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A lógica da clínica e a pesquisa em psicanálise: um estudo de caso

The practice logic and the psychoanalysis research: a study of case

Resumos

Pretende-se demonstrar a aplicabilidade do método psicanalítico de trabalho sobre o inconsciente numa análise, como referência e paradigma para a pesquisa acadêmica em psicanálise. Para tanto, parte-se da explicitação dos pressupostos teórico-metodológicos da psicanálise para, em seguida, discutir sua utilização enquanto recurso na investigação de determinado discurso, a partir de sua redução. Utiliza-se, a título de demonstração, sua aplicação numa dissertação de mestrado.

psicanálise; pesquisa em psicanálise; metodologia e psicanálise


This text intends to demonstrate the applicability of the psychoanalytic method of the work about the unconscious as a reference and a paradigm for the academic research in psychoanalysis. For this, we make explicit the conjectures of the theory and of the method of psychoanalysis following a discussion about its use as a resource on the investigation of a specific discourse from its operation of reduction. In order to demonstrate this we refer to its use in an academic thesis.

psychoanalysis; psychoanalytical research; methodology and psychoanalysis


ARTIGOS

A lógica da clínica e a pesquisa em psicanálise: um estudo de caso* * Agradeço a Jeferson Machado Pinto pelas observações quando da leitura do original.

The practice logic and the psychoanalysis research: a study of case

Andréa Máris Campos Guerra

Mestre em Psicologia (UFMG), professora do Centro Universitário Newton Paiva e da Faculdade de Ciências Humanas da Fumec (Belo Horizonte); psicanalista. Rua Dona Antônia Felícia dos Reis 246/102. 30750-220 Caiçara Belo Horizonte MG. Tel. (31)3412-2390. aguerra@brfree.com.br

RESUMO

Pretende-se demonstrar a aplicabilidade do método psicanalítico de trabalho sobre o inconsciente numa análise, como referência e paradigma para a pesquisa acadêmica em psicanálise. Para tanto, parte-se da explicitação dos pressupostos teórico-metodológicos da psicanálise para, em seguida, discutir sua utilização enquanto recurso na investigação de determinado discurso, a partir de sua redução. Utiliza-se, a título de demonstração, sua aplicação numa dissertação de mestrado.

Palavras-chave: psicanálise, pesquisa em psicanálise, metodologia e psicanálise.

ABSTRACT

This text intends to demonstrate the applicability of the psychoanalytic method of the work about the unconscious as a reference and a paradigm for the academic research in psychoanalysis. For this, we make explicit the conjectures of the theory and of the method of psychoanalysis following a discussion about its use as a resource on the investigation of a specific discourse from its operation of reduction. In order to demonstrate this we refer to its use in an academic thesis.

Keywords: psychoanalysis, psychoanalytical research, methodology and psychoanalysis.

Marcado pela singularidade de inserir a causa do desejo como agente na produção de uma verdade para o sujeito, o discurso do analista em sua articulação com o discurso da ciência traz questões epistemológicas intrínsecas à forma como a psicanálise se propõe a produzir saber. Longa tem sido a discussão sobre a relação entre a psicanálise e a ciência, marcada sobretudo pela tentativa de inserir a operação sobre o real na tentativa de formalizá-lo, como elemento a ser necessariamente considerado na produção científica em psicanálise.

Nesse sentido, em artigo no qual defende a função da universidade como sendo a de legitimar a vocação científica da psicanálise, Pinto (1999a) se pergunta sobre como desenvolver pesquisa em psicanálise em um ambiente tão fascinado pelo pedantismo do saber. E, avançando em sua argumentação, aponta que, se cabe à universidade demonstrar os passos mediadores envolvidos em cada afirmação psicanalítica, para que elas não caiam em defesas dogmáticas ou ideológicas e permitam ao saber psicanalítico avançar, ela deverá trabalhar com um método extraído de seu objeto, o inconsciente.

Para tanto, a incidência do discurso do analista conduz a atitude científica na pesquisa psicanalítica a uma postura de "abrir o poder do significante até um ponto em que sua mestria possa ser ao menos vislumbrada" (PINTO, 1999b, p. 77). Ou seja, trata-se de levar o efeito do significante ao seu extremo, ao ponto no qual um obstáculo ao saber possa ser entrevisto, uma questão possa ser formulada, provocando deslocamentos nos efeitos de verdade que as afirmações teóricas produzem no exercício de sua mestria. A verdade, nesse contexto, estaria na questão e não na resposta.

Assim, com a finalidade de demonstrar um método extraído da própria psicanálise e sua aplicabilidade à pesquisa psicanalítica iremos, após trabalhar o método psicanalítico, explorar a viabilidade de sua utilização no campo científico, valendo-nos, como exemplo de sua aplicabilidade, de uma pesquisa para uma dissertação de mestrado. Cabe, entretanto, ressaltar que, nessa pesquisa exploratória, trabalhamos com cautela proporcional a uma certa ousadia de levar a escuta analítica para o campo de pesquisa a fim de não cairmos no terreno da especulação fácil. Para tanto, iniciamos o texto com a sustentação teórica da proposta metodológica em questão, para, só depois, discutirmos sua aplicação prática. Assim, apresentando junto à comunidade científica este texto, esperamos poder verificar essa possibilidade metodológica e avançar nas discussões desse campo, contribuindo para seu aprimoramento.

A PSICANÁLISE COMO MÉTODO

Mas como operacionalizar esse método na universidade ao trabalharmos com textos teóricos, relatos de entrevistas, trechos de casos clínicos? Como aplicar a lógica que orienta o trabalho clínico sobre o inconsciente ao trabalho científico que orienta a pesquisa acadêmica? Como podemos fazer o saber trabalhar a partir de seu ponto de obstáculo na universidade? O que demarcaria sua especificidade em relação aos demais métodos?

