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Inconsciente et verbum: psicanálise, semiótica, ciência, estrutura

RESENHAS

Maria Luiza Furtado Kahl

Psicanalista, professora da UFSM/RS. Email:mluizafk@terra.com.br

Inconsciente et verbum: psicanálise, semiótica, ciência, estrutura

Waldir Beividas, Humanitas/FFLCH/USP, 2000, 394 p.

Promissora, para dizer o mínimo, assim de começo, a publicação deste livro. Apesar de ter sido originalmente escrito em 1991 como tese de doutorado e apresentar, na presente publicação, adaptações e supressões pequenas, quero destacar a atualidade do texto — o que tentarei demonstrar ao longo da apresentação de suas propostas centrais.

Em tempos de pós-estruturalismo e pós-lacanismo, e em virtude dos quatro termos que compõem o subtítulo — psicanálise, semiótica, ciência, estrutura —, o leitor talvez se pergunte se não estariam já esgotadas as reflexões sobre possíveis cruzamentos extraídos da estrutura quadripartite ocupada pelos referidos termos e que ilustra a capa.

Já não foi decretado, pelos psicanalistas herdeiros de J. Lacan, que a parte mais interessante de sua obra está para além da fase em que vigorava, como conceito princeps, o significante, importado da lingüística de Saussure, e quando passa a ocupar lugar de proa o conceito de real? Já não vai longe o tempo em que as ciências humanas, de um modo geral, tiveram de se curvar ao movimento científico e estrutural da lingüística como modo de se livrar da pecha de não científicas? O livro de Beividas vem mostrar que não, que muito ainda há a explorar da relação entre psicanálise e estrutura, psicanálise e semiótica, psicanálise e ciência, e que se há alguma psicanálise de futuro, ou seja, uma psicanálise que possa, para ter futuro, ombrear-se com os avanços em diversas ciências da mente, esta deverá passar inevitavelmente por uma meticulosa redescrição do inconsciente, fundada, ainda, no a priori da sua estrutura de linguagem. Passo ao detalhe.

A aposta do autor, toda ela, se sustenta na hipótese de que há um terreno fecundo a ser ainda explorado, um gap, um vazio, entre a via lingüística de conceptualização do inconsciente e a virada, ocorrida nos anos 70, na obra de J. Lacan, em direção à topologia e aos matemas, sob a égide do conceito de real. Em outras palavras, a idéia é a de não seguir Lacan em seu gesto apressado de substituir o modelo da lingüística estrutural, como modo de apreensão das articulações linguageiras do inconsciente, pelo modelo da topologia e dos matemas; também não é a de decretar, com Lacan, muito rapidamente, o deslocamento do peso do significante, do simbólico para o real. Haveria, ao contrário disso, que insistir ainda hoje no método estrutural, na tese da estruturação linguageira do inconsciente, mas sob o modelo de uma análise em filigrana de suas articulações, que só uma semiótica do discurso, para além do signo e da frase, poderia sustentar. O modelo utilizado será, então, o da semiótica greimasiana, sem abandono do método estrutural.

Mas não pense o leitor que a partir daí os capítulos vão enveredar por um extenuante desenvolvimento de herméticas teses semióticas, compreensíveis apenas pelos especialistas da área. Nada disso. A proposta de aproximação da semiótica greimasiana não se efetiva antes de uma cuidadosa preparação de terreno em que são desenvolvidos temas que, a meu ver, constituem o melhor do livro: um minucioso e raro balanço da situação epistemológica da psicanálise hoje e a proposta de novos critérios de regulação de sua cientificidade. Só se passa para o debate entre psicanálise e semiótica depois de firmadas estas condições. Diga-se de passagem que nada se dá neste livro de modo abrupto, nada se afirma sem a paciência da conceptualização cuidadosa e a obsessão da clareza, muito bem-vindas, aliás, nesse nosso campo tão cheio de hermetismos, partis pris, paixões transferenciais e quetais. Se, como diz o autor, o rosto de uma disciplina se molda na pesquisa que o trabalha, a psicanálise ganha, com o presente livro, inusitada e promissora face.

