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O menino e o efeito pirilampo: um estudo em psicossomática

Resumos

Este trabalho tem como objetivo discutir um fenômeno psicossomático - a alopécia - que marca a história de Yuri desde os seus três anos de idade. A metodologia utilizada é a de um estudo de caso, evidenciando os significantes que foram timbrados nessa criança com síndrome de Down e o lugar por ela ocupado no discurso parental. Fica evidente que o fenômeno psicossomático ataca o real do corpo, produzindo um imaginário familiar impossibilitado de ser atravessado pela ordem do simbólico. A direção do tratamento é a de produzir cadeia nas complexas relações entre as funções biológicas do corpo e da linguagem.

Alopécia; criança; psicanálise; fenômenos psicossomáticos


The boy and the fire-fly effect. A study on psychosomatics. This work aims at discussing a psychosomatic phenomenon - alopecia - that has been marking the history of Yuri since he was three years old. The methodology used is that of a case study, which evidences the significant that were stamped on that child with Down syndrome and the place he occupies in the discourse of his parents. Obviously, this psychosomatic phenomenon attacks the real of the body, producing a family imaginary cut from the symbolic order. The treatment direction is to produce chains among the complex relationships between the biological functions of the body and the language.

Alopecia; child; psychoanalysis; psychosomatic phenomena


ARTIGOS

O menino e o efeito pirilampo. Um estudo em psicossomática* * Parte deste trabalho foi apresentada em comunicação oral no Simpósio de Psicossomática Psicanalítica no Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo, 2001.

Adriana Campos de Cerqueira LeiteI; Joyce Gonçalves FreireII; Mário Eduardo Costa PereiraIII; Tatiana Carvalho AssadiIV

IDoutora em psicanálise e psicopatologia fundamental pela Universidade de Paris VII; doutora em saúde mental pela Unicamp. Rua Emílio Ribas 491 sala 6 Cambuí; 13025-141 Campinas SP; Tels (19) 3254-7054 / 9602-5556; adrianacl@uol.com.br

IIDoutoranda em ciências médicas, Dep. de Psicologia Médica e Psiquiatria, Área Saúde Mental, Laboratório de Psicopatologia Fundamental, Unicamp. Rua Antonio César 11 Santa Genebra; 1308-130 Campinas SP; Tel (19) 3208-1251; joycemfreire@terra.com.br

IIIProfessor do Dep. de Psicologia Médica e Psiquiatria da Unicamp; diretor do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da Unicamp; coordenador do Serviço de Psicoterapia Psicanalítica do Hospital das Clínicas, Unicamp. Rua Carolina Prado Penteado 725 Nova Campinas; 13092-470 Campinas SP; Tels (19) 3254-5064 / 3254-1982; marioecpereira@uol.com.br

IVDoutoranda em ciências médicas, Dep. de Psicologia Médica e Psiquiatria, Área Saúde Mental, Laboratório de Psicopatologia Fundamental, Unicamp. Rua Professora Leonor de Oliveira Melo 168; Jardim Santista 08730-140 Mogi das Cruzes SP; Tels (11) 4798-2990 / 9762-9298; tatiassadi@uol.com.br

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo discutir um fenômeno psicossomático — a alopécia — que marca a história de Yuri desde os seus três anos de idade. A metodologia utilizada é a de um estudo de caso, evidenciando os significantes que foram timbrados nessa criança com síndrome de Down e o lugar por ela ocupado no discurso parental. Fica evidente que o fenômeno psicossomático ataca o real do corpo, produzindo um imaginário familiar impossibilitado de ser atravessado pela ordem do simbólico. A direção do tratamento é a de produzir cadeia nas complexas relações entre as funções biológicas do corpo e da linguagem.

Palavras-chave: Alopécia, criança, psicanálise, fenômenos psicossomáticos.

ABSTRACT

The boy and the fire-fly effect. A study on psychosomatics. This work aims at discussing a psychosomatic phenomenon — alopecia — that has been marking the history of Yuri since he was three years old. The methodology used is that of a case study, which evidences the significant that were stamped on that child with Down syndrome and the place he occupies in the discourse of his parents. Obviously, this psychosomatic phenomenon attacks the real of the body, producing a family imaginary cut from the symbolic order. The treatment direction is to produce chains among the complex relationships between the biological functions of the body and the language.

Keywords: Alopecia; child, psychoanalysis, psychosomatic phenomena.

Não dorme sob os ciprestes,

Pois não há sono no mundo.

(...)

O corpo é a sombra das vestes

Que encobrem teu ser profundo.

FERNANDO PESSOA

O fenômeno da alopécia caracteriza-se por afecções com diminuição de pê- los ou cabelos no corpo de um indivíduo. Pode ser classificado dermatologicamente como cicatricial e não cicatricial, segundo a eventual origem mecânica ou funcional do sintoma. Além disso, a quantidade ou a forma com que os pêlos e cabelos caem influi na denominação de seu diagnóstico como um fenômeno parcial ou total. A cura, em muitos casos, é espontânea, ou a afecção aparece e desaparece em momentos indiscriminados da vida de uma pessoa. Na maioria dos casos a etiopatogenia é desconhecida, porém estudos levantam a hipótese de que sua causa seja psicossomática, vinculada a traumas físicos ou associada a outros tipos de doenças e síndromes. Para o estabelecimento do diagnóstico, as possibilidades de uma origem endocrinológica devem ser excluídas. Estatisticamente, verifica-se que sua incidência recobre vasta faixa etária, atingindo pessoas de cinco a 40 anos.

