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Pulsão de morte como efeito de supereu

Death drive as an effect of the superego

Resumos

Diante da relativa indefinição da noção de pulsão de morte, assim como das grandes controvérsias a que deu lugar, a autora sugere que ao cunhar essa noção Freud apenas sinalizou sua preocupação com os fatos clínicos que ainda não tinha levado convenientemente em conta, e que só depois, com o desenvolvimento da teoria do supereu, ele consegue de fato cunhar ferramentas teóricas para a clínica dos quadros de atração pelo sofrimento e pela dor.

Supereu; pulsão de morte; destrutividade; história; energia


In face of the relative indetermination of the notion of death drive, as well as of the great controversies it provoked, the author suggests that when Freud first presented this notion he only signaled his concern with clinical facts which had not been taken conveniently into account. Only later, with the development of the theory of the superego, he succeeded in obtaining theoretical tools for the clinic of the attraction for suffering and pain.

Superego; death drive; destructivity; history; energy


ARTIGOS

Pulsão de morte como efeito de supereu

Death drive as an effect of the superego

Ana Maria Rudge

Membro psicanalista da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle; professora do Curso de Graduação em Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio; pesquisadora do CNPq. arudge@psi.puc-rio.br

RESUMO

Diante da relativa indefinição da noção de pulsão de morte, assim como das grandes controvérsias a que deu lugar, a autora sugere que ao cunhar essa noção Freud apenas sinalizou sua preocupação com os fatos clínicos que ainda não tinha levado convenientemente em conta, e que só depois, com o desenvolvimento da teoria do supereu, ele consegue de fato cunhar ferramentas teóricas para a clínica dos quadros de atração pelo sofrimento e pela dor.

Palavras-chave: Supereu, pulsão de morte, destrutividade, história, energia.

ABSTRACT

In face of the relative indetermination of the notion of death drive, as well as of the great controversies it provoked, the author suggests that when Freud first presented this notion he only signaled his concern with clinical facts which had not been taken conveniently into account. Only later, with the development of the theory of the superego, he succeeded in obtaining theoretical tools for the clinic of the attraction for suffering and pain.

Keywords: Superego, death drive, destructivity, history, energy.

A clínica psicanalítica nos convoca da maneira mais premente a lidar com a repetição nos caminhos do sofrimento. Ao mesmo tempo em que a repetição, em especial a presente em certos sonhos, nos sintomas da neurose traumática, na reação terapêutica negativa e na compulsão de destino, pode ser tomada como o maior impasse ao tratamento psicanalítico, esses fenômenos povoam toda a análise que conduzimos, e constituem a área própria para a intervenção psicanalítica. Pela irresistível atração pelo sofrimento que as caracteriza, essas manifestações clínicas foram o estopim para a maior reformulação da teoria freudiana. Aquela que introduziu a segunda tópica, e, no seio da nova teoria pulsional, a pulsão de morte, noção tão ambígua, controvertida e com freqüência recusada, explicitamente ou não, por tantos psicanalistas.

Terá sido por conta de uma leitura que descontextualiza a pulsão de morte desse movimento de ir-e-vir que é o da escrita da psicanálise, e da tentativa de apreendê-la apenas pelas definições e referências explícitas a ela na obra freudiana, que essa noção provocou tanta perplexidade e mesmo aversão, dando origem a interpretações tão desencontradas? Considerando, como Lacan, que não se pode aceitar o velho Freud e recusar o jovem Freud (LACAN, 1953/1998, p.268), ou vice-versa, e que é justamente nas viradas e reformulações de suas posições e topografias que se pode melhor apreender sua obra (FINK, 2004, p.67), farei um percurso pelos vários momentos de seu empreendimento teórico, em busca de delimitar melhor o papel da pulsão de morte e seu enlace com o supereu.

Freud introduz a noção de pulsão de morte na psicanálise, definida em um plano que é próprio da biologia, como tendência para reconduzir o ser vivo ao estado inorgânico. É uma proposta que provoca especial perplexidade nos dias de hoje, já que, a partir da influência do estruturalismo e da epistemologia francesa, via Lacan, o pensamento dos analistas está bastante menos afeito à idéia de uma continuidade entre o biológico e o psíquico do que esteve o fundador da psicanálise, sempre influenciado pelo paradigma evolucionista. Mesmo assim, a hipótese da pulsão de morte foi apresentada como especulativa, e incorrendo numa extraterritorialidade em relação às outras construções freudianas.

