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Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan

RESENHAS

Nadiá Paulo Ferreira

Psicanalista, membro do Corpo Freudiano do Rio de Janeiro — Escola de Psicanálise. Professora titular de Literatura Portuguesa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/Uerj. Tel.: (21) 267-2931, E-mail: nadiap@uerj.br

Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan. As bases conceituais. Marco Antonio Coutinho Jorge. Rio de Janeiro, Zahar, 92 p.

O ensino de Jacques Lacan retirou a invenção freudiana do limbo, resgatando uma das descobertas mais importantes do século XX: o inconsciente. A importância desta descoberta é ilustrada por Marco Antonio, logo no início do primeiro capítulo do seu livro:

"Freud chegou a comparar sua descoberta do inconsciente com dois outros golpes desferidos pela ciência sobre o amor-próprio da humanidade: se Copérnico retirou a Terra do centro do universo e Darwin mostrou que o homem não está no centro da criação, a psicanálise, por sua vez, descentrou o homem de si mesmo ao mostrar que 'o eu não é senhor nem mesmo em sua própria casa'." (p. 17)

Em Nome-de-Freud, seus discípulos reduziram a prática da psicanálise a uma aliança terapêutica, onde o eu, como denunciou Lacan, no início de seu ensino, se torna a "única fonte de conhecimento" (O seminário, livro 1, Os escritos técnicos de Freud, Zahar, 1979, p. 25). Desta forma, esqueceram a pedra angular da prática freudiana, que é a regra da associação livre, via pela qual se realiza a revelação do inconsciente em uma análise.

Recomeçar, situando a questão fundamental — O que fazemos em nossa prática quando o analisando nos coloca no lugar de analista, isto é, no lugar de sujeito-suposto-saber? — , que deveria orientar a prática de todo psicanalista, foi o caminho seguido por Lacan, tanto em seus seminários quanto em seus textos. Mas, para este jovem médico, iniciar viagem sobre os escritos de Freud implicava também levar em conta a verdadeira revolução que estava ocorrendo no campo das ciências humanas com a invenção da lingüística por Ferdinand Saussure.

A lei do homem é a lei da linguagem. Os seguidores de Freud, que insistiram em ignorar os estudos que surgiram, tanto no campo da antropologia (Lévi-Strauss) quanto da literatura (formalistas russos), se tornaram os responsáveis não só pela estagnação, mas também pelo desvio da psicanálise, contribuindo, assim, para que alguns conceitos freudianos se transformassem em verdadeiros clichês repetidos por um discurso que, por se tornar hegemônico, se vinculou aos meios de comunicação de massa, integrando-se à banalidade alienante do senso comum.

Os equívocos com relação à obra de Freud se repetem com relação à de Lacan. Para estes contribuíram a escolha de Lacan, que, tal qual Sócrates, privilegiou a transmissão oral, através de um dispositivo, que ficou conhecido como Seminário. Todos aqueles que não estiveram presentes em seus seminários terão que lê-los em transcrições. Sabemos os efeitos disto. A maioria dos seminários continua inédita ou em edições não autorizadas pelo herdeiro jurídico das transcrições.

A lei do capitalismo é a lei do mercado. Sem dúvida, o estilo da escrita de Lacan e a dificuldade de acesso às transcrições dos seus seminários propiciaram um mercado editorial do tipo "Lacan ao alcance de todos", em que o reducionismo dos conceitos levou a erros teóricos graves em prol de um "didatismo" e de uma "clareza", expressos na famosa frase do Chacrinha "quem não se comunica se trumbica", que sintetiza de forma magistral um dos axiomas da lógica do capitalismo.

É neste contexto que se destaca o valor do livro de Marco Antonio Coutinho Jorge. Seu estilo, sem ser hermético, permanece fiel ao convite que Lacan (1998) faz ao leitor no prefácio de Escritos: "Queremos, com o percurso de que estes textos são os marcos e com o estilo que seu endereçamento impõe, levar o leitor a uma conseqüência em que ele precise colocar algo de si" (p. 11).