Este trabalho tem como objetivo discutir o fenômeno da alopécia que marca a história de Yuri desde os seus três anos de idade. Os significantes que foram tatuados em seu corpo e o lugar que esse menino ocupa no complexo familiar serão o norte para nossa investigação.

Jacques Lacan, em espaçadas contribuições sobre a especificidade da clínica infantil, levanta duas hipóteses sobre a construção de um sintoma em uma criança. Em nota manuscrita enviada em outubro de 1969 a Jenny Aubry (LACAN, 1969), ele salienta que: ou a criança responde a um mito familiar, a um nãodito que precisa ser simbolizado, aquilo que há de sintomático na estrutura da família, ou ela ocupa o lugar de fantasma do desejo materno. Tanto em um caso quanto em outro, o sintoma aparece pela ausência da palavra.

A tese defendida por esse artigo é a de que Yuri está posicionado no primeiro caso apontado por Lacan: é revelador de um mito familiar. Dessa forma, o trajeto clínico estará privilegiando essas marcas essenciais para a direção do tratamento.

TATUAR PARA SEGUIR VIAGEM

Mechas de cabelo que caem, fios dourados que se espalham pelo uniforme azul- marinho de Yuri; o inquietante é que ninguém encontra os pêlos que desmoronam de sua cabeça e de seus braços. Quando reparam, há falhas no couro cabeludo, produzindo choro em Milena, a mãe. Ele é meu tesouro, o único loirinho com cabelos lisos e olhos azuis, como meu avô.1 1 As construções em itálico sinalizam falas, na íntegra, dos sujeitos em questão. Os fios compridos que restam, cobrem os olhos escurecidos por lentes grossas de óculos rajados; é preciso removê-las para poder acompanhar seu olhar. É assim que Yuri de nove anos apresenta-se para o tratamento. E, atrelado ao fenômeno da alopécia, há um retardo de linguagem: sua fala é incompreensível. Isso faz com que o menino gesticule para produzir uma tentativa de comunicação.

Yuri é o filho do meio de Milena e Maurício. Ainda está na pré-escola e começa a ser diferenciado das outras crianças por sua estatura, tipos de brincadeira e preferências. Sua docilidade é alternada com choros e agressividade. Quando contrariado, bate nas demais crianças, mas ao mesmo tempo as acaricia. Preocupa os pais pelas discriminações que sofre e, especialmente, pela ausência da fala.

Desejava tanto essa gravidez, queria muito ter um menino — despeja a mãe no primeiro encontro com a analista. Fiz planos e mais planos sobre ele. Na época, passava na tevê uma novela em que o ator era lindo, mulherengo e médico. Escolhi o seu nome em função desse personagem. Mas parece ironia, meu filho nunca terá uma vida sexual normal, nem tampouco poderá estudar. Ele é portador de síndrome de Down.

Vaidosa, Milena tem como valor fundamental a estética, em especial os cabelos, que adornam e ofertam um brilho singular ao rosto — como um pirilampo, diz ela. Certo dia, ao acordar, olhou para o filho e, para sua surpresa, os cabelos dele haviam caído. Yuri estava careca. Nunca sofri tanto. Ele ter síndrome de Down não tem problema, mas ficar sem o cabelo, me doeu muito. Tentei não demonstrar, mas foi impossível. Segundo seu relato, o fenômeno da queda capilar aconteceu de uma noite para a manhã seguinte. Consultaram muitos especialistas: o dermatologista, o geneticista, o pediatra. Remédios e mais remédios foram ministrados e o cabelo voltou a crescer. Em seguida, a queda iniciou-se de novo. Desde então, há seis anos, este fenômeno se repete.

Sofrimento similar foi vivenciado por Milena ao saber que Yuri precisaria usar óculos, fato anterior ao fenômeno da alopécia. Relutou muito para acreditar, visitou alguns oftalmologistas, dentre eles um que descartou a necessidade de tal trambolho, opinião recebida por ela com um prazer imenso: ...ele é o mais bonito dos meus três filhos e os óculos apagam sua beleza. Como conseqüência, entretanto, houve agravamento da patologia visual de Yuri.

Para Maurício, o filho é normal. Não constata nada de diferença entre ele e os outros dois: Fabiana, de 12 anos e Mauricinho, de sete. Constantemente se esquece de que o menino é portador de síndrome de Down e seu sonho é que os dois filhos homens possam trabalhar com ele em seu negócio (a empresa). O que o irrita é a falta de educação de Yuri, ...ele é inteligente, bem esperto, mas se faz de bobo e odeio que as pessoas tenham dó dele — parece uma porta.

Milena, em oposição ao discurso do marido, fez todos os cursos possíveis sobre a síndrome, participou de grupos de pais, leu toda e qualquer literatura referente ao tema e almeja que o filho dela não dependa, embora saiba do diagnóstico contrário da Síndrome.

O geneticista está preocupado com o desenvolvimento do menino porque a queda de cabelos e o retardo de linguagem nada têm a ver com a Síndrome. A fonoaudióloga também está estranhando o atraso na fala. Estes fatos impulsionaram a procura do auxílio psicanalítico. Será que eu sou a culpada por Yuri ser assim?, indaga a mãe.

