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Psicopatologia do endividamento excessivo

The psychopathology of getting into excessive debt

ARTIGOS

Psicopatologia do endividamento excessivo* * Traduzido do original "Psychopathologie du surendettement", inédito.

The psychopathology of getting into excessive debt

Jean-Jacques Rassial

Psicanalista; professor da Universitè Aix-Marseille, França; membro do Espace Analytique, de Paris. Espace Analytique, 56, Rue de Bourgogne 75007, Paris, France

RESUMO

O endividamento excessivo é uma das formas possíveis do polimorfismo sintomático da histeria masculina como modo paradoxal de socialização. Esse processo é examinado numa vinheta clínica, mostrando que diferentemente da dessocialização do psicopata, adolescente excluído da entrada na vida social, aqui há inicialmente uma integração que poderia ser considerada ideal à sociedade e à economia do mercado. Segue-se gradativo deslizamento em direção ao endividamento excessivo, cuja causa fica disfarçada em acontecimentos que só têm relevância pelo seu acúmulo. Depois, os estatutos da dívida e da culpa são singulares, e é visto o lugar do Outro na questão.

Palavras-chave: Endividamento excessivo; histeria masculina; dívida simbólica; o lugar do Outro.

ABSTRACT

Getting into excessive debt is one of the forms that the symptomatic polymorphism of male hysteria can adopt as a paradoxical way of socialization. This process is studied in a clinical vignette pointing that in contrast to the de-socialization of the psychopath – adolescent who excludes himself/herself from entering into social life – here there is at first an integration that could be considered ideal to society and market economy. It is followed by gradual sliding into excessive debt which cause is disguised behind events that are only relevant as they heap. Secondly, the status of debt and guilt is unique, and eventually the place of the "Other" is considered.

Keywords: Getting into excessive debt; male hysteria; symbolic debt; the place of the "Other".

Em vez de uma teoria geral da histeria masculina, vou tratar aqui apenas de um traço específico que me interessa por sua dupla característica: a primeira é sinalizar uma dificuldade ao mesmo tempo individual e coletiva, visto que pode afetar tanto determinados sujeitos quanto grupos, talvez mesmo o conjunto da população. Isto é, pode nos remeter ao envolvimento psicopático tal como é definido enquanto ligando sofrimento subjetivo e sofrimento social. A segunda característica é sua modernidade, no sentido de que esse traço tenderia a tornar-se o sinal privilegiado de uma histerização masculina do nosso tempo.

Tomo por base uma rápida observação de Charles Melman, que há pouco tempo isolou uma neurose de exoneração como sinal de uma histeria masculina, como maneira de livrar-se da dívida simbólica noção que evoquei recentemente para enfatizar que os jovens dos subúrbios, vanguarda da juventude, conseguiam inverter a neurose de escolha de cada sexo (histeria para o lado da mulher, obsessão para o lado do homem).

Se o obsessivo insiste em sua recusa a acertar essa dívida, para deixá-la intacta; se a mulher histérica não a reconhece, uma vez que o preço que teve que pagar pela castração não lhe deu nada em troca, parece-me que o homem histérico consegue utilizar essa dívida para reconhecê-la no âmbito do laço social como legitimamente impagável, e com isso consegue colocar-se sob a dependência de um Outro impotente, ao mesmo tempo que um novo Outro é facilmente encarnado, o Outro da demanda.

Fiquei hesitando entre diversas histórias a esse propósito, querendo evitar desviar-me para a adolescência. Um encontro recente com um executivo africano trouxe-me de volta à memória o caso de um homem que atendi há alguns anos em Montpellier.

O Sr. M'ba tinha mais ou menos 45 anos de idade, era originário de um país da antiga África Ocidental Francesa, proveniente de uma família de muçulmanos notáveis herdeiros ao mesmo tempo de uma tradição tribal animista local, do apoio colonialista numa burguesia produzida localmente, e de uma forte implicação no desenvolvimento econômico de seu país.

