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Christophe Déjours

ENTREVISTA

Christophe Déjours* * Concedida pela Internet, em setembro de 2001.

Christophe DéjoursI; Marta Rezende CardosoII

IPsiquiatra, professor de Psicologia do Trabalho no Conservatoire National dês Arts et Métiers. Membro do Instituto de Psicossomática de Paris e da Association Psychanalytique de France (APF). CNAM/Laboratoire de Psychologie du Travail et de L'Action 42, rue Gay Lussac, 75005, Paris FR

IIProfessora adjunta do Instituto de Psicologia da UFRJ, doutora em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise, pela Universidade de Paris VII. Psicanalista, membro efetivo da SPCRJ

RESUMO

Christophe Déjours fala de sua pesquisa atual, dizendo que trabalha em áreas situadas nas fronteiras do campo da psicanálise: psicodinâmica e psicopatologia do trabalho, nos limites com as ciências sociais; e psicossomática, nos limites com as ciências biológicas. Diz que o trabalho tem lugar central na construção da identidade, nas relações de gênero e na construção da sociedade, e convoca ainda as duas dimensões do corpo: a biológica, implicada por produzir energia mecânica e por sofrer acidentes de trabalho e doenças profissionais; a erógena, implicada na habilidade técnica e na inteligência da tarefa.

Palavras-chave: psicodinâmica e psicopatologia do trabalho, psicossomática.

ABSTRACT

Christophe Déjours talks about his research in the present days. He says he works in the borders of the field of psychoanalysis: psychodynamics and psychopathology of labor, in the borders of social sciences; and psychosomatics, in the borders of biological sciences. He says that labor plays a central role in the building of identity, in the relations of gender, and in the building of the society, and it summons both dimensions of the body: the biological one, implicated in the production of mechanical energy and in undergoing work accidents and professional diseases; the erogenical dimension is implicated in the technical skills and in the intelligence of the task.

Keywords: psychodynamics and psychopathology of labor, psychosomatics.

MARTA REZENDE – Quais são os seus temas atuais de pesquisa?

DÉJOURS – Há muitos anos estou fazendo pesquisas em duas áreas situadas nas fronteiras da psicanálise: a psicodinâmica e a psicopatologia do trabalho, nos limites com as ciências sociais; e a psicossomática, nos limites com as ciências biológicas.

MARTA REZENDE – Em que direção a área da psicodinâmica do trabalho vem sendo explorada?

DÉJOURS – Em psicodinâmica do trabalho, procuro argumentar com a tese da centralidade do trabalho. A centralidade ante a construção da identidade, sendo esta concebida como essencialmente inacabada, à espera de confirmação e realização. O trabalho não é apenas uma atividade solipsista. É também uma atividade dirigida ao outro: trabalhamos sempre para alguém, para um patrão, para um chefe, para nossos subordinados, para nossos colegas. Uma vez reconhecido, o trabalho oferece não apenas a oportunidade de transformação de si mesmo, mas também a de realização no campo social. Assim, o trabalho pode ser um poderoso mediador da construção da identidade. Em particular, quando a realização de si mesmo no campo erótico — no amor — é posta em xeque. À medida que a identidade constitui a base da saúde mental (toda crise psicopatológica é centrada por uma crise de identidade), podemos dar-nos conta de como o trabalho pode constituir uma segunda oportunidade de construirmos nosso equilíbrio psíquico e nossa saúde mental. Mas não há neutralidade do trabalho e se ele não oferecer a possibilidade de reconhecimento, só produzirá sofrimento e progressivamente impelirá o sujeito para a descompensação. Portanto, centralidade ante a identidade e a saúde mental.

Há ainda a centralidade do trabalho ante as relações de gênero. Para suportar as pressões do trabalho, a maioria dos sujeitos constrói estratégias específicas de defesa. Estas contribuem para orientar todo o funcionamento psíquico numa direção determinada. E o sujeito leva para casa esse funcionamento, uma vez que não é possível deixar seu funcionamento psíquico no vestiário, juntamente com o macacão do serviço. Desse modo, no plano psicológico, não há divisão entre trabalho e fora dele. Descobrimos então que o cônjuge e toda a família estão envolvidos na manutenção das defesas psíquicas daquele que trabalha. É imposta, então, uma espécie de cooperação psíquica aos membros da família, para permitir ao sujeito que trabalha conservar sua saúde mental. Essa cooperação psíquica passa também por uma cooperação no espaço doméstico e por uma divisão das tarefas entre homem e mulher, que tem conseqüências importantes sobre a economia das relações amorosas. Assim, por exemplo, uma colega brasileira, Heliete Karam, mostrou em Porto Alegre como, para trabalhar e suportar as pressões do trabalho particularmente ansiogênicas, muitos homens recorrem ao uso de bebidas alcoólicas. Bebendo muito no trabalho, o homem é também alcoólico em casa. Para que ele possa continuar a trabalhar e a trazer para casa o dinheiro, a esposa é levada a tolerar o alcoolismo e as violências do marido. Podemos mostrar, dessa maneira, que as próprias condições do amor num relacionamento de casal estão estruturadas, em profundidade, pela relação psicológica no trabalho do homem, mais ainda do que pela do trabalho da mulher. De fato, a cooperação psicológica intrafamiliar se faz com muito mais freqüência em favor das necessidades do homem do que das necessidades da mulher.

