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A gramática amorosa da amizade

Resumos

A amizade tem origem nos primeiros laços amorosos, dos quais traz a marca. A satisfação sexual obtida nas relações de amizade, embora distinta daquela que caracteriza o amor, repousa sobre a sexualidade infantil. Aborda-se, com o apoio da literatura e da clínica (a partir da clínica e da literatura), a especificidade da amizade e seu papel no contexto da identificação e da imagem de si.

Amizade; amor; identificação


The love grammar of friendship. The friendship has its first origins in the love ties, from which it brings its marks. The sexual satisfaction obtained from the friendship, although distinct from the one that characterizes love, lies on the childish sexuality. It is here approached, with the support of literature and clinical work, the specificity of friendship and its role in the identification context and the self-image.

Friendship; love; identification


CONFERÊNCIA

A gramática amorosa da amizade* * Conferência proferida no Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos, em julho de 2005, Rio de Janeiro.

Danièle Brun

Psicanalista; professora na Universidade de Paris VII – Denis Diderot. dan@club-internet.fr

RESUMO

A amizade tem origem nos primeiros laços amorosos, dos quais traz a marca. A satisfação sexual obtida nas relações de amizade, embora distinta daquela que caracteriza o amor, repousa sobre a sexualidade infantil. Aborda-se, com o apoio da literatura e da clínica (a partir da clínica e da literatura), a especificidade da amizade e seu papel no contexto da identificação e da imagem de si.

Palavras-chave: Amizade, amor, identificação.

ABSTRACT

The love grammar of friendship. The friendship has its first origins in the love ties, from which it brings its marks. The sexual satisfaction obtained from the friendship, although distinct from the one that characterizes love, lies on the childish sexuality. It is here approached, with the support of literature and clinical work, the specificity of friendship and its role in the identification context and the self-image.

Keywords: Friendship, love, identification.

A grande diferença entre o amor e a amizade, como escreve Michel Tournier, "é que não pode haver amizade sem reciprocidade." Ele tem razão, pois não se pode ser amigo de alguém que se recusa a sê-lo.

O amor, em compensação, nem sempre é pago na mesma moeda, e isso desde os primeiros anos de vida, desde que, na criança, nasce o sentimento amoroso dirigido à mãe, e isso desencadeia a decepção de não ser tudo para ela. Basta, como Freud notou de maneira precisa em 1920, que uma nova criança surja na casa para que a mais velha se dê conta da "amplidão do desdém em que seu quinhão se transformou". Assim, desde muito cedo, o pequerrucho é desencorajado e decepcionado em sua demanda de amor exclusivo. Ele deve partilhar a pessoa amada com outros, sendo preciso, aqui, dar lugar especial ao laço com a mãe, que é o primeiro objeto de amor não apenas do menino, como Freud pensou durante bom tempo, mas também da menina. Ele descobriu isso tardiamente, em 1931, e teve de revisar sua teoria da sexualidade feminina. Acrescenta-se a essa constatação outro ponto essencial, o recalque inevitável desse laço, comparável, em termos freudianos, à derrocada da civilização micênica e bastante difícil de vir à tona em análise.

Na criança, a amizade nasce como contraponto ao amor não correspondido, que é experimentado muito cedo, paralelamente à emergência da vida fantasmática e da ambivalência dos sentimentos. As relações de amizade não ocorrem nos bebês que não falam e não andam, nem conhecem a partilha das emoções e das idéias. A escola maternal é encarada pelos pais como um lugar em que é mais fácil para seus filhos, estimulados em diversas atividades, desenvolverem relações de amizades. À medida que a criança cresce, suas amizades se nutrem de críticas sobre seus pais, irmãos e irmãs, assim como sobre as maneiras de viver em família. A esse respeito, a literatura é muito instrutiva, pois permite apreender como a amizade se constrói consciente e inconscientemente sobre a marca da mãe perdida nos primeiros anos da infância. O rastro dessa origem, todavia, não é reconhecido com facilidade.

Quanto a mim, a conjunção entre a experiência da psicanálise e a prática do tratamento permitiu acompanhar as fases de desaparição e ressurgimento desse rastro ao longo de histórias de vida e das amizades descritas em romances. Dito de outro modo, minha reflexão sobre a amizade encontrou eco tanto em leituras quanto em ditos dos meus pacientes.