"Se a psicanálise é, ao mesmo tempo, teoria, técnica e método de investigação, sua descrição já traria intrinsecamente a sua maneira de produzir saber, seja na clínica, na academia ou mesmo na pólis. Assim, toda tentativa de formalização que revelasse as características próprias da psicanálise seriam, automaticamente, descrições de seu método." (PINTO, neste volume)

O trabalho da análise operaria a partir desse obstáculo, enquanto real que se impõe como campo de impossibilidade de saber e que incita a necessidade da repetição, onde há perda de gozo. Na tentativa de dar conta desse impossível, o sujeito se lança em repetidas investidas que produzem um excedente pulsional como resto intraduzível. Este excedente Lacan denominou de objeto a. No Seminário 17, O avesso da psicanálise, ele localiza o conceito de gozo neste efeito de entropia, nesse desperdiçamento. E é então que ele explica por que o introduziu de início com o termo Mehrlust, mais-de-gozar.

"É justamente por ser apreendido na dimensão da perda [ ] que esse não-sei-quê, que veio bater, ressoar nas paredes do sino, fez gozo, e gozo a repetir. Só a dimensão da entropia dá corpo ao seguinte — há um mais-de-gozar a recuperar. Essa é a dimensão na qual se necessita trabalho, o saber trabalhando. [ ] Tal repetição já tem seu custo, e institui, no nível do a, a dívida da linguagem. Alguma coisa tem de ser paga àquele que introduz seu signo. Essa alguma coisa [...] intitulei-a para vocês este ano — com o termo Mehrlust." (LACAN, 1969-1970/1992, p. 48 e 148-49).

Se a psicanálise, portanto, produz um saber que decorre de seu próprio campo a partir das incidências do inconsciente, enquanto real da língua incidindo sobre um corpo, não é possível pensar um método que exclua essa singularidade radical do sujeito na realização da pesquisa. Assim, a forma de produção de conhecimento em psicanálise é determinada e regida, ela também, pela existência do inconsciente. Seu método revelaria a natureza desse objeto nas duas dimensões articuladas a partir dele: a da linguagem e a da pulsão. O trabalho psíquico opera sobre pontos significantizáveis a partir do deslize da cadeia significante e pontos impossíveis de tradução, onde a cadeia encontra a barreira do real, um obstáculo. "A linguagem 'se separa' de um campo pulsional ao mesmo tempo que o possibilita ao 'representá-lo'" (FREIRE, 1999, p. 571). O saber percorre suas trilhas até um limite onde se encontra o gozo, ponto no qual incessantemente retorna na tentativa de dar conta desse real inapreensível (das Ding freudiano). O gozo seria exatamente esse excedente que se perde na repetição, modulando o real pela evitação.

A análise implicaria no trabalho de redução subjetiva, operada a partir da construção desse ponto de mais de gozo, que busca deslocar o excedente da posição de mal-estar e instalá-lo como causa de produção, de desejo. Incide, pois, necessariamente, sobre a dimensão significante e sobre a dimensão pulsional.

Decorrente desses pressupostos, podemos identificar categorias de análise através de três operações-redução, como propõe Miller (1998): a repetição, a convergência e a evitação. Na medida em que os eventos na vida de um sujeito obedecem a uma ordem estrutural, sem que ele o saiba, encontramos a emergência do mesmo a partir da produção do diverso. Ou seja, os fatos aparentemente aleatórios e diferenciados que se sucedem na vida de um sujeito, à medida em que vão sendo relatados num processo analítico, revelam elementos estruturais que se repetem nas mais diferentes situações, conduzindo a uma operação-redução que é uma formalização dessa estrutura de repetição. Trata-se de uma redução proposicional, redução à constante que funciona como f(x). Aqui os diferentes acontecimentos (x) vão revelando a estrutura em função (f) da qual se repetem e se organizam.

A convergência, por seu turno, diz respeito à conversão dos enunciados para um enunciado essencial, enunciado da convergência que é o significante-mestre do destino do sujeito (MILLER, 1998, p. 48). É o ponto de redução para o qual converge o movimento de repetição significante.

Já a evitação relaciona-se por oposição à repetição e à convergência, ao mesmo tempo em que é tornada possível por essas duas operações. A partir das leis que determinam a regência das escritas possíveis no destino de um sujeito, há escritas que se tornam impossíveis a partir dessa estrutura inicialmente casuística.

"Existem sucessões que não podem aparecer, como se a máquina significante as contornasse [ ] como o resíduo impossível do funcionamento da repetição. [ ] É como se o grafo inverso escrevesse aquilo que evita sempre a repetição, como se aquilo que se repetisse, de mais importante, fosse a evitação. [ ] Repetição da ausência, da evitação, do contorno, que, para o sujeito, se constitui precisamente como uma pedra de tropeço." (MILLER, 1998, p. 65-66)

Como se pode perceber, essas três operações-redução sobrevêm sobre os três registros — real, imaginário e simbólico —, traduzindo as duas primeiras uma operação de enxugamento do imaginário pelo simbólico, reduzindo o discurso aleatório, desordenado e abundante do paciente a formas simbólicas elementares. Enquanto a terceira, a evitação, diria respeito a uma operação de redução do simbólico pelo real, redução que o conceito de letra — enquanto "aponta para uma qualidade ou uma significação estrutural irredutível [mas que] é, ao mesmo tempo, inscrita pelo valor de prazer que esta significação oferece" (FREIRE, 1999, p. 575-576) — traduziria bem.

