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Adolescência, violência e sociedade

Adolescence, violence and society

Resumos

Partindo da expressão da violência no palco social, o autor interroga a resiliência psíquica dessa violência no adolescente. O adolescente violento muitas vezes é uma pessoa desamparada. A violência precisa ser contida, canalizada e dominada. Para conseguir isso o adolescente precisa encontrar em si mesmo recursos e um poderoso apoio narcísico proveniente dos adultos. Ele precisa confrontar-se com adultos que não fraquejem, que resistam à sua destrutividade e que sirvam de referência para ele. Na falta disso, o adolescente não conseguirá orientar sua violência interna em sua busca de sentido, sua busca narcísica identitária. O tratamento da violência passa, portanto, pela tomada de consciência, por parte dos adultos, quanto ao papel que devem exercer na constituição do self, em particular no momento da adolescência.

Apoio narcísico; destrutividade; identidade; desamparo; processo de adolescência; violência; conflito


Starting from the expression of violence in the social stage, the author questions the psychical resilience of that violence in adolescence. The violent adolescent is often a helpless person. Violence must be contained, channeled and tamed. In order to succeed in that, the adolescents need to find in themselves the means, and a powerful narcissistic support from the adults. They need to confront adults who can hold out their destructiveness and who can afford them references. If that lacks, the adolescents will not succeed in driving their inner violence towards their search for meaning, their narcissistic and identity search. So, the treatment of violence passes through the adults taking conscience of the role they must play in the construction of the self, especially in adolescence.

Narcissistic support; destructiveness; identity; helplessness; adolescence process; violence; conflict


TRADUÇÃO

Adolescência, violência e sociedade* * Artigo publicado em Psycho. Magazine d'information en psychologie, Hipnose, Psychanalyse et Psychothérapie. Decembre 2005, n.7, trimestral.

Adolescence, violence and society

François MartyI I Psicanalista; diretor e professor do Laboratório de Psicologia Clínica e de Psicopatologia da Universidade de Paris 5, França; consultor do Ministério da Pesquisa e Ensino Superior do Governo da França; presidente do Collège International de L'Adolescence (Cila); diretor da coleção Champs Libres, junto à Editora In Press; membro do comitê editorial das revistas Adolescence, Cliniques Méditerranéennes, Psychoperspectives, La Lettre du Grape; vice-presidente da Association pour la Formation à la psychothérapie Psychanalytique de l'Enfant et de l'Adolescent (Afppea); autor e organizador de vários livros, dentre eles, Transactions narcissiques à l'adolescence (Dunod, 2002), L'adolescent dans l'histoire de la psychanalyse (In Press, 2003), Ce que souffrir veut dire (In Press, 2004). fmarty.noos.fr, françois.marty@univ-paris5.fr

RESUMO

Partindo da expressão da violência no palco social, o autor interroga a resiliência psíquica dessa violência no adolescente. O adolescente violento muitas vezes é uma pessoa desamparada. A violência precisa ser contida, canalizada e dominada. Para conseguir isso o adolescente precisa encontrar em si mesmo recursos e um poderoso apoio narcísico proveniente dos adultos. Ele precisa confrontar-se com adultos que não fraquejem, que resistam à sua destrutividade e que sirvam de referência para ele. Na falta disso, o adolescente não conseguirá orientar sua violência interna em sua busca de sentido, sua busca narcísica identitária. O tratamento da violência passa, portanto, pela tomada de consciência, por parte dos adultos, quanto ao papel que devem exercer na constituição do self, em particular no momento da adolescência.

Palavras-chave: Apoio narcísico; destrutividade; identidade; desamparo; processo de adolescência; violência; conflito.

ABSTRACT

Starting from the expression of violence in the social stage, the author questions the psychical resilience of that violence in adolescence. The violent adolescent is often a helpless person. Violence must be contained, channeled and tamed. In order to succeed in that, the adolescents need to find in themselves the means, and a powerful narcissistic support from the adults. They need to confront adults who can hold out their destructiveness and who can afford them references. If that lacks, the adolescents will not succeed in driving their inner violence towards their search for meaning, their narcissistic and identity search. So, the treatment of violence passes through the adults taking conscience of the role they must play in the construction of the self, especially in adolescence.

Keywords: Narcissistic support; destructiveness; identity; helplessness; adolescence process; violence; conflict.

