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Dora, uma experiência dialética

Dora, a dialectical experience

Resumos

Tomando-se por base o texto Intervenção sobre a transferência (LACAN, 1951/1998), apresentamos aqui as considerações de Lacan sobre a direção do tratamento psicanalítico de Dora enquanto uma experiência dialética. Mesmo que a ênfase nas concepções hegelianas tenha sido posteriormente superada, não deixa de ser interessante refletir sobre a concepção da direção do tratamento impressa por ele em sua primeira clínica, à luz das escanções da verdade em seus diversos níveis.

Psicanálise; direção do tratamento; dialética


Based on the work Intervention on transference (LACAN, 1951/1998), this essay discusses a Lacanian approach to Dora's treatment as a dialectical experience. Although Hegel's conceptions have been surpassed, it is still worth reflecting on the treatment approach that he used in his first practice, in the light of several levels of truth scansions.

Psychoanalysis; treatment approach; dialectics


ARTIGOS

Dora, uma experiência dialética* * Relatório parcial de pesquisa de pós-doutoramento na Universidade de Paris 8, orientada por prof. dr. Pierre Bruno, financiada pela Capes e com auxílio carga horária da UFMG, PUC Minas e Unicentro Newton Paiva.

Dora, a dialectical experience

Luis Flávio S. Couto

Psicanalista; doutor em Filosofia pela UFRJ e pós-doutor em Psicanálise pela Universidade Paris 8; professor na UFMG, na PUC Minas e no Unicentro Newton Paiva. Rua Teixeira de Freitas 178/702, 30350-180 Belo Horizonte MG, Tel (31) 3342-1795. luisflaviocouto@terra.com.br

RESUMO

Tomando-se por base o texto Intervenção sobre a transferência (LACAN, 1951/1998), apresentamos aqui as considerações de Lacan sobre a direção do tratamento psicanalítico de Dora enquanto uma experiência dialética. Mesmo que a ênfase nas concepções hegelianas tenha sido posteriormente superada, não deixa de ser interessante refletir sobre a concepção da direção do tratamento impressa por ele em sua primeira clínica, à luz das escanções da verdade em seus diversos níveis.

Palavras-chave: Psicanálise, direção do tratamento, dialética.

ABSTRACT

Based on the work Intervention on transference (LACAN, 1951/1998), this essay discusses a Lacanian approach to Dora's treatment as a dialectical experience. Although Hegel's conceptions have been surpassed, it is still worth reflecting on the treatment approach that he used in his first practice, in the light of several levels of truth scansions.

Keywords: Psychoanalysis, treatment approach, dialectics.

INTRODUÇÃO

São muitíssimas as ocasiões nas quais Lacan, nos primeiros passos de seu ensino, entretece relações entre a psicanálise e a dialética de Hegel. Para ele, a dialética se constituiu como uma "etapa necessária para se fazer brecha nesse mundo dito de positividade" (LACAN, 1963). Entretanto, ao perceber que ela era contestada tanto pela observação das ciências da natureza quanto pelo progresso histórico da ciência fundamental, qual seja a matemática, Lacan termina por afirmar a sua falsidade. Malgrado tal condenação, interessa-nos aqui o reler ou o repensar de Lacan sobre a direção impressa por Freud (1905/1982) ao caso de Dora.

Para Lacan, a psicanálise não pode ser reduzida a uma psicologia cuja meta seria a objetivação de certas propriedades do indivíduo. Com isso, ele a retira do âmbito empirista, propondo um curso dialético para a sua direção. É nessa perspectiva que se deve considerar o "repensando a obra de Freud" (LACAN, 1951/1998, p.216), básica em sua primeira clínica.

A descoberta de Freud de que as doenças falam, permitiu-lhe apresentar uma nova visão de homem, não mais como um indivíduo (sem divisão), mas marcado irremediavelmente por uma hiância, uma falta da qual não se pode escapar. O desvelamento do inconsciente e do irremediável da castração foi, entretanto, ocultado pelo positivismo, por um certo auto-equívoco cientificista. Lacan, ao repensar a psicanálise, ao reconsiderá-la à luz de um outro ponto de vista filosófico, recupera-lhe o sentido e, estabelecendo as bases para uma compreensão, renova, não apenas a obra e o legado de Freud, como o trabalho de toda a geração de psicanalistas que a ele sucede. Deve-se a Lacan o mérito de haver reconhecido a possibilidade de tal renovação, rompendo com uma ortodoxia que dificultou os rearranjos e as retranscrições da obra para outras perspectivas. De fato, ninguém, antes de Lacan, acentuou que o caso de Dora pode ser lido na direção de uma série de inversões dialéticas, quer Freud, segundo considero, a tenha impresso ou não.