Hipóteses são traçadas por Milena sobre o fenômeno da alopécia expresso pelo menino. A primeira está relacionada a um fato ocorrido por volta dos três anos de idade de Yuri. Ela chegara em casa e um dos filhos estava febril. Telefonou ao marido, informando o ocorrido e ele pediu que se acalmasse, pois no dia seguinte levariam a criança ao médico. A febre aumentou e ela resolveu levá-lo ao hospital, acompanhada da filha mais velha. Ao chegar à garagem percebeu que esquecera a bolsa. Pediu, então, à doméstica que levasse seus pertences. Naquele momento, foram rendidos por três assaltantes e postos dentro do veículo. Nessa condição, saíram pela cidade em busca de caixas eletrônicos 24 horas. Yuri permaneceu sozinho na casa, chorando e olhando pela janela. Ela suplicou para que a deixassem pegar o filho, relatando sua Síndrome, mas o pedido foi negado. O desespero do menino foi imenso.

Horas depois, retornaram e o encontraram dormindo no sofá, provavelmente adormeceu de tanto chorar. Acredita que esse fato deva ter sido traumático. Tempos depois, Yuri foi internado no hospital em conseqüência de um processo pneumônico que se arrastava desde seus nove meses, agravado aos três anos de idade — momento em que os pêlos começaram a cair.

Uma outra hipótese traçada por Milena é a de que, nesse período, eles — os pais — brigavam muito, e foi exatamente o tempo em que ela decidiu engravidar para tentar resolver sua situação com Maurício, que é um verdadeiro moleque. Supõe que a chegada do terceiro filho, o Mauricinho, tenha afetado Yuri que, até então, era o queridinho da família.

Quando questionada sobre esses ocorridos, ela não se recorda — tenho problemas com data — só lembra que foi no mesmo tempo em que duas tragédias sociais ocorreram: a primeira, a morte de Ayrton Senna, conhecido piloto de fórmula 1, que ela sempre adorou e que o marido inclusive venerava. Este, que é praticante de esportes radicais, tinha-o como ídolo. A segunda foi um acidente da TAM, companhia aérea, quando várias pessoas morreram. Milena associou esses acontecimentos à possibilidade de morte do marido, pois ele também pilotava aeronaves. Solicitou-lhe, portanto, que abandonasse este hobby.

Certa vez, ao receber Yuri na clínica, em entrevista com os pais, o tema do acidente (do assalto) é recontado. Enquanto os pais atribuem o fenômeno psicossomático ao momento vivido como desamparo, Yuri brinca com alguns carrinhos disponíveis para sua interação, joga-os contra a parede e repete constantemente: caiu, caiu, bateu, caiu... Em outra entrevista, desta vez somente com o menino, a mãe chega dizendo que ele agora deu para mentir, relatando para a empregada da família que a analista havia batido nele. Após narrar esse episódio, Milena comete um ato falho: ele disse que você o abateu... Imediatamente corrige a frase, repetindo a palavra bateu algumas vezes, tal qual Yuri o fizera na entrevista citada.

A partir desses pronunciamentos — tanto de Yuri na sessão, quanto do lapso da mãe —, algumas articulações analíticas começam a ser traçadas. A hipótese é a de que algo capturou subjetivamente o menino: abateu-o, laçou-o, momento singular do percurso clínico de Yuri.

‘Bater’ ressurge como significante em seus encontros com a analista: o papai bateu, papai oh, oh, oh, bateu (cerra os punhos como um boxeador). Yuri usa dos carrinhos para simular um acidente: o homem bate na mulher. Coloca um homem dentro do carro e uma mulher jogada no chão; com o brinquedo ele passa por cima dela várias vezes e ri, chegando às gargalhadas. É interrogado sobre o atropelamento e com palavras truncadas ele mostra o que quer, por meio de repetições de atos e em monossílabos.

O tema homem (tudo é o homem para ele, diz a mãe) é reiterado a cada encontro. Ao ser indagado sobre o motivo de estar em análise, ele responde: o cabelo do homem caiu... Ao fazer um desenho de figura humana, Yuri coloca um peito e um pinto imensos, palavras estas que consegue pronunciar com dificuldade e que repete em acessos de riso. É como se aquele desenho fosse um ser andrógino, portador dos dois sexos.

Portador dos dois sexos, portador da síndrome de Down, portador do fenômeno psicossomático, porta a dor. O que Yuri porta, afinal? Este é um outro significante presente em sua história. Articulando e transitando nas significações que possam ser evocadas por este significante enfrenta-se, a priori, o verbo portar, como levar e conduzir; em seguida, o substantivo porta, como aquela peça responsável por permitir/impedir a entrada e a saída, unindo e separando diferentes ambientes. Evoca, igualmente, em uma linguagem coloquial, algo estático, como na expressão fulano é uma porta. Por outro lado, o substantivo portador, é aquele que, em nome de alguém, leva algo a outro ou a algum destino. Segundo a escansão de escuta oferecida a essa palavra, ela pode ainda remeter àquele que tem a dor. São dimensões semânticas muito diversas que auxiliam a repensar e reorganizar a escuta que sinaliza para o fenômeno psicossomático: os significantes “Yuri” e “portador” andam juntos ao longo de história de sua vida.

São necessárias algumas outras considerações do caso clínico. A mãe parece bastar-se por si só no cuidado com suas crianças. Eu adoro meus filhos, sou como uma galinha com os pintinhos,2 2 Aparecimento, novamente, do significante ‘pinto’, que pode ser filhote da galinha ou designar o órgão sexual masculino. até prefiro quando o Maurício não está em casa. Somos muito mais felizes sem ele. Quando ele chega, estraga tudo.