Estamos diante de um texto em que o autor não se situa no lugar de um sujeito que detém o saber, mas no lugar de um sujeito esvaecido. E, como tal, sustentado pelo que caracteriza o humano, que é o estatuto de um sujeito cindido entre verdade e saber. Somente deste lugar de queda do sujeito, que não é outro senão o de objeto-causa-do-desejo, que o autor pode se dirigir ao leitor, na introdução do seu livro, convocando-o a pensar de novo: o que é o inconsciente? Escreve Marco Antonio:

"Depois de um século de existência da teoria e da prática psicanalíticas, tal pergunta poderia, de fato, parecer irrisória. Não é essa a posição que defendo: tal questão insiste em exigir de nós uma maior elaboração, desde que Freud introduziu em seus primeiros trabalhos psicanalíticos o conceito de inconsciente. De fato, a questão sobre 'o que é o inconsciente' foi continuamente sustentada por Lacan (1998) enquanto enigma que exige decifração." (p. 9)

Se, por um lado, é preciso se despojar do saber já constituído, ou seja, do discurso universitário, para colocar esta indagação, sob a forma de "enigma que exige decifração", por outro, não há dúvida de que Lacan nos deixou uma teoria sobre o homem e sobre o mundo, que sustenta a direção de um tratamento psicanalítico.

O leitor pode estar seguro de que, neste livro, encontrará não só uma apresentação da teoria psicanalítica, que se pauta pelo rigor da exposição do que Lacan estabeleceu como sendo os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, mas também a contribuição singular de um discípulo que dedica sua vida ao estudo e à prática da psicanálise.

O primeiro capítulo é dedicado à pulsão, sem dúvida, como grifa Coutinho Jorge, "o conceito psicanalítico que mais se revela inseparável da questão sobre o que é o inconsciente" (p. 9). Neste capítulo, o autor resgata o conceito freudiano de inconsciente para articulá-lo com os axiomas propostos por Lacan de que o inconsciente é estruturado como linguagem e de que o desejo do homem é o desejo do Outro. Isto será amplamente desenvolvido no segundo e no terceiro capítulos, em que a linguagem é definida como uma estrutura em que se articulam borromeanamente os registros do real, do simbólico e do imaginário. Nada nos é apresentado de forma confusa ou difusa, deixando o leitor perplexo e perdido na teoria de Lacan, cuja aprendizagem, é preciso dizer com todas as letras, não é fácil.

Marco Antonio vai às fontes, contando-nos o feliz encontro de Lacan com Saussure, destacando não só a precedência do simbólico (linguagem) na constituição do sujeito humano, mas também a primazia do significante e as leis que regem o seu funcionamento. Não deixa de alertar para as diferenças que separam os campos da lingüística e da psicanálise (cf. "A controvérsia Freud-Benveniste", no terceiro capítulo), para finalmente abordar no último capítulo a natureza do desejo humano, que se caracteriza pela estrutura de falta do objeto do desejo, introduzindo os conceitos de objeto para Freud e para Lacan. A diferença entre a concepção freudiana de objeto, como Coisa para sempre perdida — dasDing, o "objeto perdido da espécie humana" (p. 142) — e o conceito lacaniano de objeto a — o "objeto perdido da história de cada sujeito" (idem) — é indispensável para a compreensão da sublimação. Apesar da complexidade e das controvérsias, que giram em torno do conceito psicanalítico de sublimação, o autor consegue destrinçar com tal mestria a diferença entre objeto a e das Ding, que o leitor encontrará indicações preciosas que lhe servirão de guia não só para o estudo da sublimação, mas também para compreender o conceito lacaniano de objeto a, como objeto-causa-do-desejo. Vale citar uma passagem para ilustrar o que acabei de afirmar e — por que não? — aguçar o interesse pela leitura do livro:

"Com a ênfase posta sobre o objeto perdido do desejo enquanto Coisa, das Ding, e a nomeação do objeto causa do desejo como objetoa, uma importante distinção veio a ser introduzida por Lacan no que diz respeito à possibilidade de diferenciar o objeto perdido da espécie humana e o objeto perdido da história de cada sujeito. O objeto perdido da história de cada sujeito, objeto a, pode ser re-encontrado nos sucessivos substitutos que o sujeito organiza para si em seus deslocamentos simbólicos e investimentos libidinais imaginários. Mas nesses re-encontros, por trás dos objetos privilegiados de seu desejo, o sujeito irá se deparar de forma inarredável com a Coisa perdida da espécie-humana; o que significa que trata-se sempre, nos reencontros com o objeto, da repetição de um 'encontro faltoso com o real', maneira pela qual Lacan define a função da 'tiquê', que vigora por trás do 'autômaton' da cadeia simbólica. Assim, há uma diferença que necessita ser relevada entre estrutura e história, ou dito de outro modo, entre apré-história e a história. Nos termos freudianos, trata-se da distinção entre a filogênese e a ontogênese, distinção que Freud sempre manteve viva em sua obra e que parecia poder enriquecer, para ele, uma concepção científica do inconsciente. Tal distinção, aplicada no contexto da relação de objeto, é aquela entre das Ding e oobjeto materno"(p. 142).

