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O olhar do engano, autismo e o outro primordial

RESENHAS

Giselle Falbo Kosovski

Psicanalista. Doutoranda emTeoria Psicanalítica (UFRJ). gifalbo@centroin.com.br

O olhar do engano, autismo e o Outro primordial. Lia Ribeiro Fernandes. São Paulo, Escuta, 2000

Este livro surge da inquietação causada pelo atendimento a uma criança autista, levando a autora a interrogar o processo de constituição subjetiva em sua dependência irremediável à linguagem. Para os psicanalistas, a experiência clínica com autistas dá provas inequívocas de que o enlace significante, do qual depende o organismo para constituir-se como corpo, não é um dado natural. No sujeito humano, a aquisição do controle sobre o corpo, para a realização até mesmo de suas ações mais primárias, não depende apenas do desenvolvimento biológico, necessita de um impulso a mais: uma ação específica do Outro.

Muitas vezes confundido pelos profissionais que dele se ocupam com um quadro de distúrbio neurológico, no autismo, atos comuns como andar, comer, olhar, estão profundamente comprometidos, a despeito da inexistência de causas orgânicas comprovadas. Paramentada por toda sorte de instrumentos para a investigação do microcosmos, e obstinada pela produção de um saber absoluto, a ciência moderna não se curva diante destas evidências e, através de uma sofisticada tecnologia aplicada à medicina, volta-se então para a pesquisa genética, na busca da causa e de possíveis tratamentos para tais distúrbios.

No empenho em decifrar o genoma humano e desvelar o segredo da vida, cujos avanços os jornais e noticiários nos informam passo a passo, pode-se ouvir o eco de todo tipo de projetos eugenistas, facilmente transmutáveis em versões atualizadas das barbáries cometidas durante a Segunda Guerra Mundial. Mas isto não é tudo, pois tal posição tem também conseqüências no plano psíquico, ao conceber a herança genética como transmissão de um código de onde o sujeito está foracluído, a ciência renega a implicação e a responsabilidade do sujeito no desejo que transmite aos seus.

Em contrapartida, a psicanálise, na medida em que aposta no campo da linguagem e, portanto, no caráter constitutivo da transmissão de um desejo que não é anônimo, abre caminho para interrogar o campo do Outro, de modo a possibilitar que, do fechamento em que se encontra a criança autista, um sujeito possa então advir.

No atual estado de coisas, desde a perspectiva da psicanálise em extensão, a contribuição trazida por Lia Fernandes não se restringe à abertura ao debate de suas reflexões teóricas sobre o autismo; reside sobretudo no fato de sustentar o discurso psicanalítico em uma instituição — Febem — marcada pelo discurso médico-científico. Sua contribuição maior repercute, portanto, no campo da Ética: a árdua tarefa de sustentar um desejo que possibilite a emergência de um sujeito, à revelia das condições adversas.

Através desta experiência, a autora viu-se confrontada com o peso do testemunho do Outro na constituição subjetiva. Apesar de pretender interrogar de forma ampla e minuciosa a função do Outro primordial, a pergunta que repercute como pano de fundo de sua exposição, e que se enlaça na exposição de fragmentos de um caso clínico na abertura e na finalização de seu texto, concerne à estrutura do Outro para a criança autista.

A partir da análise das condições que propiciam o testemunho inaugural e estruturante que possibilitam a emergência de um sujeito, Lia procura localizar em que momento lógico da constituição subjetiva, e frente a quais circunstâncias, dá-se o fechamento que caracteriza o quadro clínico do autista. Para a autora, esta questão se coloca e encontra seus desdobramentos em torno da função do olhar do Outro primordial no processo de subjetivação.

Parte inicialmente da interrogação acerca do conceito de Outro na obra de Lacan procurando, sempre que possível, localizar seus esteios na obra de Freud. Para tanto, vale-se do depoimento de alguns artistas sobre seu processo de criação, de onde extrai indicações importantes para a análise que empreende do conceito de Outro. Dentre os diferentes aspectos, o mais importante para o desenvolvimento de sua argumentação é o Outro como lugar onde as palavras ganham sentido.

Em seu livro, este aspecto foi trabalhado em relação à teorização de Lacan sobre o chiste.

