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Ensaio sobre o espaço e o sujeito: Lygia Clark e a psicanálise

Resumos

Defende-se a idéia de que a reflexão psicanalítica sobre o sujeito implica uma consideração do espaço e de sua configuração, como já indica a preocupação tópica freudiana e a busca topológica empreendida por Lacan. O descentramento do sujeito se faria acompanhar por uma subversão do espaço que foi explorada culturalmente, ao longo do século XX, por produções de arte moderna e contemporânea. Busca-se, portanto, realizar um diálogo com este tipo de produção, escolhendo-se como lócus específico a obra da artista brasileira Lygia Clark para, em contraponto a ela, propor considerações renovadas a respeito da travessia da fantasia.

Sujeito; espaço; fantasia; arte; Lygia Clark


An essay about space and subject: Lygia Clark and psychoanalysis. The present essay defends the idea that the psychoanalytic reflection about the subject implies a consideration of space and its configuration as Freud's topical concern and Lacan's topological search already indicate. The displacement of the subject would thus be joined by a subversion of space, which has been culturally explored, throughout the 20th century, by works of modern and contemporary art. Therefore a dialogue with this body of work is sought; a dialogue which is specifically focused on the works of Brazilian artist Lygia Clark, so as to propose, as a counterpoint to such works, renewed considerations concerning the psychic work throughout fantasy.

Subject; space; fantasy; art; Lygia Clark


ARTIGOS

Ensaio sobre o espaço e o sujeito. Lygia Clark e a psicanálise* * A investigação que dá origem ao presente texto foi realizada com o apoio do CNPq e contou com a generosa interlocução de Glória Ferreira. Uma versão deste ensaio foi apresentada no I Colóquio Internacional do Corpo Freudiano: 'Dimensões do Despertar na Psicanálise e na Cultura', em abril de 2007.

Tania Rivera

Psicanalista e professora da UnB. Doutora em Psicologia pela Université Catholique de Louvain. Pós-doutorado em Artes Visuais (EBA-UFRJ). Pesquisadora do CNPq. taniarivera@uol.com.br

RESUMO

Defende-se a idéia de que a reflexão psicanalítica sobre o sujeito implica uma consideração do espaço e de sua configuração, como já indica a preocupação tópica freudiana e a busca topológica empreendida por Lacan. O descentramento do sujeito se faria acompanhar por uma subversão do espaço que foi explorada culturalmente, ao longo do século XX, por produções de arte moderna e contemporânea. Busca-se, portanto, realizar um diálogo com este tipo de produção, escolhendo-se como lócus específico a obra da artista brasileira Lygia Clark para, em contraponto a ela, propor considerações renovadas a respeito da travessia da fantasia.

Palavras-chave: Sujeito, espaço, fantasia, arte, Lygia Clark.

ABSTRACT

An essay about space and subject: Lygia Clark and psychoanalysis. The present essay defends the idea that the psychoanalytic reflection about the subject implies a consideration of space and its configuration as Freud's topical concern and Lacan's topological search already indicate. The displacement of the subject would thus be joined by a subversion of space, which has been culturally explored, throughout the 20th century, by works of modern and contemporary art. Therefore a dialogue with this body of work is sought; a dialogue which is specifically focused on the works of Brazilian artist Lygia Clark, so as to propose, as a counterpoint to such works, renewed considerations concerning the psychic work throughout fantasy.

Keywords: Subject, space, fantasy, art, Lygia Clark.

"Parece até que se exerce uma verdadeira tentação do espaço. "

Roger Caillois

"O homem contemporâneo escapa às leis da gravitação espiritual. Ele aprende a flutuar na realidade cósmica como em sua própria realidade interior. Ele se sente tomado pela vertigem. As muletas que o amparavam caem longe de seus braços. Ele se sente como uma criança que deve aprender a equilibrar-se para sobreviver. É a primeira experiência que começa. "

Lygia Clark

Quando Freud afirma que "o eu não é mais senhor em sua própria casa " (FREUD, 1917/1944, p.295),1 1 É nossa a tradução deste trecho e de todas as demais citações. tendemos a sublinhar o "não é mais senhor ": o inconsciente desaloja a razão, retira do consciente qualquer garantia, faz dele não mais que um "lugar " precário e provisório. Esquecemos, quase, de nos colocar a pergunta: de que casa se trata? Por que Freud lança mão de uma referência arquitetônica, espacial, para falar do eu em sua relação com o inconsciente?

Na verdade, a preocupação tópica freudiana não deixa dúvidas sobre a importância do lugar e do espaço em sua concepção do aparelho psíquico. Lugares móveis, os freudianos, desenham-se para logo se tornarem não mais que refrações diferenciadas, em suas metáforas óticas, ou ainda escritas múltiplas, em suas instâncias de transformação das representações. Enquanto isso, o eu flutua no texto de Freud ao sabor de sua reflexão, indicando tanto o indivíduo (ainda que dividido) quanto sua imagem, ou ainda, na segunda tópica, um lugar psíquico diferenciado. "O eu é antes de tudo um eu corporal (ein körperliches), não é apenas um ser de superfície, mas é a própria projeção de uma superfície ", nos lança Freud (1923/1940, p.253). Trata-se, sem sombra de dúvida, da superfície (o corpo), no que dela se faz imagem, em certo jogo, certa lógica de transformação no espaço (uma projeção). Isso deveria talvez ser suficiente para nos fazer compreender a importância da topologia lacaniana.