A violência urbana preocupa hoje em dia pelo nível que atingiu tanto em termos de freqüência quanto de intensidade. Exige uma análise aprofundada de suas causas, as quais, como todos sabemos, são múltiplas, e convoca aqueles a quem interessa o psíquico, o relacional, o político e o social a formular proposições quanto ao seu tratamento. Nenhuma análise séria pode pretender dar conta dessa violência reduzindo-a a este ou àquele fator. Portanto, não vou me arriscar a explicar a violência nem mesmo a dar receitas de como combatê-la ou transformá-la. Convém demonstrar certa modéstia nesse assunto, e não dar lições a quem quer que seja e, especialmente, convém não perturbar o trabalho de todos aqueles que têm experiência nisso e labutam há muito tempo em busca de soluções equitativas nesse terreno. Contudo, a partir de nossa experiência clínica e da compreensão que temos da violência como expressão psicopatológica, em particular daquela violência que se exprime na adolescência, eu gostaria de abrir algumas vias de reflexão, com a esperança de que aquilo que tem valor na prática clínica possa contribuir para esclarecer uma problemática que concerne ao campo ampliado do político, do econômico e do social. É possível pensar aquilo que se passa no palco social como expressão deslocada do que costumeiramente se produz no palco psíquico, uma vez que tudo fica desligado quando a violência não encontra outros objetos senão o próprio corpo do sujeito. Nas problemáticas do agir, o mundo interno é expelido sobre os objetos externos, e a violência é projetada aí. Hoje em dia os adolescentes atacam suas bases de vida, as de seus próprios pais. É contra esses objetos familiares que eles se enfurecem, como se destruíssem a si mesmos, num movimento de auto-sabotagem, a menos que se trate de uma violência dirigida a seus pais.

NOSSA CONCEPÇÃO DA VIOLÊNICA EM SUAS RELAÇÕES COM A ADOLESCÊNCIA

É muito freqüente que a violência esteja amalgamada com a adolescência. É certo que a adolescência é violenta, mas a violência não é exclusivamente adolescente. Ademais, a violência de que se trata nem sempre é aquela em que acreditamos (refiro-me à violência atuada). Convém distinguir uma violência dita "comum" que pertence propriamente ao processo da adolescência e uma violência "de expressão patológica" que não concerne à maioria dos adolescentes. Trata-se também de distinguir a violência atuada da violência sofrida, a violência auto-agressiva e a violência hetero-agressiva, aquela que se exerce no ambiente (parental, educativo, social) do adolescente.

Adolescência violenta

A violência é o exercício da força sem levar em consideração alguém ou alguma coisa. Esta definição dá de imediato a idéia de submeter alguém, mas também a de abrir um caminho para si mesmo. Porém, em se tratando da adolescência, vamos falar de "violência do adolescente", de "violência na adolescência", ou de "violência da adolescência"? De fato, o encaminhamento de nossa reflexão tenderá a questionar a ligação fundamental que há entre violência e adolescência, mostrando as implicações que decorrem daí no território da clínica e do tratamento.

O processo da adolescência é antes de tudo o acontecimento pubertário; é um arrombamento — Sigmund Freud descreve o processo do arrombamento como "excitações externas bastante fortes para arrombar o pára-excitações" (FREUD, 1923/1981, p.72) — que ameaça o eu, submetendo o adolescente a um bombardeio psíquico que se revela traumático, como, durante a guerra, o bombardeio pode ser para o soldado traumatizado. Esse bombardeio pubertário é uma violência contra a criança que agora é púbere, e desencadeia nela uma reação neurótica de um tipo semelhante à neurose de guerra que o soldado pode conhecer. Para o adolescente, trata-se de uma neurose traumática na qual a violência é compreendida como sendo a da genitalização do psiquismo e do corpo, que abala o corpo da criança. O processo da adolescência terá por função em seguida elaborar esse traumatismo, neurotizando-o.

O acontecimento pubertário ameaça o eu de um perigo vivido como advindo tanto de fora como de dentro. A ameaça exterior — ou vivida desse modo — é a do corpo púbere vivido como "exterior", eventualmente persecutório. Um corpo vivido num sentimento de estranheza como objeto externo e não como um eu-corpo unificado. Não-representado, não-integrado num sentimento de continuidade da existência, esse corpo ameaça a unidade narcísica do sujeito pelas excitações que a puberdade traz, e ante as quais o sujeito se sente desarmado, transbordado, relegando a um "não-lugar psíquico" essa fonte de excitações não mentalizadas.