Vale salientar que Yuri — diante de qualquer situação ameaçadora, como, por exemplo, certa vez, perante alguns meninos maiores que o xingavam e queriam nele bater — menciona a frase: papai, oh, oh, bate, ó, ó (mostrando o punho cerrado). Maurício, o pai, é desautorizado por Milena diante dos filhos. Ele não é importante, porque ela é suficiente para as crianças ...na verdade tenho quatro filhos e não três... Milena inclui o marido entre sua prole. Ao mesmo tempo, Yuri convoca o pai a todo instante — a mãe nega a existência deste — e o menino, no entanto, apresenta-o como pai, pelo e no lugar de pai. Yuri chama pelo pai e, simultaneamente, apresenta-o como homem à mãe, demonstrando sua potência e vigor.

Ao longo de uma série de entrevistas efetuadas com os pais da criança, surgiram questões que se aproximavam de construções míticas e de emblemas timbrados no percurso familiar. Para Milena, os homens como o avô, o pai, o marido e Yuri são coitados.3 3 ‘Coitados’ soa como ligado a coito, o ato sexual. O único que escapava desta série era o padrasto, homem visto como cruel e dominador. Os demais sempre foram rejeitados por outras pessoas e necessitaram de seu amparo. O avô, protetor de Milena, homem lindo e mulherengo, decepcionou-a, ao descobri-lo homossexual; o pai, por sua vez, foi abandonado pela mãe. Quanto a Maurício, é eficiente em trabalhos braçais, mas ao lidar com a cabeça, com o pensamento, ele é insuficiente. O cabeça da família é a mulher. O marido executa as ordens, mas não é capaz de qualquer organização — é sem cabeça.4 4 ‘Cabeça’, no vocabulário informal, ou mesmo em gírias, pode ter conotação sexual também. Outra sinalização, repetição do enfrentamento familiar de Milena, diz respeito às mulheres, sempre bonitas e safadas.5 5 Os significantes que aparecem no discurso familiar, como: ‘coitados’, ‘safadas’ e ‘sem cabeça’, possuem todos conotação sexual. A avó traiu seu avô; a mãe, o pai e o padrasto; e seu medo era que ela, Milena, tivesse o mesmo destino.

Maurício, o pai de Yuri, casou com Milena porque ela estava grávida. Sempre foi um aventureiro, possuindo namoradas aos montes. Retirou Milena da casa que morava porque era ela quem cuidava dos irmãos como uma escrava e porque havia sido molestada pelo padrasto. A origem de Maurício é abastada: filho de pais empresários cuidou dos negócios da família por algum tempo, mas levou-os à falência. Os irmãos, que nunca trabalharam, condenaram-no pelo empobrecimento. Resolveu, então, trabalhar a sol e chuva para reerguer a empresa. De lá para cá, os familiares constantemente o obrigam a trabalhar e ficam com os lucros de seu trabalho; apesar disso, nada faz, sente-se culpado quanto à sua irresponsabilidade inicial.

APARIÇÃO, DIGRESSÃO OU REMISSÃO?

As doenças psicossomáticas são consideradas como um continente obscuro tanto na clínica médica quanto na psicanalítica. Com etiologias deveras incertas, invadem o corpo do indivíduo e dilaceram-lhe os órgãos, acrescentando um prognóstico muitas vezes sombrio. Diferenciam-se das conversões, entre outros aspectos, por sua menor probabilidade de remissão espontânea. Os sintomas conversivos, diante de um processo interpretativo apropriado, tendem a reverter rapidamente a alteração corporal, enquanto que o fenômeno psicossomático não desaparece com tamanha agilidade, sendo comum que alternem aparecimento e desaparecimento. Eis uma primeira distinção entre o fenômeno psicossomático e o sintoma.

Outra distinção, apontada por Elael (2000), entre os sintomas de natureza simbólica e o fenômeno psicossomático, aproxima-se, analogamente, dos símbolos lingüísticos e matemáticos: letra e número. A autora busca seu suporte teórico na Conferência em Genebra (1975), proferida por Lacan. Segundo ela, os sintomas assemelham-se à letra e, dessa maneira, estão submetidos à leitura, podendo ser deslizados; enquanto os fenômenos psicossomáticos são cristalizados e encriptados no corpo, tornando-se refratários a qualquer interpretação (leitura). Ou seja, no primeiro caso, o da letra, é possível um agrupamento de letras dar origem a uma palavra, sem perder sua característica inicial, por exemplo: a + v + i + ã + o = avião. Ocorre um deslizamento partilhado na construção inicial de significantes isolados. No segundo caso, relativo ao número, temse uma quebra de cadeia, por exemplo: 1 + 5 + 3 x 2 = 18. Não ocorre um deslizamento, mas uma nova construção em que cada número é isolado, perdendo seu significado no produto final.

A tônica na forma de gozo dessas duas aparições corporais também deve ser considerada: nos processos sintomáticos, há um fracasso do recalque; portanto, o afeto se liga a um órgão, enquanto a representação incompatível é recalcada, nesse percurso um ganho secundário é conseqüência do manejo psíquico. Na psicossomática também ocorre um gozo, um ganho com o sofrimento, mas o sujeito não conjuga sua construção subjetiva ao fenômeno per si e a satisfação secundária do quantum pulsional não é vinculável a ele. Esses fenômenos impri- mem no corpo uma marca, tatuam algo que não pode ser dito, nem deslizado, que não pode ser acessado simplesmente pela via do sentido.