O grafo original, representação que revela a organização dos eventos aleatórios, significaria, assim, a repetição como forma de um saber. A convergência, como a redução ao significante-mestre de um sujeito — prescrevendo aquilo que ele pode ou não dizer —, seria o elemento único a dar a lei e o princípio dessa organização, que modularia a escolha de um sujeito a longo prazo e sem seu conhecimento. Em relação a essa máquina estrutural, repetitiva e convergente, o impossível apareceria como seu avesso, como os pontos fora do traçado que constituem as bordas que modulam aquilo que é inacessível ao sujeito. E como se daria a constituição desse grafo, dessa máquina significante? O que a modularia?

Impossível saber de antemão. Aí se introduz a dimensão da contingência de uma história particular com seus acontecimentos singulares e únicos. Há uma falha na programação do gozo, onde se instala a dimensão histórica, contingente. Entre o significante (saber) e o investimento libidinal (pulsão) há um hiato, uma lacuna, uma ruptura de causalidade. Assim, mais do que somente extrair ou produzir esse significante-mestre, uma análise deve pretender deslocar o sujeito do discurso no qual se encontra instalado, produzindo novas formas de lidar com o gozo, com o obstáculo que se coloca como evitação.

Quando, na Carta 52, FREUD (1896/1976) fala da inscrição dos representantes da representação no aparelho psíquico — tomados por Lacan (1959/1998a, p. 722) como significantes — já nos aponta para essa organização contingente que demarca a singularidade radical de cada sujeito na relação com o gozo, tanto quanto evidencia o ponto de falta a partir do qual o desejo se instala como causa. Ao trabalhar sua hipótese sobre a constituição do aparelho psíquico nessa carta, ele fala dos traços mnêmicos1 1 Unbewusstsein (Ub) é o segundo registro que sucede ao primeiro registro referente às percepções ( Wahrnehmungszeichen) que se associam por simultaneidade. Os traços de Ub "talvez correspondam a lembranças conceituais" (FREUD, 1896/1976, p. 325) ainda inconscientes. Correspondem ao que Freud posteriormente irá estabelecer como Vorstellungsrepräsentanz (representante da representação). Segundo Lima (1994), a idéia de traço em Freud traz três diferentes possibilidades de tradução. Zeichen corresponde à idéia de insígnia, indicação, e está ligada à percepção, à Vorstellung. Zug corresponde ao traço unário, primário, e sua conseqüência é a Behajung primordial. E, por fim, ligado à memória e à permanência teríamos a Spur, que aparece como Ub. Trata-se, pois, nessa citação, de traços de memória, de Spur. que, ao serem investidos simbolicamente de um significado, a partir da ordenação dos Unbewusstsein (Ub) (Um traço ou traço unário, enquanto interpretação já acrescida das construções teóricas de Lacan), deixam de ter relações de simultaneidade e passam a se ordenar por relações causais, ainda sem acesso à consciência (FREUD, 1896/1976, p. 325). Constituindo-se enquanto letra no Inconsciente, o traço unário vai tornar-se o que sustenta materialmente o significante enquanto traço de memória, "este suporte material que o discurso concreto toma emprestado da linguagem" (LACAN, 1957/1998b, p. 498).

O interessante aí é Freud fazer referência a registros 'sucessivos', representando a realização psíquica de épocas sucessivas da vida, devendo haver uma tradução do material na fronteira entre essas épocas. Porém, na medida em que cada transcrição subseqüente inibe a anterior e lhe retira o processo de excitação, se a tradução não ocorrer, as leis da etapa anterior ficam vigentes, consoantes as vias nela abertas. "Assim persiste um anacronismo: numa determinada região ainda vigoram os 'fueros', estamos em presença de sobrevivências. Uma falha na tradução — isso é o que se conhece clinicamente como 'recalcamento'" (FREUD, 1896/1976, p. 326). Ou seja, há uma impossibilidade da linguagem em apreender a experiência, em dar conta da Coisa, constituindo traços que vão se inscrevendo na linguagem, bordeando ou contornando o real da experiência.

Esse ponto de falta, obstáculo econômico à tradução, já se mostra nas primeiras articulações de Freud como fundamental à compreensão do sujeito como sendo determinado pela linguagem. Daí podemos também extrair os princípios do método analítico que, subsidiariamente, poderiam ser aplicados à produção de conhecimento, além de servirem como fundamento para a prática clínica.

O MÉTODO PSICANALÍTICO COMO INSTRUMENTO DE PESQUISA

Mutatis mutandis, podemos aplicar essa mesma lógica à metodologia do trabalho de pesquisa em psicanálise sobre textos teóricos ou de entrevistas, por exemplo.

Pela lógica freudiana, os restos deixados como traços 'sucessivamente' (ou superpostos) seriam os elementos estruturais sobre os quais um discurso se organizaria. Assim, aplicando a proposta teórica de Freud à idéia de análise de um discurso2 2 Discurso entendido, nesse momento, como qualquer articulação de sentido ou argumentação extraída de um texto escrito, de uma entrevista aplicada ou de um caso clínico, por exemplo. Enfim, qualquer recorte de linguagem que represente uma idéia sobre a qual haja interesse de análise. no campo científico, poderíamos conjeturar, possibilitados por esse método, que o processo metodológico de análise inevitavelmente, e por conta dessa questão estrutural, permitiria mapear esses pontos nodais do discurso, construindo uma rede subjacente de sentido. Esses pontos funcionariam tais quais os traços inscritos no inconsciente (representante da representação ou significante), ou melhor dizendo, tais quais os pontos de capitonné que fazem a amarração lógica de seu texto. E ainda, considerando a existência dos 'fueros', poderíamos supor que diferentes 'feixes' de significação, ou diferentes possibilidades de interpretação e alinhamento, serão sempre possíveis, evidenciando-se, ou pelo menos supondo-se, a sobreposição de uns feixes sobre outros, sem uma necessária relação lógica de causalidade, temporalidade ou de complementariedade entre eles (GUERRA, 2000, p. 145).