Devemos, portanto, rever a recepção dos esquemas óticos e dos objetos topológicos como meros elementos ilustrativos da doutrina de Lacan.2 2 Roudinesco afirma que os objetos topológicos permanecem, até 1971, um mero "elemento de ilustração " da teoria lacaniana (cf. Roudinesco, 1994, p.364). Entre os psicanalistas e estudiosos da psicanálise, parece-nos bastante freqüente a consideração da topologia como um adendo mais ou menos ilustrativo ou didático. Desde o início deste uso — e antes dele, desde os tópos, os lugares psíquicos de Freud — trata-se de tomar literalmente o espaço, na reflexão sobre o sujeito. A insistência de Lacan no fato de que não se trata de metáfora em seu uso de figuras topológicas não pode, de fato, significar outra coisa senão que se trata também, na reflexão psicanalítica sobre o sujeito, do espaço e de sua configuração. Há, nas palavras de Lacan, um "divórcio existencial onde o corpo desmaia na espacialidade " (LACAN, 1960/1966a, p.681). Tal divórcio entre corpo e ser é estrutural e leva à necessidade de uma construção que o remedeie, atando o corpo ao espaço com as firmes coordenadas geométricas que permitem a projeção da imagem do corpo no espelho — e o advento de um espaço organizado ilusoriamente segundo as leis da perspectiva que é correlata à posição do sujeito moderno. Não é à toa que Lacan se interessa tanto pela anamorfose, que põe a perspectiva a serviço de certa torção e já coloca em jogo a posição do sujeito. Ao longo de seu ensino, porém, permanece latente a questão da verdadeira subversão do espaço que acompanharia a subversão do sujeito. Esta é a questão central, e no entanto pouco reconhecida pelos analistas, que nos parece fornecer o substrato fundamental à topologia lacaniana. De maneira explícita, ela será efetivamente trabalhada e levada às últimas conseqüências em outro campo de produção cultural ao longo do século XX: a arte moderna e contemporânea. Não é por acaso que Didi-Huberman, estudioso de psicanálise que é acima de tudo crítico e teórico da arte, pode nos indicar com clareza que:

"Portamos o espaço diretamente na carne. Espaço que não é uma categoria ideal do entendimento, mas o elemento despercebido, fundamental, de todas as nossas experiências sensoriais ou fantasmáticas. (...) As imagens — as coisas visuais — são sempre já lugares: elas só aparecem como paradoxos em ato nos quais as coordenadas espaciais se rompem, se abrem a nós e acabam por se abrir em nós, para nos abrir e com isso nos incorporar (DIDI-HURBERMAN, 1998, p.246-247, grifos nossos).

SUBVERSÃO DO ESPAÇO, SUBVERSÃO DO SUJEITO

O uso que Lacan faz da fita de Moebius, fundamental, como sabemos, em seu ensino, é o primeiro marco de uma paixão pelos objetos que subvertem a representação comum do espaço, à maneira como o inconsciente freudiano subverte o sujeito. Ao levar em consideração o espaço, a topologia põe o imaginário pelo avesso, realizando o que o objeto a promete no pensamento lacaniano.

Afinal, de que "superfície " se trata, cuja projeção para Freud seria o eu? Trata-se da projeção do corpo, imagem corporal no espelho, em uma primeira resposta. Mas tal "casa " imaginária, o corpo, não tem senhor: revira-se então a imagem e seu referente, e o eu torna-se fita moebiana: superfície unilátera, sem distinção entre dentro e fora e, portanto, sem projeção. Misteriosa figura, que mostra (mostra, não: realiza) o eu como não mais que o trajeto que desliza pela banda, movimento que passa dentro e fora, subvertendo sua distinção — afinal, como formula Lacan, o mais íntimo é êxtimo. A fita de Moebius concretiza a relação entre sujeito e objeto a, talvez possamos dizer que ela se desenha no lugar da punção no matema da fantasia. Ou melhor: se introduzimos a terceira dimensão nesta inscrição bidimensional que é o símbolo matemático da punção, ela se torceria talvez, tornando-se fita moebiana. A punção indica, diz Lacan, "todas as relações, menos a igualdade " (apud BAUDRY, 1996, p.196), ela marca um circuito pulsional, uma trajetória entre sujeito e objeto. A fantasia é o precipitado do desejo do Outro que dá lugar ao sujeito como seu objeto, e portanto ela não é interna nem externa. Ela inscreve o objeto causa do desejo do sujeito, e no entanto tem como ponto de fixação o sujeito no lugar de objeto (do Outro). Na fantasia o sujeito, diríamos, não é mais senhor de seu próprio objeto.