Não sendo um diálogo comum, uma psicanálise se inicia com uma proposta inédita: um dos parceiros, o analisante, fala enquanto o outro, o analista, silencia a resposta às demandas ali presentes. O "diálogo" que se estabelece desencadeia uma experiência dialética que gravita em torno do que se pode chamar de verdade do sujeito. É nessa perspectiva que a questão da transferência se coloca. Transferência que leva Freud a reconhecer aí as moções e fantasias revivenciadas na relação com o analista.

O PONTO DE VISTA DE FREUD

No momento em que atende Dora, a direção que Freud imprime ao tratamento se aproxima, segundo meu ponto de vista, mais do método racional dedutivo cartesiano: "observação e experiência – que acompanham as verdades primeiras [claras e distintas] intuídas –, bem como toda a cadeia das conseqüências dessas verdades, dependendo, sempre, de estar em consonância com as verdades evidentes fornecidas pela luz da razão" (COUTO, 1994, p.86). A experiência pode anteceder ou acompanhar as verdades intuídas, podendo, aqui, ser compreendida em dois sentidos: ou como tudo aquilo que percebemos pela sensações e pela reflexão, ou como experimentação ligada a controles experimentais. Descartes se aproxima mais do primeiro sentido, enquanto Newton, do segundo. Se Descartes, porém, não exige uma 'prova', isso não significa que Freud não o faça. Mas, a prova rigorosa (harten Probe, FREUD, 1905/1982, p.108) ou a prova decisiva [entscheidende Beweis, idem, p.132] exigidas por ele não são da ordem de uma experimentação, mas da resposta do paciente e do efeito posterior que a comunicação produziu. A direção consiste em algo muito simples: "bastava-nos, diz Freud, descobrir (erraten – adivinhar, descobrir, resolver ou decifrar) esse inconsciente e comunicá-lo" (FREUD, 1916-17/1982, p.397). E é isso o que faz: Suspeita de algo (FREUD, 1905/1989, p.87); tal suspeita torna-se certeza (idem) e tal certeza é comunicada como conclusão (idem, p.88). A confirmação de sua interpretação (derivada por dedução da idéia clara e distinta e acompanhada da observação e da experiência) é realizada pela negação da intervenção, isto é, por um não-dito pelo paciente (idem, p.52), e por suas afirmações posteriores.

EXEMPLIFICANDO

1. Sintomas

Freud diz, em determinada passagem do caso, que Dora apresenta três sintomas: "o asco, uma sensação alucinatória de pressão na parte superior do corpo e o horror aos homens em conversas ternas [isto é, homens com ereção por excitação sexual]." (Idem, p.28).

2. Origem da formação dos sintomas (os sintomas provêm de uma vivência):

O asco corresponde ao sintoma de recalcamento da zona erógena dos lábios, aos quais o hábito de chupitar infantil de Dora está ligado. A pressão alucinatória provém do deslocamento das sensações sentidas por ela quando do abraço forçado do sr. K. em seu estabelecimento comercial, o que teria provocado uma alteração análoga no clitóris. No lugar da sensação genital, produziu-se o asco (oral) e a excitação do clitóris, que, por deslocamento, termina por fixar-se no tórax, o que vai ser sentido, sob forma alucinatória, como uma pressão (fálica?). O horror aos homens que podem se encontrar em estado de excitação sexual obedece, diz Freud, ao mecanismo de uma fobia destinada a protegê-la contra uma revivescência da percepção recalcada.

3. A idéia clara e distinta, original de Freud

Freud considera que a histeria provém da incapacidade de apresentação, no sistema percepto-consciente, de sensações (pensamentos) de natureza sexual – enquanto sexual, isto é, enquanto elas mantêm conotações claramente sexuais. Em seu lugar, o que se apresenta são os sintomas. Eles são a figuração, a realização de uma fantasia de conteúdo sexual, isto é, de uma situação sexual. E se existem lembranças conceituais (na inconsciência), o que é inconsciente são as ligações, as conexões que não podem ser feitas, mas que se apresentam de forma independente da vontade do sujeito.