Considerações preliminares sobre o fenômeno psicossomático foram esboçadas por Freud em Introdução ao narcisismo (1914). Nesse texto, o pai da psicanálise atrelou a doença orgânica à distribuição da libido, que estaria represada e, conseqüentemente, modificava o Eu. O investimento que deveria estar nos objetos é diluído e redirecionado para o Eu, afirma Freud.

Lacan apresenta precisamente o tema da psicossomática em três momentos diferentes de seu ensinamento: o primeiro no Seminário II (1954), em que valoriza o caráter encapsulado, auto-erótico, como um curto-circuito pulsional do fenômeno; no Seminário XI (1964), sua tônica recai na via do significante e o FPS (fenômeno psicossomático) é emparelhado à debilidade mental e à psicose; é somente na Conferência em Genebra (1975) que o fenômeno psicossomático recebe o atributo de uma assinatura. A lógica proposta por Lacan, nesse momento de seu ensinamento, é a de que o FPS seria análogo a um hieróglifo.

Vale lembrar que, no antigo Egito, os hieróglifos eram a escrita característica daquele povo, cujo código lingüístico era radicalmente diferente daquele que conhecemos. Tanto o hieróglifo quanto o FPS, segundo nossa hipótese, foram inscritos em um código que é refratário ao deslizamento simbólico porque é diferente, encapsulado numa significação própria. Digamos que seja como uma outra língua, tal qual a egípcia. O FPS, distanciado da aparência de letra, como acontece com os sintomas, que podem deslizar, é aproximado do valor numérico, petrificado e ausente de modificações.

Outro psicanalista francês, Jean Guir (1988), estudioso dos fenômenos psicossomáticos, sustenta a hipótese de que nessas doenças a afânise do sujeito (a divisão do sujeito, como conseqüência da castração) não está em jogo, já que os significantes são bloqueados e cristalizados impedindo novas ligações com outros significantes. O deslizamento da cadeia psíquica mantém-se comprometido. Assinala ainda, no mesmo texto, que toda a questão da psicossomática está calcada no processo de satisfação pulsional, na economia do aparelho psíquico. É sabido que, para que os sujeitos possam desejar, é necessária a condição de se depararem com a falta, que é o que oferta empuxo ao desejo; o desejo só existe porque há a falta. O autor supõe que, no fenômeno psicossomático, o significante é paralisado na necessidade, evitando dessa maneira a falta no plano do simbólico. Um curto-circuito no significante é produzido e o sentido único esperado é o resultado do estímulo, evitando o encontro com o desamparo fundamental.

Pode-se, por conseguinte, pensar que talvez o desencadeamento do fenômeno psicossomático esteja diretamente ligado à recusa do desamparo vivido por cada ser falante.

Na clínica da psicossomática é de extrema importância averiguar o passado/ presente clínico do paciente, o diagnóstico médico da afecção e os tratamentos já efetuados. Guir (1988) salienta que é muito comum haver alguma ligação entre os nomes das medicações e o órgão atingido. Ele traça alguns percursos clínicos em que foi descoberto que a medicação funcionou como efeito significativo para os sujeitos. Outro ponto de pesquisa relevante é a causa apresentada pelo paciente sobre a origem da doença e as lembranças mais antigas da afecção, as quais são muito importantes para o tratamento.

Essas questões traçadas dizem respeito ao fenômeno psicossomático, mas qual a relação que existiria entre o fenômeno da alopécia com o retardo de linguagem de Yuri ou ainda com a síndrome de Down?

Bergès (1988) situa três possibilidades de articulação entre o sintoma do retardo da linguagem e suas relações com a afetividade. Uma primeira posição refere-se aos retardos nos quadros regressivos, situações em que houve alguma perda, luto, enfermidade, hospitalização, afecção orgânica; ou quando os cuidadores desejam manter a criança na posição de infans, daquele que ainda não fala. Uma segunda consideração é a referida aos retardos de linguagem como transtornos da comunicação entre a criança e o mundo exterior, na relação mãe-criança. O infans só acessará à palavra quando algo estiver faltando, “...a palavra não é dita senão naquilo que não está lᔠ(Bergès, 1988, p.27). Se a mãe completar plenamente o bebê, se a ele nada faltar, é impossível sua entrada no mundo da fala. E, como terceira e última possibilidade em relação ao retardo da linguagem, Bergès recorre à explicação das vicissitudes da posição da criança em relação à lei, à regra; isto quer dizer que, comumente nesses casos o retardo está vinculado a um não-dito familiar, um segredo familiar de que a criança é porta-voz pelo seu silêncio.

Nesse caso clínico, Yuri parece estar imerso na báscula entre a primeira possibilidade de retardo da linguagem: uma perda; e a terceira, momento em que assumiria o lugar de porta-voz do silêncio familiar. O menino sofreu momentos de extremo desamparo, representados pela cena do assalto; pela própria hospitalização e gravidez da mãe. Ao mesmo tempo, ele é o representante impotente do tema da sexualidade, presente rotineiramente na história da mãe e do pai.

Mas ainda há a síndrome de Down: de que maneira ela está ligada ao fenômeno psicossomático?

