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Psicanálise do cotidiano

RESENHAS

Psicanálise do cotidiano

Ana Costa

Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre

Elementos lacanianos para uma psicanálise no cotidiano.

Roland Chemama

Porto Alegre, CMC Editora, 2002, 347 p.

Trata-se da reunião de 31 artigos provindos de intervenções em jornadas e colóquios, principalmente na França. Seu autor é reconhecido entre os franceses pela organização de um dicionário de psicanálise e, no Brasil, com suas vindas e intervenções em instituições psicanalíticas e universitárias.

Embora resultante da reunião de artigos, o livro desenvolve uma linha única de pensamento, com textos produzidos ao longo de muitos anos. Há o desdobramento de questões básicas, que colocam para o psicanalista a necessidade de intervenção nos diferentes discursos que estruturam seu tempo e lugar.

O título já nos dá a pista do que iremos encontrar, na medida que desdobra duas questões de junção paradoxal: "elementos lacanianos", situando os referentes que balizam as indagações do autor e "psicanálise no cotidiano", enquanto lugar de enunciação dessas indagações. Assim, encontraremos um incessante ir-e-vir — da preocupação com a transmissão da psicanálise, à análise das produções culturais — para abordar tanto os sintomas característicos dos discursos

contemporâneos quanto a contribuição singular da psicanálise nos diferentes contextos.

As duas questões assinaladas parecem-nos suficientes para apresentar o fio de onde se tecem as inquietações da produção do autor. O "cotidiano" como um lugar de enunciação lembra-nos um dos textos freudianos fundadores da abordagem do inconsciente — Psicopatologia da vida cotidiana. Tomá-lo como motor do trabalho implica aceitar um risco incomum: significa o exercício de uma enunciação que é própria do lugar de intervenção do psicanalista, qual seja, o de fazer parte das formações do inconsciente do discurso no qual intervém. É nessa medida que sua posição não é representada como de um saber exterior, que poderia expressar um domínio sobre esse saber. Chemama retoma essa questão de muitas formas. Ela está colocada no momento em que a psicanálise é convocada a dar provas de validade científica — toda a polêmica gerada por Pooper indica esse caminho.

É principalmente nos textos que abordam a especificidade da interpretação em psicanálise que o autor melhor a situa. O tema da interpretação atravessa toda a obra e vai produzir as mais belas passagens (veja-se a abordagem clínica em "Sobre a interpretação ou a prova pelo significante"), seja quando trata especificamente sobre isso no capítulo "A experiência psicanalítica"; ou mesmo na "Prática da letra", quando trabalha a inter-relação entre psicanálise e literatura; ou em "Leituras lacanianas", quando trata de transmitir alguns dos principais conceitos daquele autor.

O "cotidiano" também está representado nas diferentes leituras apresentadas em "O sujeito na história", quando o autor analisa os efeitos produzidos na forma de expressão do sujeito a partir da modernidade. Assim, acompanhamos a especificidade dos efeitos da revolução francesa, ou mesmo do discurso do capitalista, na produção desse sujeito. A abordagem, em diferentes artigos, dos discursos propostos por Lacan, também vai orientar a preocupação com uma clínica que se determina a partir de um laço discursivo, que se expressa na forma como é tomada a proposta de Lacan: "o inconsciente é o social". Também por essa via são tratadas as modificações nas posições masculina e feminina, trazendo passagens da clínica nas quais se atualizam os impasses contemporâneos na significação sexuada e as formas que homens e mulheres se representam sintomaticamente, a partir daí, na relação ao exercício sexual.

Por último, a apresentação dos impasses na transmissão da psicanálise. Eles se constituem na posição resistente da demanda de discípulo; ou mesmo na dificuldade, interior ao próprio campo, de transmitir a experiência do inconsciente. Neste último ponto, o autor traz sua leitura sobre a proposta de Lacan em relação à experiência do passe.

Por tudo isso, o livro de Chemama traz algumas das principais questões com as quais a psicanálise dialoga. Não somente apresenta-nos essas questões, com suas formas de análise, como convoca-nos à responsabilidade na sua escuta.

Recebido em 3/10/2002. Aprovado em 5/11/2002.

Ana Costa

aclv@plugin.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Maio 2006
  • Data do Fascículo
    Dez 2002
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