Não é certo que as formas de amizade tenham mudado consideravelmente ao longo dos séculos, apesar da modernização dos meios de comunicação. Embora seja verdade que escrevemos menos, que nos encontramos mais facilmente e que, hoje, o envio de mensagens é muito rápido, a amizade responde, desde a aurora das civilizações, a uma necessidade essencial de encontro com o outro, renovada ao longo da existência. Não devemos confundi-la com a solidariedade, mas sim descobrir o que nela há de passional e a torna especificamente humana. Esse é o contexto em que, na condição de complemento do amor, do ódio e da ignorância, as três paixões consideradas fundamentais por Jacques Lacan, pareceu-me apropriado abordar a amizade, sempre com respeito à sua especificidade. Sem dúvida, como sublinhou a marquesa de Sévigné, a grande amizade "nunca é tranqüila", algo que pode ser comprovado nas desavenças com que, em geral, não contamos. Quando essas desavenças ocorrem, quase sempre têm efeito semelhante ao de um trovão em céu de brigadeiro. De todo modo, embora a amizade possa revelar-se tão precária quanto o amor, jamais é unilateral como este o é, algumas vezes. A presença do outro, de alguém que responda, do exterior, é obrigatória.

Em seu cotidiano, as crianças pequenas mostram de maneira muito clara a importância da amizade, o isolamento sentido ao chegarem a uma nova escola. Muitas delas lamentam não serem bastante populares em sala de aula, ou menos populares do que outras, assim como se ressentem quando o melhor amigo viaja para outro país ou cidade. Elas não sabem, e não podem saber, que essa situação evoca, mais ou menos, aquela vivida no começo de sua existência, quando, após terem sido despertadas para o amor pelos cuidados, olhares e beijos maternos, realizam que esse amor não lhes era dado tanto quanto almejavam porque suas mães também se interessavam por outras coisas.

A importância dos primeiros laços de amor com o pai, a mãe e os irmãos é central em uma vida. Esses laços dão à amizade sua razão de ser, sua força, bem como os verdadeiros motivos da ruptura desta em nome de uma fidelidade inconsciente às escolhas de objeto originais.

A amizade, no entanto, é naturalmente buscada de modo muito consciente, a fim de escapar dessa marca inaugural ou transformá-la em seu contrário. Ela sempre começa como um sopro de vida. Encontramos na amizade a possibilidade de uma autonomia do pensamento, da fala, de uma construção que só pode se realizar fora da família, mesmo que seja nesta ou em comparação com esta que sua representação adquira sentido. Nesse contexto, não deveríamos nos surpreender, ao ver os laços tanto de amor quanto de amizade retornarem ao palco da cena analítica sob o efeito da transferência.

Quando Freud, no começo de sua prática, sugeria que seus pacientes não se engajassem em novos relacionamentos no decorrer da análise, sabia bem que novos relacionamentos tomariam muita energia e atenção, prejudicando a reedição dos primeiros laços afetivos na transferência. Ele, na verdade, visava apenas as ligações amorosas acompanhadas de relações sexuais. Não encontramos em seus textos nenhum tipo de alerta quanto à amizade, apesar de esta exigir grande investimento libidinal. Muitas vezes, os pais se ressentem de certas amizades de seus filhos, considerando-as um sinal de abandono ou desaprovação de si próprios. Como, por que, em nome de que um amigo ou amiga consegue exercer influência muito mais importante que a deles, sobretudo nos casos em que é nefasta? Não apenas seus princípios educativos, mas também sua autoridade se vêem desqualificados. Os pais têm a impressão de que a criança, ou melhor, o adolescente, entrega-se sem reservas a todos os tipos de transgressões escolares, sociais ou sexuais, podendo as derivas da amizade, por essa via, tornarem-se razão para a procura de um analista.