Em seguida, passa ao exame das possíveis dimensões do Outro no processo de constituição subjetiva. Aqui, seu objetivo principal é interrogar o conceito de Outro primordial, freqüentemente aludido pelos analistas lacanianos quando da teorização sobre o autismo. Da análise empreendida sobre a alienação fundante, interessa-lhe destacar essencialmente a necessidade da existência de um lugar simbólico reservado ao sujeito no campo do Outro, sem o qual este não poderá advir. Deste modo, indica o papel do Outro primordial na cessão de significantes endereçados ao sujeito que está por advir. Em outros termos, o que a autora ressalta é a importância da veiculação de um saber (S2) que permita que o significante S1 possa vir a se articular, formando e ordenando a cadeia discursiva. Aproxima este saber que vem do Outro à voz passiva flagrada nos depoimentos dos artistas por ela apresentados em relação ao ato de criação.

Examinando a operação de separação, tal como formulada por Lacan, Lia aponta outra função do Outro primordial: a tarefa de transmitir, através de suas demandas, seu modo específico de veicular a falta, condição para a emergência do desejo. Em consonância com a teorização de Laznik-Penot, a autora denomina o Outro primordial como Outro real; justifica tal aproximação pelo fato deste ser encarnado necessariamente por um personagem humano e articula-o, em decorrência disto, aos três registros: como outro da relação dual que permite a construção da imagem do corpo próprio; como Outro, tesouro dos significantes, na função de ceder os significantes que articulam sua demanda; e finalmente enquanto Outro barrado, fornecendo a falha necessária a partir da qual o sujeito poderá surgir.

Dissecado o papel do Outro primordial, Lia passa então a interrogar em que lugar o infans deve estar situado para poder ser tomado como objeto de investimento libidinal do Outro. Localiza, na obra de Freud, passagens onde este relaciona o desenvolvimento sexual da criança à presença do olhar de um outro. A partir da teoria do narcisismo aproxima este olhar à idéia de investimento libidinal, condicionando sua existência à presença de "ideais simbólicos ou padrões éticos e culturais operando no universo parental" (p. 91), ou seja, às insígnias do Outro, marcas de sua resposta.

Tomando como base os conceitos e esquemas construídos por Lacan, a autora buscará sustentação para sua hipótese acerca da necessidade de um olhar fundante primordial, dando ênfase à função estruturante do engano. Este refere-se à ilusão necessária que a imagem especular produz em antecipação à aquisição do controle sobre o corpo. Em outras passagens, situa este engano também do lado do Outro: "um engano, que faz uma mãe ver em seu filho o que nele não se encontra e que nem se encontrará jamais" (p. 128). Aqui, todo percurso empreendido tem como finalidade recolher subsídios que lhe permitam caracterizar o olhar do Outro primordial. Tarefa que cumpriu com rigor teórico e sensibilidade.

Retomando a teorização sobre o chiste, Lia Fernandes irá considerar as produções do bebê como chistes no primeiro tempo de sua aparição, como manifestações de pouco sentido, que não figuram no código. Estabelece, como condição de possibilidade para o advento do sujeito no autismo, que estes esboços de movimento venham a surpreender o Outro. Esta surpresa requer do Outro a capacidade de situar-se numa suspensão de sentido, em estado de vacilação. Para tanto é preciso suportar a suspensão do saber, sustentando a aposta de que algo possa surgir a partir desta suspensão, malgrado o desconcerto inicial, posição que exige do Outro uma distância em relação ao objeto.

A partir destas construções teóricas, pode-se extrair a proposição de um lugar para o analista na direção da cura com crianças autistas: o lugar do Outro primordial, sob a condição de que este possa se surpreender e jubilar perante os tocos de frase da criança. Esta direção, sustentada com decisão pela analista, transparece na exposição do caso clínico apresentado em seu livro e suscita, para todos os que foram atravessados pela experiência clínica com crianças autistas, questões frente às modificações subjetivas que alcança. É uma obra que deve ser lida e discutida por todos aqueles que se interessam por este tema tão controvertido, tendo em vista especialmente as diferentes direções propostas por analistas que se orientam pela teoria de Lacan.

Para concluir no compasso proposto por Lia, uma vez que seu escrito é todo costurado pela poesia, gostaríamos de trazer um poema de Manuel de Barros:

No descomeço era o verbo

Só depois é que veio o delírio do verbo.

O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.

A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som.

Então se a criança muda a função do verbo, ele delira.

E pois.

Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer nascimentos

O verbo tem que pegar delírio. 1 1 BARROS, M. O livro das ignorãças, Rio de Janeiro, Record, 1997, p. 15.

Recebido em 1/3/2001.

Aceito em 22/4/2001.

  • 1
    BARROS, M. O livro das ignorãças, Rio de Janeiro, Record, 1997, p. 15.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Maio 2007
    • Data do Fascículo
      Jun 2001
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