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Existir: o estado próprio do corpo

RESENHAS

Existir — o estado próprio do corpo

Janete Frochtengarten

Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo; janfro@terra.com.br

Corpo. Maria Helena Fernandes. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003, 127 p.

Um inexistente

Era uma vez, tempos e tempos atrás, um rei, conhecido como Carlos Magno. Era um rei guerreiro, que costumava passar em revista os cavaleiros que o serviam. Um dia, como em tantos outros, parou seu cavalo diante de um oficial, virou-se para examiná-lo de alto a baixo e perguntou seu nome. O oficial, erguendo a viseira da armadura, respondeu-lhe, declinando, a plenos pulmões, seu longo nome... E, assim, outro, e outro, e outro até que...

— E você aí, que se mantém tão limpo — disse o rei, pois já notara que, quanto mais durava a guerra, menos respeito pela limpeza encontrava em seus regimentos.

Uma voz emergiu, metálica, do interior do elmo fechado, como se fosse a própria chapa da armadura a vibrar:

— Eu sou Agilulfo Emo Bertrandino dos Altri de Sura, cavaleiro de Selimpia Citeriore e Fez.

— Como não mostra o rosto para o seu rei?

— Porque não existo,sire.

— Faltava-me esta !!! Agora temos na tropa até um cavaleiro que não existe!

Com mão firme e lenta, o rei ergue a viseira do cavaleiro. Vazio o elmo. Na armadura branca não havia ninguém.

— E como é que está servindo, se não existe?

— Com a força da vontade e com a fé em nossa santa causa!

Neste dia, como em tantos outros, o sol se põe. Anoitece. O rei já se recolhera para seus reais aposentos. O cavaleiro inexistente está no acampamento junto aos demais oficiais. Das tendas ergue-se o concerto do pesado arfar dos adormecidos. Agilulfo não dorme. Inquieta-o, mais que tudo, ver pés descalços apontando para cima, o reino dos corpos, uma exposição de carne, cheirando ao vinho bebido e ao suor da jornada de lutas. Agilulfo passa, nervoso, hierático: o corpo das pessoas, que tinham um corpo de verdade, dá-lhe um mal-estar semelhante a inveja, mas também uma sensação que era de orgulho, de desdenhosa superioridade.* * Adaptado dos capítulos iniciais de O cavaleiro inexistente, de Italo Calvino (São Paulo: Companhia das Letras, 1993). (grifos nossos)

Somos superiores?

Nós, psicanalistas, muitas vezes, reagimos com desdenhosa superioridade frente ao corpo de verdade. Sabemos/não sabemos do corpo. Quando não sabemos? Não sabemos, principalmente, nas ocasiões em que o corpo se impõe, joga presença na sala, presentifica dores e sensações que se recusam à fala, "pés descalços que apontam". Mas, eis que, psicanalistas e analisandos, por maior que seja a força de vontade que empenhem no processo analítico, por mais forte que seja a fé em sua peculiar "santa causa", costumam ter corpos. Têm por hábito existir e trazer seus corpos consigo sempre, inclusive para as sessões de trabalho na sala de atendimento. Suas vozes não costumam emanar de um vazio. Se não somos Agilulfos, se somos existentes, somos, também, chamados a examinar o como.

O como existimos

Maria Helena Fernandes, psicanalista, escreveu este livro, que se chama, simplesmente, Corpo. Livro bom entre bons. Bom, porque importante. Importante, por se ocupar em estreitar ligações na rede conceitual, nos lugares/topos onde os nós estão frouxos, ou em evidenciar este nós quando correm o risco de passar desapercebidos.

Se os médicos não sabem o que fazer quando a angústia vem tingir de afeto suas consultas clínicas, os psicanalistas, em seu trabalho, se atrapalham com o corpo — o próprio e o alheio — não por querer ignorar a evidência corpo, mas por não saber como considerá-la. O método psicanalítico, nascido e acalantado no berço da palavra, desenvolveu-se em um campo de mobilidade legitimado pela fala/escuta. Através desta circunscrição, caminhou e caminha. E por ter tantos caminhos andados, por ter tantas extensões percorridas, chega, aqui e ali, aos limites de seu campo. Nestes, nos quais esbarra com novas questões, é instado a se deter. Pode, então, declarar-se insuficiente ou aceitar o desafio.

Desafio aceito, como incluir o corpo na teoria e na prática, sem cair para fora do terreno no qual se pode operar com segurança? Como ampliar a fundamentação e o suporte, sem, ao mesmo tempo abandoná-los, pois são condição de pensamento? Inserindo o corponos recursos já estabelecidos, ampliando-os, reformulando-os, enfim, empurrando os limites para mais além. É o que a autora deste livro realiza. E o faz com o engenho e a arte de quem pode incluir as respirações ofegantes e os suores do esforço: faz com o corpo.

Maria Helena não fala sobre o corpo: ela escreve a partir do corpo,ou seja, põe-se dentro do tema, incomodada e, como conseqüência, im-pulsionada.