O encontro com uma jovem paciente, cujas amizades inquietavam seus pais, foi determinante em meu interesse por essa questão, a ponto de me levar a escrever sobre o que ocorreu. A má imagem aos olhos de seus pais de uma das amigas dessa paciente correspondia à má imagem que a própria paciente tinha de si mesma. Nem ela, nem eles se davam conta disso. A paciente só conseguia piorar as coisas perante seus pais, sem nada poder dizer a respeito. Ela reconhecia certo enfado tanto na escola quanto em casa e sabia que não correspondia às expectativas que eram feitas ao seu respeito. Não conseguia evitar que seus laços, tanto amicais quanto amorosos, contrastassem com essas expectativas. Encontrava nisso a realização de certo ideal de vida. Pareceu-me que ela se sentia mais segura, dos pontos de vista identitário e identificatório, junto aos marginais com quem andava do que, em casa, ao lado de seus pais e irmãos. E não lamentará o fato de que esses comportamentos fossem mais freqüentes e mais pronunciados na adolescência do que na tenra infância ou na idade adulta. O agravamento desses comportamentos na adolescência, que por vezes beira o exagero, ressalta as estreitas relações mantidas pelo amor e pela amizade no contexto da identificação e da imagem de si.

Essas observações me fazem abordar, antes de detalhar esse tratamento e seus aspectos transferenciais, uma releitura de Otelo, posterior a uma recente encenação a que assisti. De todas as peças de Shakespeare, Otelo é, para mim, o paradigma dos efeitos da confiança e da influência exercida pela amizade em detrimento do amor, ou ainda o paradigma da importância da fala de um amigo, quando a imagem de si não é suficientemente sólida. Por que, em Otelo, a importância da fala de Desdêmona, a amante, pesa menos do que a de Iago, indubitavelmente um traidor ambicioso e ciumento? Iago não tem dificuldade em estimular o ciúme amoroso de Otelo, como se ele estivesse antecipadamente convencido de não merecer o amor, nem a fidelidade de Desdêmona. Na peça, o grande manipulador que é Iago apóia-se, precisamente, na honestidade que, em geral, define a amizade, para mascarar suas intenções desonestas. De certa maneira, o poder que exerce se deve ao desconhecimento, sempre partilhado, da ambivalência dos sentimentos, mesmo os amistosos, já que, por trás de tudo isso, o temor arcaico relacionado à precariedade do laço de exclusividade ressurge com força renovada.

Lembremos, de maneira breve, o nó da intriga. Gravitam em torno de Desdêmona, imagem de mulher perfeita, quatro homens: Otelo, seu marido, o mouro de Veneza; Roderigo, fidalgo apaixonado por ela, mas não correspondido; Iago, oficial de Otelo; e Cássio, promovido a lugar-tenente por Otelo, cuja função é cobiçada por Iago, que se vingará desse infortúnio, ao acusar Cássio de ter sido o responsável por um motim.

Nessa história, jamais se realçou o papel essencial da amizade, o que é curioso. Sempre se enfatizou o ciúme mórbido que leva Otelo a cometer o crime, apesar de ele conceder mais apreço e credibilidade às palavras proferidas por Iago do que às de Desdêmona. Assim, pouco a pouco, ele deixa Iago persuadi-lo de que ela o traíra, convencendo-o da suposta ofensa feita à sua honra. Ora, Desdêmona é a única que, à diferença dos homens à sua volta, parece saber o que é a amizade, sem deixar que esta obstaculize o amor. Ela diz isto a Cássio, a quem garante sua amizade, enquanto se prepara para pleitear o perdão do marido: "Estejas certo de que, quando faço um voto de amizade, cumpro-o até os mínimos detalhes." Otelo, instigado por Iago e em nome de sua amizade, verá nesse projeto amical a prova da infidelidade amorosa de sua mulher.

Por fim, e para não dedicar demasiado espaço à rememoração dessa história, importa lembrar que Desdêmona, contrariamente a cada um dos quatro homens que cruzam seu caminho, é habitada pela certeza interior da solidez de seu amor, assim como de sua amizade.

Será que devemos ver nessa diferença, para além do aspecto conjuntural ligado à intriga, uma conseqüência inerente ao futuro da vida psíquica do menino e da menina, do laço arcaico relacionado ao primeiro objeto de amor que é mãe? Trata-se de uma questão a que se deve, a meu ver, responder de modo afirmativo, pois ela se inscreve no prolongamento, para não dizer na seqüência lógica da reflexão iniciada ao longo da escrita de meu livro A paixão na amizade. A menina, diz Freud, refugia-se no Édipo como em um porto. Em outras palavras, renuncia a seu objeto de amor que é a mãe para escolher o pai, arriscando-se mais tarde, a partir da adolescência, a fazer incidir sua escolha sobre outros homens. De acordo com Freud, a vida sexual da menina é mais complicada do que a do menino, pois a feminilidade exige que ela mude, a um só tempo, de objeto sexual e de zona erógena. Da mesma forma, para ela, a passagem da mãe para o pai faz-se acompanhar de uma mudança de zona erógena, em que a excitação vaginal substitui a do clitóris. Já o menino pode alimentar a ilusão de manter, durante toda a vida, e graças às mulheres que venha a amar, o traço do amor por sua mãe, sob a condição, como enfatiza Freud em "Totem e tabu" (1912), de que a genealogia de sua escolha amorosa não lhe seja lembrada.

