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A constituição do inconsciente em práticas clínicas na França do século XIX

RESENHAS

A constituição do inconsciente em práticas clínicas na França do século XIX

Pedro Luiz Ribeiro de Santi

Psicanalista, doutor em Psicologia Clínica (PUC-SP); plrsanti@uol.com.br

Sidnei José Cazeto. São Paulo, Escuta, 2001, 357 p.

O livro de Sidnei Cazeto é o resultado de uma pesquisa cuidadosa e séria, a partir de fontes cujo acesso é extremamente restrito ao pesquisador brasileiro. Boa parte do material foi coletada na Biblioteca Nacional da França e na Biblioteca da Faculdade de Medicina de Paris e foi a base de sua tese de doutorado em psicologia clínica, pela PUC-SP.

Tornar parte deste material acessível é um dos grandes méritos da obra, sobretudo pela exposição tão clara e prazerosa. A experiência como professor em instituições — a própria PUC e o instituto Sedes Sapientiae — certamente colaborou para o estilo didático conferido ao texto.

Já em seu título, está explícita a especificidade do conteúdo estudado e a extensão do alcance da pesquisa. Decerto interessará aos estudiosos da história da psicanálise e também àqueles que têm sua área de trabalho voltada para a história da psicologia ou das idéias.

Os casos relatados por Cazeto nos aproximam de alguns autores sobre os quais muitos de nós ouvimos falar, mas conhecemos pouco — como Mesmer, Braid, Pinel e Bernheim, por exemplo — e nos apresentam autores bem mais "obscuros" — como Faria, Azam, Briquet ou Ribot. Na escrita do autor, estes personagens emergem como realizadores de esforços intelectuais e práticos enormes; como médicos diante do sofrimento, da variedade e mistério que envolvem a experiência humana.

A princípio, somos tentados a perguntar qual a novidade de Freud? O quanto ele deve a estes autores do século XIX? Cazeto responde: a novidade está no fato de o inconsciente em Freud ser tomado como fator psíquico e de conteúdo sexual, além de ter sido retirado do campo da patologia e passar a se referir ao funcionamento normal da mente. Se isto assegura a nós, psicanalistas, a originalidade de nosso campo, a leitura de A constituição do inconsciente... fez-me lembrar das inúmeras vezes em que Freud, diante de algum fenômeno diz algo como: "só a psicanálise veio lançar luz sobre tal problema", ou "a psicanálise produziu uma terceira grande ferida narcísica (ao lado de Copérnico e Darwin) na humanidade ao tematizar o inconsciente". A presença forte de (alguma) noção de inconsciente no século XIX não deixa de representar uma ferida narcísica para o psicanalista. Idéias como a divisão da consciência; a importância da "relação terapêutica" ou a de que o inconsciente do paciente possui um saber com o qual o médico deve aprender (o que inverte a idéia de quem conduz o tratamento); tudo isto nos leva a reavaliar, com maior consciência e humildade a exclusividade do saber que a psicanálise professa.

Certamente a obra contribuirá também para as questões que levam a interrogar como a psicanálise se transformou neste "discurso dominante" com relação ao inconsciente, passando a pretender ser ela a criadora da idéia e obscurecendo um vasto contingente de autores e práticas que a precederam.

Em sua primeira parte, o livro traz os parâmetros metodológicos utilizados pelo autor. A opção pelo termo constituição, desde o título, é o resultado de uma reflexão sobre como se pensar a história e a natureza da própria noção de inconsciente. Há duas possibilidades extremas que o autor evita. De um lado, pode-se conceber o inconsciente como uma entidade descoberta no século XIX — ele sempre teria estado lá, habitando a mente humana e operando sobre ela. Esta é a posição de Henry Ellemberger, na obra de referência The discovery of the unconscious (1970). O autor faz uma monumental retrospectiva, que vai da antigüidade à psiquiatria dinâmica no século XX. A apresentação de todo o material tem um sentido teleológico: vamos sendo apresentados a tudo aquilo que conduziu à descoberta de Freud. De outro lado, a posição extrema seria relativista: tomar o inconsciente como pura construção do século XIX, sem qualquer substancialidade. Cazeto procura evitar estes extremos: a noção de inconsciente teria se engendrado e ganho funcionalidade através dos próprios discursos que analisa e, a partir de então, teria se tornado visível a um número cada vez maior de indivíduos capazes de reconhecê-lo e intervir sobre ele.