4. A direção do tratamento

Durante o tratamento, o paciente chega ao que havia guardado (interceptado) ou ao que não lhe havia ocorrido por mais que sempre o tivesse em conta. As lacunas da memória são preenchidas, e a história clínica é tornada compreensível, consistente e íntegra. O objetivo prático do tratamento, diz Freud, é "cancelar todos os sintomas possíveis e substituí-los por um pensamento consciente" (FREUD, 1905/1989, p.18). Outra meta teórica é a de "salvar tudo aquilo que se encontra deteriorado" (idem).

Conforme dirá mais tarde, não são, exatamente, as impressões, as cenas (infantis ou não) ou as vivências que são inconscientes. O que acontece é que elas não são percebidas porque sofrem, por assim dizer, de uma espécie de 'bloqueio', de 'obstrução' [Absperrung, FREUD, 1914, p.208]. Com freqüência, ocorre ao paciente dizer, em relação a elas, "eu sempre soube", só que "isso não me passava pela cabeça". Não passava pela cabeça porque não havia sido estabelecida a ligação entre as impressões e os sintomas. A ligação não estava consciente. Assim, as fantasias, os processos de referência, as moções de sentimentos e os vínculos [entre as vivências e os sintomas] não foram 'esquecidos' porque nunca foram conscientes. A cura poderia provir a partir do estabelecimento de ligações corretas, fazendo com que a repetição sintomal cedesse o primeiro plano à ligação correta, e assim, a lembrança preencheria a lacuna da memória. Para isso, não basta a convicção do médico, mas o convencimento do paciente.

EXEMPLIFICANDO

Dora tem a possibilidade de se lembrar das impressões e cenas, mas não é capaz de fazer as ligações corretas. Sabe do hábito infantil de chupitar e do seu asco; pode se lembrar das sensações corporais quando do abraço forçado do sr. K. em seu estabelecimento comercial e da pressão alucinatória no tórax e pode ter acesso às sensações obtidas nas alterações no clitóris e sabe de seu horror aos homens em estado de excitação sexual, mas não é capaz de estabelecer as correlações corretas.

O curso da análise deve ir no sentido de que as ligações corretas se façam pela tradução em linguagem direta, isto é, pela tradução, das alusões feitas, em termos sexuais. Freud "dá o nome aos bois" ("j'apelle un chat un chat", idem, p.44), e comunica a Dora a ligação entre os seus sintomas e os assuntos sexuais. Mas, somente faz essa tradução em linguagem direta quando as alusões ao conteúdo sexual estão muito claras e não há risco aparente [de um desmoronamento do eu]. Como ela não demonstrava ter conhecimento da origem de seu conhecimento, Freud guia a sua atenção para a relação dela com o sr. K. (FREUD, 1905/1989, p.29), e, posteriormente, com seu pai, comunicando-lhe, informando-lhe, fazendo-a saber que: ela consentira nas relações entre o seu pai e a sra. K., ou, dito de outra maneira, ela havia estado apaixonada pelo sr. K. (idem, p.34). Consentira, pois a sua meta era, claramente, sensibilizar o pai e afastá-lo de sra. K. (idem, p.41). A raiz dessa preocupação – de caráter um tanto obsessivo – lhe era desconhecida por ser inconsciente. Freud deduz que ela deveria, na fantasia, estar-se colocando no lugar das mulheres amadas por seu pai. Ela "se sentia inclinada em direção a seu pai numa medida maior do que sabia ou queria admitir, pois estava enamorada dele" (idem, p.52).

Freud, então lhe comunica que: ele, Freud, devia supor a existência de seu amor pelo pai e que "a sua inclinação em direção a ele havia tido, já em uma época muito arcaica, o caráter de uma paixão cabal" (idem, p.51).

Freud nos diz ainda de uma outra complicação surgida no caso. Sob o itinerário prevalente das preocupações de Dora da relação de seu pai com a sra. K., se escondia uma moção [Regung, FREUD, 1905/1982, p.133] de ciúme em relação às mulheres – o ciúme por uma mulher (idem, p.56). Tinha por objeto de seu ciúme a sra. K., por causa de seu pai (idem, p.53, p.77), como se estivesse apaixonada por ela (era costume elogiar o seu 'corpo deliciosamente alvo' [idem, p.55]), e a sua própria mãe [idem, p.79] era motivo de um ciúme de raiz infantil que havia subsistido por muito tempo além desse período. Dito de outra maneira, ela possuía uma inclinação de natureza homossexual. Freud só não lhe comunica tal pressuposto porque a análise de Dora terminou antes que ele pudesse "lançar luz sobre essas circunstâncias" (idem, p.54).

Se isso soa para o leitor atual como algo 'selvagem' ou 'inculto', deve-se levar em conta que o caso foi escrito em 1901, antes de toda a reformulação posterior da técnica.