Além disso, o traçado que esses pontos nodais estruturariam, desvelaria no seu "avesso" um texto que não é lido, posto que se constitui a partir dos pontos que são evitados, deixados fora de seus limites.3 3 "Existem sucessões que não podem aparecer, como se a máquina significante as contornasse, e é exatamente a isso que, nos Escritos, Lacan chama de caput mortuum do significante, isto é, sua cabeça de morto, sua caveira, o osso dessa máquina significante, o resíduo impossível do funcionamento da repetição" (MILLER, 1998, p. 65). Talvez aqui poderíamos situar a originalidade da contribuição da psicanálise à pesquisa científica.

A aplicação deste raciocínio freudiano como modulação para a análise dos dados torna inevitável o encontro com uma plurideterminação discursiva que, acreditamos, favorece a riqueza da análise ao possibilitar outras lógicas de raciocínio que não a formal clássica apoiada na causalidade positivista.

Assim, tal qual no processo de uma análise, seria interessante utilizar os marcos que as repetições do texto — seja ele qual for — trazem, seus pontos de convergência e seu mecanismo de evitação, utilizando as três operações de leitura possíveis sobre o discurso. Mas, ao contrário da posição de analista, aqui o trabalho do pesquisador se assemelharia muito mais ao do analisante de enxugar, desbastar o texto, aproximando-se o mais possível do real. Ao se dispor ao trabalho de teorizar, é o pesquisador quem se coloca em transferência.

"É um trabalho no qual o pesquisador será movido pelas lacunas e o texto funciona como um analista para que o pesquisador se defronte com suas resistências em ouvir os relatos. [ ] Pode assim identificar como a teoria recalca algumas questões e favorece outras, como se fosse a solução de compromisso possível naquele instante. Ao mesmo tempo, procura "fazer trabalhar" a rede de conceitos para que ela melhor caracterize como um texto escamoteia as maneiras de indicar o aparecimento da verdade." (PINTO, 1999a, p. 691)

Assim, dando seguimento a essa proposta de aplicação dos pressupostos do trabalho clínico à pesquisa em psicanálise, podemos conceber a produção científica de conhecimento como tentativa de dar conta do real, deslocando-o a cada novo postulado. No ponto limite em que o saber se depara com o real, há repetição na tentativa de dar conta deste. Essas repetições vão modulando idéias e discursos que adquirem estatuto de verdade, fundando teorias como campo simbólico que se fixa pela linguagem. Essa operação de convergência estabelece conceitos em torno de idéias básicas que funcionam como os significantes-mestres de dada teoria. Se ela é realmente verdadeira ou não, não é o que mais interessa, pois os métodos utilizados em sua produção garantem sua fidedignidade, conferindo-lhe um estatuto de veracidade científica. Ela produz uma realidade.

Há, porém, elementos não ordenáveis, não legíveis a partir da estrutura de leitura (de cada teoria) constituída para deciframento da realidade. São pontos que são construídos como inapreensíveis a partir da estrutura de saber constituída. Isso quer dizer que o mesmo método que permite a leitura e a legitimação dos elementos teóricos de uma teoria, impedem àquela teoria ler outros. Esses pontos, que vão se modulando como impossíveis, são os obstáculos que se interpõem ao caminho da produção de conhecimento.

Ora, é justamente o trabalho sobre esses pontos de evitação que permitiria à ciência avançar, construindo novas teorias como leitura dos fenômenos apreendidos. São pontos limítrofes entre o saber e a ignorância, e em relação aos quais a postura de "douta ignorância" favorece os deslocamentos no real, inapreensível a priori quando referido a determinado campo semântico de saber. Essa posição inclui e suporta o obstáculo ao invés de excluí-lo e, com isso, permite a construção de um campo de saber que reconhece a impossibilidade de dominar o enigma pulsional. Trabalhar sobre esse real implica em mudar o enquadre da realidade discursiva sobre o tema analisado. Supõe necessariamente a criação de uma nova maneira de trabalhar o assunto, deslocando o campo do discurso originário. Certo é que o saber advindo desse método, extraído da lógica psicanalítica, vem marcado pela certeza de que qualquer saber deixará necessariamente um resto intocado. Daí o trabalho científico do pesquisador se deter sobre esses pontos de evitação.

Mas como, metodologicamente, enfim, se haver com eles?

Nossa proposta é a de que, tomando como ponto de partida os pressupostos da Carta 52, de Freud, e aplicando o método de leitura analítica, proposto por Miller, poderíamos utilizar as três categorias fundamentais de operação-redução de uma análise no campo da investigação em psicanálise. Nesse contexto, elas seriam renovadas, podendo ser compreendidas da seguinte maneira:

a) repetição = operações de tamponamento desses pontos impossíveis de saber, como construções de resposta ao Grande Outro, que elidem os pontos de falta de uma teoria;

b) convergência = saber que se estabelece como verdade. Ponto s de estofo, conceitos ou frases em torno dos quais a estrutura ficcional da teoria se constitui em sua relação com a verdade, validando-se a partir do enquadre dos acontecimentos em sua estrutura de mestria.

c) evitação = o que escapa ao corpo teórico de um campo de saber, sendo, ao mesmo tempo, sua causa e sua exceção, tecendo suas bordas em relação aos outros campos ou seus limites em relação a si mesma. Aquilo que o texto não diz, e é por isso mesmo modulado sem o saber. Aí se situa "o discurso que vai sendo apontado à medida em que, traçando seus pontos de amarração, cria uma estrutura externa e, ao mesmo tempo, interna ao texto discursivo original" (GUERRA, 2000, p. 73). Ou seja, aquilo que se constrói no silêncio do lado avesso ao significante.

