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Psicanalista Huo Datong

ENTREVISTA

Psicanalista Huo Datong

Leneide Duarte-Plon

Huo Datong é o único psicanalista da China, país de um bilhão e trezentos milhões de habitantes. Mas não será o único por muito tempo. Ele forma futuros psicanalistas que se encarregarão de disseminar a psicanálise num país em que ela foi proibida até bem pouco.

Freud faz pouco a pouco sua rentrée na China, depois de ter sido traduzido logo no início do século para ser, em seguida, proibido pelo governo de Mao Tsé-Tung, instalado em 1949. Para os comunistas de Mao, a psicanálise era uma disciplina contra-revolucionária e, portanto, perigosa para o regime.

Hoje, muita coisa mudou, mas Huo Datong leciona psicanálise para alunos de pós-graduação no curso de Filosofia da Universidade de Chengdu, na Província de Sechuan, pois a disciplina ainda não tem status próprio. A maioria dos seus alunos, que fazem análise com o próprio professor, sonham em se tornar psicanalistas como ele, que foi chamado por um jornal de seu país de “Freud chinês”. Huo Datong, que fez análise com o francês Michel Guibal, defendeu sua tese de doutorado em Paris sobre o “mito do nascimento do filho do céu”, cujo subtítulo é sutilmente anunciador de sua pesquisa: “Formação do inconsciente chinês”.

Esse psicanalista, de 49 anos, que diz estar à procura da “via chinesa para a psicanálise” deu essa entrevista em Paris, numa de suas freqüentes visitas à capital francesa, na qual falou em duas ocasiões para grupos de psicanalistas franceses curiosos em conhecer o desenvolvimento da psicanálise na China. Os lacanianos franceses, juntamente com psicanalistas freudianos norte-americanos, participaram no ano passado de um simpósio internacional de psicanálise em Chengdu, entusiasmados e esperançosos de verem a China se abrir para a psicanálise.

LENEIDE DUARTE-PLON – O senhor disse que não encontrou o complexo de castração nos seus pacientes. O inconsciente chinês é estruturado diferentemente do inconsciente do homem ocidental?

HUO DATONG – É justamente o que diz Lacan, “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”. Claro, essa linguagem é universal, mas quando é preciso dar interpretações a essa linguagem, então é preciso seguir o modelo de sua própria língua materna. No caso francês, a língua francesa. Nesse caso, se eu dou uma interpretação sobre essa linguagem, sigo um modelo de minha língua materna, a língua chinesa. Então, descendo um pouco mais na realidade, vê-se que a língua francesa e a chinesa são muito diferentes. Claro, pode-se dizer, no nível de “lalangue”, conceito inventado por Lacan, tem-se uma base comum mas a “lalangue” é a língua materna. Aí há diferenças. Que diferenças? Estou justamente procurando-as.

LENEIDE – O senhor é um pioneiro que tenta descobrir como se faz psicanálise em língua chinesa. O senhor inventa de certa forma a psicanálise em chinês?

HUO DATONG – Até agora não posso dizer que inventei. Mas pode-se dizer que talvez deva se fazer psicanálise de uma maneira singular para trabalhar na prática da psicanálise. Mas, será que a diferença exige uma intervenção? É possível, mas não estou totalmente certo disso.

LENEIDE – O senhor não está certo de que há uma linguagem comum?

HUO DATONG – Estou certo de que há uma linguagem comum. Nós evoluímos da África, segundo a ciência. Portanto, temos traços comuns do ponto de vista genético e creio que também ao nível da linguagem temos uma base comum. Em seguida, nos diferenciamos pela cultura e também pela língua. Como se produziu essa diferenciação, essa é uma questão.

LENEIDE – As principais obras de Lacan e Freud já foram traduzidas na China? O senhor e seus alunos podem trabalhar com textos em chinês?

HUO DATONG – Não, ainda não. Temos traduções das obras de Freud mas a partir do inglês e não a partir do texto original alemão.

LENEIDE – As obras de Freud foram traduzidas?