Toda a primeira parte, "Psicanálise e ciência: questões de epistemologia", é dedicada à construção de um minucioso dossiê de argumentos contrários à atitude que afirma a impossibilidade de a psicanálise se estatuir como ciência. Não se trata de defesa pura e simples, ao modo das epistemologias positivistas e neopositivistas, da atitude de submissão da psicanálise a critérios rígidos de demarcação do que é ou não ciência. Indaga-se, ao contrário disso e de modo muito mais fiel à questão de Lacan com a ciência — questão essa trabalhada com desenvoltura no livro —, como deve ser uma ciência que considere a existência do inconsciente, do desejo, sem que isso se confunda com um retorno do psicologismo. Ao lado disso, são atualizados os debates sobre critérios e definições da cientificidade. A recusa de Freud em ingressar na querela dos métodos, célebre debate, do final do século XIX, entre ciências da natureza e ciências do espírito, recebe tratamento definitivo: "Não houve a `questão da cientificidade' em Freud porque a cientificidade não foi uma questão para Freud. Sob sua mira, a psicanálise era uma ciência, e pronto... "

Ainda nessa primeira parte, o autor examina e refuta com rigor as teses de Joël Dor e Michel Fennetaux, ambas contemporâneas, amplamente difundidas e adeptas da idéia de uma incompatibilidade da psicanálise com a ciência. Quanto à tese da a-cientificidade da psicanálise, de Joël Dor, o autor mostra que vai de encontro ao que considera a "convivência dramática" de Lacan com a ciência, ou ainda, a "aguda sensibilidade epistemológica de Lacan". Faz a denúncia de que foram seus discípulos que, por impaciência e pressa, acabaram por adotar uma atitude preconceituosa de repugnância pela dimensão científica, aspecto ausente em Lacan, que se preocupou menos em saber se a psicanálise era ou não ciência e mais em perscrutar como seria o estatuto de uma cientificidade que incluísse a psicanálise. "Luta contra um dragão moribundo" é como Waldir Beividas se refere aos argumentos de Joël Dor contra os critérios rígidos de demarcação do que é ciência, por parte da filosofia positivista e do empirismo lógico. Ora, tais critérios, diz o autor, já não são utilizados e não fazem consenso nem mesmo no interior das epistemologias clássicas, como a de um Karl Popper.

Com relação à tese de Michel Fennetaux, "selvageria psicanalítica" e "leviandade generalizada" são expressões com que Beividas se refere a seus principais argumentos, todos centrados em idéias anacrônicas sobre o procedimento das ciências e sua suposta filiação à certeza de tipo cartesiano. Cabe ressaltar que esta tem sido a ladainha com que grande parte dos debates epistemológicos em psicologia e psicanálise é entoada. Concepções ultrapassadas sobre critérios de demarcação, sobre o que seja o científico, e pouquíssimo diálogo, se não mesmo diálogo de surdos entre as áreas psi e as contribuições vindas de discussões das ciências duras, de ponta, sobre o fazer científico, é o que mais se vê.

Encontram-se aí também bons argumentos para o enfrentamento de debates que podem ser ditos básicos no interior de reflexões sobre o estatuto da psicanálise: entre hermenêutica (prioridade da semântica, da significação) e estruturalismo (prioridade da sintaxe, da forma) — duas importantes forças que costumam se alternar de modo rivalitário na intelecção das ciências do homem, e entre mythos e logos. O recurso ao mythos em detrimento do logos, como saída proposta por Michel Fennetaux diante da incompatibilidade da psicanálise com a ciência, dá ensejo a valiosas reflexões sobre o lugar do mito na ciência tout court e nas ciências humanas.

Como foi dito antes, até aqui estão sendo preparadas fundações epistemológicas a partir das quais serão erguidos os pilares mestres da tese do livro. Toda a segunda parte, "Psicanálise e estrutura: questão de método", é dedicada então às fundações metodológicas da proposta e à defesa do modo de conceptualização estrutural em psicanálise para, aí sim, na terceira parte, "Psicanálise e semiótica: questões de descrição", ser contemplado o diálogo interdisciplinar dessas duas áreas.