Há várias outras incógnitas que nos inquietam e acionam nosso pensar. Quando propõe a noção de Tanatos, no quadro de uma oposição entre pulsões de vida e de morte, é no seio de uma defesa do dualismo; defesa que estaria mais do que justificada pela importância que o conflito psíquico gozou na psicanálise, desde a sua origem. Ora, apesar disso, o novo dualismo permanece não utilizado, sem rendimento, quando Freud se põe, a partir dessa época, a teorizar sobre as neuroses e psicoses e sobre os conflitos psíquicos que estariam na gênese desses quadros.

Senão vejamos: a segunda tópica erige isso; eu e supereu como três pólos de possíveis conflitos psíquicos que fundamentariam os sintomas neuróticos e psicóticos (FREUD, 1924/1975; 1926/1975). Entretanto, nesse esquema, a oposição entre os dois tipos de pulsão não encontra lugar, já que as pulsões primárias são tomadas, ambas, como estando em ação de forma difusa no psiquismo todo, e em qualquer de suas instâncias (LAPLANCHE & PONTALIS, 1967, p.532). Como a pulsão de morte não se abriga em nenhuma dessas instâncias em especial, mas, junto com as pulsões de vida, está em todos os territórios do psiquismo, as pulsões estão sempre mais ou menos fusionadas e não dão conta do conflito psíquico.

Se a pulsão de morte não apresentou aplicação imediata na teoria das neuroses e dos conflitos subjacentes a elas, qual o motivo de sua persistência nas elaborações posteriores de Freud? Sem dúvida a forte impressão causada em Freud pela Primeira Guerra: a violência de que tomou ciência, estarrecido, ainda o convocava a dar um lugar teórico ao poder, na vida psíquica, de uma pulsão destrutiva ou agressiva. Além desse nível social, apresentavam-se na clínica psicanalítica as neuroses traumáticas e manifestações masoquistas, como a reação terapêutica negativa e os auto-ataques, que solicitavam serem levados em conta na teoria. E é isso o que faz Freud, mas não invocando a tendência ao inorgânico por si só. Diz ele que as pulsões destrutivas são aquelas que "fazemos derivar da pulsão de morte originária da matéria animada" (FREUD 1938/1975, p.243, grifo nosso).

Não há explicações diretas da destrutividade humana que invoquem a tendência da matéria viva para o inorgânico. O que Freud fez foi dar "base biológica ao princípio da 'discórdia', reconduzindo nossa pulsão de destruição à pulsão de morte, o esforço do vivo para regressar ao estado inanimado" (FREUD, 1937/1975, p.246).

Fica estabelecida uma diferença de nível entre a definição especulativa e biológica da pulsão de morte, e o campo da destrutividade do homem, como verdadeiro tema de interesse clínico. Assim, não é à toa que pulsão de morte e a noção de um masoquismo que é primário fazem sua entrada na psicanálise na mesma época, e respondendo a um mesmo conjunto de problemas levantados pela clínica psicanalítica.

Sabemos que, ao invocar a compulsão à repetição e a pulsão de morte em 1920, Freud reconhecia e enfatizava a inexorabilidade da repetição nos caminhos que levam para o sofrimento, repetição que chegou a qualificar de demoníaca. Entretanto, a questão de como se constitui e atua essa força que empurra o homem para a dor e para o mal continuou sendo um tema central de todas as suas formulações posteriores, já que ter apenas postulado uma força biológica que leva para a extinção de toda a vida não lhe deu condições de lidar com os fenômenos clínicos.

O supereu representa a continuidade e o amadurecimento de uma elaboração que, ao nosso ver, fora apenas esboçada com a postulação da pulsão de morte. Constitui uma ferramenta teórica fundamental sem a qual o entendimento da operação da pulsão de morte na experiência psicanalítica, assim como seu manejo, não se torna possível. Na passagem da pulsão de morte, entendida como força biológica que afeta o ser vivo, para a destrutividade de ordem psíquica — entendida pelo analista como forjada historicamente — o supereu é uma mediação indispensável.

