu é movido por uma compulsão à síntese, em função mesmo do perigo de desligamento reatualizado pela análise" (p.1.192), o que faz com que o trabalho progressivo de destradução seja sempre acompanhado por um movimento inverso. Laplanche considera possível afirmar "que esta força de síntese constitui a tendência reparadora própria ao movimento especificamente 'psicoterápico'" (Idem). Graças a esta compulsão à composição (Zwang zur Zusammensetzung),2 2 Na edição alemã da Interpretação de sonhos, no fim do capítulo VI, dedicado à elaboração secundária, existe um título corrente, omitido na Standard Edition e na Amorrortu: Der Zwang zur Zusammensetzug. Esta compulsão à composição, responsável pela elaboração secundária, estaria presente desde o começo do trabalho do sonho, junto com as exigências de condensação e figurabilidade e da resistência da censura. Não seria, portanto, um trabalho secundário exigido por uma segunda instância, depois do trabalho do sonho ter apresentado um conteúdo onírico provisório (cf. FREUD, 1900). entendida como um dos nomes dados por Freud à exigência de tradução, o analista pode se dedicar ao seu trabalho de anti-hermeneuta, sem se preocupar em propor esquemas ou esboços para a retradução do material por ele decomposto. O único hermeneuta será o analisando, compelido a procurar um novo sentido para a sua existência. Sentido que, apesar de novo, também o sabemos, será sempre inadequado.

Esta divisão de trabalho está bastante marcada em Freud, servindo de exemplo o bom tempo que dedica em sua intervenção no Congresso de Budapeste, em 1918, refutando uma concepção corrente de que, após a análise de uma mente enferma, deve-se seguir uma síntese. Tal concepção é rejeitada com o argumento de que, se o paciente neurótico se apresenta com o psiquismo dividido pelas resistências, à medida que a análise elimina essas resistências, o psiquismo se reunifica. A grande unidade do eu "ajusta-se a todas as pulsões que haviam sido expelidas e separadas dele" (FREUD, 1919/1986, p.157). Freud também aqui afirma que encontram-se na vida anímica certas tendências que estão submetidas a uma compulsão para a unificação e a combinação. De forma análoga à análise química, "sempre que conseguimos analisar um sintoma em seus elementos, liberar uma moção pulsional de um vínculo, essa moção não permanece em isolamento, mas entra imediatamente numa nova ligação" (Idem). De forma automática e inevitável, a psicossíntese ocorre na análise sem a intervenção direta do terapeuta. Este apenas cria as condições necessárias a ela, fragmentando os sintomas em seus elementos e removendo as resistências. Não é verdade, reitera Freud, "que algo no paciente tenha sido dividido em seus componentes e aguarde, então, tranqüilamente, que de alguma forma o unifiquemos outra vez." (Idem)

Desta recusa à reconstrução, assim como a toda atividade que transgrida a regra de abstinência, decorre que o único trabalho reservado ao analista é o de promover a dissociação dos elementos do discurso do analisando. Deixa-se, assim, que o Zwang zur Zuzsammensetzung, a compulsão à composição que, como já vimos, está presente desde o começo da elaboração psíquica, promova as novas ligações do material analisado. É a esta compulsão à composição que se deve atribuir a função de ligação que Freud situou no tempo mítico de Eros e sua pulsão de vida.

A recusa à reconstrução, tão veementemente sustentada por Freud, vai se constituir num dos principais vetores da instalação da situação analítica. Laplanche (1992) distingue dois tipos de recusa do analista. Primeiro, "o analista recusa, e se recusa, a fazer coincidir o plano sexual com o plano do adaptativo" (p. 279). Isto quer dizer que se recusa a fazer qualquer manipulação, ou dar qualquer conselho, fazer, em suma, qualquer intervenção adaptativa. Mais essencial, porém, é a recusa à reconstrução, a recusa do saber. Esta recusa em singularizar-se no real e a recusa do saber não são apenas aspectos banais de uma neutralidade não comprometida. Elas constituem a essência de uma neutralidade benevolente que vem abrir um espaço vazio onde viriam se instaurar, por sua vez, a transferência a pleno e a transferência em oco.

