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Lacan com e sem Derrida?

RESENHAS

Lacan com e sem Derrida?

Chaim Samuel Katz

Psicanalista; escritor; doutor em Comunicação pela UFRJ. xaim@alternex.com.br

Lacan com Derrida. Análise desistencial. René Major. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1992, 252p.

René Major, psicanalista de origem canadense, é bem conhecido na França por suas lutas pela democratização das instituições psicanalíticas, bem como pelo cotejamento das teorias psicanalíticas com o pensamento filosófico. Em 1973 (até 1983), é o grande articulador do grupo Confrontations, que discutiu as diferentes tendências francesas na psicanálise.

Quando encontra o filósofo Derrida, começam uma colaboração proveitosa, que dura até hoje. Assim é que Major foi o grande animador dos Estados Gerais da Psicanálise, realizados em Paris (2000) e Derrida seu principal conferencista (quando pronunciou interessante elaboração sobre a crueldade). Estiveram juntos no Rio de Janeiro, em 2001, realizando um frutífero workshop para cerca de 500 participantes.

Este livro é uma coletânea de conferências; uma confrontação entre os pensamentos de Lacan e Derrida. Major é sabidamente derridiano e, uma das conferências ("Desde Lacan"), é dedicada a pensar as relações do nome próprio com os conceitos, deveria ter um título mais extenso: Desde Lacan: existe um psicanálise 'derridiana'? Mas foi censurada em sua denominação. Tais censuras pontuais são velhas conhecidas da psicanálise, nas suas lutas permanentes de poder e interesses. Depois da obra de Foucault, além de seus mecanismos estabelecidos por Freud, é possível ignorar que a censura também é uma relação de poder?

Lacan foi o grande pensador da psicanálise francesa do século XX. A partir de alguns novos instrumentos dos pensares contemporâneos (Antropologia, Lingüística, Topologia e, indiscutivelmente, as filosofias de Hegel, Kojève e Heidegger), ele elaborou uma série de densas questões para a psicanálise, com o mote "retorno a Freud". Para Lacan, o psiquismo inconsciente se estrutura como linguagem. A Linguagem se estabelece à moda de Saussure, ou seja, como conjunto de significantes e significados, de modo uno e indivisível, pois determinados em união (reunião diria Heidegger, Versammlung). Os significantes são letras indivisíveis e suas diferenças se marcam por sua inscrição numa cadeia unitária (de significantes), único lugar no qual se distinguem. Assim sendo, é preciso que o significante (pois se trata de UM) se destitua de suas características sensíveis, pois ele só existe a partir do Outro da linguagem e só se relaciona com outros significantes.

O que organiza tal Outro é um centro, que contém ou deveria conter sua Verdade Única. Lacan postula que tal centro é A Falta e que os indivíduos só se constituem como sujeitos a partir de sua determinação. Ou seja, o sujeito está remetido ao centro mas ele não o tem; os sujeitos são devedores permanentes da Falta (a ela assujeitados) que os constitui.

Quanto às representações e idéias, as que não se reconhecem em tal centramento simbólico constituído pela Falta, são imaginárias. Ser simbolicamente é saber (e por aí temos grave questão: como seria tal saber inconsciente?) de sua constituição ec-cêntrica, pois a cadeia dos significantes insiste sobre sua própria organização. Ao mesmo tempo, sendo a Linguagem e sendo por ela pensado, o Simbólico reconhece a Falta que constitui as subjetividades, mas que lhes é exterior: tal seria a Lei de O Desejo.

Portanto, a letra só pode ter caráter unitário, e sua Lei ordenadora é o retorno à cadeia dos significantes, único lugar no qual ela faz sentido. O sujeito depende da letra, que é seu "elementar". Para Lacan, a letra sempre chega à sua destinação, porque os significantes têm uma Lei única (e, consequentemente, uma única memória, a posteriori, nachträglich) de sua constituição. Na obra lacaniana, a letra retorna sempre e tem um único destino, determinado pela cadeia significante.

É claro que um criador como Lacan não é dogmático. Ao longo de seu pensar vamos aprendendo acontecimentos desejantes que não se determinam unicamente pelo significante. Num exemplo importante, a noção de gozo, que diz respeito à Unheimlichkeit, ao não-familiar/familiar, doméstico/indomesticado, aí onde o sujeito não mais se remete ao Outro que o constitui desejantemente, mas imediatamente à coisa faltante (das Ding). Nesta extimidade (Lacan) se reúnem o mais estranho e ao mesmo tempo o mais íntimo; onde a cadeia significante não dá mais conta da subjetividade e vigora o mais elevado gozo. No gozo, há uma insistência de recusa do Nome do Pai, que é o que articula a cadeia significante e O Desejo.