Em 1926, no anexo a Inibição, sintoma e angústia, quando são discriminadas metapsicologicamente as diversas formas de resistência ao tratamento analítico, a reação terapêutica negativa e o masoquismo encontrados na clínica são apresentados como manifestações da tirania de um supereu sádico sobre o eu. Ora, exatamente os mesmos fenômenos clínicos que haviam levado Freud a postular a pulsão de morte são retomados agora sob uma nova rubrica: a de resistência do supereu (FREUD, 1926/1975). Distinguindo cinco diferentes tipos de resistência ao tratamento analítico, que apresentam fundamentos metapsicológicos diversos, destacará a resistência do supereu como a mais radical delas. Esse tipo de resistência (o mais tardiamente descoberto e o mais obscuro dos cinco) resulta do sentimento de culpa e da necessidade de autopunição, e se opõe a qualquer movimento para o sucesso, incluindo as possíveis melhoras no tratamento psicanalítico (FREUD, 1926/1975, p.160). Estamos agora no seio de uma construção metapsicológica bem mais complexa, liberta do apoio na biologia, e de acordo com o postulado psicanalítico fundamental de que, graças ao desamparo do infante, o psiquismo humano está na estrita dependência do que é construído a partir do campo social.

O gradativo detalhamento das construções com que Freud busca dar conta dessa vocação para o pior, para o fracasso e o sofrimento que habita o homem, envolve a introdução do masoquismo como originário. O masoquismo, embora estivesse presente como um dos destinos da pulsão desde os Três ensaios (FREUD, 1905/1975), tem seu estatuto transformado no texto O problema econômico do masoquismo (FREUD, 1924/1975). Passa a ser um masoquismo originário, fundamento de toda a esfera pulsional, e não mais um aspecto de uma pulsão parcial, a pulsão sadomasoquista. Essa promoção do masoquismo respondeu exatamente à experiência de que a maior fonte de resistência ao tratamento é essa força que luta contra a cura e que visa manter o sujeito na doença e no sofrimento.

Em contrapartida a essa posição primária do masoquismo, o supereu, que havia surgido na posição de herdeiro do complexo de Édipo, passará também a primário, a ponto de ser tomado como núcleo do próprio eu (FREUD, 1927/1975), o que sugere que o supereu é seu ponto de origem, o mais arcaico.

O supereu estará inseparavelmente ligado à pulsão de morte: o sentimento de culpa e a busca de punição inconscientes, que são manifestações da tensão entre eu e supereu, representarão a parte da força da pulsão de morte que é "psiquicamente ligada pelo supereu e assim se torna reconhecível" (FREUD, 1937/1975, p.242). Evidencia-se assim que a promoção da pulsão de morte, do supereu e do masoquismo são passos na elaboração de uma teia teórica que visa apreender uma mesma problemática.

Quanto ao chamado último dualismo pulsional freudiano, Miller (2002) contrapõe as posições de Freud às de Lacan: enquanto este último foi monista, o primeiro teria sido dualista. Sem dúvida a retórica freudiana enfatizou o combate entre Eros e a Pulsão de morte como uma verdadeira luta de titãs, a tal ponto que o autor expressa seu temor de ter cansado, com isso, o leitor de O mal-estar. Qual a natureza dos dois combatentes, até que ponto são independentes?

Em diversos momentos, Freud parece estar mais perto do monismo do que sugere essa retórica que visava destacar sua diferença em relação a Jung. Não nos referimos apenas à afirmativa de que a pulsão de morte só opera fusionada com Eros. Como observa Raulet (2002, p.84), Freud parece, às vezes, falar de uma única pulsão, como no final de O mal-estar na cultura: "Quando uma pulsão instintiva sucumbe ao recalcamento, seus elementos libidinosos se transformam em sintomas, seus elementos agressivos em sentimento de culpa" (FREUD, 1930[1929]/1975, p.139). Além do mais, já havia uniformizado o campo das pulsões assim que introduziu a pulsão de morte, ao admitir que se "procurar restaurar um estado anterior de coisas constitui característica tão universal das pulsões, não precisaremos surpreender-nos com que tantos processos se realizem na vida mental independentemente do princípio de prazer" (FREUD, 1920/1975, p.62).