Com este posicionamento, o autor "faz falar" cada um dos estudiosos que aborda. A dinâmica interna do pensamento e prática de cada um é explorada, sem que o material seja organizado em função do conceito freudiano.

Ainda na primeira parte, antes de se ater ao discurso médico sobre o inconsciente, Cazeto indica sua constituição em outros discursos (artístico, filosófico) no século XIX. Desde aí, desenham-se dois lugares básicos para ele: no discurso romântico, a noção de inconsciente remeterá muitas vezes a uma transcendência, ao contato com uma dimensão primordial ou transpessoal; enquanto que, no discurso médico, ela será constantemente remetida a uma dimensão corporal.

Os fenômenos reunidos em torno da noção de inconsciente eram tomados, até o século XVIII, como de ordem sobrenatural. A emergência do inconsciente foi assimilada pelo discurso laico médico, no qual aqueles fenômenos passaram a ter uma representação de "doença".

Depois da discussão metodológica, a partir do capítulo "O que é isso que não é magnetismo animal?", encontramos os principais relatos sobre os médicos que se aventuraram neste campo na França, ao longo do século XIX. Aqui, o autor consegue mesclar erudição à arte e a narrativa transforma-se quase numa obra literária de suspense.

A série de autores e exemplos usados vão constituir um amplo painel da história do inconsciente. Parte-se do magnetismo animal de Mesmer; passa-se ao seu seguidor, Puységur, com quem saboreamos um caso no qual um garoto de 12 anos, hipnotizado, manipula o médico até os limites do absurdo; mais adiante, é-nos apresentado o Abade Faria, que reconhece nos processos alheios à consciência a possibilidade de acesso a um saber universal e defende a idéia de que o "sono lúcido" tem a possibilidade de preservar a degeneração natural dos fluidos vitais, admitindo, porém, para que isto ocorra, a necessária colaboração de um outro para se fazer a mediação consigo mesmo; até chegarmos a figuras conhecidas como Braid e Pinel e os primeiros autores que passam a associar a hipnose com a histeria, como Azam.

Em cada um dos autores, todo um universo de fenômenos, práticas e hipóteses teóricas se desenham, com grande grau de complexidade. Uma vez mais, um psicanalista fica boquiaberto ao se dar conta da quantidade de apreensões profundas e caminhos diversos que se descortinaram tão antes de Freud.

Na seqüência explanativa e ilustrativa, Cazeto passa a tratar de Charcot e Bernheim, com os quais Freud estudou, mais uma vez procurando mostrar as pesquisas do ponto de vista interno, e não em função de sua apropriação para a psicanálise. Charcot recorre à epilepsia como modelo para a compreensão da histeria, há o abandono da referência exclusiva ao útero, com a concepção de zonas histerógenas. Com Bernheim, as concepções de divisão da consciência e histeria encontram-se relacionadas: através da hipnose, recuperam-se lembranças perdidas, e ele reconhece a existência de uma força que impede a lembrança. Estamos diante de uma concepção de que partes de mente se opõem. Criticando Charcot pela possibilidade de que os fenômenos dramáticos estudados por ele fossem fruto exclusivo da sugestão hipnótica, Bernheim abandona a hipnose. Sua finalidade terapêutica seria a de mostrar ao paciente que a "fantasmagoria" não teria mais poder sobre ele, que recuperaria, então, o domínio de sua vontade.

Para finalizar, Cazeto nos mostra que Freud, em seus primeiros escritos — por volta de 1893 — ainda não contava com a noção de inconsciente psíquico. Através do trabalho naquela década, ele engendra uma noção diferente daquela do romantismo e da ciência. Cazeto denomina psicobiologia as tendências do século XIX: o romantismo espiritualizaria o somático e a ciência materializaria o mental. Freud concebe a possibilidade de se distinguir os dois campos, tendo se dedicado a estudar o campo da mente.

Em conclusão, reafirmo que o título tão específico do livro e a humildade característica do autor não expressam o proveito que esta leitura proporciona. De um lado, descobrimos um vasto contingente de autores e práticas do século XIX que nos concerne; de outro, ganhamos mais pontos de perspectiva para seguir refletindo sobre a psicanálise; e ainda de outro (por que haveria de ser só dois?) somos conduzidos pelo anedotário do qual fazemos parte na busca de dar sentido a isso que não é o magnetismo animal.

Recebido em 12/10/2001. Aprovado em 8/11/2001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2006
  • Data do Fascículo
    Dez 2001
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