Não é de se estranhar que a representação do espaço seja contígua à questão do sujeito, e torne-se legítimo objeto de estudo da psicanálise. A configuração espacial que tomamos por "natural " é profundamente influenciada pela configuração sistematizada das leis da perspectiva que data do Renascimento, e tem seu organizador fundamental no gérmen do sujeito moderno: o olho central que guia a geometria descritiva (cf. ALBERTI, 1992). Fixo e autônomo, por trás deste olho ao qual o mundo se dá a ver sem falhas não deixa de se perfilar ainda Deus, garantia suprema da partilha bem organizada entre entes e objetos. A tal estabilidade do sujeito em sua relação com o mundo, capaz de gerar imagens apaziguadoras e fiéis à realidade, opõe-se a posição instável, móvel e angustiante do sujeito que, dividido, barrado, não tem mais "casa " — e faz jogo, na fórmula da fantasia, com um objeto igualmente problematizado, caído, que marca sua separação com o Outro. Entre sujeito barrado e objeto a, não há espelho capaz de construir uma imagem constante, narcísica, mas perfila-se a angústia, pondo em vertigem a imagem (cf. RIVERA, 2006). Não há mais garantia suprema da estabilidade entre os termos da representação, mas reconhecimento de um olhar Outro que, de fora, faz o sujeito tropeçar e, deixando sua posição de senhor magnânime da representação, ser olhado.

Outros pensadores, e sobretudo Maurice Merleau-Ponty, amigo de Lacan, constroem na segunda metade do século XX esta crítica do sujeito, no olhar. Já em 1948, em um programa de rádio, ele dirá que, em vez "deste universo racional aberto, por princípio, às empresas do conhecimento e da ação ", "os modernos " nos apresentam "um saber e uma arte difíceis, cheios de reservas e restrições, uma representação do mundo que não exclui fissuras nem lacunas, uma ação que duvida de si mesma e, em todo caso, não se vangloria de obter o assentimento de todos os homens " (MERLEAU-PONTY, 2002, p.63). É a arte moderna que permite ao filósofo entrever este mundo, feito de lacunas e fissuras, onde não podemos mais nos situar como em nossa própria casa, o espaço desta ação que nos escapa e duvida de si mesma, ao mesmo tempo que se afirma como ato descentrado, incapaz de garantir uma comunidade, mas instalando um verdadeiro mal-estar na civilização.

"Alguma coisa no espaço ", sentencia Merleau-Ponty em 1960, "escapa a nossas tentativas de sobrevôo " (MERLEAU-PONTY, 1992, p.50). Não há mais possibilidade de sobrevôo absoluto do sujeito no espaço: ao se inscrever no espaço, ele perde suas penas, como um pássaro deixaria cair as suas ao pintar, segundo a curiosa fala de Lacan (1998, p.111). Algo cai, se deposita, se (des)materializa como objeto a, ao mesmo tempo que o sujeito se (re)divide. Entre sujeito e objeto, há queda e inscrição no espaço, posto que entre um e outro se instaura uma distância — e a terceira dimensão vem então quebrar a bidimensionalidade que define a imagem especular e permite seu poder ilusório. Não é por acaso que Merleau-Ponty toma o élan de sua reflexão da pintura desse grande contemporâneo de Freud que foi Paul Cézanne. Dos contornos ilusórios que definem a priori a imagem, das coordenadas geométricas que predeterminam o espaço mimético, Cézanne passa, com suas pinceladas de pura cor, seus pequenos azuis, seus pequenos marrons, a fazer de um quadro algo diferente de um espelho da realidade. Ele faz da pintura um depósito de algo que convoca o sujeito a se reconstituir, dividido, assujeitado a um espaço não mais pacífico, mas vertiginoso, em que ele próprio quase cai. É disso que trata a arte moderna, que surge no mesmo momento que a psicanálise, e tratará a arte contemporânea, desenvolvendo-se em torno das mesmas questões que o pensamento lacaniano.

Lacan, como bem sabemos, foi profundamente marcado pelo movimento modernista mais explicitamente influenciado pela psicanálise, o surrealismo. O psicanalista francês buscará seguir a máxima de Mallarmé segundo a qual "o moderno desdenha imaginar ", fazendo a crítica do imaginário logo após ter se tornado seu maior pensador, com a concepção do estádio do espelho. Ou melhor, ao mesmo tempo que se torna o grande teórico do imaginário. Pois é ainda na primeira página de "O estádio do espelho "... que Lacan nota que, ao contrário do que acontece com o macaco, o ato de reconhecimento de si no espelho não se esgota, na criança, com uma imagem controlada e inerte. Ele dá lugar a gestos no espaço real,

"(...) a uma série de gestos em que ele experimenta ludicamente a relação dos movimentos assumidos da imagem com seu ambiente refletido, e deste complexo virtual com a realidade que ele duplica, ou seja, com seu próprio corpo e com as pessoas, ou até com os objetos, que estão à sua volta. " (LACAN, 1949/1966b, p.93)

Desta espécie de fotografia, instantâneo da imagem do corpo que se fixa neste reconhecimento e do qual se precipita o Eu, nasce também, portanto, toda a questão da tridimensionalidade na qual se inscreve o gesto na relação com o outro, com o objeto. A imagem recoloca em questão a "realidade ", assim como o fez a fotografia no século XIX, incitando ao questionamento da representação e à violenta crítica à mimese que inaugura a arte moderna. Há um ato fundamental e singular, de reconhecimento, a que se seguem gestos múltiplos, no divórcio entre corpo e espaço. Da fixidez necessária ao olho para o instante de reconhecimento seguem-se movimentos variados e imprevisíveis (impossíveis de pré-ver), atravessando o espelho e marcando a existência de uma presença além (ou aquém?) da imagem. Assim, "a imagem parece ser o umbral do mundo visível ", como diz Lacan, porque ela marca dois lados, um da virtualidade especular e outro de outra coisa, outro espaço que não aquele, ilusório, do reflexo sobre a superfície bidimensional do espelho (LACAN, 1949/1966b, p.95).