Desta forma, Lacan está sendo fiel a Freud quando afirma que "a distinção entre pulsão de vida e pulsão de morte é verdadeira, na medida em que manifesta dois aspectos da pulsão" (LACAN, 1964/1979, p.243) ou que "toda a pulsão é virtualmente pulsão de morte" (LACAN, 1960/1998, p.863). Seguramente, é preciso um permanente trabalho para manter a pulsão operando dentro dos limites do princípio de prazer, uma vez que ela apresenta essas duas faces que podem alternar.

Apoiando a idéia de que o dualismo pulsional não opõe duas pulsões, mas diferentes formas de funcionamento da pulsão, temos a observação de que Freud nunca nomeou alguma espécie de energia psíquica, paralela à libido, que estivesse a serviço da pulsão de morte. O psicanalista que batiza essa energia, idéia com a qual Freud apenas brincara, foi Federn, e com isso impõe uma perspectiva sobre a natureza da pulsão de morte que não estava presente no trabalho do fundador da psicanálise. Segundo Weiss (1953), Federn abraçou com entusiasmo o novo dualismo pulsional e nomeou de "mortido" a energia de investimento correspondente à pulsão de morte. Propondo uma analogia com a libido, como expressão de Eros, considera a mortido como o tipo de investimento fundamental em operação na melancolia. Os investimentos do ego eram, para Federn, uma fusão de libido e mortido, embora ele ainda considerasse a existência de uma terceira fonte de energia, resultante dos processos vitais do organismo, que, no caso das atividades psíquicas, seriam em especial os processos que têm lugar no sistema nervoso central.

O termo destrudo, mais conhecido e usado entre os psicanalistas do que mortido, e que teve, algumas vezes, sua autoria erroneamente atribuída a Freud, foi também de vez em quando utilizado por Federn para nomear a energia de investimento das pulsões de destruição. Entretanto, o verdadeiro autor desse termo foi o psicanalista Edoardo Weiss (1957, p.213), um colaborador de Federn.

A hesitação de Freud em sacramentar uma noção como a de destrudo decerto expressa uma posição em relação ao estatuto que concede à pulsão de morte. Não seria invocando uma outra qualidade de energia, mantendo-se no plano apenas econômico, que Freud daria conta dos fenômenos clínicos que o levaram a teorizar a pulsão de morte e um funcionamento psíquico além do princípio do prazer. A explicação puramente econômica, de forma geral, não faz sentido na teoria freudiana. O que Freud reputa como uma elaboração metapsicológica é aquela que aborda um processo psíquico a partir, simultaneamente, de três pontos de vistas, o econômico, o topográfico e o dinâmico. As metáforas econômicas levaram muitas vezes a interpretações bastante simplificadoras, e foi o que ocorreu com o princípio de Nirvana.

O princípio do Nirvana, apresentado como correlato da pulsão de morte na época em que esta foi introduzida, representa a tendência para o retorno ao inanimado. Ora, a pulsão de morte, em sua forma de apresentar-se na experiência analítica, como adverte Lacan, é sem dúvida uma experiência de discurso (LACAN, 1969-1970/1991, p.17).1 1 . "Car n'oublions pas que ce n'est pas a considerer le comportement des gens qu'on invente la pulsion de mort. La pulsion de mort, nous l'avons là où il se passe quelque chose entre vous et ce que je dis" (LACAN, 1969-1970/1991, p.15). São dois níveis bem diferentes, o de um princípio econômico de inércia, ou Nirvana, tendente à descarga total e ao repouso absoluto, e a pulsão de morte na experiência clínica, que Lacan insistiu em que "se deve situar no domínio histórico" (LACAN, 1960/1986, p.248), ao invés de reduzi-la a uma tendência no sentido energético, visando afastar a pulsão de morte do domínio biológico.

O princípio da inércia, aliás, quando definido tão cedo quanto no Projeto de uma psicologia científica (FREUD, 1950[1895]/1975), é um princípio que rege o sistema chamado nesse texto de Fi (j), ou seja, aquele que não é capaz de memória das experiências vividas, e que responde aos estímulos mediante a descarga completa dentro do modelo do arco reflexo, e não se aplica aos sistemas Psi (y) que, como sabemos, são caracterizados como sedes da memória pulsional e da linguagem, os sistemas propriamente psíquicos.