DEMONSTRANDO A PLAUSIBILIDADE E APLICABILIDADE DO MÉTODO À PESQUISA ACADÊMICA: O ESTUDO DE CASO

A título de demonstração dessa metodologia, utilizaremos como exemplo sua aplicação na dissertação: "Oficinas em Saúde Mental — a experiência de Belo Horizonte: o objeto como regulador ético entre subjetividade e cidadania" (GUERRA, 2000). Cabe ressaltar que essa pesquisa estava inserida num Programa de Pós-graduação em Psicologia que, à época, possuía apenas uma área de concentração em Psicologia Social. Apesar disso, professores pesquisadores, também psicanalistas, buscavam realizar o trabalho de investigação e construção de uma nova área de concentração em psicanálise no mesmo Programa, o que se realizou em 1998. Nesse contexto, buscamos ultrapassar a metodologia clássica de Análise de Conteúdo ou Análise do Discurso, padrão típico do campo da Psicologia Social, e investigar, junto ao tema, essa metodologia possível de ser pensada a partir da psicanálise. Cabe, apesar da extensão, citar um dos idealizadores dessa proposta em sua intenção científica.

"A estratégia que temos tentado alcançar é a de aprimorar a delimitação de um problema de pesquisa ou uma indagação que questiona afirmações tomadas como verdades. Com isso, pretendemos evitar a todo custo o apego a uma citação desenfreada ou a demonstração de sabedoria. Tentamos esvaziar o narcisismo (nosso e de nossos alunos) a favor da castração, privilegiando uma construção sustentada pela questão norteadora do estudo. Acreditamos que será essa questão que irá desencadear uma transferência em relação aos textos e ao tema de investigação, pois a formalização muito acabada e freqüentemente enigmática do Outro acaba cedendo lugar ao exercício do próprio autor. A partir da clareza da questão, o campo de abrangência do significante poderá ser mais bem delimitado." (PINTO, 1999a, p. 694)

Nessa perspectiva, pois, a proposta metodológica do presente trabalho de pesquisa sobre as oficinas em Saúde Mental foi a de buscar as redes de sentido que se constituíam a partir dos traços que textos teóricos e relatos de entrevistas com oficineiros inscreviam na repetição significante sobre o tema. Dessa maneira, acreditávamos, seria possível identificar e colocar em xeque os significantes-mestres que regiam a verdade do discurso estabelecido sobre as oficinas. A identificação e exploração dos significados atrelados, e, no mais das vezes podemos mesmo dizer fixados, a seus significantes, consistia exatamente em abrir o seu poder até um ponto em que sua mestria pudesse ser ao menos vislumbrada. Esse trabalho nos permitiu identificar os diferentes usos que os diversos contextos históricos fizeram do trabalho e da atividade como recurso no tratamento psiquiátrico.

A outra perspectiva desse trabalho de pesquisa desvelou seu "avesso" na medida em que, identificando as mestrias do discurso sobre o uso da atividade em Saúde Mental, modulava-se, ao mesmo tempo, o impossível, o irredutível desse discurso. Não eram exatamente os "inter-ditos", pontos mal-ditos de um determinado campo de saber, mas aquilo que ele não diz. Abaixo, apresentamos esses dois desdobramentos a que a metodologia conduziu.

A PESQUISA SOBRE A NARRATIVA HISTÓRICA

A primeira parte dessa pesquisa se deteve sobre os textos históricos e teóricos sobre a atividade e, mais especificamente, as oficinas e sua utilização no campo do tratamento psiquiárico e da Saúde Mental. Desse estudo, nosso método descobriu a repetição como a exclusão sociopolítica e econômica do louco da vida pública, não importando a diferença quanto a sua forma nem quanto a seu fundamento, nos diferentes momentos históricos que a caracterizam. Demonstrou ser este um fato histórico recorrente. Quanto ao ponto para o qual converge essa repetição, pudemos observar a tentativa constante e insistente de disciplinarização do social de acordo com cada contexto histórico, tendo a psiquiatria e, em seu interior, o uso da atividade e do trabalho, exercido ações subsidiárias para garantir essa empreitada. E, no que toca à evitação, situa-se a diferença, ou, em outros termos, a impossibilidade estrutural de nivelamento da loucura com a normalidade, apesar das reiteradas tentativas de adequação para a qual pareciam convergir a ação e o discurso psiquiátricos. Daí a importância dessa análise, pois nos avisa dos riscos de exercício de uma mestria calcada na evitação da diferença sob as mais diferentes formas — mesmo contemporaneamente na mestria do discurso que obrigatoriamente impõe cidadania ao louco.

Esses pontos reaparecem na história do uso da atividade e do trabalho como instrumentos de intervenção psiquiátrica no contexto brasileiro, no qual pudemos identificar diferentes atributos semânticos vinculados a esse significante. Encontramos em nossa pesquisa três inscrições em torno das quais se fundamentam as torções desse discurso. Assim, a década de 1920, com as Colônias Agrícolas, trazia a oficina como espaço de ocupação do tempo ocioso dos pacientes tidos como crônicos, através do qual produzia-se renda para diminuir os gastos com a internação. A segunda inscrição refere-se à década de 1940, quando Nise da Silveira destaca-se no contexto biologicista da psiquiatria, inovando ao elevar o uso da expressão e da arte nas oficinas ao nível de qualquer outra intervenção biológica, estendendo seu uso a pacientes agudos e não mais revertendo sua renda para a instituição hospitalar. Esse discurso ganha novo sentido com a atual reforma psiquiátrica, iniciada na década de 1980, no qual clínica e política se encontram associadas. A partir deste, as oficinas se mostram como campo de reinserção social e inscrição da loucura na cultura, possibilitando, para o louco, o resgate do exercício da vida pública em suas várias dimensões. Como advertido por Freud, cabe lembrar que esses feixes discursivos não são excludentes ou sucessivos cronologicamente entre si, todos convivendo no cenário contemporâneo da Saúde Mental.