A ameaça interior se origina na libido pubertária que potencialmente põe em perigo o equilíbrio narcísico-objetal, correndo o risco de uma realização das fantasias edipianas pubertárias. A revivescência do roteiro edipiano infantil relido e reescrito à luz da genitalização potencializa os riscos de passagem ao ato, os riscos do recurso ao agir que encontram sua origem na potência, talvez mesmo na violência dos remanejamentos pubertários.

A ação violenta sobrevém, portanto, na adolescência, em reação à ameaça gerada pelo arrombamento pubertário, uma vez que o processo da adolescência não pode neurotizar o afluxo de excitações pubertárias. Se podemos falar de "violência" em relação aos adolescentes, para todo adolescente é fundamentalmente da violência da adolescência que se trata. Para o restante, tudo ou quase tudo é apenas reação violenta ou então recurso ao agir atuado por adolescentes ameaçados pela violência de sua adolescência ou pela de seus pares. Hoje em dia podemos nos interrogar acerca da natureza da adolescência que os jovens dos subúrbios vivem, como acerca daquela que os jovens dos países que estão em guerra pelo mundo afora podem viver. Se o arrombamento pubertário permanece como referência, esse modelo poderia ser questionado de novo à luz destas situações particulares.

Uma vez que atua por reações violentas, o que falta ao adolescente é a possibilidade de pôr em ação o trabalho da ligação, esse trabalho psíquico que tece permanentemente o fio do sentimento de continuidade da existência, a partir dos primeiros tempos da infância — em que é possível observá-lo como que balbuciando nas alternâncias de presença/ausência e na interiorização, na simbolização da presença e da ausência (em especial do objeto materno) — até essa ocasião do acontecimento pubertário, que fundamentalmente funciona num registro de descontinuidade e também, no entanto, de continuidade (mas não de permanência). Na adolescência, uma vez que o trabalho de ligação está faltando, está em sofrimento, e se a atividade representativa em ação nas fantasias pubertárias não está contida e as experiências pubertárias permanecem sem interpretação, o processo da adolescência enguiça quanto à sua função de elaboração da "violência" pubertária. Porquanto o pubertário é violento: é violento de uma violência que lhe é inerente como a própria violência, em si mesma, é inerente a toda vida, a tudo aquilo que é vida e está vivo. O pubertário é violento por aquilo que traz de novidade, a princípio insana e ameaçadora, às vezes capaz de provocar tamanho desequilíbrio, uma ruptura tão grande na estabilidade da organização da vida psíquica, que o sujeito luta por sua sobrevivência e reage a isso com violência. A violência (atuada) não é fruto de um conflito, é uma reação instintiva de sobrevivência (não é uma interiorização, é antes uma exteriorização). Quando o conflito se trava no encontro de forças antagônicas, a violência é expressão de uma resposta ante uma ameaça vital, resposta que visa proteger a integridade narcísica de um sujeito que está se sentindo ameaçado, desamparado.

As pesquisas têm mostrado que o recurso à ação é ao mesmo tempo uma defesa contra a angústia e uma via potencial de elaboração do pensamento por meio do mecanismo de colocar para fora de si os objetos destrutivos. Por um lado, uma vez que o ato parece tomar o lugar da palavra, fomos tentados a pensar que o recurso à ação traduziria uma impossibilidade de pensar, de simbolizar — o agir percebido então como operando uma espécie de abertura no aparelho psíquico que não permitiria nenhuma elaboração. Entretanto, o estudo da psicopatologia da adolescência permite situar melhor o agir como tentativa de simbolização (ROUSSILLON, 2000) que, para se efetuar, deveria passar por sua realização, e não pelo recalcamento. O outro, objeto da projeção, torna-se então também objeto involuntário de apoio de uma subjetividade que não se interioriza ou que ainda não se interioriza. Por outro lado, o adolescente pode ser compreendido como alguém que busca o prazer essencialmente narcísico para poupar o aparelho psíquico das exigências do trabalho de ligação e de representação, porque os efeitos de traumatismos primários continuariam a fazer-se sentir no atual. Isso levou-nos a considerar o recurso ao agir destruidor do objeto como uma defesa contra esses efeitos do traumatismo — agir para lutar contra a ameaça de desmoronamento — ao mesmo tempo permitindo que o sujeito prossiga numa vida de relação, sob determinadas condições. A violência na adolescência traduz, portanto, um desamparo e uma dificuldade no processo de subjetivação; uma dificuldade cuja passagem pelo ato constituiria uma tentativa de solução, uma busca de tranqüilização.