Estamos agora frente a um paradoxo em que as recusas do analista são exatamente o veículo daquilo que ele oferece, da forma como ele se oferece na instauração da situação de cura. E para Laplanche (1992) o analista se oferece em três funções instauradoras da situação: a) como fiador da constância; b) como piloto do método e acompanhante do processo primário e c) como guardião do enigma e provocador da transferência. As duas primeiras funções são correlativas: ao manter a constância de uma presença, de uma solicitude, a constância flexível mas atenta de um enquadramento, o analista propicia um continente para o trabalho de desligamento e liberação de energia psíquica (Cf. p. 432). Em sua terceira função, como guardião do enigma e provocador da transferência, o analista oferece, pela regra fundamental, um lugar de livre circulação da palavra do analisando. Por outro lado, em obediência à regra de abstinência, ele se recusa a colocar sua palavra em livre circulação. Isto faz com que o lugar da cura não seja um lugar de troca, mas um lugar marcado por uma "dessimetria essencial" na relação. Partindo disso que Lacan denominou de "disparidade subjetiva", Laplanche vai mais além, em direção a alguma coisa, para ele próprio, muito difícil de pensar: a oferta de uma neutralidade benevolente que vai reinstaurar uma situação enigmática originária que é, ela própria, transferência.

NEUTRALIDADE BENEVOLENTE

A noção de neutralidade benevolente envolve, para Laplanche (1987b), toda a problemática da cura, numa perspectiva da posição do analista nos limites da situação. Reconhecendo que a fórmula presta-se a todos os mal-entendidos e interpretações, com ela Laplanche (1987b) nos introduz em pleno paradoxo. "Benevolência: 'querer o bem' do outro sem jamais ter a pretensão de o conhecer, sem manipular o paciente, mesmo que seja para seu suposto bem" (Idem). Se quisermos conservar a noção de benevolência, nos adverte Laplanche, o único sentido plausível que ela pode tomar "é a idéia de uma acolhida tolerante e a priori favorável em relação a toda manifestação do Wunsch, da volição [vœu] inconsciente" (p. 205). A neutralidade consiste nas recusas feitas ao analisando, quanto à satisfação de suas necessidades e desejos. E Laplanche destaca que, pelo menos na forma da recusa em dar soluções às questões do analisando, a neutralidade "deve ser posta em perspectiva com a situação da criança a quem os meios de simbolização adulta são a princípio inacessíveis e sem dúvida também parcialmente recusados" (Idem).

Neste ponto, Laplanche (1987b) se apropria da expressão sujeito suposto saber, que considera um dos achados mais positivos de Lacan, afirmando que a noção identifica, a princípio, o adulto para a criança. É o adulto que "propõe uma situação constantemente excitante e enigmática, furtando-se na maioria das vezes a ajudar a explicá-la ou, como dizemos, simbolizá-la" (p. 206). Esta situação enigmática da criança frente ao adulto é o modelo da situação enigmática da análise, estando o analista na posição do sujeito suposto saber do adulto originário. Resgatando a fórmula lacaniana, Laplanche afirma que se o saber do analista torna-se objeto de uma demanda imperativa, o dever do analista é recusar-se em oferecer este saber, provocando uma certa ressonância com a situação em que um pai ou uma mãe seriam tomados como um "suposto significar". Tal recusa do saber teria o poder de "renovar o traumatismo e a sedução originária; traumatismo sob controle ou violento, mas que somente assim permite repor em andamento o processo de tradução e de simbolização" (p. 271).

TRADUÇÃO, DESTRADUÇÃO

A cura propicia uma verdadeira reabertura do processo infantil, em seus dois aspectos. A neutralidade remete à sedução e ao traumatismo originário, enquanto que as traduções propostas ao enigma originário teriam seu correspondente no discurso simbolizante do adulto. O que Laplanche nos aponta é que este discurso do analisando pode ser catastrófico se vier corroborar a idéia de que o analista sabe tudo sobre ele.

Em Construções em análise, Freud (1937/1968) nos apresenta uma concepção de construção diferente daquela que refutou, em 1918 (cf. FREUD, 1919/1968), como imprópria ao trabalho analítico. Agora, a construção constitui apenas um trabalho preliminar de um objetivo já anteriormente estabelecido de substituir os recalques (tomados em seu sentido mais amplo) próprios ao desenvolvimento primitivo do paciente por reações que correspondam a uma condição psíquica madura. Com isto se obteria um quadro completo e digno de confiança dos anos esquecidos do desenvolvimento primitivo do paciente. A matéria-prima desta construção consiste de fragmentos de lembranças postos à disposição pelo sujeito da análise através de sonhos e associações livres em que se pode encontrar alusões às experiências recalcadas derivadas de impulsos afetivos suprimidos, assim como as reações contra estes, além dos atos falhos cometidos dentro e fora da situação analítica. É a relação de transferência que favorece o retorno dessas conexões emocionais (cf. FREUD, 1937/1968, p. 260).