5. A prova rigorosa

Freud se dá conta da necessidade de haver uma espécie de comprovação de sua teoria, o que ele chama de 'prova rigorosa'. A prova é constituída, em primeira instância, pela resposta do paciente. O problema é que tal resposta, embora se deseje um 'sim' (idem, p.52), o que o analista escutará é um sonoro 'não'. O que, se não invalida a interpretação, não é suficiente para nos assegurar o bom funcionamento do modelo. Freud está convencido de que está no caminho correto. Ele até pode nos dar a impressão de que tenta forçar o caso a se encaixar na teoria. Por outro lado, podemos ver que, sem dúvida, no decorrer de sua exposição, há uma espécie de clarificação progressiva dos sentimentos e dos desejos de Dora, embora ela não concorde com as explicações de Freud.

EXEMPLIFICANDO

Freud comunica a Dora a conclusão da sua dedução, qual seja, a de que ela se apaixonara pelo sr. K.; ela, porém, não aceita de forma alguma (idem, p.34). Freud lhe comunica que considerava que sua inclinação em direção ao pai já se encontrava presente há longo tempo. Ela nega, dizendo-lhe: "não me recordo disso" (idem, p.51).

Freud, muito anos depois, no texto da Negação diz: "Não há maior prova de que se conseguiu descobrir o inconsciente que esta frase do analisando, pronunciada como reação: 'Não me parece', ou 'Não, (nunca) me passou pela cabeça" (FREUD, 1925/1989, p.257). A certeza de que o 'não' equivale a um 'sim' encontra-se na escuta do que é dito depois desse 'não'. Numa nota acrescentada em 1923, Freud diz que a negação pode ser traduzida por: "Sim, isso me era inconsciente" (FREUD, 1905/1989, p.51, nota 46). No caso, embora ela tenha negado a sua afeição pelo sr. K., admitiu que achava impossível ficar zangada com ele, e ficou mortalmente pálida quando se encontrou com uma prima quando estava na companhia do sr. K. (idem, p.52). Quando de sua negação do amor pelo pai, conta, logo a seguir, o caso de uma menina de 7 anos que lhe confidenciara o ódio pela mãe e o desejo de se casar com o seu pai (idem, p.51). Essa confirmação a posteriori valida, para Freud, a sua proposição teórica.

6. A prova decisiva

Freud fala, ainda, de uma 'prova decisiva'. Diz que Dora continuou a contradizer as suas afirmações, até que, próximo da interrupção da análise, se obteve a prova decisiva (idem, p.53), o tal 'sim' esperado, ou, como está no texto, a confirmação. Essa se deu no decorrer de um diálogo entre Freud e Dora durante a terceira e última sessão.

EXEMPLIFICANDO

Num determinado momento, Dora pergunta a Freud: "Por que, então, não contei logo a meus pais?" [...] "Agora posso responder à sua pergunta" [...] "A pobre garota [a governanta] [...] aguardava que o sr. K. voltasse a dar a ela a sua ternura. Esse tem que ter sido o seu motivo; [...] ver se ele [o sr. K.] renovaria as suas propostas amorosas." Dora reage com uma lembrança: "Nos primeiros dias após a minha partida, ele me enviou um cartão-postal."

Ao que Freud responde que isso era correto, mas que, como nada mais veio da parte dele, ele, Freud, podia imaginar que ela abrigava um propósito colateral: o de obrigar o sr. K., mediante a acusação, a viajar até o lugar onde ela residia. Diz Freud que ela o interrompeu e disse: "... Isso foi o que ele, a princípio, ofereceu fazer."

Continua Freud: "Então, a nostalgia que você sentia por ele poderia ser apaziguada – e aqui ela moveu a cabeça em sinal de consentimento" – o que provoca certa surpresa em Freud. Seria esse consentimento a prova decisiva que ele esperava? Ele então conclui: "e ele poderia ter-lhe dado a satisfação que você pedia". "Que satisfação?" pergunta Dora.

Freud, então, faz uma série de revelações. Diz que suspeita que ela tinha tomado a sua relação com o sr. K. muito mais a sério do que desejara transparecer até o momento (idem, p.94); acredita que Dora poderia ter pensado que ele queria divorciar-se da sra.K. para poder casar-se com ela, cortejando-a até que a situação se resolvesse (idem, p.95), e sabe que é isso que não quer que se lhe recordem (idem). Revela, então, a sua suspeita tornada certeza. Dora escuta essas explanações; parece comovida; despede-se da maneira a mais amena possível desejando-lhe votos de um feliz ano novo, e não mais retorna.

