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Atualidade e pertinência clínica do texto de Freud

RESENHAS

Atualidade e pertinência clínica do texto de Freud

Angélica Bastos

Psicanalista; professora adjunta no Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ; abastosg@terra.com.br

10 x Freud. Angela C. Bernardes (org.) Rio de Janeiro: Azougue, 2005, 253 p.

Numa carta a Ludwig Binswanger, Freud confidenciava sua convicção de ter iniciado algo que ocuparia os homens durante muito tempo, embora às vezes um descontentamento em relação à sua extensão e seu aprofundamento o assaltasse; afinal, não havia nada na estrutura do homem que o predispusesse a se ocupar de psicanálise.

A psicanálise continua a ocupar os homens porque ela foi mais que um fato na história, e o inconsciente mais que um conceito ou uma idéia; porque, pelo desejo de Freud, ela se fez transmissão.

10 x Freud, coletânea organizada por Angela Bernardes, reúne dez artigos de psicanalistas, professores do curso de Especialização em Psicanálise e Laço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). Os trabalhos convidam a ler Freud e problematizam seu texto. Mantendo a significação insaturada, o título veicula que não há um Freud em si; sua obra guarda uma potência que o autor-leitor multiplica segundo o problema que lhe endereça.

Cada artigo do livro é convincente quanto ao interesse da mencionada leitura. Uma característica sua, talvez a maior, seja a de traduzir em pertinência clínica a atualidade do texto freudiano. 10 x Freud não se qualifica por adjetivos, mas pelas questões substantivas que coloca.

Em "Freud e a nostalgia do pai", Paulo Vidal relê Totem e Tabu e O declínio do complexo de Édipo, descobrindo no primeiro um dos nomes do declínio do pai. À complexidade da função paterna a qual comporta pelo menos dois pais, o edípico e o da horda - é restituído o núcleo vazio: o pai morto como aquele que articula gozo e lei. Da idéia de declínio, que o autor distingue da noção de decadência e do conceito psicanalítico de recalque, deriva-se a falha estrutural do pai, bem como indicações clínicas relativas à direção e ao fim das análises.

Com um sonho, Letícia Balbi introduz pela via régia o inconsciente. "Anotações sobre o conceito de inconsciente desde Freud" confere à transferência sua função de incluir a alteridade, condição indispensável à construção do saber não sabido na análise. A partir do inconsciente estruturado como uma linguagem, a autora sublinha a participação da alteridade na própria definição do significante. Com Jacques Lacan, o artigo desenvolve a transposição da estrutura da linguagem para a fórmula do sujeito suposto saber, por meio da qual se patenteia a inserção do analista no inconsciente.

Na esfera rarefeita das teorizações sobre os atos, Luís Moreira de Barros lê A psicopatologia da vida cotidiana. "Para além dos atos falhos" se engaja na formalização da dimensão de ato própria a nossas ações, dando inteligibilidade aos atos em função da outra cena. No ato falho e no ato sintomático, o autor destaca, além do sentido singular, sua interpretabilidade. A dimensão significante de todo ato implica alienação e perda, o que confere o caráter falho a todos os atos, podendo despertar o sujeito para o inconsciente.

Freud operou um corte com o que era até então possível pensar e fazer, colocando em outras bases temas que desfrutavam de consistência na filosofia. Conforme sustenta Ricardo Sá, enquanto efeito de linguagem a realidade se apresenta como perdida. "A estrutura alucinatória da realidade" devolve a dimensão da perda de realidade ao dispositivo clínico introduzido por Freud com a hipótese do inconsciente. A perda se inscreve pela referência ao vazio de das Ding, que redimensiona o sentido da noção de realidade nos sonhos, na alucinação e, sobretudo, na experiência psicanalítica.