Com 16 anos de idade, ele foi enviado à Europa e em parte aos Estados Unidos para fazer estudos importantes. Após ter passado vários anos nos Estados Unidos e na Inglaterra, ele estava na França havia uns dez anos, como executivo superior de uma empresa multinacional. Havia cerca de 20 anos se casara com uma francesa de origem ultramarina, pertencente a uma família de nome célebre.

Desde que começou a trabalhar, ele sistematicamente enviava a metade de seu salário à sua família de origem, e garantia o acolhimento na França dos jovens dessa família, e de seus aparentados (de seus clientes, no sentido romano do termo). Isso sempre lhe criou conflitos com sua mulher e com seu filho mais velho este confrontado, ele próprio, a determinadas dificuldades.

O que provocou o processo de adoecimento foi a morte de seu pai, no lugar de patriarca, ocorrida havia cinco anos, numa ocasião em que ele ao mesmo tempo recusava uma reestruturação de sua função uma vez que lhe propunham que assumisse total responsabilidade sobre a representação africana de sua empresa e um retorno ao país, solicitado pela família. O tema principal, porém, era o de seu caráter no sentido, desenvolvido por Melman, de "meteco" (ou imigrante) entre duas culturas, a do pai e a do Ocidente.

O que para outros poderia ter vindo a desencadear uma paranóia, nele desenvolveu-se de outro modo: inicialmente, certo número de problemas que ele qualificava de psicossomáticos, mas que resultavam mais da lógica da conversão sinais que, tendo desaparecido em sua essência por ocasião de sua entrada em análise, tornaram a aparecer de modo sistemático a cada retorno após meu período de férias, justificando sua ausência quase automática às sessões do mês de setembro em particular ele evocava problemas auditivos, associados a paralisias parciais que suscitaram dois anos de investigações essencialmente neurológicas (que resultaram apenas na identificação de um distúrbio funcional), e seu apelo a tratamentos paralelos. O que fez seus problemas desaparecerem foi a intervenção de um curandeiro (marabu) encontrado por ocasião da temporada anual que ele passava na África.

Mas nos dois anos anteriores à entrevista comigo, surgiu outro sinal, um endividamento maciço que ele próprio, apesar de sua grande competência como gestor, não conseguia explicar denunciado por negócios equivocados na bolsa de valores, por investimentos imobiliários e gastos astronômicos.

Na ocasião em que esteve comigo, embora seu salário fosse do nível dos mais elevados, ele não conseguia guardar senão uma parcela ínfima, e sua mulher teve que retomar um trabalho pouco valorizado e sua demanda era simples: dar-lhe argumentos para parar de mandar dinheiro para sua família de origem, e aliviá-lo de seu estatuto atual de patriarca. Ainda que eu fixasse um valor para meus honorários correspondendo a uma quantia importante, levando em conta aquilo que cobro em média, ele ao mesmo tempo argumentou que queria pagar mais caro cada sessão (segundo uma tabuada bastante fantasiosa) e me disse que, tendo em vista esse preço, eu deveria dar-lhe crédito crédito à palavra, sugeriu certa vez J. Bergès, como a mãe à escuta da criança.

O tratamento, em seguida, assumiu uma feição bastante clássica, e veio a confirmar a histeria, apesar da minha longa reserva quanto ao diagnóstico.

Isto tudo para indicar o quanto o endividamento excessivo pode ser uma das formas, sem dúvida privilegiada hoje em dia, que o polimorfismo sintomático da histeria masculina pode assumir, como maneira de socialização paradoxal. Quais são os determinantes disso?

Em primeiro lugar, diferentemente de uma dessocialização que acontece desde o princípio, como é a do psicopata que desde a adolescência é excluído, ou se exclui, da "entrada na vida social" (para retomar a expressão de Lapassade) aqui o primeiro tempo é uma integração que poderia ser considerada ideal à sociedade e à economia de mercado. Em todo caso, é um tempo em que é proclamada uma vontade de tornar-se um agente que respeita as mesmas normas do consumo que trata de contornar por causa da impotência dessas normas quanto a proteger quem se coloca sob sua dependência. É claro que tenho bem presentes na mente, num nível macrocósmico e não mais subjetivo, a famosa dívida africana e as proposições paradoxais que se seguem para regulamentá-la, mas não vou desenvolver isso aqui.

