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Psicanálise: um discurso que não é só semblante!

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RESENHAS

Psicanálise: um discurso que não é só semblante!

Rosa Guedes Lopes

Psicanalista, doutoranda do PPGTP/IP/UFRJ; Membro aderente da EBP-RJ. rosa.guedes.lopes@globo.com

Sinthoma: corpo e laço social. Tânia Coelho dos Santos. Rio de Janeiro: Sephora/UFRJ, 2006, 254p.

Para Freud, a neurose era uma resposta subjetiva às exigências de renúncia pulsional proveniente da cultura na modernidade. Ele conceitua a psicologia individual como inseparável da psicologia social. Situando o advento do sujeito da psicanálise em uma relação de exclusão interna ao advento da ciência moderna, Lacan1 1 LACAN, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. reitera o axioma freudiano e adverte: "deve renunciar à prática da psicanálise todo analista que não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época" (LACAN, 1998, p. 321).

Sinthoma: corpo e laço social é a transcrição do curso ministrado por Tania Coelho dos Santos, em 2005, no âmbito do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica (PPGTP), do Instituto de Psicologia da UFRJ. É um diálogo profícuo com dois cursos de Jacques-Alain Milller, ministrados no Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII: Os signos do gozo2 2 MILLER, J.-A. (1986-87/1998) Los signos del goce. Buenos Aires: Paidós. e O Outro que não existe e seus comitês de ética.3 3 ______. (1996-97/2005) El Otro que no existe y sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós. As elaborações de Miller objetivam fazer avançar a orientação teórica, de modo a justificar a existência de uma prática contemporânea ainda digna de ser legitimamente chamada de psicanalítica, uma vez que Lacan aparelhou a psicanálise legada por Freud para que ela não perdesse o seu lugar subversivo em relação à cultura. Os instrumentos teóricos freudianos deram lugar a uma prática interpretativa que exibe o avesso da civilização moderna. A hegemonia do mecanismo do recalque produzia um sujeito identificado ao pai como modelo ideal. Já Lacan demonstrou que o declínio dos ideais, do Outro e do Nome-do-Pai na cultura revela sua estrutura de ficção. Diante do atual império dos semblantes, uma pergunta se faz crucial: onde ancorar a palavra e o ato do analista sem contribuir para o empuxo civilizatório à "semblantização"?

Ao coordenar as atividades de ensino e de pesquisa desenvolvidas no âmbito do Núcleo Sephora de pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo, Tania Coelho dos Santos não renuncia à difícil tarefa de redefinir o sujeito sobre o qual a psicanálise opera, tomando como bússola o último ensino de Lacan, estabelecido por Miller. O ponto onde o fundamento da autoridade não se sustenta no Outro é o eixo da discussão. O objeto a trata da constituição da subjetividade por um viés distinto do da identificação. O gozo implica o ponto de indiferenciação entre o sujeito e o Outro. A autoridade do gozo se impõe independentemente do que o Outro veicula como alteridade porque, em sua face de objeto, o ser goza de uma inscrição arbitrária, inédita e impossível de ser atestada pela tradição. A angústia é o correlato indispensável ao advento da subjetividade. O ponto onde "o sujeito não é ainda" se situa aquém da constituição do sujeito do inconsciente, barrado e mortificado pela linguagem, que o constitui como falta-a-ser.