HUO DATONG – Ainda não. Há um professor de psicologia que organizou uma equipe que está fazendo a tradução da obra de Freud. Quanto à obra de Lacan, há um professor de literatura francesa que está traduzindo alguns artigos publicados nos Écrits de Lacan. Ele é chinês.

LENEIDE – O senhor se considera um psicanalista lacaniano. Por quê?

HUO DATONG – Na China me perguntaram: “O senhor é lacaniano ou freudiano?” Respondo: “Não sou nem lacaniano nem freudiano, sou chinês.”

LENEIDE – Na França, o senhor é considerado lacaniano.

HUO DATONG – Se houver no futuro uma escola chinesa de psicanálise, será preciso passar por Freud e depois por Lacan. Por quê? Porque com os instrumentos teóricos e com os instrumentos práticos, pode-se mais facilmente atravessar a diferença das culturas. Talvez para construir uma via chinesa para a psicanálise.

LENEIDE – Esse é o seu objetivo?

HUO DATONG – Exatamente, penso que como a cultura e a língua são tão diferentes, é preciso haver uma escola chinesa que permita esse desenvolvimento. É preciso encontrar a singularidade do inconsciente chinês, quem sabe?

LENEIDE – O senhor tem uma idéia do que pode ser essa singularidade?

HUO DATONG – Já escrevi algumas coisas. É um tanto complexo para explicar. Já mostrei que na China não encontramos mitos como o de Édipo mas encontrei alguns mitos de personagens como o filho do céu, do imperador, do fundador da cultura chinesa, fundador do taoísmo, do budismo, do confucionismo.

LENEIDE – Qual a relação entre esses mitos e o complexo de Édipo?

HUO DATONG – No mito de Édipo o pai já está presente, o filho mata o pai. Nesses outros mitos, primeiramente há a mãe. Depois, o filho. O pai está completamente ausente. Há a história de uma filha que comeu um ovo de um pássaro e engravidou. Seu filho descobre uma espécie de planta. Com essa planta os povos têm o que comer e se tornam cada vez mais fortes. Esse filho tornase o primeiro pai e estabelece o regime patriarcal e também o regime do casamento. Ele tem uma esposa oficial, além de outras. Ele é o pai de seus filhos e o pai de seu povo. Ele não tem pai.

LENEIDE – Que mito é esse?

HUO DATONG – São vários. Eu os estudo na minha tese que está sendo publicada no mês de abril, aqui na França.

LENEIDE – O senhor descobriu Lacan depois de conhecer Freud. Qual é a importância de Lacan para a psicanálise?

HUO DATONG – Ele é o maior de todos depois de Freud. Por quê? Porque Freud descobriu a associação livre, isto é, se a gente fala livremente, sente-se melhor e libera o inconsciente. Mas Freud não deu a interpretação direta, isto é, não explicou por que com a palavra a gente chega a curar os sintomas. Lacan foi além e tentou responder a essa questão, a questão da função da palavra, a função da língua no campo da psicanálise, na prática da psicanálise. As outras escolas psicanalíticas não compreenderam isso. Lacan compreendeu. Sua resposta é exata? Não se sabe. Mas ele tentou responder a essa questão. Os outros fundadores de diferentes correntes psicanalíticas não compreenderam. Isso é muito importante. Depois de Freud, a psiquiatria baseia-se nos medicamentos. Mas a psicanálise e as outras psicoterapias têm como base a palavra, no discurso. Foi Freud quem descobriu e Lacan foi além, perguntando-se qual o papel da palavra.

LENEIDE – O senhor disse que está procurando uma via chinesa para a psicanálise. É preciso adaptar Freud e Lacan à cultura chinesa? É importante encontrar uma outra via?