Propostas para um possível tratamento da violência

A partir de nossa compreensão da violência, e em particular daquela que se exprime na adolescência, gostaríamos de expor alguns princípios que tornam operacionais as conclusões que tiramos de nossa experiência clínica com adolescentes difíceis. Sem banalizar a violência nem demonizá-la, trata-se de considerar quais são as alternativas à resposta de "tolerância zero" e de "chega de repressão" que algumas vezes é apresentada hoje em dia, considerada por determinados especialistas como sendo o único caminho possível para o tratamento da violência dos jovens. Se provoca uma resposta em termos de limites, de contenção, algumas vezes de chamada da lei, a violência não poderá ser tratada pela única via da firmeza, se esta firmeza não se acompanhar de justiça e de respeito.

É em torno da noção de "apoio narcísico parental" que desejo expor estas propostas.

O que é apoio narcísico parental?

O apoio narcísico parental (GUTTON, 1990) constitui o melhor recurso para permitir que os adolescentes lutem de maneira eficaz contra sua própria tendência à destruição, contra as projeções paranóicas. Esse apoio narcísico parental inclui a capacidade dos pais em oferecer a seus filhos adolescentes sustentação para sua agressividade. É assim que o conflito com os objetos externos pode nascer e progressivamente ser interiorizado, retomando o caminho das vias de elaboração dos conflitos da infância, aproveitando as novas possibilidades que o conflito edipiano pubertário oferece. Para os pais, esse apoio narcísico implica:

• Dar-se como adulto ao adolescente que o procura para confrontar-se com ele.

• Oferecer limites, como quem oferece um presente (o dever dos limites — P. Legendre).

• Resistir à destrutividade da violência adolescente, sem por isso contra-reagir pela violência, seja verbal, seja, pior ainda, física.

• Ter confiança no processo da adolescência.

• Dar nomes às coisas, povoar de marcos que façam sentido o mundo de relações entre as gerações. É muito freqüente que os adultos tenham medo dos adolescentes, nessa ocasião em que os adolescentes precisam dos adultos. Conversar, sem se confundirem com eles nem se ignorarem. É aos adultos que compete a responsabilidade de orientar os mais jovens.

• Proporcionar seu apoio ao adolescente que esteja em situação de fragilidade narcísica; ter confiança na saída do processo de adolescência. Entretanto, em caso de dificuldade, quando os pais se sentem impotentes para ajudar seus filhos, eles devem aceitar o auxílio de um terceiro. O adulto tem o dever de proteger o adolescente contra si mesmo, pela confiança que manifeste na sua própria transformação.

• Perceber o tornar-se adulto no ser adolescente, com tudo o que este estado comporta de incerteza, talvez mesmo de destrutividade potencial. A violência comporta em si mesma a força da vida, mas encontra sua via de resolução no crédito que se dê ao adolescente quanto a poder ligá-la aos objetos e orientá-la em direção a alguma significação.

• Oferecer objetos aos adolescentes para que eles prendam aí a sua violência: a oferta de cultura, de objetos culturais, é essencial e compete aos adultos.

• Permanecer na ligação com o adolescente, ligação de palavra, ligação de interesse. Ajudar o adolescente a manter uma atividade de ligação em seus investimentos, ajudá-lo para que não sobrevenha o risco da ruptura.

Quais são as conseqüências da ausência de apoio narcísico parental?

Em determinados casos, o desamparo adolescente — o estado de desamparo no qual um adolescente pode se encontrar no momento de enfrentar a violência do arrombamento pubertário — lembra aquele experienciado na infância, especialmente em circunstâncias de privação. O adolescente que entra em puberdade se vê outra vez defrontado com a ausência da mãe que, se ele não conseguiu interiorizar sua função, lhe fará então muita falta. Esse desamparo adolescente ressurgido da infância pode impeli-lo a comportamentos violentos para encontrar a reparação para aquilo que considera uma injustiça, talvez mesmo um preconceito que ele sofreria. Ele procura conseguir, por todos os meios, aquilo que não recebeu de sua mãe e a que acredita ter direito.

Em outros casos, uma vez que os acontecimentos traumáticos vividos na infância entram em ressonância com o arrombamento pubertário, o adolescente é precipitado em atuações violentas. Nesses casos o pubertário repete o traumatismo infantil e a adolescência não constitui um tempo de elaboração desse trauma que vamos chamar de 'traumatismo por sedução'. As carências do início da vida no nível dos processos de simbolização não permitem conter essas excitações e dão lugar a agonias primitivas, a um desamparo inominável, impensável, com reações de invasão ligadas à falta do ambiente materno (WINNICOTT, 1974). Neste caso, trata-se de traumatismo por carência. É a acumulação desses dois tipos de traumas (trauma cumulativo) que pode levar o adolescente a recorrer ao ato, considerado como modo de tratamento do traumatismo e da angústia que a ele está ligada.