7. O abandono de Dora

Não é, portanto, pelo acerto ou pelo erro da intervenção que Dora abandona o tratamento. A análise que Freud faz do caso leva-o a considerar o abandono como decorrente do manejo inadequado da transferência. No epílogo, Freud define as transferências como "reedições, recriações de moções e fantasias infantis que, à medida que a análise avança, nada mais fazem do que despertar e tornar-se conscientes. A característica, porém, de sua espécie, é a substituição de uma pessoa anterior pela pessoa do médico" (idem, p.101).

Ele considera que a transferência, que poderia ser tomada como o maior obstáculo à análise, pode se tornar seu maior aliado. Mas, não conseguiu dominar a tempo a transferência (idem, p.103). Acha, mesmo, que deveria ter-lhe dito: "Agora, você fez uma transferência do sr. K. para mim" (idem). E, ao se esclarecer essa transferência, a análise ganharia acesso a um novo material mnêmico, provavelmente referido a fatos (FREUD, 1905/1989, p.104).

Para Freud, Dora teria se vingado dele, como desejara vingar-se do sr. K. Abandonou-o, do mesmo modo como se sentira abandonada e enganada por ele. O caso termina com o relato de um ataque de afonia de Dora, cuja causa excitante tinha sido a visão do atropelamento do sr. K. por uma carruagem.

O PONTO DE VISTA DE LACAN

Não é essa a vertente interpretativa que Lacan valoriza. Prefere considerar o tratamento como seguindo uma direção dialética de influência hegeliana (ou marxiana) e considera que o fenômeno transferencial surge quando, por algum motivo, o processo dialético se interrompe. Na Intervenção sobre transferência (LACAN, 1951/1998), trabalha com escansões de estruturas nas quais a verdade do sujeito vai se desvelando a cada inversão dialética que se vai fazendo. Cada nível de verdade é correlato ao próprio progresso do sujeito. Tal progresso não é sem fim, pois sofre uma solução em sua continuidade quando atinge determinado nível. Lacan, entretanto, embora aponte a falsidade da dialética hegeliana na transmutação prestigiosa do universal no particular pela escansão da trilogia 'tese, antítese e síntese', não nos diz qual seria a metodologia que organizaria a direção do tratamento de Dora. Assim, podemos considerar que essa lógica se apresenta em sua forma através de qualquer uma das seqüências seguintes: Soninha/Anita: ver que usei corpo 10 nas caixas altas...

O ABSTRATO racional, o DIALÉTICO ou negativo racional e o ESPECULATIVO ou positivo racional (de vertente hegeliana); o UNIVERSAL, o PARTICULAR e o SINGULAR; a TESE, a ANTÍTESE e a SÍNTESE (como quer Etchegoyen [1987, p.73] ou a AFIRMAÇÃO, a NEGAÇÃO e a NEGAÇÃO da NEGAÇÃO (de tendência mais marxiana).

É essa última que tomarei como referência.

Esse método é válido não apenas para as grandes obras sistemáticas de Hegel com os seus conceitos, como tem a sua validade estendida para as coisas e para os processos reais, entre os quais a própria experiência psicanalítica. Na etapa conhecida como o retorno a Freud, Lacan vai afirmar que a psicanálise é uma experiência dialética (1951/1998, p.216). É interessante notar que Hegel (1807/1999, p.23) diz que o movimento dialético é interno aos conceitos. Para ele, não é o pensador quem promove a mudança do conceito. O próprio conceito ou a verdade do conceito é que conduz a operação, produzindo a mudança, e não o pensador. O movimento não depende do eu do pensador, tendo a sua própria dinâmica interna.

Nesse sentido, a dialética não pode ser considerada como um método que envolve um procedimento qualquer através do qual alguém, simplesmente, o aplica a um objeto para determinado conhecimento, como se o método e o próprio pesquisador fossem externos ao objeto de estudo. A própria estrutura e o desenvolvimento do método são intrínsecos ao próprio objeto de estudo, como afirma Inwood (1997, p.101), e a esses deve ser acrescentado o próprio pesquisador que não pode ser tomado como externo a seu objeto. É nesse sentido que se pode compreender a famosa afirmação de Miller (s/d) segundo a qual "não há exterioridade do analista com relação ao inconsciente" [...] "o analista, na medida que opera com a cura psicanalítica, não é exterior ao inconsciente do paciente, e que talvez seja necessária uma idéia mais sofisticada do que essa idéia grosseira do inconsciente" (p.60) que o toma por algo da ordem de uma representação infantil que se encontra escondida no paciente e da qual o analista nada teria a ver. O inconsciente, enquanto hiato, constitui-se na fala concreta de um analisante pela intervenção (pontuação, escansão, etc.,) de um significante em ato de um psicanalista.