E há, na maior parte do tempo, um deslizamento progressivo, e não brutal, dessa integração em direção àquilo que a marcação do endividamento excessivo, pronunciada pelo outro, pode induzir em termos de desinserção. Aquilo que eventualmente pode ter efeito de báscula para o Sr. M'ba, a morte do pai fica disfarçado por trás de uma sucessão de acontecimentos que na maioria das vezes só se tornam catastróficos por seu acúmulo aqui, problemas profissionais, dificuldades familiares, distúrbios corporais, demandas contraditórias, etc. O sujeito se descobre endividado até a alma, certamente apontando esta ou aquela causa que possa ser objetivada raras vezes subjetiva mas em essência por efeito de denúncia do contrato, feita pelo Outro.

Em segundo lugar, o estatuto da dívida e da culpabilidade é singular.

Estamos longe do envolvimento imediato em gastos excessivos que, por exemplo, encontramos nos estados maníacos afirmação de "uma liberdade e de uma onipotência infantil recuperadas", segundo a fórmula de Abraham (fenômeno, por exemplo, típico do final de tratamento), ou de estripulia de mulher histérica, conforme a expressão de uma paciente, que dizia viver "com a cabeça nas nuvens", para gerir seu orçamento.

Nas poucas histórias que encontrei, como essa do Sr. M'ba, por um lado, sem atentar para a estrutura, a vida do paciente anteriormente a esse abalo parecia obedecer mais a uma lógica obsessiva, com os temas comuns da dívida e da culpabilidade. Por outro lado, o que se engajava então era uma acusação contra o Outro que, ao menos, compartilhava a culpabilidade. O Outro social, encarnado na figura anônima daquele que empresta (bancos, instituições de crédito, Estado, etc.), fica na posição de estar errado, se bem que ninguém é culpado dessa delinqüência.

De fato, se essa nova dívida não é senão uma metáfora da dívida simbólica, é também seu produto, seu resultado, uma vez que se trata da constatação, levada ao extremo, de que o sujeito está sempre em dívida, e de que essa dívida é impagável o jargão nos informa acerca do humor do supereu no caso: "impagável" é igual a "irresistível". Eu considero esse traço de endividamento excessivo como sinal de uma histeria, mas não necessariamente da estrutura, uma vez que esse balanço histerizante pode igualmente afetar o obsessivo, quando se apresenta o realismo da dívida.

Em terceiro lugar, coloca-se a questão do lugar do Outro nesse caso.

O Sr. M'ba passou muito tempo evocando sua mãe não como figura apagada, que respeitava a lei do pai e compartilhava com este a preocupação de que seu filho "tivesse sucesso"; um sucesso sem objeto não se tratava de ter sucesso em sua vida ou em sua missão mas um sucesso que pudesse mais tarde ser interpretado como sucesso quanto a ser o eixo da sucessão na família.

Essa mãe vai aparecer de outra maneira num lapso, quando ele relata um sonho no qual toda a família estava reunida sem o pai, de maneira "igualitária". Nesse sonho ele próprio aparecia silenciosamente em posição central e estava aterrorizado por isso: "minha mãe me apoiava porque nós éramos o primogênito". De fato vai aparecer que o pai, de maneira mais ou menos oficial, tomara uma segunda esposa na época em que o Sr. M'ba tinha 8 ou 9 anos de idade, e que a família compreendia quatro irmãos e uma irmã do primeiro casamento, e três do segundo. O estatuto de sua mãe era duplamente privilegiado, por ser a mais velha e principalmente por ser a mãe do primogênito. O aparecimento da segunda esposa tinha modificado a relação que sua mãe mantinha com ele que, oficialmente, era considerado como a garantia do lugar de sua mãe. Quando o pai morreu, se ele passava a ser o chefe da família, sua representação local seria sua mãe. Ele associou a transformação de seus sintomas, que eram os problemas corporais, em endividamento excessivo, ao período em que a segunda esposa se casou novamente, rompendo o pacto familiar. O termo que lhe ocorreu então foi o de "descrédito" daquilo que o pai fundara.