Em particular, a análise dos textos mineiros sobre o tema revelaram a forma como, em Minas Gerais, o discurso acerca das oficinas se estabelece em suas premissas fundamentais, bem como o que esse discurso vem deixando fora de seu campo. No momento inicial da Atual Reforma, as idéias mestras que regiam as oficinas vinham nitidamente demarcadas pelos ideais da reabilitação psicossocial calcados no trabalho enquanto o vir-a-ser da cidadania. De permeio, a criação artística já se evidenciava como uma nova maneira de se fazer oficina, reapropriando-se da proposta de Nise da Silveira de nivelar o uso da atividade com as demais intervenções terapêuticas. A arte e a expressão artística incorporaram-se, então, ao discurso nascente, tornando-se mais um pressuposto do trabalho — não através da busca de "loucos artistas", mas antes através da idéia de uma possível interlocução da loucura com a Cultura.

Aos poucos, este permeio tomou a cena principal e a arte se engendrou na prática das oficinas, ampliando o leque de suas modalidades, antes prioritariamente voltadas para a idéia de trabalho ou de reabilitação para o trabalho. Instituídas junto aos Centros de Convivência, as oficinas artísticas tornaram-se o carro-chefe desses dispositivos. Além disso, a convivência ou ressocialização somaram-se a essas duas modalidades, conformando uma terceira maneira de se fazer oficina, independentemente do tipo de atividade nela desenvolvida (GUERRA, 2000).

O curioso é a observação de uma espécie de "pudor", se assim pudéssemos concebê-lo, quanto a se tratar do aspecto terapêutico das oficinas. Evita-se tratar esse ponto, como se ele não fizesse parte da finalidade e da prática das oficinas, apesar dos próprios textos mineiros revisados apontarem o contrário, bem como o depoimento colhido nas entrevistas. É como se uma espécie de lei silenciosa se revelasse no discurso sobre as oficinas, exigindo o deslocamento de seus efeitos terapêuticos para um "segundo plano" de importância. Desdobramento, ao que nos parece, da influência do discurso da clínica italiana da psiquiatria democrática que, ao buscar a função terapêutica da instituição hospitalar e constatar sua inoperância, centraram-se em sua função social (ZENONI, 2000, p. 17).

Novamente se destacam os significantes-mestres do discurso sobre as oficinas que exigem a evitação de um texto sobre as mesmas que não pode ser lido. Concebida como sofrimento-existência, a loucura desloca-se das classificações nosológicas que a "aprisionam" para instituir-se no campo político e social. Aí, mais do que manifestação de patologias mentais, a loucura aparece como elemento da pólis a ser inscrito em sua cultura. O "cidadão-louco", nesse discurso, merece ter seus direitos resguardados e respeitados, ainda que não seja um sujeito da razão.

A PESQUISA SOBRE A NARRATIVA DAS ENTREVISTAS

Mas foi na utilização da metodologia já explicitada sobre o texto das entrevistas que, acreditamos, pôde-se demonstrar com mais clareza a funcionalidade desse método. Foram realizadas, em Belo Horizonte, dez entrevistas com dez oficineiros diferentes, ora de um mesmo serviço aberto e substitutivo ao manicômio, ora de diferentes serviços desse tipo. Havia três perguntas-eixo (funcionamento, finalidade e conceituação) sobre as oficinas e, a partir da transcrição das entrevistas, efetuou-se a análise dos dados.

A idéia freudiana, extraída da observação do método de Charcot de "olhar as mesmas coisas repetidas vezes até que elas comecem a falar por si mesmas" (FREUD, 1976/1914, p. 33), foi fundamental nesse processo. As reiteradas leituras do texto das entrevistas permitiram a organização das mesmas a partir daquilo que nela se repetia, chegando, nesse primeiro momento da pesquisa, a elencarmos vinte e dois feixes de significação de conteúdos específicos referentes às oficinas. Desses vinte e dois feixes, houve um trabalho de redução que culminou em nove pontos de convergência, já atrelados a significantes-mestres que regem o discurso mineiro contemporâneo sobre as oficinas. Foram eles: 1) diferença entre grupos e coletivo nas oficinas; 2) o discurso antimanicomial e as oficinas; 3) a relação clínica/oficina; 4) as oficinas e o paradoxo da reinserção pelo trabalho; 5) a exigência (ou não) de participação e produção nas oficinas; 6) as oficinas na contemporaneidade e a arte pós-moderna; 7) as oficinas e sua incidência na representação popular da loucura; 8) teorizar ou não as oficinas; 9) as diferentes modalidades do fator terapêutico nas oficinas. Cabe observar que todos os nove feixes de significação, atribuídos a algum significante que rege com mestria o discurso sobre as oficinas, contemplam contradições e polêmicas em seu interior, características de qualquer discurso. Mas ganham a ilusão de unicidade e coerência ao serem cobertas pelo véu significante onde a mestria exerce seu poder de produzir um texto com efeito de verdade.

A metodologia utilizada, portanto, não só favoreceu a evidência do múltiplo e heterogêneo discurso que fundamenta a prática das oficinas — sem fazê-lo perder seus "desmentidos" e "recalques" —, como também permitiu vislumbrarmos seu ponto de evitação. Todo o trabalho de pesquisa empreendido poderia se resumir a esse ponto no qual, pelo menos assim o entendemos, foi realizado um tratamento pelo sintoma que o texto teórico e a prática das oficinas criam. Tratamento que se dirige ao que o simbólico tem de real (ZENONI, 2000, p. 56-57). Operação-redução de evitação que enxuga, ao mínimo possível, a estrutura proliferante do significante, reduzindo o texto ao seu ponto de obstáculo e, permitindo daí, um deslocamento em relação ao real.