Em Otelo, conhecemos apenas um pai, o de Desdêmona: Brabantio, ferido pela escolha amorosa de sua filha e as bodas secretas que a unem a Otelo. Nada se sabe sobre sua mãe até o momento em que Desdêmona pressente sua morte. Com efeito, Otelo a matará para punir Desdêmona, erroneamente acusada de infidelidade. Parece-me, de todo modo, que a certeza interior de Desdêmona quanto ao amor de seu marido e à sua própria fidelidade na amizade atesta a presença daquela que lhe imprimiu o traço do laço materno arcaico. Aliás — e isto não pode ser fruto do acaso, haja vista o fato de o temor da morte reanimar a lembrança dos primeiros anos da vida —, o famoso canto do Salgueiro que fecha o penúltimo ato da peça se apresenta como uma reminiscência infantil. Desdêmona o canta para sua serva Emília, lembrando-se, pela primeira vez, de uma cena contada por sua mãe. "Minha mãe tinha uma serva chamada Barbary, cujo amante, por quem estava apaixonada, tornou-se caprichoso e a abandonou. Desde então, passou a cantar algo que expressava sua situação, a velha canção do Salgueiro; ela inclusive morreu cantando essa canção."

Não há lugar melhor do que as tragédias para encontrar semelhante intensidade dos laços mantidos pelas heroínas com suas servas ou discípulas. Esses íntimos laços de amizade entre mulheres se inscrevem nos desdobramentos das relações precoces entre mães e filhas, ocorridas em um período em que a autoridade da mãe ainda não se fazia sentir. É possível que a nostalgia dessa época perdida não seja estranha, durante a adolescência, à escolha de uma amizade que desagradará aos pais.

Serva ou discípula, esse é, em resumo, o papel desempenhado pelas amigas cuja influência é considerada nefasta pelos pais. Essas amizades, de todo modo, são menos diretivas do que se imagina, pois encarnam a imagem desvalorizada com que a parceira acredita dever ou poder identificar-se. Em face do risco de não ir bem nos estudos, não conseguir acompanhar o ritmo e ter notas baixas, é melhor ter como referência aquele ou aquela que se põe à margem das exigências. Foi esse o contexto no qual recebi minha jovem paciente. Ela possuía má imagem de si mesma e atravessava momentos em que se sentia desencorajada, uma vez que suas notas eram medíocres. Seu fracasso escolar era recorrente e já a havia feito mudar de escola muitas vezes — na última delas, tornara-se amiga da jovem de quem os pais não gostavam.

"Não quero mais ver a Anne", diz minha paciente algum tempo depois do início de nossos encontros. "Não tenho mais vontade de vê-la, é físico. Ela me liga e eu não respondo. Deixa mensagens, e eu não retorno. Mas isso é difícil, pois ela estará sempre em meus pensamentos." Esse projeto de romper com Anne, contudo, foi apenas um episódio da amizade entre elas, que perdurou após ela deixar de me ver. Desdobrou-se em nova divisão de seus territórios, já que elas, uma das quais escolarizada e a outra não, decidiram se encontrar em lugares que não dependiam do contexto escolar.

Entendi esse projeto de ruptura como o anúncio de uma mudança decisiva e, sem dúvida, construtiva, ocorrida sob transferência. A dependência em relação a Anne, à imagem identificatória representada por ela, transformou-se sob o efeito do trabalho analítico e do lugar dado ao seu relato em análise. A proximidade cotidiana com sua amiga se tornou menos necessária, pois o lugar ocupado por essa amiga em seus pensamentos passou a ser o signo de uma interiorização e talvez o de uma inscrição na história de sua vida. Mas será que ela, em compensação, temia o estabelecimento de uma nova dependência, desta vez comigo? Não apenas pensei isso, como imaginei que ela ensaiava com sua amiga a separação de mim. Desse modo, eu me tornara um suporte aceitável para suas identificações, restaurando-se a imagem que tinha de si própria. De fato, ela aceitou as aulas particulares propostas por sua mãe e conseguiu passar nos exames, enquanto sua relação com os pais se tornou menos conflituosa.