Coutinho Jorge faz questão de acentuar que esta diferença entre objeto causa do desejo (objeto a, objeto materno) e objeto perdido (das Ding) aponta para outra distinção, que considero crucial para entendermos a ruptura que a psicanálise veio introduzir na história do conhecimento, que é a antinomia radical entre o impossível e o proibido.

Por último, gostaria de retomar o segundo capítulo do livro, intitulado "Pulsão e falta: o real", precisamente no item "A pulsão olfativa", em que vamos encontrar a contribuição do autor à teoria psicanalítica. Marco Antonio, depois de nos apresentar uma pesquisa exaustiva da obra de Freud, recortando os textos que se referem ao olfato e ao recalque orgânico, propõe que seja acrescentada a pulsão olfativa à história da libido. Esta pulsão compareceria em todas as fases de evolução da libido, sob a "forma subjacente", correspondendo ao que Freud chamava de pulsão componente.

Sabemos que Lacan, ao criar o conceito de objeto a, acrescenta duas pulsões à teoria freudiana sobre a sexualidade humana: a pulsão escópica, que tem como objeto o olhar, e a pulsão invocante, que tem como objeto a voz. Entretanto, não vamos encontrar em seu ensino e nem na literatura psicanalítica o interesse pelo olfato. Justamente por isto, as menções esparsas ao olfato, que percorrem a obra de Freud, ficaram à espera de um leitor. Marco Antonio Coutinho Jorge retoma estas referências freudianas para articulá-las com a noção lacaniana de objeto a:

"Assim, se Lacan destaca quatro objetos a primordiais, cujo traço comum é o de não possuírem imagem especular — quais sejam, o seio, as fezes, o olhar e a voz —, é justo porque eles são unidos pelo mesmo denominador comum, o nada. Quanto a isso, chama a atenção que o odor tem precisamente essa característica de ser 'quase nada'. Mais essencialmente, Lacan estabelece uma relação intrínseca entre o 'objeto a' e os 'orifícios corporais'. (...) E, curiosamente, na enumeração fornecida por Lacan de objetos a, todos os orifícios corporais são mencionados, inclusive o meato uretral, com exceção das narinas." (p. 54-55)

Além da proposição da pulsão olfativa, o autor retoma as suas considerações sobre o olfato para tentar dar conta do que Freud nomeou de recalque orgânico. Este conceito, tal qual o olfato, aparece esparsamente na obra freudiana, "sempre em breves considerações ou em notas de rodapé" (p. 58).

Aqui, o autor recorre ao mito, no sentido que este termo adquire em Lacan, para conjeturar sobre o passado ancestral do ser falante. O que aconteceu quando no lugar do saber da espécie abriu-se uma fenda, fazendo com que o real se inscrevesse na estrutura do homem? Ou, dito de outra forma, o que ocorreu na transformação da sexualidade humana, quando o instinto deu lugar ao pulsional?

A hipótese de Marco Antonio é de que o recalque orgânico teria sido "o momento zero do recalcamento" e, como tal, "o próprio elemento fundador da espécie humana". Acrescenta, ainda, que na passagem "do funcionamento instintivo do animal, estritamente ligado ao olfato, para o funcionamento pulsional, cujo modelo é a visão" teria ocorrido "a perda da ação predominante dos estímulos olfativos sexuais, cuja característica é a de serem intermitentes e de obedecerem rigidamente a fatores cíclicos" (p. 58).

Do saber sobre sua espécie à perda deste saber, inaugura-se a força constante da pulsão, marca excêntrica da sexualidade, que, a partir daí, passa a ter como limite e ordenação o significante e suas leis. Para além do significante, o mistério do corpo, o real do gozo e o enigma sem decifração do Outro-sexo, constituindo, assim, o sintoma de um ser que, por ter perdido seu ser, está para sempre subordinado às leis da linguagem. Esta perda é magnificamente ilustrada, no final do livro, pela leitura da abertura do filme 2001: Uma odisséia no espaço, de Stanley Kubrick. Chegando até este ponto, certamente o leitor terá sido fisgado pelo estilo do autor e pelo seu desejo de transmitir a psicanálise.

Recebido em 10/8/2000.

Aceito em 15/9/2000.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Fev 2009
  • Data do Fascículo
    Dez 2000
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