Já para Derrida, a letra tem caráter duplo. Não há interpretação única, pois as letras seguem vias distintas (como Major mostra, ao reler "A carta roubada, de Poe). Cada interpretação depende da cena onde se situa e, portanto, inexiste unidade da letra. Derrida dá primazia à escritura e não à fala. A fala se remete à uma metafísica da presença, enquanto ele toma a memória (de acordo com o Freud da "Lousa mágica") como Escritura. A Escritura não é um derivado gráfico da escrita vulgar, mas aquilo que permite articular fala e escrita. A fala diz unicamente um dos registros, não podendo simultaneamente expressar seu duplo; enquanto a escrita vulgar (desde Platão) pretende traduzir as falas como signos. Derrida mostra como a letra se marca pela diferença entre os vários lugares e não há privilégio de uma idealidade (como o Outro e o Desejo que ele acarreta), que funcionaria como lei única e unitária de um suposto conjunto unitário de letras. A presença não se basta para sua afirmação, pois ela requer sempre seu duplo; a presença é apenas uma das "manifestações", um dos fenômenos (Erscheinungen) e não articula todo o campo da Escritura (não há "todo" na Escritura: ela é por-vir, a venir).

Daí a importância da Psicanálise para Derrida. Recusando o Um e também o relativismo, ele preconiza um processo para o saber desconstrucionista, a aná-lysis. Processo que vai da ligação (aná, em grego) à lysis (refere-se ao que está disperso, sem ligação), que marca a impossibilidade da união permanente e única. Donde sua conceptualização de Différance, que funciona como recusa de um começo, de uma Falta absoluta, cuja origem devesse ser investigada como um centro determinante. Derrida mostra que letras não são signos mas espaçamentos, pontuações, vazios, ritmos, andamentos, desligamentos, escanções etc.– são solitárias e desinteressadas, em seu regime de lysis. Deste modo, o que importa à Psicanálise (que abandonou a especificidade do corpo e do afeto na obra lacaniana), na elaboração de Derrida inexiste oposição entre sensível e inteligível. A significação não tem origem única e um centro articulador, pois é produto de um complexo jogo de forças, que se altera constantemente. Cada con-junção é tecida e destecida inúmeras vezes: uma letra jamais retorna ao seu lugar de origem, pois tal locus centralizador inexiste.

Para Derrida, não há atividade que não seja cruel, desde que o duplo da reunião é a desunião. Ou seja, a letra se constitui num jogo de forças e por isto não tem caráter unitário, não pode ser re-velada nem retornada a uma cadeia originária (que seria sua Lei).

Mostra René Major que Derrida postula a heterogeneidade do inconsciente e sua não semanticidade e reafirma a inexistência de lugares marcados de onde as letras emanassem e para os quais retornassem necessariamente (p.163). Com isto se restituem os regimes de singularidade inconsciente, "esquecidos" desde Freud. Enquanto Lacan postula o sujeito constituído a partir do Outro e destinado a partir do Desejo, Derrida coloca em questão o sujeito, pois só desistindo da subjetividade é que se pode analisar a cena e, ao mesmo tempo, ficar fora dela. Um tal "desistimento constitutivo" do sujeito (o subtítulo do livro é "Análise Desistencial") nos remete ao melhor da teoria pulsional de Freud, que nos ensina que não se devem distinguir radicalmente regimes simbólicos e imaginários; enquanto Lacan postula a constituição desejante da subjetividade, que é cêntrica e acarreta uma distinção radical entre o imaginário (especular), o simbólico (organizador) e o real (que insiste).

Por último, há que observar a ênfase dada por Derrida à questão da animalidade do "homem", já que, na medida que seu Desconstrucionismo, não distingue corpo e alma nem um corte radical entre animal e humano (ver O animal eu logo sou. A seguir, tradução, Unesp, 2002). Bem como sua insistência nos regimes não familiares, na elaboração do não-calculável, na desconstrução da "identidade estável do pai e da mãe", "especialmente de uma mãe suposta insubstituível", ainda centrais em algumas psicanálises contemporâneas, nestes tempos de invenções de inseminação artificial, clonagem, adoção homossexual, co-parentalidade, doação de óvulos ou espermas etc. Ou nas novas figuras que emergem ou reemergem na contemporaneidade, como a orfandade (ver sua elaboração sobre Antígona, em Glas, 1974) ou a recusa do luto (como a das "Mães da Praça de Maio").

Fazer Psicanálise no século XXI requer atenção aos novos desafios do pensar e fazer. Em boa tradução, o livro de René Major nos provoca insistentemente e de modo arguto.

Recebido em 16/6/2004.

Aprovado em 5/10/2004.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Set 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 2004
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