Daí vem o interesse de Lacan na "obsessão pelo espaço " que é o mimetismo segundo Roger Caillois, pensador que também apresenta importantes ligações com o círculo surrealista. Caillois introduz o gesto, as ações do homem, no seio dos esquemas geométricos que arbitrariamente compõem a concepção (e, portanto, a percepção) clássica de espaço. Com isso, ele promove um verdadeiro rompimento com o esquema perspectivo, fazendo com que o sujeito fixo, olho central que o organizava, saia de repente a perambular por aí.

"A percepção do espaço é sem dúvida um fenômeno complexo: o espaço é indissoluvelmente percebido e representado. Deste ponto de vista, é um duplo diedro a todo momento mudando de grandeza e de situação: diedro da ação cujo plano horizontal é formado pelo solo e o plano vertical pelo homem mesmo que anda e que em decorrência deste fato forma o diedro consigo mesmo. " (CAILLOIS, 1986, p.62)

Tudo se transforma se o homem está caminhando, movendo-se, produzindo seus gestos descentrados. Caillois prossegue caracterizando a segunda face do duplo diedro:

"Diedro da representação determinado pelo mesmo plano horizontal que o precedente (mas representado e não percebido) cortado verticalmente na distância onde o objeto aparece. É com o espaço representado que o drama se precisa, pois o ser vivo, o organismo não é mais a origem das coordenadas, mas um ponto dentre outros; ele é desapossado de seu privilégio e, no sentido forte da expressão, não sabe mais onde colocar-se. " (CAILLOIS. 1986, p.62-63, grifos do autor)

Divorciado do espaço, o sujeito não tem mais casa. Recolocado no interior da geometria que ele antes sustentava como que de fora, inquestionado, ele cambaleia e põe a girar, a oscilar o próprio espaço. De sujeito magnânime da representação ele se torna assujeitado a ela, objeto do olhar. Os animais que se mimetizam, para Caillois, não seguem em absoluto qualquer finalidade — como a de enganar seus predadores, como se costuma acreditar. O mimetismo é puro luxo, ele se dá como uma captura do sujeito no espaço circundante. Ele mostra, fundamentalmente, que se está de cara assujeitado a um olhar outro, um Olhar do Outro.

As chamadas linhas de Nazca foram realizadas no período pré-colombiano pelo povo Nazca, do deserto peruano, compondo enormes desenhos cuidadosamente realizados pela extração e limpeza das pedras e do escuro solo local, deixando ver o subsolo mais claro. Naquela época, ninguém podia ver esses desenhos geométricos e de animais estilizados que hoje podem ser contemplados ao se sobrevoar a área de avião. Puro luxo: elas foram feitas para o Outro Olhar.

LYGIA CLARK E O DESPERTAR NO ESPAÇO

Devemos levar a sério a afirmação de Lacan de que a fantasia é "a obra de arte de uso interno do sujeito " (LACAN, 1966c): podemos então aprender com a arte sobre a fantasia. Isso não significa, contudo, que arte e psicanálise se reflitam mutuamente em espelho. Antes, há entre elas arestas, questões que uma coloca à outra, desde que as recoloquemos em diálogo. Elas de fato colocam-se em tensão, no amplo campo cultural a partir do pós-guerra em que se inscrevem a arte contemporânea e o pensamento lacaniano. Entre os dois campos há pontos de contato variados que, mais do que influências diretas, delineiam terrenos de questões comuns. Algumas delas, que o pensamento lacaniano compartilha com a arte contemporânea, são: a do objeto arruinado e inimaginável, a do gesto e do ato que recolocam a questão do corpo para além da imagem especular e, ligada a esta última, a do espaço como imprevisível, não mais organizado pelas linhas de força que compunham, na representação clássica, o ilusionismo tridimensional.

Essas três questões acompanham, de fato, a configuração do sujeito dividido em sua relação ao objeto. Começando pela vertente própria a este último, diríamos que se trata do objeto não como símbolo, mas como fato (como dizia John Cage), objeto que não pode ser imaginado e é uma espécie de ruína do objeto, objeto oco que é resto da operação de constituição do sujeito no campo do Outro. Gérard Wajcman traz uma grande contribuição a esse respeito quando situa o objeto a no século que seria o século do objeto, tendo como seu umbigo fundamental o holocausto (WAJCMAN, 2000). Ou melhor, a Shoah, tal como vem nomeá-lo uma obra de arte, o filme de Claude Lanzmann — filme feito de testemunhos e não de imagens disso que é impossível figurar, impossível imaginar, desse extremo terrível de violência que abre uma ferida no meio do século. O objeto distancia-se da imagem para acentuar seu caráter real, lembrando, com Lacan, que o objeto a nos obriga a conceber (e portanto, até certo ponto, imaginar) algo que resiste fortemente à imaginarização, ou melhor, nos impõe o desafio de tentar forjar "um outro modo de imaginarização " (LACAN, 2004, p.51).