O papel das identificações na constituição do sujeito humano, em especial a mais arcaica e básica delas que dá origem ao supereu, é condição de possibilidade fundamental para a operação de uma repetição nos caminhos da dor como a que podemos encontrar no homem. Pré-maturo ao nascer, como observou Freud, o bebê dependerá dos cuidados recebidos do adulto falante, e muito o ouvirá falar enquanto lhe prodigaliza esses cuidados. É nesse processo mesmo que surge o supereu, que se erige a partir das impressões dessa época, sobretudo das palavras ouvidas (FREUD, 1923/1975, p.52-53). A formação do supereu resulta do que podemos tomar como um trauma estrutural, e representa um resíduo das primeiríssimas identificações, constituindo, como vimos, o próprio núcleo do eu.

Em um artigo pioneiro de Ferenczi, "A criança mal acolhida e sua pulsão de morte" (FERENCZI, 1929), já se encontra a idéia de que a pulsão de morte, em seus aspectos clínicos, não se manifesta a não ser pela eficácia do supereu. A partir de sua experiência como médico num hospital militar, e também como analista, o autor se dispõe a compreender a gênese das tendências inconscientes de autodestruição. A atração pela morte, em sua experiência clínica, pareceu-lhe ter origem na captação, por parte da criança, de sinais de aversão e de impaciência da mãe. A hostilidade materna mina no infante a vontade de viver.

Certas doenças, como a asma brônquica e a anorexia, incidiam, em sua observação, em pacientes que lutavam contra tendências suicidas. Levanta então a hipótese de que provavelmente as crianças recebidas sem carinho morrem com mais facilidade e, quando sobrevivem, conservam uma atitude pessimista, desconfiada, e se vêem tentadas a morrer a qualquer percalço em suas vidas, mesmo quando conseguem compensar essa tentação com um esforço permanente de vontade.

A interpretação de Ferenczi é a de que encontrar, ao nascer, essa mensagem materna de rejeição, um mandato equivalente a 'suma!', é uma situação que viria a reforçar a pulsão de morte inata da criança.

Se a pulsão de morte é inata e apenas reforçada pela rejeição que se encontra, ou resulta por completo dos mandatos mortíferos da mãe, eis uma alternativa que parece ter uma relevância relativa, de vez que não terá muitas conseqüências clínicas. Efetivamente, não há amor integral e não ambivalente, e a pulsão de morte jamais deixará de encontrar terreno para se constituir por identificação com a hostilidade do adulto que se eterniza no supereu. A noção de identificação com o agressor que tanta relevância assume no trabalho de Ferenczi parece, inclusive, recobrir a noção de supereu, ou fazer com ela uma interseção.

A identificação com o adulto que dá origem ao supereu é basicamente identificação com seu desejo em relação à criança, embora saibamos que o ódio recalcado do próprio sujeito virá a colorir em tons mais fortes a hostilidade do supereu, que, portanto, não será forçosamente proporcional ao ódio de fato apreendido nos cuidadores. Os mandatos superegóicos resultam de identificações com o que, nos pais, é desejo inconsciente, e subjugam o sujeito com especial eficácia porque operam, em sua quase-totalidade, de forma inconsciente. Os sonhos e aversões parentais inconscientes, que transbordam nas entrelinhas do que dizem, passarão a operar, em sua ausência, no supereu.

Lacan retoma esse veio para conceber o masoquismo fundamental como tributário da dependência ao Outro, da eficácia da incidência do significante sobre o infante, e toma o supereu como resto de um trauma constituinte do humano. Um "trauma do nascimento" que, longe de ser separação da mãe, é a entrada em um novo meio, que é o meio de linguagem. Se o Lacan estruturalista tomou, como trauma constitutivo, a entrada na ordem simbólica que mortifica a criança e a aliena de seu corpo, cada vez mais o psicanalista enfatiza que, nesse meio de linguagem, a criança pode entrar como desejada ou não, embora sempre relativamente mal entendida (LACAN, 1980), remetendo à maneira particular pela qual cada criança faz essa passagem.