RETORNANDO A FREUD

No decorrer do caso clínico, Freud obriga Dora a constatar que ela, mais do que participar da trama amorosa que envolve a sra.K., seu pai e o sr. K., ela, "se constitui a cavilha dessa desordem, que não poderia continuar sem a sua complacência" (LACAN, 1958/1998, p.602). Isto consiste em algo muito diferente da adaptação do sujeito à realidade. Não se trata, como diz Lacan, de adaptar o sujeito à realidade que ele denuncia. Não se trata de fazer Dora se adaptar ao fato de seu pai permitir que o sr. K. dela se aproxime, auxiliando-a a denunciar o fato – como efetivamente aconteceu, quando Dora diz à sra.K. que sabe que ela tem um caso amoroso com seu pai (FREUD, 1905/1982, p.118). Trata-se de mostrar que ela está mais do que bem adaptada a essa realidade: Dora é um dos personagens chave para a própria fabricação da trama.

Tomando a dialética hegeliana como chave para a compreensão do caso, Lacan (1951/1998) enfatiza a inversão das posições da bela alma frente à realidade que ela denuncia. Para compreender essa inversão, lembremos da espiral dialética dos três momentos que retomaremos aqui na vertente da Afirmação, da Negação e da Negação da negação, e da idéia de que cada momento suprassume (nega conservando) o anterior, sendo que o terceiro momento (o da negação da negação) fecha o processo, apontando para uma nova Afirmação e, assim sucessivamente.

Lacan, entretanto, parece fechar a direção do tratamento nessa nova e segunda Afirmação (ou seja, aquela que inicia um segundo ciclo dialético), e que se pode chamar de Verdade definitiva ou verdade última do processo analítico. Lacan afirma que, tendo acompanhado o paciente até esse limite de êxtase do "tu és isso", momento em que se lhe revela "a cifra de seu destino mortal", o analista, enquanto praticante, nada a mais pode fazer do que conduzi-lo a esse momento, a partir do qual ele inicia a sua verdadeira viagem (LACAN, 1949/1966, p.100).

OS DESENVOLVIMENTOS DA VERDADE

O esquema a seguir está sendo proposto, de forma puramente didática e simplificada, para auxiliar na compreensão de um desenvolvimento dialético inicial dos níveis de verdade em Dora.

Trabalharemos com três tempos. O primeiro (chamado acima de primeiro nível), constitui o primeiro desenvolvimento da verdade ou Plano da Afirmação da verdade. Esse plano é interrompido pela transferência e por sua interpretação (chamada nesse nível de retificação subjetiva) enquanto uma inversão dialética, que conduz imediatamente a um segundo plano do desenvolvimento da verdade. Esse, a seu turno, será interrompido por uma segunda inversão dialética, e isso até a última inversão dialética, que conduz ao quarto nível, o da Afirmação do segundo nível de verdade, aparentemente definitivo (em termos da direção do tratamento para Lacan), nível esse no qual se inicia a verdadeira viagem.

1º desenvolvimento – Plano da Afirmação da verdade

Dora diz a Freud que a sra. K. e seu pai são amantes; Dora é oferecida ao sr. K. como objeto de troca; seu pai fecha os olhos a essa situação.

Pergunta de Dora: Esses fatos estão aí. Dizem respeito à realidade e não a mim mesma. O que o srenhor, dr. Freud, quer mudar nisso aí?

1ª inversão dialética [1ª Escansão ou moção suspensiva]: Freud diz à Dora: Veja qual é a sua própria parte na desordem de que você se queixa. O que Freud faz é retificar a situação perguntando: "Qual a sua participação nisso?", "Qual a sua responsabilidade na desordem da qual você se queixa?" Tal retificação permite a Dora compreender a sua responsabilidade nessa contradança dos amantes. Mas, qual seria ela? Isso precipita o segundo desenvolvimento da 1ª verdade que não pode ser considerado outra coisa que a aceitação da responsabilidade no caso, ou seja, a negação da ausência de responsabilidade.