HUO DATONG – Antes da entrevista, eu pensava que as pessoas que introduziram a psicanálise no Brasil e na Argentina eram européias, imigrantes europeus. Havia uma base comum. Para os muçulmanos também há uma base comum. Ontem, assisti a um seminário sobre “Psicanálise e o Isl㠔. Vi que mesmo para o Islã há um mesmo conceito. É o conceito de Deus. É o conceito do monoteísmo. Primeiramente, com o judaísmo, depois com o cristianismo, depois com os árabes e o Islã. Existe uma raiz comum. Mas não para os chineses. Na China, temos três religiões: confucionismo, budismo e taoísmo. E não temos um conceito de Deus. Cada um tem seu próprio conceito. Nessas três religiões diferentes não há tensão como existe nas outras três religiões monoteístas. Um camponês chinês normal acha que deve primeiramente passar no templo confucionista, depois no templo budista e depois no templo taoísta, tudo no mesmo dia. Ele se sente muito bem, não tem nenhum sentimento de culpa. Para encontrar uma raiz comum entre as religiões monoteístas e as religiões chinesas, devo subir ainda mais um pouco. Mas não sei onde. Talvez até a África.

LENEIDE – No budismo, no confucionismo e no taoísmo há diversas divindades. Essa é a principal diferença das culturas monoteístas?

HUO DATONG – Para o confucionismo, há o céu. Sob o céu há cinco deuses que dividem o espaço: leste, sul, centro, norte e oeste. Para o taoísmo existe o primeiro mestre, o segundo mestre, o terceiro mestre. Para o budismo, é o Buda o mestre mas ele não é deus. Nos templos budistas existem estátuas dos grandes mestres, mas há no máximo 500 grandes mestre budistas. Nas religiões ocidentais é completamente diferente.

LENEIDE – Para fazer psicanálise numa cultura tão diferente, é preciso realmente adaptar a psicanálise a essa cultura, encontrar uma linguagem?

HUO DATONG – Os problemas não são os mesmos, portanto meus pacientes e meus alunos, chineses normais, me colocam questões que a psicanálise nunca encontrou. Não encontro respostas nem em Freud nem em Lacan. Tenho que inventar mas com uma referência do pensamento freudiano e do pensamento lacaniano.

LENEIDE – Foi por isso que o chamaram num jornal chinês de “Freud chinês”...

HUO DATONG – Exatamente.

LENEIDE – Quem são seus alunos na universidade? Eles querem todos se tornar psicanalistas também?

HUO DATONG – Sim. Eu tinha alunos que estudavam disciplinas diferentes como biologia, física, publicidade. Eles vieram de disciplinas diversas mas querem ser psicanalistas. Eles também fazem análise comigo. Acompanham um seminário geral e um seminário clínico. São cerca de dez. Desde o ano passado, obtive a licença para formar estudantes de mestrado em psicanálise e em psicoterapia.

LENEIDE – Já há algum estudante formado em psicanálise?

HUO DATONG – Não, neste caso de que falo são estudantes da universidade que começaram o mestrado há menos de um ano.

LENEIDE – Quanto tempo eles deverão fazer o curso para se tornarem psicanalistas?

HUO DATONG – Para ser analista é preciso pelo menos uma formação de cinco anos para a auto-análise. Para obter o diploma de mestrado em psicanálise eles devem estudar três anos. Desde o primeiro dia, expliquei aos meus alunos o que têm que estudar para serem psicanalistas. Eles todos fazem análise. Eu lhes digo que fazer análise é uma escolha pessoal e se não fizerem análise, com o diploma poderão trabalhar como psicoterapeutas.

LENEIDE – Quantos pacientes o senhor tem que não são seus alunos do curso de mestrado?

HUO DATONG – Tenho alguns pacientes que vieram resolver problemas e depois tiveram vontade de se tornar psicanalistas. Dos meus atuais 20 pacientes, dois terços querem ser psicanalistas. Já tenho cinco alunos que começaram a fazer análise em outros pacientes e vêm discutir os casos comigo ou nos seminários clínicos.

LENEIDE – Por que na China o senhor não pode organizar seminários particulares, fora do contexto da universidade?

HUO DATONG – Não se pode, isto é mal visto pelo governo.

LENEIDE – O senhor pode vir a criar uma escola lacaniana ou freudinana na China?

HUO DATONG – No momento, não. Vou tentar, mas não sei se será permitido. Temos uma seção de psicanálise na Associação Regional de Psicologia. Nós trabalhamos com os psicólogos como se fôssemos uma seção da associação deles.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jun 2006
  • Data do Fascículo
    Jun 2003
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