A pulsão de morte é "pulsão do supereu" (MILLER, 2002, p.30-31) e se manifesta pela repetição indomada, não temperada pelo princípio de prazer. A razão pela qual essa repetição não pode ser remetida à biologia é porque funciona ao reverso da adaptação. Só o meio de linguagem em que nascemos pode justificar tal repetição antivital, que tem como seu motor o supereu.

A repetição que está na base de toda a pulsão apóia-se nos resíduos das primeiras experiências da infância. Na metapsicologia freudiana, esse resíduo das experiências da primeira infância, é tratado de acordo com diversos modelos, a que Freud recorre com liberdade. Talvez fosse melhor considerá-los como metáforas diversas, já que não refletem muita preocupação com o rigor conceitual considerado científico.2 2 Desenvolvi com maior profundidade essas metáforas no artigo "O infantil na metapsicologia" (1999).

A primeira metáfora é a que se encontra no Projeto de uma psicologia científica. É uma construção de inspiração neurofisiológica, na qual as experiências infantis deixam uma rede de facilitações diferenciadas entre os neurônios que constituem o sistema psi. Assim se constitui uma rede de caminhos e direções preferenciais que irão influenciar os processos psíquicos a partir de então.

A segunda metáfora é a de uma escrita. Derrida (1967) foi o autor que mais valorizou a metáfora da escrita na metapsicologia freudiana. As experiências infantis deixam traços inapagáveis. Estes estão representados tanto pelas inscrições e transcrições que habitam o modelo de aparelho psíquico apresentado na Carta 52, quanto, bem mais tarde, na imagem do Bloco Mágico. O papel das facilitações é tão metafórico quanto os do signo (Zeichen), da inscrição (Niederschrift) e da transcrição (Umschrift), termos presentes na Carta 52 (FREUD, 1950[1896]/1975) e louvados por Derrida como índices do aparecimento de uma conceitualidade gráfica inédita em Freud.

Os traços representam a constituição dos caminhos pulsionais que capitaneiam a repetição. Com freqüência a expressão 'traço' é sucedida pelo qualificativo 'mnêmico', que não deixa de ser paradoxal. Os traços mnêmicos da infância são o fundamento da topografia de uma máquina, que é pura ficção teórica, e sua atuação só pode ser pensada correlativamente ao recalque originário (Urverdrängung). São então da ordem do incognoscível, e do não recuperável pela rememoração, em oposição ao sentido habitual do termo "memória". Embora perdido, aquilo que a criança experimentou sem compreender, mais tarde "irromperá em sua vida com impulsos obsessivos, governará suas ações, decidirá de suas antipatias e simpatias e, muitas vezes, determinará sua escolha de objeto amoroso, para a qual é tão freqüentemente impossível achar uma base racional" (FREUD, 1939/1975, p.126).

Aqui a repetição, como característica da pulsão, encontra seu fundamento. Embora alguns pós-freudianos tenham mal interpretado os qualificativos de "caldeirão" "caos" e "obscuridade" (FREUD, 1933/1975, p.73) pespegado ao Isso, Freud não indicava com essas figuras de retórica que as pulsões seriam inatas e de natureza biológica, mas buscava apenas ressaltar tanto o poder que possuem certos impulsos de destituir o sujeito — que os experimenta de forma totalmente passiva —, quanto a inacessibilidade das impressões infantis que estariam em sua base. Pelo contrário, Freud indica com clareza que o Isso é o nome da estrutura articulada dos processos psíquicos primários (FREUD, 1940/1975, p.164), processos psíquicos que, desde 1895, já estavam definidos por Freud como resultantes das primeiras experiências de relação com o adulto, satisfatórias ou dolorosas, que são eficazes na estruturação do psiquismo.

Um ponto crucial para o entendimento da virada metapsicológica de 1920 é a reformulação da noção de processo primário presente nesse texto. Até aquela data, o principio do prazer e o processo primário (assim como o princípio de realidade e o de processo secundário) tinham sido tomados como correlativos (FREUD, 1911/1975). Neste texto capital, Freud dirá que é necessário que o processo primário seja inibido, isto é, transformado em processo secundário, para que o princípio de prazer possa vigorar. Os processos primários estarão, a partir de então, sempre além do princípio do prazer. Esta é a novidade da qual Lacan dará conta com seu conceito de gozo, quando recicla a dimensão econômica freudiana em termos de uma economia política do gozo (RABINOVICH, 1992).