A síndrome de Down é uma anomalia genética — mongolismo, como é conhecida popularmente —, referindo-se à trissomia do cromossomo 21. Nada diz de alguma influência no processo de aquisição da linguagem ou de fenômenos de perda de pêlos e cabelos do corpo. Manifesta comumente características de hipotonia; algum retardo mental; alterações orgânicas nos olhos, nariz, língua, mãos e pés e alguns casos de anomalias cardíacas e estatura abaixo da média.

Dessa maneira, o fenômeno da alopécia e o retardo da linguagem apresentados por Yuri não parecem estar necessariamente coligados a esta síndrome, embora se deva considerar, conforme afirma Jerusalinsky, que: “...os sintomas e defeitos, as disfunções e problemas de comportamento, não são já meros objetos a serem descritos e suprimidos, mas elementos de uma cadeia de relações significantes que dão suporte à expressão de um sujeito” (1988).

Vale, finalmente, ressaltar o tema que articularia a probabilidade de um processo analítico com uma criança portadora da síndrome de Down. Considerando a deficiência mental presente nesse quadro, qual seria o lugar da análise, por excelência imersa no estatuto do simbólico?

Elsa Coriat (1997), a partir de sua vasta experiência em clínica de bebês, principalmente crianças com síndrome de Down, realizou uma ampla discussão sobre o lugar dessas ‘deficiências’, palavra por ela substituída por discapacidades mentais, frente à psicanálise. Seu ponto central é questionar o estatuto do orgânico na constituição subjetiva; a organicidade não é fonte causal e determinante do psiquismo, menos ainda de seu aspecto afetivo, ou seja, ser portador de alguma síndrome não inscreveria a criança, a priori, no lugar da diferença. Portanto, o que aparece nesse cenário é a estrutura relacional com os pais. As inscrições parentais ofertam marcas e constroem historietas para uma criança e é a presença desses significantes que deixarão rastros no orgânico. O que está posto em pauta é em que lugar os pais colocam aquela criança perante os seus próprios desejos; eles podem imantar lugares que sinalizam para a diferença, a normalidade, o estorvo ou mesmo o júbilo de suas vidas.

É partindo dessas considerações que a clínica que estuda essa síndrome pode ser lançada. Lacan em seu Seminário XI apresentará idéias sobre a debilidade mental e sua ancoragem na holófrase. A articulação é traçada a partir do pressuposto de que nos débeis não há intervalo entre S1 e S2, isso quer dizer que os significantes holofraseiam-se, solidificam-se, estão impossibilitados tanto da interdição como da entrada de um terceiro significante para romper a cadeia, por sua vez, cristalizada. Contudo, mais adiante, ele mesmo nos apresenta a brecha dessa clínica, por sinal muito bem investigada por Coriat (1997). Não são essas crianças que estão holofraseadas ao significante, o que está aramado e amarrado é a holófrase que o discurso de seus pais produzem sobre elas.

Assim sendo, o que autorizaria a criança a sair do lugar objetal construído por alguns pais diante da diferença orgânica seria a possibilidade da emergência de um sujeito do desejo. Ser o objeto fantasmático do desejo do Outro se dá quando a criança ocupa um lugar ausente de separação, de falta, como acontece nas psicoses; aceder ao lugar de sujeito de seu próprio desejo é haver-se com a pergunta: o que o Outro quer de mim — Che vuoi? — afinal, mergulhar na neurose.

Uma criança, portanto, em constituição, está atrelada ao desejo do Outro e precisa se posicionar como sujeito do seu próprio desejo para distanciar-se daquele que a consome. Logo, são os pais que propiciarão a ascensão desse sujeito ao desejo ou mesmo instalarão o seu naufrágio. Lá estava o bebê, alienado ao desejo do Outro, cá está a criança, eletrizada ao seu próprio desejo — é este o objetivo de um processo analítico com crianças.

Aos pais de crianças portadoras das tais necessidades especiais, ou melhor, das discapacidades, cabe poderem escutar seus filhos como crianças e não como síndromes, ou mesmo patologias.

Yuri, este menino de olhos perdidos busca, através do fenômeno da alopécia, convocar seus pais e dizer o que quer, apresenta-lhes desta forma seu desejo. Não está lá pela síndrome, todavia sua insatisfação, sua busca pelo pai, e mesmo pelo Nome-do-Pai, é gritante. Mostra ser diferente, não como uma criança especialmente Down, mas diferente dos pais. Por estas e outras razões é que se torna possível escutar analiticamente este garoto. Ele usa o corpo da analista como uma tentativa de transformar o laço real em laço de palavra (CORIAT, 1997, p.243), visto que apresenta um retardo de linguagem.

Mas o próprio Lacan ensina que não é imprescindível que a palavra se vocalize para que ela esteja presente. Yuri fala em seus atos, em seus gestos, em seus desenhos e em nome dos pais.

Uma pergunta ainda insiste: estaria Yuri fadado ao naufrágio do simbólico por sua inteligência rebaixada? Os efeitos analíticos que ocorreram neste caso clínico negam tal questão. Mannoni, ao abordar o problema do retardamento mental, sem negar o papel que o fator orgânico ocupa em muitos casos, assinala que a psicanálise não o retém como uma explicação radical para esta questão (1971, p.207). Para além do retardo mental decorrente da trissomia do cromossomo 21, Yuri é um garoto portador do mito familiar que o aprisiona como um refém da história parental e, através do silêncio do fenômeno da alopécia — pois da noite para o dia sua mãe percebe a ausência dos cabelos — ele balbucia o estranho lugar que lhe destina os entraves dessas histórias. Por meio de condições técnicas especiais durante o tratamento, foi possível escutar os enlaces entre as histórias materna e paterna e, em decorrência disso, verificar como o fenômeno da alopécia cristalizou-se no corpo de Yuri e, portanto, pôdese inserir um recorte simbólico a partir do qual, um infans que apenas balbucia, delineia-se como sujeito falante — a despeito dos limites intelectuais que a síndrome de Down impõe a Yuri.