Sua independência, todavia, não deixou de ser uma questão central, e ela não tinha certeza de sua capacidade para enfrentá-la. O essencial de seus projetos futuros se concentrava em torno dessa questão, à medida que ela ultrapassava as etapas obrigatórias relativas à sua idade e aos seus estudos. Ela concebeu essas etapas em função dos diferentes territórios que implicavam: a casa atual; a que ela gostaria de ter mais tarde e onde viveria sozinha; os locais de férias ou de encontros com os amigos; e, de modo bem evidente, a escola na qual passara a investir mais e em que, em razão do tempo que nela permanecia, o contato com os outros se ampliou novamente. Nessa visão de conjunto, o tema da ligação foi pouco abordado, como se ela não quisesse se atrapalhar com ele. Tornou-se, contudo, a questão que mais me pareceu se infiltrar no projeto de ruptura com Anne. A pressão causada por esse projeto era forte e minha paciente só conseguiu lidar com ela, situando-a no corpo. "Não tenho mais vontade de vê-la, é físico."

Sejam quais forem os riscos, a saída da adolescência parece acompanhar-se da renúncia a um ideal de onipotência experimentado como algo inacessível. O amigo próximo que, algumas vezes, substitui a imagem identificatória pode, então, ser abandonado, pois deixa de corresponder ao lugar e ao papel que lhe eram implicitamente confiados.

A justificativa dada por minha jovem paciente para querer se distanciar de sua amiga, para deixar de vê-la, enfatizou, com suas próprias imagens, a importância das impressões sensoriais nas relações de amizade e na conservação dos traços do outro em si. Esse episódio de afastamento do qual tomava a iniciativa a fez evocar amizades de sua infância. Nas primeiras sessões, ela me falara de uma mudança de escola decorrente de uma mudança de casa, à qual atribuía a responsabilidade de seu desinteresse ulterior pela escolaridade. Lembrou-se de ter rejeitado tudo: "Não gosto dos amigos, não gosto do apartamento, não gosto de nada", nas palavras que disse aos pais.

Antes da primeira mudança de escola, ela era boa aluna, tinha muitas amigas, uma das quais invejava muito. Depois dessa mudança, nada voltou a ser como antes, chegando a repetir duas matérias. Ao retomar com ela a história da amiga perdida, soube que, na verdade, as coisas se haviam passado em dois tempos. Ela já não ia bem nos estudos, quando seus pais decidiram mudá-la de escola, sem mudar de casa, mas como não queria separar-se de sua amiga, pediu a eles para continuar na mesma escola. "Resisti durante um ano", disse-me.

Quando começou a me ver, acabara de convencer seus pais a mudá-la de escola mais uma vez. Nessa mudança, encontrou uma menina que fora sua colega na escola maternal da qual não quisera sair, mas não havia nada entre elas, o charme se rompera definitivamente, não havia encontro corporal possível.

No que diz respeito aos contatos físicos presentes na amizade, são freqüentes o esporte entre os meninos e o empréstimo e a troca de roupas entre as meninas. Essas aproximações, das quais o corpo é o território, constituem uma vivência de trocas em que são lidas a marca do sexual na amizade e a marca do apego. No caso de minha paciente, com o afastamento duplicado pela renúncia aos contatos físicos, foi o poder dos pais que pareceu ser, a princípio, visado de maneira inconsciente, pois a iniciativa já não provinha deles, nem se tratava de obedecer-lhes. Do mesmo modo, a impressão de exílio não foi tão pregnante. Ademais, a decisão de tomar alguma distância em sua amizade não quis dizer que isso evoluiria necessariamente rumo à indiferença. Ela muda de território, elege novos locais e novos hábitos, e nesse sentido, o espaço das sessões é o microcosmo privilegiado para a reedição dos movimentos pulsionais em jogo nesses remanejamentos.