Uma imaginarização paradoxal, disruptiva, que tem uma ligação predominante com o registro do real. A imagem não é apenas aquela totalidade ortopédica que fixa o eu numa linha de ficção e desfralda a tela sobre a qual uma ilusória realidade virá se apresentar. "O homem ", como diz Maurice Blanchot, "é desfeito segundo sua imagem " (BLANCHOT, 2000, p.350). Há todo um campo do visual que visa romper a tela/espelho e fazer entrever o objeto — construindo então um espaço difícil de conceber, que não se deixa restringir às coordenadas da projeção imagística.

Boa parte da produção contemporânea compartilha tal desafio. O importante crítico e teórico da arte Hal Foster faz referência aos três registros de Lacan, nesse sentido, para falar de um "retorno do real " na arte contemporânea (FOSTER, 1996). No vasto e até indeciso terreno desta produção, traremos uma reflexão vigorosa: a da artista brasileira Lygia Clark sobre o ato, visando ultrapassar a imagem e o objeto.

Em 1963, apenas um ano após Lacan começar a fazer uso da fita de Moebius em seu seminário, Lygia utiliza de forma própria este objeto topológico que ela provavelmente conheceu por Max Bill, o artista vencedor da primeira Bienal de São Paulo que tanto influenciou a arte concreta brasileira.3 3 Desconheço se Lygia teve alguma notícia do uso que Lacan fazia à época da fita de Moebius. Isso me parece, no fim das contas, secundário: o importante é notar que ambos partilham um mesmo objeto e, em parte, as mesmas questões. Lacan já havia recortado integralmente a fita em seu comprimento, seguindo uma linha mediana de sua largura, o que surpreendentemente produz uma banda bilátera, para dizer que o sujeito não é mais do que esse corte que inaugura a distinção entre dentro e fora. A banda de Moebius era então definida pelo psicanalista como "o suporte estrutural do sujeito como divisível " (apud PORGE, 1996, p.505).

Por sua vez, em seu Caminhando, de 1963, Lygia Clark faz na fita unilátera, com uma tesoura, um corte transversal que não encontra seu ponto de partida, mas prossegue em uma nova volta tornando a sua largura cada vez mais fina e seu diâmetro cada vez maior, prolongando, expandindo a torção da banda em direção a uma ruptura final — que virá necessariamente, já que a largura da fita não é infinita, mas que se retarda em uma promessa de não-corte, em um horizonte de passeio infinito da tesoura sobre o papel.

O Caminhando é uma verdadeira revolução na obra da artista: ele lhe permite abandonar a distinção sujeito/objeto, e portanto recusar radicalmente a noção de objeto de arte, em prol de uma primazia do ato. Ao propor o corte transversal da fita como o próprio trabalho artístico, Lygia desmaterializa de forma revolucionária a obra de arte, introduzindo uma sofisticada reflexão artística acerca das relações entre sujeito e objeto — ou seja, sobre a fantasia. Caminhante, o sujeito é um "itinerário interior fora de mim ", escreve Lygia em 1965 (CLARK, 1999, p.164).

Isso permite à artista radicalizar a proposta de participação do outro, do espectador, na configuração da obra. Já com seus Bichos, desde 1960 a artista convocava o espectador a ser co-autor da obra, podendo mexer nessas esculturas de alumínio cheias de articulações e provocar nelas movimentos. Lygia privilegiava aí o contato "orgânico " entre o homem e o objeto, fazendo da obra o que se dá entre os dois, como gesto de um, gerando em resposta movimento do outro. Quando perguntam à artista quantos movimentos o Bicho pode fazer, ela responde: "Eu não sei, você não sabe, mas ele sabe... ". E prossegue: "O Bicho não tem avesso " (CLARK, 1999, p.121).

É bem explorado pela crítica de arte o passo lygiano rumo à participação do espectador, no momento inaugural desta preocupação, que será compartilhada por outros artistas mundo afora e constitui uma das características da arte contemporânea. O Caminhando (re)inscreve, no esteio dos Bichos, o objeto como dentro/fora, fazendo jogo com o sujeito na própria constituição deste. Mas fazer do Caminhando uma obra é desmaterializar o objeto em favor do ato, o que radicaliza ainda a proposta de participação do outro na obra. Neste sentido Lygia abandonará o termo "obra " e "objeto " de arte em prol do termo proposição, que acentua o seu caráter de apelo ao sujeito. Pois o Caminhando também desmaterializa o próprio sujeito, vem colocá-lo em crise, subvertê-lo. O Caminhando é o próprio sujeito despertando, diríamos, de sua alienação especular. A fala de Lygia é clara a respeito: "Instável no espaço, parece que estou me desagregando " (CLARK, 1999, p.121). "Meu corpo me abandona ", diz, ainda, perguntando em seguida:

"Onde está o Bicho-eu? Eu me torno uma existência abstrata. Afogo-me em verdadeiras profundezas, sem pontos de referência com meu trabalho — que me olha de muito longe, do exterior de mim mesma. 'Fui eu quem fiz aquilo?' Perturbação. Delírio de fuga. Estou presa apenas por um fio. Meu corpo me deixou — 'caminhando'. Morta? Viva? Sou atingida pelos cheiros, pelas sensações táteis, pelo calor do Sol, os sonhos. " (CLARK, 1999, p.164)

Trata-se de um sujeito precário, que no ato poético se perde mais do que se acha, mas ao mesmo tempo retoma a dianteira sobre o objeto, engatando-o em sua vertigem, pondo em ato a fantasia. Tal ato/corte retoma a fantasia de maneira a pôr em relevo o que seria, digamos, seu "avesso ": a fantasia não é mais a tela que encobre o real, mas o corte que convoca sujeito e objeto a se (re)desjuntarem, ambos subvertidos, descentrados, caídos. Lygia anuncia então, em 1968, a respeito da obra de Hélio Oiticica, seu grande parceiro, assim como de sua própria obra (e, entenda-se, de si mesma), "o precário como novo conceito, a magia do ato na sua imanência e também a negação do objeto que perdeu toda sua carga poética ainda projetada, para se transformar num poço onde a multidão se debruça para se encontrar na sua essência " (CLARK, 1998, p.57). A essência está no fundo do poço, onde o sujeito não mais se projeta como imagem-objeto no espelho d'água de Narciso, mas se põe em vertigem, diante de uma queda iminente.

Sobre a obra O dentro é o fora (1963), uma fita de Moebius modificada, em lata, Lygia afirma ainda que "o sujeito atuante reencontra sua própria precariedade. (...) Ele descobre o efêmero por oposição a toda espécie de cristalização. Agora o espaço pertence ao tempo continuamente metamorfoseado pela ação. Sujeito-objeto se identificam essencialmente no ato " (CLARK, 1999, p.165). Nisso a operação lygiana é radical e talvez diferente da de Lacan. O corte que define o sujeito, para a artista, não se dá em ato uma vez por todas, mas é o próprio desenrolar temporal de sua tentativa, nunca alcançada e, paradoxalmente, desde o início presente.

O Caminhando põe radicalmente em questão o estatuto do objeto e do sujeito na arte, em prol de nada além de um simples ato se desenrolando no tempo. O objeto quase desaparece, e deixa de ser o complemento fixo, correlativo do sujeito. Mas o ato promove aí uma espécie de coalescência entre objeto e sujeito que desloca um e outro em favor de um espaço definido pelo movimento. Em vez de fazer cair o objeto e pôr em vertigem o sujeito, o ato artístico lygiano sustenta no tempo a oscilação entre dentro e fora, tornando-a virtualmente sem fim.

"O ato de se fazer é tempo ", sentencia Lygia (1999, p.165). "O ato de se fazer ": de fato, o sujeito se faz no ato, de maneira que quase o des-faz, o desmaterializa, por assim dizer, destacando-o de sua imagem corporal para lançá-lo na precariedade, em um súbito despertar. Tal despertar é um ato e, no entanto, não tem início nem fim, não se localiza no tempo mas é o tempo: interminável, talvez como a análise segundo Freud. Não se captura, em ato, mais do que um lapso perdido de tempo, no qual se dissolve o corpo e o sujeito em prol da fugidia e poética sensação.

"Quero viver como o ponteiro do relógio / mil vezes segue o mesmo roteiro / momento vivo, ele é num ponto / A referência do real. " (CLARK, 1999, p.132)

Em 1973, Lygia formula a idéia de que a própria vida (a simples vida, o fazer-se tempo) seria uma proposição, o que a faz ficar quase um ano sem realizar qualquer trabalho de arte. Ela nomeia Pensamento mudo isso que "era o simples viver sem fazer qualquer proposição, era o reaprender, ou por outro lado, havia, através das outras proposições, reaprendido a viver e estava me expressando através da vida! " (CLARK, 1999, p.270).

REVIRAVOLTAS DA FANTASIA

Em oposição ao Happening que dá origem à denominação Performance, nos Estados Unidos, como uma afirmação do corpo sem uma real problematização do sujeito — ou sem que em geral tal problematização, que a presença do corpo carreia de forma subterrânea, se torne explícita —, as proposições de Lygia Clark trazem o corpo de maneira a, sutil e efemeramente, capturar o sujeito no cerne de sua problemática constituição. A influência de Merleau-Ponty e da psicanálise sobre a brasileira é, provavelmente, a razão desta discrepância. Paulo Herkenhoff nota argutamente que o filósofo francês só seria lido em língua inglesa muito posteriormente à sua leitura no Brasil, já no começo dos anos 50, principalmente sob a poderosa instigação de Mario Pedrosa — que também era grande leitor de Freud (cf. ROLNIK, 2006a). Lygia, como se sabe, fez análise durante vários anos, no Rio e em Paris, onde teve Pierre Fédida como analista.