Uma inteligência menor não impossibilitaria a constituição subjetiva de Yuri, a despeito de alguns limites. Isso parece evidente mas, afinal, quem não é limitado? O trabalho analítico permite estarmos diante de um Yuri que sabe e não é apenas sabido.

IGUALDADE E DIFERENÇA: A PRESENÇA DE YURI

O fenômeno psicossomático para Guir (1988) é um “...traço do real, e a lesão psicossomática é um selo corporal da história familiar” (p.42). Para enfrentar esta afirmação, é necessário alinhavar o processo da inscrição familiar de Yuri e os significantes por ele capturados.

Inicia-se com a escolha de seu nome. Yuri6 6 O nome é ficcional, contudo, o cuidado foi grande em aproximar significantes nominais que fizessem sentido em sua história. foi marcado, tal como emblemas, pelos significantes: mulherengo, bonito e médico. Relembrando a formulação saussuriana do signo lingüístico em que é enfática a prevalência do significado sob o significante, Lacan inverte esta proposição apontando para o significante (marca particular, imagem acústica) como sobredeterminando o significado. Yuri recebe um nome escolhido de acordo com os significantes traçados pela mãe, que não deixou de ler e investigar o significado que o nome carregava em si. O significado deste nome é: o amigo de animais, em especial do cavalo. O cavalo é um dos animais mais imponentes e comumente utilizados para conduzir pessoas de um lugar ao outro, ou ser apresentado pelo seu porte e beleza. É regularmente escovado e essa necessidade se faz em função da queda constante de pêlos; ele troca de pêlos. A mãe sempre admirou este animal pela sua crina — lembremo-nos que cabelo é um de seus significantes. Beleza não falta a Yuri; tampouco os pêlos, que caem! Cair é um significante que reaparece em momentos distintos da história desse menino: foi o avião que caiu, o papai que cai e bate, a moça atropelada que caiu, o bebê que nasceu-caiu e os cabelos que caem. Será que o significado do nome teve preponderância sob Yuri, destituindo os significantes que o timbraram? O sujeito, quando destituído de seu nome próprio, se resigna e acaba por ser revestido de uma nova identidade corporal, ficando colado ao significado. Os significantes estão em congelamento, tal qual as datas associadas ao fenômeno psicossomático — a alopécia.

A hipótese familiar de eventos ditos traumáticos e condutores da queda capilar está associada a duas circunstâncias: o falecimento do piloto de fórmula 1 Ayrton Senna e o acidente da TAM. Relevante é que cada um desses fatos tenha ocorrido em épocas distintas: o primeiro, em maio de 1994 e, o segundo, em outubro de 1996, portanto com um distanciamento de aproximadamente dois anos e meio. Nesta construção, verifica-se um furo discursivo, uma similaridade de eventos que foram distanciados na realidade: idéia importante para se pensar na construção do fenômeno de Yuri. Por esse discurso conjugado, podese levantar a hipótese de que entre uma tragédia e outra nada ocorreu, o período foi de pane constante; portanto, a história de Yuri esteve balizada por eventos universais e não por sua particularidade, por ele mesmo.

Outra suposição é de que o fenômeno psicossomático esteja associado a alguma separação drástica na infância, como um momento de desamparo. Completa, a criança não suporta a separação do Outro, requer e clama pela alienação constante. A ausência desse Outro é timbrada na carne, no órgão que desfalece como reatualização do objeto perdido. Assim, as hipóteses de surgimento da afecção atreladas à hospitalização, ao nascimento do irmão e, conseqüentemente, ao distanciamento da mãe ecoam de modo positivo: fatos que culminaram imediatamente ao início da queda capilar.

Ainda é freqüente no discurso do paciente o surgimento de construções bizarras que antecederam o fenômeno queixoso, como, por exemplo os distúrbios de visão e de fala que se apresentaram a Yuri desde bebê. É possível evidenciar nesse momento da discussão que os dois eventos que ocorreram com Yuri e que decepcionaram a mãe foram: a queda capilar e o uso de óculos. O cabelo acenderia a beleza do menino e os óculos a apagariam — como um pirilampo. Para Guir (1988), a história familiar e o passado somático evidenciam o aparecimento da doença. O sujeito acometido por um fenômeno que invade seu corpo e o debilita está de alguma maneira identificado com os traços identificatórios da genealogia.

“O sujeito se faz representante orgânico de uma história dos corpos da sua linhagem, em ressonância à inscrição aberrante dos significantes de sua filiação” (GUIR, 1988, p.39). Os significantes que amarram Yuri são: caiu, bateu e portar. Estes apenas delimitam uma cadeia que está repleta de outros significantes; mas os seus cabelos caem, ou mesmo o bater que o machucou na infância, representado pelo abandono dos pais, pelo desamparo, e um pai que tenta restituir a proteção pelo mesmo bater, além de portar, que o marca na carne pela síndrome de Down, pela alopécia, pelo ser uma porta e estar na pré-escola, como também por estar paralisado inclusive no seu desenvolvimento da aquisição da fala.