Os bancos, as instituições de crédito, talvez mesmo a empresa multinacional que o empregava, constituíam agora uma nova encarnação imaginária do Outro, de um Outro do qual seria possível dizer que sua singularidade é ser mantido debaixo de uma ameaça de castração. Em todos esses casos de endividamento excessivo, encontrei esse processo psíquico em três temas: em primeiro lugar o de uma substituição imaginária da figura do Outro, não do Outro parental em direção ao outro sexo, mas em direção ao Outro social. Em segundo lugar, a castração concebida não como ato, mas como ameaça sustentada; não como transação simbólica, mas como transação imaginária. Em terceiro lugar a afirmação de uma unicidade da castração: todos igualmente castrados ou ameaçados de castração assim como, ao passar do simbólico ao real com uma ponte pelo imaginário, a dívida não é mais aquilo que diferencia o primogênito, ou o menino, e sim algo que afeta todos os sujeitos do mesmo modo, pelo mesmo lado. Para retomar uma discussão recente, estamos aqui no avesso da lógica perversa.

Ainda que a função do Outro e o conjunto de sistemas de segurança social enfatiza isso seja submeter o desejo à vetorização da demanda, algo que se exprime lindamente na linguagem familiar pelo "círculo infernal do endividamento", o próprio sujeito, na figura do litigante, do procurador, pode vir a encarnar esse Outro. Todo mundo conhece a história relatada por Freud, e já conhecida de Heine, dos dois mendigos que se cruzam na escada do rico doador, e o primeiro informa ao outro: "É inútil subir, ele só vai te dar 100 francos" (a tradução é minha); a isso o saber do mais antigo se vê reduzido, mas também elevado, a partir daí.

Generalizando, poderíamos dizer que lá onde a inclinação obsessiva conduz cada qual a assumir heroicamente a função de ser o elo fundamental que confirma a lei e a distribuição que ela organiza, a inclinação histérica é aquela que confirma a legitimidade da contestação, e também de uma queixa que não é mais apenas a de um sujeito, é um lugar onde cada um pode compartilhar algo que seria uma queixa do mundo. Isso dá essa oscilação, que muitas vezes tem um ar maníaco-depressivo quando não sadomasoquista entre a ocupação do lugar do Outro, de um outro que dá pena, e a ocupação do lugar do objeto cuja decadência é a glória.

Claude Landman evocava Sócrates, mas nós, com Jean Brun, não esquecemos que se ele foi o mestre de Platão, foi também o mestre dos Cínicos, levando ao extremo uma ironia que Platão reduziu à sua função maiêutica. Mais ainda do que a de Diógenes, a figura do meteco Antístenes é essencial, aquele que faz de Héracles o herói dessa escola, que faz da recusa do conceito, da recusa do primado dos S1, uma recusa militante, base da escola, até um relativismo social que contesta o casamento tanto quanto os órgãos do poder. É como mestre dos Cínicos que Sócrates é um mestre histérico.

Vou concluir tratando de uma questão que poderia prolongar a de Nacht, quando faz do homem histérico um resistente. Esse traço do endividamento excessivo ou coletivo apresenta o avesso da economia de mercado. De maneira mais geral, para ultrapassar São Francisco, a pobreza tem diversos efeitos: contestando-a, consolidar a primazia social da diferença de classes sobre a diferença sexual, como organizador de um vínculo social democrático; contestando-o, consolidar o dinheiro como falo imaginário; contestando-o, consolidar o apagamento de uma disjunção entre a figura do pai e a do mestre como lugar de saber no Outro.

No cotidiano da nossa prática, no qual é grande o risco de participar da segurança social remetendo a dívida para o lado do Outro social ou então de envolver o paciente num endividamento exagerado cujo agente seria o tratamento, é tempo de estudarmos da maneira mais simples possível, mas não como elemento acessório, o efeito e a função do pagamento da análise.

Recebido em 25/7/2005. Aprovado em 24/8/2005.

Tradução

Pedro Henrique Bernardes Rondon

  • *
    Traduzido do original "Psychopathologie du surendettement", inédito.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Jan 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2005
    Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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