O estudo de diversos homicídios cometidos por meninas adolescentes (GOUDAL et al., 1998) tem demonstrado algumas vezes que o desamparo e o ato violento que o acompanha vêm revelar os vestígios que as violências sofridas durante a infância tinham deixado nelas. Outras vezes, enfim, o desamparo adolescente é o de adolescentes inibidos, antes passivos, que vivem no temor exatamente de um apassivamento que produziria confusão demais no plano da distinção entre realidade e fantasia, entre o eu e o outro e que, num dado momento, num contexto de fechamento narcísico, tornaria necessário um ato que viesse cortar, diferenciar, conclamar o outro a existir. Daí a importância da resposta do ambiente, porquanto são adolescentes que correm o risco de ficar ainda mais desamparados se o ambiente não responder da maneira adequada a essa busca de encontro e/ou de confrontação com adultos que os contenham.

Os objetos externos têm, portanto, uma importância de primeiro plano. Suportes da operação de busca de sentido de um vivido despersonalizante são também objeto de projeção do ódio necessário à constituição de um espaço de pensamento autônomo. Ninguém vai se surpreender, portanto, que eles sejam intensamente solicitados e com freqüência abalados nesse duplo registro. A violência do adolescente os visará tanto mais quanto os espaços de pensamento serão confundidos. Essa confusão tem conseqüências à medida que o vivido fantasístico do adolescente encontra uma espécie de realidade com o desmoronamento depressivo dos pais, seu estado de desamparo ou sua contra-violência. Ter podido experienciar a cólera parental, a função de limite e de pára-excitações que ela pode representar, oferece à criança (e ao adolescente) a melhor oportunidade de, por sua vez, poder conter sua própria violência.

O que é chocante em determinados casos é o desamparo dos pais ante a violência de seu adolescente, é sua incapacidade de resistir à destrutividade e à ameaça que aquela violência faz pesar sobre eles. Estão despreparados, como se esse tipo de situação lhes fosse desconhecida até então, como se não tivessem a mínima idéia da conduta que devam adotar, como se não tivessem nenhuma experiência no assunto, como se não tivessem experiência íntima disso, como se ainda estivessem numa espécie de experiência inacabada de sua própria adolescência. Esses pais podem estar tanto mais despreparados quanto estejam eles próprios abandonados pelo corpo social, maltratados e marginalizados, sem outras referências senão o desespero que os anima a encarnar, para seus próprios filhos, o símbolo de um fracasso da integração. Quando são atacados por seus adolescentes, se se sentem ameaçados e impotentes, os pais induzem o sentimento de que esses ataques são irreparáveis, o que intensifica sensivelmente a culpabilidade inconsciente dos adolescentes e os impele a atuar. Observamos esse fenômeno em pais que foram espancados — por exemplo — que não conseguem conter a destrutividade de seus filhos e que, por seu desmoronamento, estimulam isso. Aquilo que parece um comportamento masoquista nos pais de fato mascara a impossibilidade que esses adultos têm para identificar-se numa função parental. A violência do adolescente exprime nesse caso a violência que os pais não puderam manifestar em relação aos seus próprios pais. Visa os avós, como se a operação simbólica do assassinato do pai não tivesse tido lugar na geração precedente, como se a violência pubertária dos pais não tivesse podido expressar-se nem ser elaborada. Atuando, tornando-a manifesta, a violência do adolescente comemora a violência que os pais não conseguiram viver em relação aos seus próprios pais. Dá testemunho também do desespero vivido por esses pais que perderam, eles próprios, as referências de sua cultura.

O desamparo adolescente, portanto, faz pensar no estado de desamparo parental, aquele que quase sempre os próprios pais vivem, em especial quando são confrontados com a violência atuada de seu adolescente. Essa coincidência das incapacidades dos pais e dos adolescentes quanto a se ajudar a si mesmos e a ajudar o outro cria um efeito de reforço. Do mesmo modo como o desamparo adolescente e o desamparo parental agem um sobre o outro, a violência do "texto" pubertário, a violência do arrombamento pubertário propriamente dito e a violência do "contexto" adolescente, aquela que diz respeito aos circunstantes, ao ambiente do adolescente, com freqüência agem uma sobre a outra. Estas violências, não elaboradas, reforçam-se de modo mútuo, correndo o risco de aumentar seus respectivos efeitos destrutivos. Tornam necessário um trabalho terapêutico junto aos adolescentes tanto quanto junto aos pais, trabalho que ficará centrado em seu respectivo apoio narcísico.