2º desenvolvimento – Plano da Negação da 1ª verdade

A primeira inversão dialética não deixa de produzir os seus efeitos. A própria negação já é uma reação de dúvida. Já é um primeiro momento de questionamento do sujeito em relação à posição que ocupa. Sem a retificação, é possível que Dora tivesse permanecido naquela situação, sem ao menos se questionar, produzindo sintomas cada vez mais severos.

Dora mantém um silêncio cúmplice sobre a situação e, mais do que isso, exerce uma proteção vigilante para o casal de amantes. Em suma, não apenas pelo seu silêncio, mas por sua cumplicidade e sob a sua proteção vigilante é que a relação dos amantes pôde perdurar.

Pergunta retificadora (2ª retificação): O que significa o ciúme manifestado por Dora ante a relação amorosa de seu pai? [Observe-se que Lacan não afirmou que isso seria uma segunda retificação subjetiva, mas, creio que, sem forçar o texto, poderíamos considerar que cada intervenção que tem por objetivo transmutar o nível da verdade pode ser considerada como uma retificação subjetiva, apontando para um alargamento do conceito, que deixaria de ser considerado apenas como momento de final das entrevistas preliminares.] Ver a sugestão. Obrigada.

2ª inversão dialética [2ª Escansão (moção, choque ou proposta) suspensiva]: Freud percebe que não se trata de mera proteção vigilante. Não é possível sofrer tanto apenas para proteger o casal de amantes. Deve haver um sentido, um motivo para essa proteção. Mas, qual seria a responsabilidade de Dora na manutenção desse silêncio, a não ser para mascarar o ciúme de seu pai? Ela não quer que ele goste de outra pessoa além dela. Assim, por conveniência, é cúmplice da situação.

Freud, entretanto, compreende que essa aparência de um complexo de Édipo positivo mascara uma outra situação: um interesse de Dora pela sra.K. O pai não é o objeto de ciúme de Dora, verdade já presente – embora encoberta –, no silêncio cúmplice. Dora identifica-se com o seu pai

Freud observa: Ali, não é o pretenso objeto do ciúme que constitui o seu verdadeiro motivo. Ele [o objeto do ciúme] mascara um interesse pela pessoa do sujeito rival. Essa negação precipita a sua própria negação, precipita o terceiro desenvolvimento da verdade, que não pode ser considerado outra coisa senão a aceitação do silêncio motivado não por ciúme do pai, mas por interesse pela sra. K.

3º desenvolvimento – Plano da Negação da negação da 1ª verdade

Identificada a seu pai, Dora, mais do que interesse, mantém um apego fascinado pela sra. K., sendo-lhe leal.

Pergunta retificadora (3ª retificação) – que Freud não fez: A retificação de Freud poderia ter sido: "Como não querer mal à sra. K.?" Qual é o motivo, qual o sentido dessa sua lealdade para com a sra. K.?" ou "O que é, realmente, para você, a sra.K.?"

3ª inversão dialética [3ª Escansão ou moção suspensiva]

A terceira inversão forneceria o valor real do objeto que é a sra. K. para Dora. Freud poderia ter orientado Dora para o reconhecimento do que era a sra. K. para ela. Não é que não seja verdade que Dora tenha interesse, apego fascinado, ou que seja leal à sra. K. Mas, não se trata, aí, do todo da questão; a motivação básica não é o interesse. Essa terceira inversão dialética forneceria o valor real da relação de Dora com a sra. K., qual seja, o mistério de sua própria feminilidade. A retificação de Freud poderia ter precipitado a segunda Afirmação da verdade de Dora (vinculada ao quarto nível do desenvolvimento dialético), aquela que a possibilitaria iniciar a sua "verdadeira viagem".

4º desenvolvimento dialético [2ª Afirmação da verdade – não atingida por Dora]

O mistério de sua própria feminilidade – de sua feminilidade corporal.

Não é verdade que Dora sinta apenas interesse ou encantamento pela sra. K. A negação dessa verdade afirmada poderia desvelar o sentido oculto pelo significante "interesse". Se não é interesse, o que é então? A negação dialética do interesse teria podido conduzir Dora à conclusão do processo. Se não é verdade que ela não tem interesse na sra. K., também não é verdade que esse interesse seja o ponto final de sua análise. A terceira inversão dialética no terceiro nível (produzida pela terceira retificação) – caso tivesse sido realizada – poderia ter permitido que Dora chegasse, não a um quarto nível de uma torção dialética interminável, mas a uma verdade que finalizaria o seu tratamento.