A amizade, porque exige a saída do meio familiar, traz a marca das primeiras ligações vividas. Os traços inconscientes, porém ativos desses laços originais — tanto aqueles tidos com a mãe quanto aqueles que esta teve com outras pessoas — guiam a escolha dos amigos desde a infância. Essa escolha pode, por exemplo, inscrever-se no prolongamento das personagens idealizadas da primeira infância, confirmando-as. Pode também buscar compensar o primeiro amor necessariamente decepcionado, ou seja, reeditar tardiamente a busca de amor endereçada, em vão, à mãe.

Em sua diversidade, os efeitos diferidos, mas mesmo assim construtivos dessas ligações decepcionantes permanecem perceptíveis, como o atestam as emoções contrastantes provocadas pelas relações de amor e de amizade estabelecidas ao longo da vida. Em tais relações, as sensações corporais têm lugar tão importante quanto o desdobramento dos afetos que elas concretizam. Admitindo-se que a união dos corpos caracteriza o amor e que a amizade quase sempre se acompanha de aproximações físicas, isso permite pensar que tanto os namorados quanto os amigos encontram satisfação sexual em seus relacionamentos. Essa satisfação, por mais diferente que seja nos dois casos, assenta-se nas premissas da sexualidade infantil e nas teorias sobre o nascimento e os objetos de amor de cada um dos pais. Eis o que forma o esboço de uma "gramática amorosa", na qual se inscrevem as imagens identificatórias, cuja sintaxe se revela na sucessão das amizades. Estas, à diferença das relações amorosas, que podem não sê-lo, sempre são partilhadas e recíprocas até o momento em que terminam.

É a exigência de reciprocidade que permite situar a demanda de amizade endereçada ao psicanalista no tratamento do lado da resistência à transferência, mais do que referida ao abandono da vigilância e dos riscos do amor unívoco. Com efeito, o lugar da amizade na análise é paradoxal: pode-se procurar um analista seguindo o conselho de um amigo ou mesmo buscar nesse amigo o conselho, a interpretação e a reciprocidade não propiciados pelo analista.

Em suma, a amizade no tratamento, inclusive a que é demandada ao psicanalista, implica um exterior que deve ser levado em conta, porque a amizade é uma exigência da vida psíquica. Se, porventura, um paciente dá lugar demasiado importante a uma amizade que parece parasitar o tratamento, não podemos nos contentar em pensar que se trata de uma transferência lateral, na qual conviria pôr termo.

Na análise, a busca de amizade jamais é desprovida de sentido. Como na infância, ela se associa à busca da garantia de um terceiro com quem partilhar os tormentos, a solidão ou as decepções amorosas; com quem, paralelamente, inventar um novo estilo, um novo mundo; com quem, por fim, confrontar-se com pais e mestres, que são, entre outras influências ocasionais da existência, aquelas agrupadas sob a rubrica de personagens do destino.

OBRAS CITADAS

BRUN, D. (2005) La passion dans l’amitié. Paris: Odile Jacob.

FREUD, S. (1996) Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago. (1912) "Totem e tabu", v. XIII, p.21-162. (1920) "Além do princípio de prazer", v. XVIII, p.17-75. (1931) "Sexualidade feminina", v. XXI, p.233-251.

SHAKESPEARE, W. (1999) Otelo, o Mouro de Veneza. Tradução de Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Lacerda Editores.

TOURNIER, M. (1986) Petites proses. Paris: Gallimard.

Recebido em 11/6/2007. Aprovado em 7/7/2007.

Tradução: Contra Capa

  • BRUN, D. (2005) La passion dans lamitié. Paris: Odile Jacob.
  • FREUD, S. (1996) Edição standard brasileira das obras psicológicas completas Rio de Janeiro: Imago.
  • (1912) "Totem e tabu", v. XIII, p.21-162.
  • (1920) "Além do princípio de prazer", v. XVIII, p.17-75.
  • (1931) "Sexualidade feminina", v. XXI, p.233-251.
  • SHAKESPEARE, W. (1999) Otelo, o Mouro de Veneza Tradução de Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Lacerda Editores.
  • TOURNIER, M. (1986) Petites proses Paris: Gallimard.
  • *
    Conferência proferida no Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos, em julho de 2005, Rio de Janeiro.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Nov 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2007

    Histórico

    • Recebido
      11 Jun 2007
    • Aceito
      07 Jul 2007
    Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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