Com Angela Bernardes, o leitor atravessa vários textos freudianos num percurso pautado nas tensões entre a ferocidade do supereu e a satisfação narcísica dos ideais. Em "O eu e o supereu", a autora situa neste último um dos nomes da divisão do sujeito que se traduz em devastação e sentimento de culpa. Da melancolia e da neurose obsessiva às ditas depressões neuróticas de nossos dias, a autora salienta a dimensão narcísica do laço a ser rompido no luto. O trabalho discute o tratamento (im)possível do supereu na análise, ao mesmo tempo que sustenta a necessidade de uma via adequada a seu manejo clínico.

Em "Considerações sobre o mal-estar na civilização", que não poderia faltar nesse conjunto, Giselle Falbo retoma uma reflexão ética que mantém vivas as interrogações de Freud diante das tendências enigmáticas da civilização premida entre exigências insensatas de renúncia pulsional e o imperativo de gozo que lhes é correlato. A autora aponta o caráter estrutural do mal-estar e ressalta a questão da boa distância a ser estabelecida na relação com o próximo.

Maria Lídia Alencar trata a fantasia nos textos freudianos do ponto de vista da diferenciação entre neurose e perversão. O artigo "A concepção freudiana da fantasia" percorre uma série de dimensões do objeto e de sua falta, passando pelo falo e pelo fetiche, para depreender a escrita mínima que articula sujeito e objeto na fantasia. A autora situa no além-do-princípio-do-prazer um ponto de inflexão nas concepções de Freud, ponto a partir do qual neurose e perversão se reúnem no campo do gozo e se distinguem pela posição dos sujeitos em relação a ele.

"Freud e as instituições de saúde e ensino" é um trabalho que extrai as conseqüências de dois artigos de Freud para a extensão da psicanálise. Valmir Sbano discute as "Linhas de progresso na terapia psicanalítica" e "O ensino da psicanálise nas universidades", revelando um Freud atento aos desafios que o analista deveria enfrentar para sustentar nas instituições públicas uma clínica do sujeito. O autor mostra também que o ensino da psicanálise implica uma experiência do sujeito do inconsciente e que, por isso, dá lugar à transferência, requerendo trabalho do significante para todos os envolvidos nesse ensino.

Com Francisco Leonel Fernandes descobre-se em que medida a operação fundadora de Freud é tributária do aparelho científico, ao mesmo tempo que institui uma região independente. O artigo "Psicanálise e ciência" elege o "Projeto", em que detecta uma manobra diferencial, pois, no limite, a incompatibilidade entre o modelo adotado e a experiência clínica culminará no manejo próprio ao campo do inconsciente. A partir dos dois níveis de redução, o discreto das trilhas e o continuum dos afetos, é traçado o caminho que levou Freud a consumar com o inconsciente, não um reducionismo, mas o corte, tal como a ciência moderna o opera.

Em "Freud, Marx e a Weltanschauung", Cláudio Oliveira aborda as relações da psicanálise com a ciência e a religião. A preferência de Freud pela Weltanschauung científica em detrimento da religiosa reside na precariedade da primeira frente ao caráter totalizante da segunda. O artigo avança com a distinção entre, de um lado, a ciência e, de outro, a psicanálise e o marxismo, que partem ambos do sintoma. Acompanhando o autor, vemos as vicissitudes a que se encontram sujeitos o marxismo e a ação revolucionária, em sua inclinação a uma Weltanschauung religiosa, bem como a distância que os separa do ato analítico.

Não é de se negligenciar o impacto do texto de Freud sobre os leitores em geral. O leitor mais circunstancial e o mais prevenido são suscetíveis de sofrer um efeito especial diante dele: sentem-se tocados, mesmo não sabendo por que ou não podendo traduzir em razões e alcançar com a significação esse efeito. A isso eu chamaria de transferência e mesmo de 'um efeito de verdade'. 10 x Freud vem participar dessa transferência e desse efeito de verdade.

Recebido em 29/9/2005.

Aprovado em 17/10/2005.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jan 2006
  • Data do Fascículo
    Dez 2005
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