Uma distinção é feita por Freud (1937/1968) entre interpretação e construção. A interpretação é concebida como um procedimento restrito a um elemento particular do material fornecido pelo analisando, tal como uma idéia surgida subitamente ou um ato falho. Faz-se uma construção quando se apresenta ao analisando uma parte esquecida de sua história primitiva. Este trabalho de construção é dividido por Freud em duas partes completamente diferentes, com tarefas específicas realizadas por pessoas diferentes, em localidades também separadas. De um lado dessa tópica, o analisando é induzido a recordar algo que foi um dia por ele experienciado e recalcado. A ênfase dada à dinâmica deste processo é tal que distrai nossa atenção do que se passa do outro lado da tópica. O que faz ali o analista? O analista não experimentou nada, nem recalcou nada do material que ali está sendo considerado. Não tem nada, pois, a recordar. Sua tarefa, então, "é a de completar aquilo que foi esquecido a partir dos traços que deixou atrás de si ou, mais corretamente, construí-lo"(Idem). É pelo trabalho de construção que o analista estabelece o vínculo entre os dois lugares da tópica da cura. É na fronteira entre esses dois lugares que se opera a tradução, numa operação em dois tempos. Num primeiro tempo, configura-se no analista um fragmento de construção que é comunicado ao sujeito da análise. Num segundo tempo, o trabalho deste fragmento no sujeito produz uma torrente de material novo que o analista aproveitará em uma construção posterior (cf. FREUD, 1937/1968, p. 260-1).

É surpreendente notar a forma como Freud descreve a reação do analisando a esta intrusão das construções: em vez de corroborar com suas lembranças as propostas do analista, passa a produzir um material similar às alucinações, "recordações vivas", imagens "ultraclaras", fragmentos não traduzidos de cenas que não conduziam a nenhum outro tipo de associação. As construções sugeridas por Freud, nos lembra Laplanche (1977), "são antes de tudo reconstruções de processos de recalque antigos, isto é, reconstruções ou construções defensivas que o sujeito se forjou antigamente" (p. 1.192). O surpreendente disto tudo, aduzimos, é que o próprio inconsciente do analisando se encarrega de destraduzir, fragmentar, as traduções ofertadas pelo analista. Se a proposição da construção reatualiza a situação traumática originária, ela traz, como conseqüência, a reativação desses significantes enigmáticos que trazem no seu enigma a marca do país estrangeiro onde se originam. Freud não pôde decifrá-los, mas nos colocou numa pista segura quando os comparou às alucinações dos psicóticos.

Se a radicalidade do inconsciente, o isso, consiste na sua inacessibilidade à linguagem, o bem que a cura pode ofertar "é a acolhida, a comunicação tornada possível, e suscitada, daquilo que por definição tornou-se incomunicável" (LAPLANCHE, 1987b, p. 205). É a atitude interior do analista, feita de escuta e de respeito pela alteridade de seu próprio inconsciente, resguardando-se de toda interferência contratransferencial, que permite, junto com a regra fundamental, a instauração de uma situação propícia ao desenvolvimento de um processo complexo de reativação do trabalho autotradutivo do analisando. Uma divisão de trabalho em que cabe ao analisando a tarefa de tradução ou construção, enquanto ao analista cabe a destradução, ou interpretação no sentido mais estrito. Este trabalho comum, antes de ser posto a serviço de concepções psicanalíticas preestabelecidas, deve estar voltado para as autoteorizações próprias ao eu do analisando, provocadas pela sua imersão numa situação de reabertura do enigma originário.

BIBLIOGRAFIA

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Recebido em 17/7/1999. Aceito em 25/8/2000.

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  • _______. & PONTALIS J.- B. Fantasia originária, fantasias das origens, origens da fantasia, Rio de Janeiro, Zahar, 1988.
  • 1
    Compulsão, aqui, deve ser entendida como o comportamento obstinado do médico em se sobrepor às resistências do paciente, através da aplicação sistemática da técnica de pressão.
  • 2
    Na edição alemã da
    Interpretação de sonhos, no fim do capítulo VI, dedicado à elaboração secundária, existe um título corrente, omitido na
    Standard Edition e na
    Amorrortu:
    Der Zwang zur Zusammensetzug. Esta compulsão à composição, responsável pela elaboração secundária, estaria presente desde o começo do trabalho do sonho, junto com as exigências de condensação e figurabilidade e da resistência da censura. Não seria, portanto, um trabalho secundário exigido por uma segunda instância, depois do trabalho do sonho ter apresentado um conteúdo onírico provisório (cf. FREUD, 1900).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Fev 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2000

    Histórico

    • Aceito
      25 Ago 2000
    • Recebido
      17 Jul 1999
    Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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