Haverá alternativas ao "tolerância zero"?

Acabamos de examinar um determinado número de pontos:

Muito freqüentemente o adolescente violento é um adolescente desamparado. Esse desamparo está ligado ao traumatismo constituído pela mudança (identitária, mas também mudança nas escolhas objetais) ocasionada pelo próprio processo de adolescência. Esse desamparo se transforma em violência quando o adolescente não consegue elaborá-lo do ponto de vista psíquico, não consegue enfrentá-lo (está abandonado por si mesmo). A dificuldade que o adolescente encontra para enfrentar o seu próprio desamparo provém da fragilidade narcísica que se origina na infância, mas que é descoberta na latência ou, mais exatamente, na ausência de latência. Essa dificuldade encontra sua origem, ainda, na ausência de apoio narcísico parental e, mais amplamente, ambiental. O adolescente fica abandonado por si mesmo e pode também se sentir abandonado pelos adultos, quanto mais não seja, pela dificuldade destes quanto se constituir como limite e como detentores de um sentido, como portadores da esperança e do futuro. Parece-me que foi esta a argumentação que Aichhorn quis desenvolver em sua obra Jeunesse à l'abandon [Juventude abandonada], de 1925.

Para facilitar compreender a gestão da violência, para preveni-la ou impedi-la (mas será que podemos de fato prevenir e impedir a violência?) convém levar em conta determinados elementos: Uma vez que explode, a violência traduz o sentimento de uma ameaça experienciada pelo adolescente ante um perigo vital. Esse sentimento se baseia muito numa experiência de injustiça. Nesse caso, a violência traduz a expulsão para fora de si de um conflito que não consegue interiorizar-se pela falta de um objeto. A violência é então uma agressividade em busca de objeto. Esse sentimento de injustiça muitas vezes encontra reforço na atitude dos adultos ante os adolescentes, atitude vista por estes como 'falta de respeito'. A falta de respeito dos adultos em relação aos adolescentes torna-se um argumento para legitimar a violência que então será uma resposta àquilo que é percebido como um ataque que emana do outro. A violência atuada em bando torna-se um fator de coesão do grupo em busca de identidade e reconhecimento. Funciona como catalisador e parece estar à altura de responder de modo mágico a todas as expectativas atuais e passadas, conscientes e inconscientes ou latentes dos adolescentes que estão sofrendo. Eles encontram no grupo a coesão narcísica de identificação que não conseguem construir pessoalmente. Uma vez que se produz, uma vez que traduz o ódio que os adolescentes imaginam que os adultos têm por eles, a contra-violência dos adultos — incluída a da polícia — proporciona aos adolescentes que estão sofrendo o objeto que faltava para que sua violência possa se exprimir.

A via terapêutica

A violência das pulsões, ligada ao processo pubertário, exige um apoio narcísico especial que diz respeito também aos pais que são presas da angústia, presas de seu sentimento de impotência para ajudar esse adolescente que lhes escapa, quando não são presas da cólera que os afoga. O alargamento e a delicadeza do enquadre terapêutico podem dessa maneira assumir a significação de uma ajuda estendida aos pais, condição que algumas vezes é indispensável à busca de uma terapia com um adolescente, uma vez que a transferência incendeia a violência interna do jovem, alimentando suas projeções destrutivas contra os objetos parentais.

Destruídos e atacados os objetos serão, enquanto não se desenvolver alguma via para reconstruir a zona dos traumatismos primários (traumatismos por carência), zona esta mascarada por defesas de tipo narcísico que terão sido levantadas dessa maneira para lutar contra os efeitos destrutivos desses traumatismos. O caminho da reconstrução só se esboça quando essa zona puder ser reconhecida, e com ela "as feridas produzidas pelos impactos desses traumatismos" (ROUSSILLON, 1996). O tempo inicial do trabalho psicanalítico junto a esses adolescentes "politraumatizados" (se ousamos dizê-lo assim) é constituído desse reconhecimento. É um tempo inicial ao qual se segue o trabalho analítico (psicoterapia) e que algumas vezes pode se desdobrar em torno da análise das representações de desejo.