A influência crescente da teoria psicanalítica em seus escritos, a partir especialmente dos anos 1970, com o que ela chama de "Fantasmática do corpo ", soa por vezes curiosa, consistindo uma espécie de torção da psicanálise em prol de propostas poéticas (e não propriamente "psicanalíticas "). Não é nosso objetivo nesse ensaio estudar em profundidade a complexa relação de Lygia com a psicanálise, que necessitaria de uma ampla investigação histórica que delineasse com alguma precisão suas leituras e seus contatos com psicanalistas, no Rio de Janeiro e em Paris. Seria necessário um detalhamento e um cuidado extraordinário para avaliar com precisão os limites da ampla influência que faz Lygia afirmar em 1973, por exemplo: "Magia negra, estou invadida pelo inconsciente " (CLARK, 1999, p.269).

É importante notar, independentemente dos limites da influência direta da psicanálise — ou melhor, do quanto a torção imposta pela poética clarkiana torna estranho o pensamento psicanalítico — que ela se inscreve no que diz respeito ao corpo, mas menos à presença dele em si do que à presença do corpo que desestabiliza o eu para dar lugar à palavra, à fala em que cada sujeito se delineia invisivelmente em um lapso de tempo, escapando à objetificação e à visualidade que circunscrevem o campo da arte. O grupo com o qual Lygia trabalha cada proposição na Sorbonne, no início dos anos 1970, vive com a artista e seus objetos relacionais experiências que só "compreenderão no exercício posterior do relato ". Sobre este ponto, Lygia acrescenta em parênteses, em entrevista ao Jornal do Brasil em 1974: "Como me disse Fédida, era o momento de construir com o corpo um espaço para a palavra " (CLARK, 1999, p.315). O espaço se constrói com o corpo, para a palavra. O próprio Fédida, comentando a obra de Lygia em entrevista a Suely Rolnik, fala de uma espécie de "comunicação " que seria "um espaço que só se pode construir com a linguagem e plasticamente " (ROLNIK, 2006b, p.69).4 4 A insistência de Fédida na linguagem é suficientemente eloqüente no sentido de uma desconfiança no corpo como espaço ou presença per se. Talvez se deva a isso o abandono do curso "Semiologia, arte e técnicas do corpo " que ele ministrava em Paris na década de 1970, numa notável ressonância com as aulas de Lygia na Sorbonne. O curso de Fédida ia de vento em popa quando ele o interrompeu. Cf. Braconnier, Alain. Entrevista com Pierre Fédida. Publicado originalmente em Le CarnetPSY, février 1999. Tradução de Saulo Krieger. Retirado de www.antroposmoderno.com/textos/entrevistafed.shtml, acessado em 9 de janeiro de 2007. Entre corpo e palavra, entre o eu e o outro, surge em um átimo o sujeito. Do "Pensamento mudo ", a um ato falado, Lygia desenha um arco invisível que constrói um imprevisível espaço do sujeito, rompendo em definitivo as fronteiras da arte.

A dissolução da própria arte empreendida por Lygia acompanha o desmonte das categorias de objeto de arte, de artista e de espectador, e se concluirá na radicalidade da proposta "terapêutica " clarkiana: nem o objeto nem o sujeito têm estatuto independente, e portanto não há mais "arte ". Não se trata aqui de julgar, do ponto de vista da clínica psicanalítica, o que a própria artista chamará "estruturação do self " e praticará a partir de 1976 em seu apartamento em Copacabana, promovendo uma experiência corporal de seus "clientes " com seus maravilhosos e precários "objetos relacionais ": almofadas, sacos cheios de ar ou isopor, pedras, conchas, meias-calças contendo outros objetos, etc. O objeto relacional criaria com o corpo, segundo Lygia, "relações através de textura, peso, tamanho, temperatura, sonoridade e movimento " (CLARK, 1999, p.319). As sessões eram regulares, com freqüência de até três vezes por semana, e um bom tempo da sessão parece, pelos relatos da artista, ser ocupado com a verbalização de associações a partir das sensações experimentadas. Pouco antes de morrer, em 1988, Lygia abandonará, com a ajuda de um psicanalista, seu "trabalho terapêutico ".

Não nos parece que Lygia tenha deixado de ser artista para tornar-se efetivamente terapeuta. Ela levou a cabo seu projeto artístico — e isso, paradoxalmente, obrigava a um total abandono do circuito de arte, da idéia de exposição de objetos de arte para a contemplação e do próprio estatuto de artista. Lygia defende com isso não apenas a idéia de mesclar a arte com a vida, mas a proposta (uma proposição maior) de que a arte convoca o sujeito de forma radical a se transformar em ato, poeticamente. E não seria isso, no final das contas, análogo ao que visa uma psicanálise?

É o efeito de sujeito o objetivo da arte, assim como o da psicanálise. Tal parece-nos ser a lição fundamental de Lygia, que não nos serve para reduzir um campo ao outro, mas para relançar para ambos a questão do sujeito e de suas transformações. Não há mais do que o ato, purificado de toda reificação, o gesto que se produz entre um sujeito e outro, centelha poética que é visceral e no entanto imaterial, impalpável efeito de sujeito. Despertar quase imperceptível, sempre sujeito ao fracasso, sempre a refazer, sempre a recomeçar.

