RESENHAS
As múltiplas dimensões da transferência na clínica psicanalítica
Ana Lila Lejarraga
Psicanalista; doutora em Saúde Coletiva, IMS/Uerj; professora adjunta do Instituto de Psicologia, UFRJ. analila@ms.microlink.com.br
De corpos e afetos: transferências e clínica psicanalítica. Eliana Schueler Reis. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2004. 134 p.
Os "mais malignos demônios" são convocados no tratamento anímico, dizia Freud. As forças que agem no tratamento são perigosas, e tanto podem ser benéficas quanto destruidoras, dependendo da destreza de quem cura. Essa duplicidade já era conhecida pelos antigos gregos, que sabiam que o mesmo remédio que cura é o veneno que mata, designando ambos com o mesmo nome: phármakon.
O novo livro de Eliana Schueler Reis aborda essas poderosas forças postas em movimento na experiência da cura, nas fronteiras entre o corpo e a alma, que afetam a ambos os participantes do processo. O tema central do livro é a cura pela transferência, partindo da especificidade da clínica psicanalítica, mas visando uma reflexão mais ampla sobre a experiência da cura em geral.
No momento atual, em que os discursos da biomedicina e da psicofarmacologia desafiam a psicanálise, identificando fatos psíquicos a processos bioquímicos e neurológicos, a autora nos faz recordar o caráter híbrido de qualquer abordagem clínica, numa visão crítica dos procedimentos purificadores. Questionam-se tanto as tendências objetivadoras das novas tecnologias que concebem o padecimento psíquico como fato objetivo, purificado de qualquer subjetividade quanto as propostas de tratamentos anímicos purificados das intensidades afetivas e dos corpos.
Retomam-se, neste estudo, as questões inaugurais e básicas da clínica psicanalítica: Como se transfere? Por que circuitos transitam as forças pulsionais no encontro transferencial? O que faz com que a transferência seja um processo subjetivador? O que se exige do clínico no processo terapêutico? Para respondê-las, Eliana Reis lança mão das contribuições de Ferenczi e do diálogo com outras áreas de saber, como os estudos sobre etologia humana, de Daniel Stern, e sobre estética, de José Gil. O conceito de transferência sairá enriquecido e redimensionado com esse diálogo, a partir do qual se desenvolvem hipóteses novas e originais.
A autora considera que a transferência não pode ser reduzida ao plano discursivo ou à simples repetição de lembranças infantis, explorando seus aspectos não verbais: os pequenos gestos, os ínfimos detalhes, os ruídos, os atos insignificantes, as manifestações corporais. Ferenczi já dirigia seu olhar para os sutis sinais expressivos que ocorriam durante as sessões as impressões sensíveis não inscritas como traços mnésicos privilegiando as intensidades afetivas mobilizadas na transferência.
Para trabalhar a percepção desses ínfimos sinais, Eliana Reis lança mão da noção de "pequenas percepções" de Leibniz, retomada e recriada por José Gil nos seus estudos sobre a experiência estética. Essas "pequenas percepções", embora eficazes pelas suas conseqüências, não são apreensíveis de imediato pela consciência. É pelo olhar, diferente da visão objetivadora, que se captam as pequenas percepções, que criam atmosferas, produzindo sentidos que nos afetam, embora sejam a-significantes do ponto de vista da estrutura lingüística. A autora considera que as pequenas percepções são próximas da noção do corpo erógeno freudiano, interpretando o corpo erógeno como um corpo sensível, com um regime de forças próprio, cujas marcas sensórias e perceptivas não são traduzidas, em sua maior parte, pela expressão verbal.
Para explorar essa dimensão corporal e as primeiras formas de experiência subjetiva não verbal, a autora utiliza os estudos de Daniel Stern sobre os afetos de vitalidade e sobre sintonia de afetos. Os afetos de vitalidade, primeiras marcas sensoriais apreendidas pelo sistema perceptivo inato do bebê, são afetos relacionados com os processos vitais, por meio dos quais modulam-se inconscientemente as relações com os outros. A sintonia de afeto refere-se a uma modalidade relacional pela qual a mãe pode captar e dar sentido aos mínimos sinais de seu bebê, estabelecendo canais de contato afetivo entre seus corpos. Essa sintonia, embora não seja total, permite apreender os afetos de vitalidade, o que remete à noção das pequenas percepções, já que a sintonia de afeto se funda nas pequenas percepções.
Com base nessas noções, entre outras, Eliana Reis desenvolve suas argumentações sobre o encontro transferencial e sua dimensão transformadora, num trabalho rigoroso e inovador.
A transferência não se restringe ao campo das representações, mas se constitui pelo detalhe, pelas pequenas percepções, pelas impressões sensíveis que não se registram como memória. A transferência, mais que reedição do passado, é concebida como um processo introjetivo e criador, em que se mobilizam e se transmudam afetos com efeitos transformadores. Nas palavras da autora: "Mais que uma simples reedição representacional dos conflitos infantis recalcados, a transferência se revela como a força capaz de produzir metamorfoses subjetivas que atingem corpo e alma como um campo de possíveis."
O tato ou a capacidade de "sentir com" do analista é repensada como a possibilidade analítica de sintonia de afetos, de ser sensível às pequenas percepções, apreendendo os afetos de vitalidade e as atmosferas.
Eliana Reis propõe ampliar a noção de "atenção flutuante" para um "olhar flutuante" que possa captar os pequenos gestos, as intensidades afetivas, a expressão do corpo e da voz, enfim, um olhar flutuante que apreenda os fenômenos de limiar que a visão objetivadora não vê. Ampliando e redefinindo vários conceitos da clínica psicanalítica, a autora reafirma a radicalidade do encontro transferencial na sua dimensão mais subjetiva e fundante, afetiva e corporal.
Embora a leitura deste livro seja aparentemente fácil, pela elegância e simplicidade do estilo, ela exige do leitor uma atenção e reflexão aprofundadas sobre as questões levantadas e as novas hipóteses propostas. As argumentações vão se costurando com sutileza, articulando conceitos psicanalíticos com outros saberes, o que produz, por pequenas modulações teóricas, por "detalhes", novas perspectivas teóricas e práticas. Pensamos que é uma leitura imprescindível, instigante e enriquecedora, para todos aqueles que se interessam pela clínica psicanalítica e pela experiência da cura de maneira geral.
Recebido em 28/8/2004.
Aprovado em 15/9/2004.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
27 Set 2005 -
Data do Fascículo
Dez 2004