Para Lacan (1951/1998, p.220), o interesse de Dora pela sra. K. mascara uma identificação infantil masculina com seu irmão um ano e meio mais velho. O acesso à sua feminilidade teve como elemento intermediário esse irmão que, como imago, serviu de matriz originária para todas as situações de sua vida. Para Dora ter acesso ao reconhecimento de sua própria feminilidade, teria sido necessário que ela tivesse assumido o seu próprio corpo, sem o que ela permanece enredada nos efeitos de despedaçamento típicos da fase do espelho, permanecendo "nas linhas de fragilização que definem a anatomia fantasística, manifesta nos sintomas de esquise ou de espasmo da histeria" (LACAN, 1949/1998, p.101). Para efetivar, porém, essa condição de acesso a seu corpo, ela só teve esse irmão, que direcionou o seu desejo ao objeto feminino. Assim, na alienação primordial em que o sujeito se reconhece como eu (je), Dora se identifica ao parceiro masculino e deseja uma mulher. Provêm daí a identificação de Dora ao sr. K. e a Freud, bem como o violento apelo da pulsão erótica direcionada à sra. K.

Completar o percurso dialético teria possibilitado a Dora aceitar-se a si mesma como objeto de desejo de um homem (por ela mesma escolhido, acrescento), mas isso somente teria sido possível se ela houvesse esgotado o sentido daquilo que ela procurava na sra. K. Dito de outra maneira, somente se ela tivesse negado a negação no terceiro momento dialético. Mas, para chegar aí, o percurso teria de ser submetido a uma terceira inversão dialética, propiciada por uma retificação que Freud, infelizmente, não fez. Caso tivesse feito, Dora poderia aceitar a cortesia (hommage) masculina, reconhecer-se como mulher, ter acesso a sua feminilidade, e poderia desejar o objeto viril, oferecendo-se como objeto a quem ela haveria de amar.

Freud, porém, adia a retificação em função das relações transferenciais, sem se dar conta de que a transferência nada tem de real no sujeito, sendo, apenas, o aparecimento dos modos permanentes através dos quais o paciente constitui seus objetos, surgindo nos momentos de estagnação da dialética analítica, nos momentos em que o elemento de verdade de um nível ainda não cedeu o seu lugar ao surgimento de um outro.

Se Lacan, neste texto, diz da dificuldade de estabelecer a transferência, definindo-a como obstáculo, não deixa de relacioná-la à contratransferência. No caso, a contratransferência de Freud ao voltar com excessiva freqüência ao amor que o sr. K. inspiraria em Dora. Transferência enquanto entidade "inteiramente relativa à contratransferência" compreendida por ele como a "soma dos preconceitos, das paixões, dos embaraços e até mesmo da informação insuficiente do analista num dado momento do processo dialético" (LACAN, 1951/1998 p.224). Essa falha se mostrará fatal para a continuidade do caso.

Dora interrompe o tratamento, suspendendo a conclusão do processo dialético. Tal interrupção, entretanto, não a impede de sustentar as posições dialéticas já conquistadas, e isso por uma afirmação do seu eu (moi), o que pode ser considerado, afinal de contas, como um progresso. Se considerarmos a direção do tratamento tal como Lacan a aponta neste texto, podemos ver que se trata de iniciar e sustentar um percurso dialético, superando, através de retificações, seus momentos de estagnação. Momentos não dialéticos, que, como uma espécie de "ponto morto" do processo, não é outra coisa senão a própria transferência. A sua interpretação enquanto retificação nada mais é do que se preencher, com um engodo, o vazio desse ponto morto. Mas, não se pense na inutilidade de tal engodo, pois, mesmo enganador, reativa o processo, possibilitando novas inversões dialéticas, reativando-o. A sua ausência pode provocar a interrupção súbita e prematura do tratamento. A retificação coloca-se, pois, como um dos elementos centrais de nosso papel enquanto analistas: "um não-agir positivo, com vistas à ortodramatização da subjetividade do paciente" (LACAN, 1951/1998, p.225). A retificação pode ser considerada, portanto, como "subjetiva", pois conduz o paciente a mudar a sua posição de sujeito frente aos modos permanentes pelos quais ele constitui os seus objetos.

Recebido em 14/4/2004. Aprovado em 13/5/2004.

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  • *
    Relatório parcial de pesquisa de pós-doutoramento na Universidade de Paris 8, orientada por prof. dr. Pierre Bruno, financiada pela Capes e com auxílio carga horária da UFMG, PUC Minas e Unicentro Newton Paiva.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Set 2005
    • Data do Fascículo
      Dez 2004

    Histórico

    • Recebido
      14 Abr 2004
    • Aceito
      13 Maio 2004
    Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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