Esse ponto se refere ao décimo feixe de significação, a saber, a idéia de densidade simbólica diferenciada. O que começou a surgir, a partir da leitura desses fragmentos de entrevistas e a retornar incessantemente pelo silêncio ao longo do trabalho de análise fazendo-se ouvir, foi esse ponto preci(o)so e central que, a nosso ver, organiza todo o campo das oficinas. Em outros termos, a materialidade do produto, ou a densidade simbólica diferenciada, particulariza e diferencia o uso da atividade nas oficinas das demais intervenções existentes nos serviços que compõem a rede de assistência em Saúde Mental, servindo também como epicentro em torno do qual seu ponto de evitação se configura.

Em Minas Gerais, estabelece-se como mestria a afirmação de que "o louco é cidadão é corolário de o louco é sujeito" (BARRETO, 1999, p.159). Sob esse imperativo torna-se função precípua da assistência tentar inserir o louco na vida pública, desinstitucionalizar a loucura e os estigmas a ela associados, e trabalhar sobre a cidadania do louco. No interior desse imperativo, entretanto, o trabalho clínico, denegado, reaparece em silêncio, exigindo o descolamento entre sujeito e cidadão, e conferindo a cada qual seus atributos particulares. Como nos lembra ZENONI (2000), é preciso diferenciar a função terapêutica da função social na assistência. A excessiva identificação à função terapêutica nos hospitais psiquiátricos conduziu-os a um lugar de alienação e não de tratamento, como bem observaram as críticas dos italianos. Mas, ao desconsiderar a função social da assistência, estabeleceu-se um silogismo no qual se cria a perspectiva de que, desospitalizados os loucos e desinstitucionalizada social e culturalmente a loucura, os loucos não seriam mais alienados, exercendo sua cidadania como moradores da pólis.

Ora, é preciso distinguir a dimensão do sujeito da dimensão do indivíduo.

O indivíduo, cidadão, tem direito à assistência e ajuda, enquanto a dimensão do sujeito é a dimensão da implicação, da liberdade, da responsabilidade. "Os cuidados não são recusados a um indivíduo, mesmo que o sujeito não se implique" (ZENONI, 2000, p. 28) em seu tratamento. Quando distinguimos os dois planos, resguardamos a chance do plano do sujeito. É preciso que o sujeito receba a assistência à qual tem direito, com a liberdade de recusar o tratamento. É somente essa liberdade que garante essa possibilidade.

A idéia de densidade simbólica diferenciada denuncia essa fixação, essa colagem entre significante e significado ao convocar o trabalho do sujeito sobre a materialidade concreta do objeto produzido na oficina e, ao mesmo tempo, sobre a materialidade do campo significante enquanto sustentação da letra no aparelho psíquico.

Enquanto, ao falar, o neurótico produz mais de gozo ou objeto a, objeto-resto; ao criar coisas concretas nas oficinas, talvez o psicótico esteja extraindo do ventre do Outro objetos reais que, permitindo-lhe produzir um resto nessa operação — um objeto inédito — talvez lhe confira uma densidade simbólica sobre sua corporalidade real, deslocando ou separando o psicótico dessa posição de objeto do gozo do Outro ao criar um objeto externo, endereçado ao social, via oficineiro ou qualquer outra pessoa ou espaço institucional.

Em outras palavras, ao extrair da própria realidade um produto concreto inédito, o psicótico de um lado poderia estar produzindo um esvaziamento no Outro absoluto que o aterroriza, e, de outro, poderia estar deixando o lugar de objeto de seu gozo para ocupar o lugar de autor, produtor de um objeto com consistência simbólica. Poderíamos arriscar-nos a dizer que esta seria uma maneira de extração do objeto no real, que ganha corpo enquanto um produto qualquer: CD, Máscara, Bloco de Notas, Texto, Costura, Pintura. Produzir-se-ia assim uma espécie de semblant de coisa, de objeto, através do novo produto criado. Operação que desloca o psicótico do lugar de ser ele próprio o objeto-resto que não caiu quando de sua inscrição na Linguagem, quando fixou-se ele mesmo neste lugar, permanentemente à mercê de outra ordem, assujeitado.

A oficina operaria, nesse sentido, sobre os pontos de desligamento do psicótico com a realidade (GUERRA, 2000).

Talvez o psicótico possa costurar, com a produção nas oficinas, seus pontos de capitonné na realidade através de novas formas de enlaçamento social. Dessa maneira, poderia, com a atividade de produção nas oficinas, atividades de circunscrição de gozo, produzir sentidos históricos a sua produção a partir de fragmentos de coisas, inscrevendo-se na Linguagem ou produzindo uma possibilidade de encadeamento na cadeia significante. Formas de cifrar o gozo ou significantizar o real (QUINET, 1997, p. 101).

Dessa maneira, poderíamos dizer que as oficinas se oferecem como lugares de mediação, de alternativa à imposição de gozo que invade o psicótico. Obviamente oferta que não opera sempre, nem para qualquer psicótico, mas que, estando presente, pode produzir efeitos-sujeito, escrevendo-se de uma vez por não todas para alguns, ao modo da contingência.

E, diferentemente do trabalho da construção significante da metáfora delirante, que provoca uma segregação ao deixar um resto — não significado — que pode retornar em ato no momento da conclusão da metáfora, na produção em uma oficina o objeto é construído envolvendo o trabalho sobre a pulsão e sobre a linguagem, tomando a dimensão da cadeia significante, mas também daquilo que lhe é exterior e que lhe causa, a dimensão do objeto.