Há enfim, a centralidade do trabalho ante a construção da sociedade. De fato, trabalhar nunca é apenas produzir, é também viver junto. Assim, o trabalho é oportunidade insubstituível de aprender o respeito pelo outro, a confiança, a convivência, a solidariedade, e de aprender a trazer uma contribuição para a construção de regras de trabalho, que não se limitam absolutamente a regras técnicas mas são ao mesmo tempo regras sociais. O trabalho pode ser uma situação propícia ao exercício da democracia. Mas nesse terreno, também não há neutralidade do trabalho. Se na empresa não se aprende a democracia, aprender-se-ão os costumes mais destrutivos para o funcionamento da sociedade, o individualismo, os comportamentos desleais, as pequenas e grandes traições, a arte de infligir sofrimento e injustiça ao outro.

MARTA REZENDE – E no que se refere à psicossomática, quais são os pontos centrais de sua reflexão?

DÉJOURS – Neste campo, trabalho essencialmente com o relacionamento entre o corpo, a afetividade, o sexual e a subjetividade. Procuro argumentar com a hipótese segundo a qual temos dois corpos: um corpo biológico, por um lado, e um corpo erógeno, por outro. Tento em seguida mostrar como o segundo corpo é construído a partir do primeiro. Enfim, trabalho com a maneira pela qual o corpo é implicado na formação do pensamento, das fantasias e do sonho. Inversamente, procuro pôr em evidência as condições que constituem obstáculo à construção do corpo erógeno e que, dessa maneira, ulteriormente virão a facilitar o surgimento de uma doença somática.

MARTA REZENDE – A propósito ainda da psicossomática, que lugar esta vem ocupando na clínica psicanalítica contemporânea?

DÉJOURS – Parece-me, efetivamente, que a psicossomática vem se desenvolvendo como disciplina científica, o que tem efeito revelador, por outro lado, sobre uma parte mal conhecida da clínica. Mas ao mesmo tempo, aliás, a medicina se tecniciza e declara pretensões colossais à eficácia. Em muitas doenças crônicas, os tratamentos se tornam longos e complicados. Por isso, impõem uma intensa participação dos doentes. As limitações com as quais os médicos esbarram, em relação à eficácia desses tratamentos, implicam a mobilização de recursos importantes em matéria de educação e informação dos doentes. Apesar desses esforços, numerosas estratégias terapêuticas são postas em xeque. Neste ponto, a prática médica esbarra em dificuldades que é preciso reconhecer como manifestações da resistência dos pacientes. Está proposta aqui a questão derradeira do desejo de viver ou das moções inconscientes de autodestruição. Para tentar compreender essas resistências e melhorar as performances terapêuticas, bem como as estatísticas de avaliação da eficácia das unidades de assistência, é preciso admitir a necessidade de recorrer à ajuda dos especialistas em psicossomática.

MARTA REZENDE – Talvez pudéssemos estabelecer articulações entre determinadas características da contemporaneidade e um eventual aumento das patologias psicossomáticas...

DÉJOURS – Aliás, a passagem do romantismo à modernidade, com a valorização do pragmatismo e do cientificismo, sem dúvida contribui para deslocar as patologias. De fato, há no sintoma uma dimensão intersubjetiva. Nossos contemporâneos destruíram parte importante dos registros da sensibilidade que passam pelo valor atribuído às fantasias, o respeito pelo que é sagrado, os prazeres da transgressão e as formas poéticas de celebração da vida. Uma parte da dimensão dialógica dos sintomas neuróticos, expressa em suas formas clássicas, torna-se inutilizável pelos pacientes comuns. Daí a tendência a produzir sintomas menos elaborados, tais como os sintomas somáticos.

MARTA REZENDE – Estariam as doenças psicossomáticas especialmente presentes na psicopatologia do trabalho?