Inicialmente, nesta inserção, considera "o viés epistemológico, como o único guardião da possibilidade de interlocução da psicanálise com as demais disciplinas em que o corpo também se constitui como objeto de interesse e estudo" (p.19) e... "A problemática do corpo representa um ponto fundamental nas distinções epistemológicas que devem ser sistematicamente enfatizadas, de forma a garantir não apenas a fertilidade das relações entre psicanálise e medicina, mas também a especificidade da metodologia psicanalítica" (p.22 e 23).

O viés é dado pela própria posição enviesada da psicanálise, que está fora da pertinência a uma "disciplina", que está no interior de duas fronteiras, a do psicológico e a do biológico; sua metodologia específica tem, como apoio, a metapsicologia e, nesta, o conceito — chave-mestra da pulsão. O específico do corpo na psicanálise é um corpo habitado por pulsões e, portanto, um corpo que está imerso no universo das representações, um corpo-linguagem, um corpo com "valor simbólico, quando sua realidade biológica é colocada em um sistema significante" (p.111), um corpo construído, por cada um de nós, sob e sobre nossos exclusivos mapas fantasmáticos. E o corpo que transborda? O corpo das dores que não falam, o corpo dos "pés que apontam", o corpo dos odores?

Maria Helena nos propõe uma lógica do transbordamento, evidenciada pela clínica (com renovado interesse pelas neuroses atuais, da nosografia freudiana) e contemplada pelas modificações que Freud introduz na segunda tópica, especialmente no último dualismo pulsional.

Ligando e re-ligando

Pensar um corpo do transbordamento implica em pensar que nem sempre o corpo biológico está organizado e contido em um sistema significante. Os sintomas corporais constituem-se em um dos fenômenos mais agudos e penosos deste transbordar, podendo ser concebidos como descargas, como excessos que atravessam o aparelho psíquico. Para conhecer melhor a qualidade destes atravessamentos de difícil acessibilidade, é preciso "explorar os desdobramentos teórico-clínicos ligados aos mecanismos da dissociação e da recusa" (p.111-112).

Este corpo, sobretudo este, que escapa ao corpo da representação, é o corpo que inquieta e causa mal-estar ao insone cavaleiro Agilulfo. E é com este, sobretudo com este, que temos de nos haver na clínica atual.

O corpo do transbordamento e o corpo da representação diferenciam-se quanto a possibilidades de circulação psíquica enquanto guardam, estritamente, a mesma origem de corpo pulsional, erógeno. Se, no início de sua teorização, Freud desenha o corpo da sexualidade infantil, delimitando regiões — zonas erógenas, com a conceitualização do narcisismo — é o corpo como um todo que estará recoberto pela erogeneidade; um corpo investido de corpo próprio, de si mesmo. O registro do narcisismo transporta consigo a idéia de um corpo unificado que a autora vai, a seguir, conectar com a afirmação freudiana sobre o ego, "antes de tudo um ego corporal", que "não é apenas um ser de superfície, mas é, ela própria, a projeção de uma superfície. Como Maria Helena faz esta complicada e central conexão? "Se em Freud", nos diz ela, "a relação entre corpo e identidade foi colocada em evidência a partir do momento em que ele introduziu o narcisismo, quando ele diz que o ego é corporal, o caracteriza também como narcísico" (p.86); e conclui, com P.-L.Assoun — para quem a estrutura do ego e do corpo seguem uma lógica, a lógica homóloga das superfícies — que "a emergência da subjetividade se faz segundo esta lógica corpórea da projeção" (p.86).

Sim, mas como o corpo próprio, povoado de si mesmo, advém deste corpo?

O estado de desamparo original do bebê coloca-o, desde o primeiro momento de vida, em dependência total do outro maternal, que funciona ao modo de um para-excitação, no sentido de garantir certo domínio para que as grandes quantidades de excitação, interna e externa possam ser absorvidas, sem ameaça de ruptura. O conceito de ego corporal enquanto projeção, remete a esta transformação do que é da ordem do pulsional, do que é da ordem das forças pulsionais, a partir da passagem por um outro, o Outro primordial, consentâneo à precariedade dos inícios. Um outro que, em vínculo amoroso, acolhe com libido. "O outro é o pólo investidor que vai transformar o corpo biológico em corpo erógeno" (p.90). O investimento libidinal no corpo da criança torna-o corpo erógeno, dando acesso à simbolização, ao corpo vivido como corpo próprio.

Aberta está, muito diretamente, a via para a transferência, para esta peculiar alteridade na clínica. Uma clínica na qual o corpo existe, na representação e no transbordamento, existe na dor que demanda acolhimento; existe em lacunas e sobre-investimentos que demandam reorganização de libidinização; existe no repertório conceitual psicanalítico legitimado por este trabalho intenso que Maria Helena nos oferece.

Um trabalho de forte deslocamento de fronteiras, um trabalho de ampliação, realizado com cuidados no uso da mais delicada e possante ferramenta psicanalítica: a metapsicologia. A via permanece aberta.

Recebido em 28/4/2005

Aprovado em 29/5/2005

  • *
    Adaptado dos capítulos iniciais de
    O cavaleiro inexistente, de Italo Calvino
    (São Paulo: Companhia das Letras, 1993).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Set 2005
    • Data do Fascículo
      Jan 2005
    Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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