Uma vez que a violência tem origem traumática — e na adolescência é assim — para que se possa ultrapassá-la vai ser necessário fazer dela uma narrativa como perspectiva de reconstrução do sujeito. O tempo de dizer vai substituir o tempo da ação; a palavra vai criar as ligações associativas que vão reconstituir a trama em cima da qual vai-se poder retomar uma história. A história dessa narrativa, objeto da ligação transferencial ao analista, torna-se o tempo forte dessa reconstrução, como uma história dentro da História. Falar dessa maneira, falar de si mesmo a um outro, devolve a capacidade de experienciar, de reencontrar as emoções que algumas vezes estão ligadas ao primeiro tempo do traumatismo. Falar de si mesmo só será possível se o terapeuta ajudar o adolescente a reforçar suas defesas. De fato, ao contrário daquilo que ocorre habitualmente, trata-se de reforçar as defesas do adolescente atacado de todos os lados e que se encontra num estado de grave fragilidade narcísica.

A diversidade de modalidades e a delicadeza do enquadre das terapias de adolescentes são uma necessidade ante o caráter agudo de determinadas manifestações psicopatológicas da adolescência. Entretanto, a adaptação do enquadre a esse tipo de patologia também está ligada à interdependência dos vínculos que unem os membros de uma família. Quanto mais o adolescente esteja afastado da realidade, tanto mais estará ligado ao imaginário familiar. De hábito, os pais oferecem à criança e ao adolescente um conjunto de traços mais ou menos organizados à imagem de suas próprias construções edipianas. O adolescente, na puberdade, reencontra aquilo que experienciou na infância, atualizado e remanejado pelas transformações corporais. Ele procura extrair desse fundo de experiências as novas posições identificatórias (genitais) que os diferentes processos da adolescência suscitam nele. Ele se referencia nesse pano de fundo de sua história (pulsional) pessoal e no de sua história (identificatória) familiar. Tais referências são diversificadas porquanto provêm das linhagens materna e paterna. A criança — e depois o adolescente — as integra em função de sua necessidade de referências. Entretanto, nas patologias em que está implicada a atuação violenta, a clínica nos ensina que esse fundo comum ao qual o adolescente pode se referenciar é constituído de elementos muito menos diferenciados e mais rígidos. Quando esses dados só lhe provêm de uma única linhagem, e a outra linhagem está recusada, ou quando faltam esses elementos que servem de referência de si mesmos (na grande parte das vezes contidos na construção edipiana), ou ainda quando a problemática parental está como que congelada num estado de adolescência interminável, e fica impossível ultrapassar o Édipo pubertário, então o adolescente terá tendência a atuar a violência, a ameaça, o desamparo que sente. Agredindo seus pais, ele procura explorar um caminho diferente daquele que esses pais trilharam. À sua maneira, o adolescente retoma a questão da conflitualidade psíquica, insuficientemente elaborada por seus pais, uma elaboração que dificilmente poderá ser transmitida por eles aos seus próprios filhos. Talvez o adolescente espere dessa maneira encontrar nos pais um apoio narcísico, sinal de sua capacidade de enfrentá-los, o que esses pais, no tempo deles, não puderam fazer com seus próprios pais. Não estará o adolescente dessa maneira procurando fazê-los advirem, conclamá-los a existirem em suas funções parentais?

De fato o adolescente espera que seus pais — ou seu terapeuta ou ainda que todo adulto que lhe sirva como referência — não desmoronem ante sua própria violência, mas sim, ao contrário, que o ajudem a contê-la e a elaborá-la. Porque essa violência é expressão tanto de uma força nova quanto de uma ameaça que ataca vindo de dentro.

CONCLUSÃO

Se a violência se prende nos comportamentos e se, em essência, mas não apenas, é observada no palco social, sua origem está ligada, por um lado, a processos intrapsíquicos e, tratando-se da violência adolescente, a experiências de ameaça interna — difíceis de conter e de elaborar — que dão ensejo a projeções maciças nos objetos externos. Esse é um aspecto de nossa análise da violência que merece ser destacado uma vez que essa violência, essencialmente narcísica, procura de algum modo um objeto sobre o qual possa se fixar.