Retomemos o caso clínico: Yuri, menino meigo, lindo e mulherengo é sempre a atração por onde passa. Ora furta o olhar dos outros por sua faceirice, ora pela marca da síndrome. Milena, sua mãe, sempre cuidou de crianças desde garota. A mãe dela, portanto, avó de Yuri, casou-se com outro homem quando Milena tinha uns nove anos de idade e por este infortúnio teve que cuidar de todos os irmãos que nasceram desse casamento. Bonita como só, ela era a protegida do padrasto que a impedia de sair sozinha ou mesmo de namorar. Era um ciúme incontrolável o que ele por ela sentia. Certa vez, ao estar sozinha em casa, o padrasto investiu sexualmente contra ela colocando suas mãos em seus seios. Desesperada, ela contou o fato para a mãe, que pediu que ela se calasse e nunca mais mencionasse o ocorrido, acusando-a de contadora de histórias.

Outra revelação foi arrasadora para esta mulher: sua identificação e objeto amoroso sempre fora o avô, que falhou no momento de protegê-la das garras do padrasto. Quando se aproximou dele para pedir socorro, ele se afastou e se calou. Conversando com a avó, que sempre destituíra o marido, esta revela que seu avô era homossexual — mais uma decepção.

Tais fatos sempre assombraram a história de Milena: homem que não presta, avô que falha e não é homem. Ela destitui os homens, deixa-os impotentes tal qual a avó o fez e protege as crianças respondendo ao apelo que fez à mãe e esta se calou.

Quanto ao pai de Yuri é responsável pelas finanças familiares. Inversamente, é o inconseqüente, pratica esportes radicais e está sempre colocando a vida à prova. Um verdadeiro mulherengo: teve muitas amantes, inclusive uma amiga de Milena. A mulher é seu guia, nunca quis gerar filhos e as gravidezes da mulher foram meros acasos. Sente um ciúme imenso da esposa e coloca os dois filhos para vigiá-la.

Esses detalhes familiares são importantes para decodificar, por um lado, o aparecimento da sintomatologia de Yuri: o retardo da linguagem, que enfatiza um desvelamento familiar endereçado à questão da sexualidade. Retomando as notas deixadas por Lacan sobre a clínica infantil: ou a criança é reveladora de uma verdade parental, ou está ocupando o lugar de fantasma do desejo da mãe. Yuri não fala, apenas balbucia ou simplesmente solta alguns monossílabos. Provavelmente, este aparecimento se faz diante da posição que ele ocupa de porta-voz do desejo de seus pais: é parecido com o avô da mãe; nasceu para controlar a beleza que a mãe emana, e, simultaneamente, sofreu perdas muito grandes quando pequeno: sofreu muito de pneumonia e vivia internado; foi vítima de um assalto e, antes mesmo disso, o irmão usurpou seu lugar de majestade- o-bebê.

Por outro lado, há o surgimento do fenômeno: a alopécia, cristalização do significante cabelo e superinvestimento no órgão. Os significantes que a ele foram ofertados endereçam para uma cristalização, uma paralisação que o impede de se implicar subjetivamente, dessa forma ocasionam o fenômeno psicossomático: cabelos; pinto; coitado; três; bateu; caiu... Ser homem é impossível — é assim que a mãe fala por ele, não sofrerá num coito, mas é um coitado; quanto aos cabelos só restam cair e lá está ele tentando restituir as batidas e desencontros de seus pais.

As verdades parentais ligadas à mãe e ao pai surgem como outras tatuagens em Yuri, como demanda de reconhecimento, de amor. Ele precisa ser sempre o coitado, que vai depender da mãe, além de necessitar de uma identificação ao pai através do sem cabeça, ou marcado na cabeça. Este segundo processo, o de identificação com o pai situa uma separação, tal qual no desenho andrógino, como busca entre a distinção anatômica entre os sexos e a provável construção edípica.

Cabe ao tratamento construir a sentença de que a linguagem não é órgão, já que nesta afecção o... órgão está doente da linguagem como articula muito bem Sara Fux (2000), assim como modificar o estatuto desse fenômeno em sintoma para que o acesso ao simbólico ocorra e os significantes possam deslizar e ser transformados, metaforizados.

Recebido em 17/3/2003. Aprovado em 16/6/2003.

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  • *
    Parte deste trabalho foi apresentada em comunicação oral no Simpósio de Psicossomática Psicanalítica no Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo, 2001.
  • 1
    As construções em itálico sinalizam falas, na íntegra, dos sujeitos em questão.
  • 2
    Aparecimento, novamente, do significante ‘pinto’, que pode ser filhote da galinha ou designar o órgão sexual masculino.
  • 3
    ‘Coitados’ soa como ligado a coito, o ato sexual.
  • 4
    ‘Cabeça’, no vocabulário informal, ou mesmo em gírias, pode ter conotação sexual também.
  • 5
    Os significantes que aparecem no discurso familiar, como: ‘coitados’, ‘safadas’ e ‘sem cabeça’, possuem todos conotação sexual.
  • 6
    O nome é ficcional, contudo, o cuidado foi grande em aproximar significantes nominais que fizessem sentido em sua história.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Jun 2006
    • Data do Fascículo
      Jun 2003

    Histórico

    • Recebido
      17 Mar 2003
    • Aceito
      16 Jun 2003
    Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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