Na segunda parte do livro, se esboça o horizonte de uma nova cientificidade para a psicanálise cuja base advém de uma retomada do método estrutural. Vale dizer que a orientação estrutural aí em jogo está a léguas de distância do que vem sendo considerado ultrapassado em tempos pós-modernos, pós-estruturais e pós-construtivistas. Acompanhando Beividas, o fato de o estruturalismo em ciências humanas ter caído de moda a partir dos anos 70 muito mais se deve à indigência da discussão epistemológica a respeito do que do próprio método. O modo paradigmático com que as orientações científicas de um René Thom, no campo das ciências duras, recorrem ao método estrutural é utilizado como exemplo de sua atualidade. Toma-se o que é considerado o sumo do método estrutural: a fase de conceptualização propriamente dita de uma disciplina e que se acrescenta às fases de operação terminológica e de formalização. É nesta fase, a de uma conceptualização estruturante, baseada na construção de um sistema de interdefinições e relações entre os conceitos, que o autor situa o desafio de se estatuir a maturidade de uma disciplina que se queira mais do que uma conjunção aleatória de conceitos. "A conceptualização é, pois, a tarefa de estruturar os conceitos de uma disciplina." Este é também o espaço utilizado com maestria pelo autor para mostrar como a psicanálise lacaniana — a de Lacan e a de seus discípulos — se portou frente a tais exigências. O título do capítulo 3 desta segunda parte do livro, "Descuidos conceptuais: hipérboles e paralogismos em psicanálise", dispensa-nos de maiores comentários e faz-nos lembrar do filósofo A. Badiou quando denuncia a insuportável inflação de uma sofística linguageira na contemporaneidade. O caso da psicanálise, quanto a essa questão, é chamado por Beividas de "desconceptualização generalizada da disciplina".

As hipérboles e paralogismos são considerados nada mais do que as seqüelas inevitáveis de decisões "pragmatistas" supostamente tomadas em nome da clínica e em detrimento da consistência teórica do campo. Severas críticas são também dirigidas ao gesto de adoção, por parte dos seguidores, do estilo de Lacan como episteme psicanalítica, além de tudo imerso em excessiva transferência para com o mestre gongórico (sic).

A última parte do livro, "Psicanálise e semiótica: questões de descrição", traz de modo nítido o desenho da hipótese central de toda a pesquisa: a de que a evidência fundante da psicanálise repousa na decisão de tomar o ser do inconsciente como estrutura de linguagem. Esta decisão é considerada em sua máxima radicalidade, ou seja, como diretriz epistemológica e de método, capaz de sustentar toda a psicanálise. Como diretriz epistemológica, implica inscrever a psicanálise no paradigma de uma semiose constitutiva do sujeito e do mundo, isto é, como a atitude de tomar a "significação-no-discurso, ou a função signitiva" como condição do que é possível saber. Como diretriz metodológica, implica semiotizar o inconsciente, ou seja, tomar sua estrutura de linguagem como "a orientação conceptual para depreender seu modo de existência e de funcionamento, sua lógica e sua estruturação". É nesta última parte que a semiótica greimasiana é convocada como hipótese de trabalho para uma autêntica aproximação interdisciplinar com a psicanálise, capaz de desembaraçá-la de uma referência restrita à lingüística e inaugurar uma exploração do inconsciente no nível das dimensões verbal, visual e gestual do discurso. A estratégia de aproximação interdisciplinar significa aqui, de modo mais específico, uma transposição metodológica da semiótica para a psicanálise, cujo objetivo é o de estímulo teórico. Não vou adentrar nos meandros de tal aproximação. Ressalte-se, no entanto, as preciosas reflexões sobre a utilização do conceito lacaniano de significante e sobre a suposta preterição do significado na concepção lacaniana de linguagem, ambas desembocando numa promissora aproximação para com a concepção de "formas semióticas".

Reabrir a psicanálise ao diálogo externo como condição mesmo de sua sobrevivência é o mérito maior do livro. Enfrentar dificuldades teóricas e preconceitos mútuos para criar condições de um debate frutífero entre psicanálise e semiótica, apresentando suas convergências de base, é objetivo sobejamente alcançado. Resta lidar com o incômodo político e institucional que acossa aqueles pesquisadores que não se deixam mover sob a égide da enunciação de seus mestres. Nesse sentido, penso que a publicação do presente livro em plena vigência do movimento lacaniano, provavelmente não teria sido tão alentadora. Pela simples razão de que não encontraria leitores capazes de aceitar o desafio de rever posições dogmáticas e aceitações incondicionais dos aforismos de Lacan.

Recebido em 6/11/2001.

Aprovado em 13/11/2001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2006
  • Data do Fascículo
    Jun 2002
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