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O ensino da clínica das psicoses

RESENHAS

O ensino da clínica das psicoses

Angela C. Bernardes

Psicanalista, aderente da Escola Brasileira de Psicanálise-Seção Rio, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), angelabernardes@terra.com.br

Clínica psicanalítica das psicoses. Ricardo de Sá, Maria Lídia Oliveira de Arraes Alencar, Giselle Falbo e Cláudio Oliveira (orgs.) Niterói: EdUFF, 2005, 124 p.

O que o psicótico ensina àquele que pratica a clínica psicanalítica e o que se pode ensinar dessa experiência clínica são os dois eixos que orientaram a discussão proposta por integrantes do Laboratório de Psicanálise e Laço Social (Lapso), da Universidade Federal Fluminense. Tal discussão, por sua vez, é conseqüência do encontro destes professores com a clínica realizada na rede de Saúde Mental de Niterói, através da associação do curso de Especialização do Lapso/UFF com a Residência de Saúde Mental da Secretaria de Saúde de Niterói.

O livro é composto de quatro partes com três artigos cada, reunindo assim os 12 artigos apresentados no Colóquio "Clínica psicanalítica das psicoses", realizado na UFF, em julho de 2004.

Na primeira parte, Letícia Martins Balbi, Paulo Vidal e Ricardo de Sá, abordam diferentes aspectos do ensino da psicanálise com respeito à clínica da psicose. Ricardo de Sá contrapõe ensino e transmissão para propor que a perplexidade frente à psicose tem efeitos na transmissão da psicanálise, pois esta perplexidade advém do encontro com uma radical alteridade, diferença absoluta que implica na impossibilidade de se responder pela via da compreensão. Servindo-se de fragmentos clínicos trazidos a ela por alunos e residentes, em orientações e supervisões, Letícia Balbi tira alguns ensinamentos disso. De forma clara e bem apoiada na experiência, verifica que os fenômenos psicóticos apontam para a estrutura significante como distinta da função de comunicação e significação e para o engodo da tentativa de "compreender": "abordar, por exemplo, as intuições delirantes pela perspectiva da significação é, de certa forma, participar da própria estrutura delirante". Paulo Vidal interroga, em essência, sobre o lugar que cabe ao analista para um sujeito que, diferentemente do neurótico, não interroga o Outro, pois o Outro já lhe respondeu. Essa discussão, ilustrada por um caso de sua clínica, vem no bojo da reflexão sobre as possibilidades de se ensinar o que a psicanálise ensina.

O objetivo geral de, como formula Paulo Vidal, "aproximar quem inicia a prática clínica do campo da experiência analítica, interrogar seus conceitos, colocá-los à prova em diversas condições (...)", parece ter sido ao menos em parte alcançado por esse grupo de professores, a julgar pelos relatos clínicos apresentados na terceira parte do livro por uma ex-aluna da residência e por então estagiários da graduação em Psicologia. Cada um a seu modo, eles são testemunhos dos efeitos formadores do encontro com a psicose. Elisangela Onofre, com uma escrita delicada e precisa, situa diferentes tempos no seu encontro com a psicose desde seu estágio de graduação no Naicap (Núcleo de Atenção Intensiva à Criança Psicótica) até sua participação como membro da equipe em uma intervenção, orientada pela ética do psicanalista, na enfermaria de Longa Permanência do Hospital Psiquiátrico do Jurujuba. Desta experiência na "Longa", podemos recolher ainda o depoimento de uma equipe de estagiárias. Ana Flávia, Bianca, Joyce, Katia Mattos e Márcia Torres relatam a retificação que precisaram fazer com respeito ao inicial sentimento de impotência frente à demência e à cronificação do paciente psicótico institucionalizado. Carlos Alberto Costa em suas "Notas de um secretário do alienado", relata o atendimento, no SPA da UFF, a um jovem atormentado por assombrações e um gozo desmedido.

Os artigos de Francisco Leonel, Paula Borsoi e Bruno Reys abordam a questão da psicanálise com psicóticos nas instituições de saúde mental. Francisco interroga sobre o fazer do analista aí onde fracassa a exigência de eficácia terapêutica e reabilitação social. O analista, na contramão do mestre que quer que 'dê certo', se oferece não como alguém interessado no bem desse paciente, mas como alguém a quem ele possa se ligar e que emita apenas o sinal de que, "naquela loucura toda, o que está em questão é ele enquanto sujeito (...) e um trabalho se inaugure". Paula Borsoi, assessora da Coordenação de Saúde Mental para Infância e Adolescência da Secretaria Municipal de Saúde, e Bruno Reys, coordenador do Ambulatório de Saúde Mental do Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro (CPRJ), consonantes com essa posição, trazem o testemunho de experiências institucionais concretas para afirmar não só a possibilidade, mas a necessidade da presença do psicanalista na rede de saúde pública.

Last but not least, a última seção do livro é dedicada a uma reflexão sobre a política da psicanálise e a psicose. A Escola — ou a Associação Psicanalítica — tem a responsabilidade de manter a orientação do discurso analítico, e o futuro da prática clínica junto a psicóticos depende da sobrevivência deste discurso. Para esta reflexão, os organizadores do debate convidaram Paulo Becker, da Escola da Letra Freudiana, Eduardo Rocha, do Tempo Freudiano-Associação Psicanalítica e Marcus André Vieira, da Escola Brasileira de Psicanálise.

Por tudo isso e pela atualidade das questões ali tratadas, recomendamos a leitura desse livro que constitui um bom momento no laço (im)possível da universidade com a psicanálise e a prática clínica contemporânea.

Recebida em 25/4/2006.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Ago 2006
  • Data do Fascículo
    Jun 2006
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