O sujeito não se descentra de uma vez, mas deve cumprir uma trajetória virtualmente infinita que vai, em ato, construindo um espaço: da casa do eu ele se desfaz, despertando para uma caminhada errante em que a cena da fantasia perde sua fixidez imagística. Além de efêmera, tal reviravolta é interminável, ela deve sempre se refazer, sua matéria não é mais do que o próprio tempo. O sujeito não atravessa a fantasia em um sentido único, pondo-a pelo avesso ou dela podendo sair, como quem fura uma onda, atravessando-a. A travessia apontada por Lacan como fim da análise é uma possibilidade de movimento, de deslocamento da posição do sujeito na montagem da fantasia, a partir de um ato que coloca radicalmente em questão o espaço, liberando-o de suas rígidas coordenadas em prol de um expurgo da imagem, em favor do tempo. Fazer-se tempo é se inscrever na transitoriedade de que fala Freud em seu célebre ensaio de 1915, terrível e belo destino que assume seu fim. (FREUD, 1915/1944)

"Tenho medo do espaço ", escreve Lygia em 1965, "— mas a partir dele me reconstruo " (CLARK, 1999, p.164). Tal reconstrução inclui sujeito e objeto em uma reviravolta do espaço. Nela o sujeito se põe em movimento transformando sua posição na fantasia — ao mesmo tempo em que realiza a fantasia, ou seja, a constrói em sua fala, posto que ela esteve sempre lá, antes mesmo de seu advento como sujeito, e no entanto só em análise pode ser construída: como frase e como cena (que não só tem lugar no espaço, mas constrói (e revira) o espaço do sujeito). Talvez se deva afirmar que a fantasia é travessia, e não a cena fixa que permitiria um atravessamento capaz de levar o sujeito para "fora " dela. De projeção cênica em duas dimensões — diríamos, cinematográfica —, a fantasia torna-se, na transferência, real. Ela ganha espessura e se abre para a existência de três dimensões, e portanto nela o sujeito pode se pôr a caminhar. Pode então ter lugar um ato, um gesto capaz de quebrar a imagem especular, rompendo as firmes coordenadas que constroem o que chamaremos de imagem-muro, em prol de uma imagem-furo — que lança o sujeito no espaço real que é imprevisível e mutante, conjugando-se ao tempo. "Agora ", diz Lygia ainda em 1965, "o espaço pertence ao tempo continuamente metamorfoseado pela ação " (CLARK, 1999, p.165).

Ao acompanhar o próprio trânsito, ao fazer-se ato de corte que prolonga a fita de Moebius, repetidamente atuando sua subversão, caminhando, o sujeito quase se torna senhor do corte (se não da casa). O ato analítico, "(...) um ato tal que ele destitui, em seu fim, o próprio sujeito que o instaura " (LACAN, 1969/2001, p.375), incide sobre a fantasia refazendo o jogo entre sujeito e objeto, o (re)corte entre eles, percorrendo o trajeto retorcido da punção tornada fita de Moebius. Esta reviravolta entre sujeito barrado e objeto a desmonta e remonta sutilmente a fantasia, em ato, em um circuito sem fim que refaz e subverte o espaço. Em vez da travessia da fantasia que deve se consumir, em ato, destituindo o sujeito e tendo como resto o objeto a, talvez a arte nos convide a retorcê-la um tanto, realizando uma espécie de travessura da fantasia: dobra nela mesma que, num mesmo golpe, esgarça seu furo e diante dele ergue um muro.

Recebido em 14/9/2007. Aprovado em 18/10/2007.

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  • *
    A investigação que dá origem ao presente texto foi realizada com o apoio do CNPq e contou com a generosa interlocução de Glória Ferreira. Uma versão deste ensaio foi apresentada no I Colóquio Internacional do Corpo Freudiano: 'Dimensões do Despertar na Psicanálise e na Cultura', em abril de 2007.
  • 1
    É nossa a tradução deste trecho e de todas as demais citações.
  • 2
    Roudinesco afirma que os objetos topológicos permanecem, até 1971, um mero "elemento de ilustração " da teoria lacaniana (cf. Roudinesco, 1994, p.364). Entre os psicanalistas e estudiosos da psicanálise, parece-nos bastante freqüente a consideração da topologia como um adendo mais ou menos ilustrativo ou didático.
  • 3
    Desconheço se Lygia teve alguma notícia do uso que Lacan fazia à época da fita de Moebius. Isso me parece, no fim das contas, secundário: o importante é notar que ambos partilham um mesmo objeto e, em parte, as mesmas questões.
  • 4
    A insistência de Fédida na linguagem é suficientemente eloqüente no sentido de uma desconfiança no corpo como espaço ou presença
    per se. Talvez se deva a isso o abandono do curso "Semiologia, arte e técnicas do corpo " que ele ministrava em Paris na década de 1970, numa notável ressonância com as aulas de Lygia na Sorbonne. O curso de Fédida ia de vento em popa quando ele o interrompeu. Cf. Braconnier, Alain. Entrevista com Pierre Fédida. Publicado originalmente em
    Le CarnetPSY, février 1999. Tradução de Saulo Krieger. Retirado de
    www.antroposmoderno.com/textos/entrevistafed.shtml, acessado em 9 de janeiro de 2007.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Nov 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2008

    Histórico

    • Recebido
      14 Set 2007
    • Aceito
      18 Out 2007
    Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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