A convocação ao trabalho do sujeito na psicose através da densidade simbólica diferenciada revela, portanto, o texto silencioso do território discursivo das oficinas, revelando aquilo que estruturalmente não pode ser lido por seu grafo significante original. Desloca a mestria da imposição sobre o indivíduo-cidadão de inserir-se no texto da cidade e desvela a possibilidade do sujeito inventar, com seu savoir-faire sobre a doença, maneiras de escrever seu próprio texto.

POSSIBILIDADES...

Assim, a densidade do produto da oficina tanto aparece como elemento central em seu discurso, pois se constitui enquanto seu ponto de convergência, como também evidencia, em seu avesso, a evitação do aspecto que não cabe nessa estrutura discursiva (grafo inverso), e que é decisiva na produção de efeitos no processo de subjetivação possível na psicose.

Ao mesmo tempo, a questão do objeto concreto produzido nas oficinas exige uma reflexão mais detida sobre as incidências da peculiaridade do lugar do objeto na estrutura psicótica e suas conseqüências clínicas, posto que, sabemos, o objeto, para a psicanálise, não surge no mundo sensível, mas é tomado como aquilo que orienta a existência do ser humano enquanto sujeito desejante. Dessa maneira, a pesquisa, ao encontrar seu ponto de obstáculo, exigiu novas formulações e outras considerações sobre aquilo que poderia promover um encontro entre o real do traço inconsciente com o imaginário social ou estético e a dimensão simbólica da obra produzida sobre uma superfície outra que não o próprio corpo do psicótico. Esse encontro é o que poderia justamente criar para o psicótico a possibilidade de suportar o gozo invasivo do Outro (GUERRA, 2000, p. 249).

Essa descoberta provoca uma torção (significante + pulsão) na proporção em que desloca o discurso sobre as oficinas de uma posição de retificação do Outro da Cultura — típica do discurso contemporâneo da Reforma Psiquiátrica — para uma de subjetivação do Outro para o psicótico, sem perder de vista suas implicações sociais.

Assim podemos concluir que o trabalho do pesquisador, nesse sentido, se aproxima do trabalho do analisante, tanto no que toca ao enxugamento da proliferação significante a partir da discussão teórica e da análise dos dados, que culmina no estabelecimento, ou melhor dizendo, no desvelamento de seu ponto de convergência, como no trabalho sobre o ponto de evitação que o texto traz em si. Daí, a densidade simbólica diferenciada tornar-se analisador central, posto que se situa nesse ponto entre a ignorância e o saber, tal qual no sujeito se inseriria a dimensão pulsional — ponto em que o saber encontra seu limite. Ponto preciso em que, mais do que uma história estabelecida — que pode ser contada a partir do deslizamento e da repetição significante —, é possível um deslocamento da posição de gozo que o discurso sobre as oficinas constitui para os trabalhadores da Saúde Mental. Trata-se, exatamente como no tratamento analítico, de tocar o que o simbólico tem de real, ou seja, estabelecer um tratamento da palavra através do que o sintoma teórico revela do aspecto pulsional que condensa a forma de gozo de uma teoria. Verdadeiro trabalho de interpretação4 4 TEIXEIRA, Antônio Márcio Ribeiro. Comentário sobre o trabalho da dissertação durante a banca examinadora. Belo Horizonte, UFMG, 28/9/2000. do pesquisador-analisante, trabalho sobre a letra,5 5 "A letra é o significante que se torna objeto, o litoral, o significante condensador de gozo" (FREIRE, 1999, p. 580, p. 567). na medida em que esta articula significante e gozo, inscrevendo a singularidade e o campo de possibilidades nos quais se funda o discurso de um determinado campo de saber.

BIBLIOGRAFIA

Recebido em 17/4/2001. Aceito em 30/5/2001.

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  • *
    Agradeço a Jeferson Machado Pinto pelas observações quando da leitura do original.
  • 1
    Unbewusstsein (Ub) é o segundo registro que sucede ao primeiro registro referente às percepções (
    Wahrnehmungszeichen) que se associam por simultaneidade. Os traços de
    Ub "talvez correspondam a lembranças conceituais" (FREUD, 1896/1976, p. 325) ainda inconscientes. Correspondem ao que Freud posteriormente irá estabelecer como
    Vorstellungsrepräsentanz (representante da representação). Segundo Lima (1994), a idéia de traço em Freud traz três diferentes possibilidades de tradução.
    Zeichen corresponde à idéia de insígnia, indicação, e está ligada à percepção, à
    Vorstellung.
    Zug corresponde ao traço unário, primário, e sua conseqüência é a
    Behajung primordial. E, por fim, ligado à memória e à permanência teríamos a
    Spur, que aparece como
    Ub. Trata-se, pois, nessa citação, de traços de memória, de
    Spur.
  • 2
    Discurso entendido, nesse momento, como qualquer articulação de sentido ou argumentação extraída de um texto escrito, de uma entrevista aplicada ou de um caso clínico, por exemplo. Enfim, qualquer recorte de linguagem que represente uma idéia sobre a qual haja interesse de análise.
  • 3
    "Existem sucessões que não podem aparecer, como se a máquina significante as contornasse, e é exatamente a isso que, nos
    Escritos, Lacan chama de
    caput mortuum do significante, isto é, sua cabeça de morto, sua caveira, o osso dessa máquina significante, o resíduo impossível do funcionamento da repetição" (MILLER, 1998, p. 65).
  • 4
    TEIXEIRA, Antônio Márcio Ribeiro. Comentário sobre o trabalho da dissertação durante a banca examinadora. Belo Horizonte, UFMG, 28/9/2000.
  • 5
    "A letra é o significante que se torna objeto, o litoral, o significante condensador de gozo" (FREIRE, 1999, p. 580, p. 567).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Maio 2007
    • Data do Fascículo
      Jun 2001

    Histórico

    • Aceito
      30 Maio 2001
    • Recebido
      17 Abr 2001
    Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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