Lacan também apresenta várias versões da repetição e da pulsão de morte. Em seus primeiros trabalhos no campo da psicanálise, aqueles que se centram nas imagos e no estádio do espelho, sugere que a pulsão de vida e de morte estão imbricadas na relação que se estabelece entre o corpo-organismo e o corpo imaginário unificado, em que este não apenas é ideal mas também objeto de agressividade (LACAN, 1948/1998).

A partir de seu Discurso de Roma, a pulsão de morte passa a depender estreitamente da fala e do significante, a tal ponto que Miller a define como um "conceito antibiológico" (MILLER, 2002, p.44). A ênfase é na morte simbólica, uma segunda morte diversa da biológica, que por um lado a antecipa, mas por outro a transcende, ao garantir ao homem uma sobrevida significante apoiada na transmissão.

A partir dos anos 1960 a compulsão à repetição migrará da cadeia significante para o gozo, cuja produção depende do significante, mas que, sendo indomável pelo simbólico, volta, como real, sempre ao mesmo lugar. O corpo está envolvido no gozo, mas o papel do significante na sua produção, ao invés do recurso à biologia, justifica a idéia de que é a identificação ao supereu e a suas injunções, o que dá conta do que é da pulsão de morte na clínica psicanalítica.

É na relação transferencial que o empuxo para o pior e para o sacrifício se atualiza, permitindo uma apreensão dos significantes que o comandam e seus enlaces com a história do analisando. Sem esse contorno, mas tomando a pulsão de morte diretamente em sua referência biológica, como uma tendência da matéria viva, fica-se sem instrumentos para a intervenção clínica, que deve tomar em conta a economia, mas não pode dispensar a história. Ao não levar em conta o supereu na produção da repetição, só nos restaria embarcar no discurso desesperançado em relação às intensidades que freqüentam a clínica psicanalítica contemporânea, discurso pouco elucidativo, mas tão contemporâneo, ele mesmo...

(1950[1895]) "Project for a Scientific Psychology", v. I, p.281-392.

(1950[1896]) "Letter 52", v. I, p.233-239.

(1905) "Three essays on the Theory of Sexuality", v. VII, p.123-243.

(1911) "Formulations on the two Principles of Mental Functioning", v. XII, p.213-226.

(1920) "Beyond the Pleasure Principle", v. XVIII, p.1-64.

(1923) "The Ego and the Id", v. XIX, p.1-59.

(1924[1923]) "Neurosis and Psychosis", v. XIX, p.149-154.

(1924) "The Economic Problem of Masoquism", v. XIX, p.155-172.

(1924) "The Loss of Reality in Neurosis and Psychosis", v. XIX, p.183-190.

(1925[1924]) "A Note on the Mystic Writing-Pad", v. XIX, p.227-234.

(1926[1925]) "Inhibitions, symptoms and anxiety", v. XX, p.75-172.

(1927) "Humour", v. XXI, p.159-166.

(1930[1929]) "Civilization and its Discontents", v. XXI, p.57-146.

(1933) "The dissection of the psychical personality" — Lecture XXXI of the New introductory lectures on psycho-analysis, v. XXII, p.57-80.

(1937) "Analysis Terminable and Interminable", v. XXIII, p.209-254.

(1939[1934-38]) "Moses and Monotheism: Three Essays", v. XXIII, p.1-138.

(1940[1938]) "An Outline of Psycho-Analysis", v. XXIII, p.141-208.

Recebido em 9/9/2005. Aprovado em 11/4/2006.

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  • 1
    .
    "Car n'oublions pas que ce n'est pas a considerer le comportement des gens qu'on invente la pulsion de mort. La pulsion de mort, nous l'avons là où il se passe quelque chose entre vous et ce que je dis" (LACAN, 1969-1970/1991, p.15).
  • 2
    Desenvolvi com maior profundidade essas metáforas no artigo "O infantil na metapsicologia" (1999).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Ago 2006
    • Data do Fascículo
      Jun 2006

    Histórico

    • Recebido
      09 Set 2005
    • Aceito
      11 Abr 2006
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