O paradoxo da violência é que ela nasce da relação inter-humana, ao mesmo tempo que a reação violenta se produz quando falta o objeto. A violência parece derrubar o outro, visar o outro para destruí-lo. Mas essa violência não teria também a função de convocar o outro a existir, para que venha ajudar um sujeito que está se sentindo ameaçado: uma falta de outro que convoca o outro para que o si-mesmo não caia, não desmorone? De fato a violência não apela apenas para lei, compreendida como a lei do pai, em referência à lei edipiana: apela também para a lei em sua função de simbolização, aquela que cria uma referência e abre o caminho para o sentido. De fato, uma vez que exprime o desamparo e a fragilidade narcísica, a violência adolescente apela mais ao apoio, à ajuda que é preciso trazer na construção subjetiva, do que ao interdito que, no caso, não consegue se constituir. A violência traduz a dificuldade que o adolescente vivencia quanto a ligar pulsão e objeto, quanto a entrar numa perspectiva de relação desejante. Muitas vezes ela remete a uma impossibilidade de criar o espaço psíquico necessário ao encontro com o outro. A violência evidencia uma dificuldade importante que o adolescente experiencia para entrar na alteridade, quando esta é fonte de ameaça. É também neste sentido que consideramos a violência como expressão de um impasse no processo de adolescência. A violência seria bem mais um apelo à confrontação e ao encontro, à criação de objeto, de relação e de sentido — embora seja claro que é também pedido de limite — do que um apelo à lei do pai. A violência do adolescente é fundamentalmente expressão de uma ameaça tanto interna (emanando em especial do ataque da parte dos objetos internos, ataque do qual o adolescente se sente vítima) quanto proveniente dos objetos externos (do ambiente, mas às vezes também de seu próprio corpo púbere). Nesse sentido é preciso ajudar o adolescente a encontrar os recursos psíquicos para enfrentar essa ameaça, de preferência a dar-lhe na realidade o sentido de que o problema a ser resolvido não está nele, mas diante dele.

O "enfrentamento" a que os jovens dos subúrbios se entregam nos dá uma boa ilustração dessa violência. Diante dos policiais, os jovens se encontram no ódio o necessário para diferenciar-se, para aparentar-se, filiar-se, reconhecer-se numa identidade de pertencer a um bairro, talvez mesmo a um território. O outro é um inimigo necessário a esse trabalho de identificação. Mas essa confrontação é assassina, porque não há nenhuma intermediação, especialmente não há adulto (ou não há adulto bastante), não há figuras suficientemente presentes em sua condição de terceiro para mediatizar o ódio e ajudar na sua transformação. A violência aqui não é rivalidade edipiana, mas sim violência em busca de outro para se construir. A violência é fundadora da subjetividade, contanto que se renuncie à sua efetuação. Se é tão atuada hoje em dia, é talvez porque o adulto e, com este, a sociedade civil, fracassaram quanto a ser referências. O adolescente se torna um analisador dessa ausência de confiança dos adultos quanto ao devir da juventude. Um analisador de seu desamparo?

Se a violência, em suas formas destrutivas, constitui um ataque à cultura e à humanidade como um todo, as respostas que precisamos propor devem ajudar a juventude a transformar essa violência ao mesmo tempo protegendo o corpo social contra o risco que a violência faz pesar sobre ele. Essas propostas, portanto, não têm que opor a defesa do social à proteção dos menores, mas devem, ao contrário, fundar a defesa do social e da cultura na proteção dos menores. Parece-nos que é assim que o gozo experienciado na onipotência da destrutividade que está em ação nos subúrbios poderá transformar-se em prazer de ser e de criar. Mas ainda é preciso que a sociedade dos adultos assuma o cuidado de sua juventude, que lhe proporcione os recursos para seu futuro.

Recebido em 12/3/2006. Aprovado em 12/4/2006.

Tradução de Pedro Henrique Bernardes Rondon

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  • *
    Artigo publicado em
    Psycho. Magazine d'information en psychologie, Hipnose, Psychanalyse et Psychothérapie. Decembre 2005, n.7, trimestral.
  • I Psicanalista; diretor e professor do Laboratório de Psicologia Clínica e de Psicopatologia da Universidade de Paris 5, França; consultor do Ministério da Pesquisa e Ensino Superior do Governo da França; presidente do Collège International de L'Adolescence (Cila); diretor da coleção Champs Libres, junto à Editora In Press; membro do comitê editorial das revistas
    Adolescence,
    Cliniques Méditerranéennes,
    Psychoperspectives,
    La Lettre du Grape; vice-presidente da Association pour la Formation à la psychothérapie Psychanalytique de l'Enfant et de l'Adolescent (Afppea); autor e organizador de vários livros, dentre eles,
    Transactions narcissiques à l'adolescence (Dunod, 2002),
    L'adolescent dans l'histoire de la psychanalyse (In Press, 2003),
    Ce que souffrir veut dire (In Press, 2004). fmarty.noos.fr,
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Ago 2006
    • Data do Fascículo
      Jun 2006

    Histórico

    • Aceito
      12 Abr 2006
    • Recebido
      12 Mar 2006
    Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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