DÉJOURS – O aumento das pressões do tempo e das cadências que caracterizam a sociedade contemporânea tem como conseqüência uma superatividade. Ela engendra um desequilíbrio dos investimentos a favor dos sistema percepção-consciência engajado na realidade concreta do mundo, em detrimento do sistema pré-consciente e de suas ligações com o inconsciente. Esse desequilíbrio tópico e econômico favorece, em conseqüência da teoria psicossomática, o aparecimento de doenças do corpo, de preferência à formação de sintomas psiconeuróticos. O exemplo dessa evolução que mais preocupa é dado pelo aumento maciço das lesões por esforço repetitivo (LER), conhecidas em todos os países industrializados, incluindo os casos de empregados do setor de serviços e também, atualmente, os de cargos executivos.

MARTA REZENDE – Sei que a teoria de Jean Laplanche vem despertando o seu interesse. De que maneira ela pode oferecer elementos novos à pesquisa em psicossomática?

DÉJOURS – A teoria de Jean Laplanche efetivamente pode contribuir muito para a pesquisa teórica em psicossomática. Sua contribuição para a interpretação do corpus freudiano que me parece mais importante na psicossomática é a que consiste em remanejar toda a teoria psicanalítica e recolocá-la sobre seu fundamento: na sexualidade. É a famosa teoria da sedução generalizada. Ora, a teoria psicossomática, tal como é desenvolvida pela Escola Psicossomática de Paris (P. Marty, M. de M'Uzan, M. Fain, Ch. David) atribui considerável privilégio à dimensão econômica, em detrimento da dimensão psicodinâmica. De modo que essa teoria, à vista de sua orientação funcionalista, tende a ser uma teoria a-sexual. Ela pensa de maneira radical uma oposição entre a descompensação somática e a formação de uma neurose. Oposição entre a somatose — não-sexual — e a neurose — psicossexual. Parece-me possível rever a teoria da somatização à luz da teoria da sedução, com a condição de que ela passe por uma teoria do corpo, que trate de outro modo as relações entre o sexual e o não-sexual (como tentei fazer em "Le corps, d'abord" que é, de certo modo, uma espécie de discussão com Jean Laplanche sobre a psicossomática): não mais à maneira de uma contradição antagônica, mas como uma subversão, realizada ou fracassada, da esfera da autoconservação pela sedução, em proveito da ordem erótica. A partir daí, parece-me possível, graças à teoria da sedução, retomar a questão crucial da "escolha do órgão" nos processos de somatização. O que está em jogo não é insignificante, porquanto trata-se, no fim de contas, de saber se os sintomas somáticos podem ter um sentido ou se, como o sustentam todos os meus colegas da Escola de Psicossomática, o sintoma somático é "besta".

MARTA REZENDE – A dimensão do trabalho não suscitaria de maneira quase imediata e intensa a dimensão do corpo?

DÉJOURS – O trabalho, de fato, sempre convoca o corpo. Para que seja possível um trabalho de qualidade, é preciso que ele passe por uma subjetivação da matéria, da ferramenta ou do objeto técnico. Isto foi demonstrado de maneira convincente tanto pelos antropólogos (Leroy-Gourhan) quanto pelos psicólogos e sociólogos do trabalho (Boele, Milkau). É preciso constituir uma espécie de familiaridade com os objetos, que passe por uma impregnação do corpo, da subjetividade inteira, até nas insônias e nos sonhos. É possível mostrar que a inteligência no trabalho, mais especificamente essa forma de inteligência intuitiva conhecida com o nome de "sentido técnico" ou tacit skills (habilidades tácitas), é uma inteligência do corpo. Os gregos designavam-na sob o nome de metis e nós a descrevemos hoje em dia com o nome de engenhosidade. Mas o corpo que está engajado no trabalho, digo uma vez mais, não é o corpo biológico. Este, é claro, está implicado também pelo trabalho, para produzir a energia mecânica por um lado, para sofrer os acidentes do trabalho e as doenças profissionais, por outro. Em contrapartida, o corpo que está implicado na habilidade técnica e na inteligência da tarefa é o corpo erógeno. Isso pode surpreender aquele que não é especialista do trabalho, mas pode ser demonstrado a partir da investigação clínica. É, aliás, dessa implicação do corpo e da subjetividade inteira que procede o poder extraordinário que o trabalho tem no sentido de revelar a subjetividade a ela própria — uma vez que o trabalho seja qualificado — mas também seu poder de destruir a subjetividade — uma vez que o trabalho seja desqualificado, desprovido de sentido, repetitivo e absurdo, como é possível se constatar no trabalho em linha de montagem, ou na saisie [tomada] de dados informáticos por parte de digitadores submetidos a cadências infernais.

Enfim, estes são os temas de trabalho que têm me interessado sempre e que vou procurando desenvolver.

Tradução: Pedro Henrique Bernardes Rondon.

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    Concedida pela Internet, em setembro de 2001.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Out 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2001
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