A indiferenciação do sujeito no campo do Outro mantém uma relação estrutural com o sujeito da ciência, ou seja, com o que advém de modo novo e irredutível a qualquer tradição. A ciência moderna "implica um laço discursivo entre os sujeitos, que foraclui o laço particular de um indivíduo com sua filiação" (p. 15). A operação científica é universalista. Funda-se no recalque e destitui o valor particular da dívida simbólica, da relação do sujeito ao significante paterno. Seu efeito é a deslocalização do sujeito em relação à família como contexto original, o nivelamento dos sexos e o apagamento da diferença entre as gerações. É o que permite afirmar o sujeito da ciência moderna como sujeito sem qualidades. A esta orientação e a esta política, lacanianas, Tania acrescenta um singular percurso teórico pelos fundamentos freudianos que situam o Édipo como prova da impossibilidade estrutural da redução do sujeito do mito ao sujeito sem qualidades. Via Édipo, Freud confere ao pai a função de articular o imperativo de renúncia ao de substituição. O pai que interdita o gozo também permite gozar. A castração libera o sujeito. A autora lembra que a passagem do imperativo moderno de renúncia ao gozo, ao imperativo contemporâneo, que exige o gozo a qualquer custo, não se dá sem a tradução reichiana da psicanálise na linguagem freudomarxista, que articulou o recalcamento da sexualidade e o autoritarismo da sociedade moderna ao capitalismo. É de Reich a máquina discursiva que engendrou os movimentos de maio de 1968. A suspeita de que toda autoridade seria autoritária promoveu a queda das identificações. A crítica à repressão sexual estendeu-se às formas de coerção e aos significantes mestres. A destituição do significante mestre enseja um novo laço social baseado na crença na "opção generalizada", cujo efeito é o empobrecimento da capacidade de renúncia e do direito efetivo à fruição. Esta via atende às pulsões.

Todo sujeito precisa decidir sobre o que deve renunciar. O indivíduo contemporâneo, aliviado do peso coercitivo do significante mestre, parece não precisar renunciar a nada. Por conseguinte, não consegue gozar de coisa alguma. Esse é o paradoxo da contemporaneidade. Se nada é proibido, nada é permitido. O crescente número de casos de inibição e depressão mostra que a redução das proibições não levou a uma maior liberdade em usufruir.

Há uma ruptura na passagem do Seminário 17 ao Seminário 20 e Coelho dos Santos a explora, com sua particular reflexão sobre a importância da diferença sexual no último ensino de Lacan, que comporta os "efeitos da introdução de uma nova vertente da sexuação, a feminina [...] uma via nova para abordar as relações do significante com o gozo e com o corpo" (p.143). Se a dessimetria dos gozos não é da ordem do semblante ela é uma bússola imprescindível para a condução do tratamento e o final da análise. Aqui a orientação de Miller4 4 MILLER, J.A. (1998-99/2003) La experiencia de lo real en la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós. é novamente eixo. Em A experiência do real, ele parte do caráter, afirmando o sinthoma como misto de sintoma e caráter. Para a autora, este caminho não toma o caráter como substituto da fantasia, mas contorna o problema relativo à sexuação feminina, pois do lado feminino não pode haver fantasia. No entanto, pode haver caráter. Com Freud e Lacan ela situa, de um lado, a sexuação masculina enquanto atravessada pelo "ao menos um" da castração e pelo imperativo de renúncia e, de outro, a feminina, marcada por uma reivindicação: ser tratada como exceção em função da suposição comum às mulheres de terem sofrido uma lesão a mais em relação ao resto da humanidade. "O modo de representação do feminino passa pela lesão, pelo buraco" (p.118).

A recuperação do conceito de caráter organiza o campo da sexualidade feminina diante da impossibilidade de situar a fantasia do lado feminino na partilha sexual. Sem isso, correríamos o risco de tomar a devastação feminina como intratável, inefável, impossível ou indizível, vias que certamente levariam o analista a "um gozo teórico com o nada", ou seja, com a falta de conceito (p.119-120). Ora, o gozo com a falta não se configura como caminho que permita distinguir o desejo inconsciente e o desejo do analista. Ao não escolher esta via, Tania Coelho dos Santos dá testemunho de que a formação do analista é árdua, mas não é aí onde, verdadeiramente, se situa o impossível da tarefa de analisar ao qual Freud se referiu.

Recebida em 23/8/2006.

  • 1
    LACAN, J. (1998).
    Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
  • 2
    MILLER, J.-A. (1986-87/1998)
    Los signos del goce. Buenos Aires: Paidós.
  • 3
    ______. (1996-97/2005)
    El Otro que no existe y sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós.
  • 4
    MILLER, J.A. (1998-99/2003)
    La experiencia de lo real en la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Dez 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2006
    Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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