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Identidade, indivíduo e política

RESENHA

Professor da ECO UFRJ e analista do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos. flacombe@globo.com

Indivíduo singular plural - a identidade em questão, Eduardo L. Cunha. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009. 176 p.

Em Psicologia das massas e análise do eu, Freud afirma: "Cada indivíduo partilha de numerosas mentes grupais - as de sua raça, classe, credo, nacionalidade, etc. - podendo também elevar-se sobre elas, na medida que possui um fragmento de independência e originalidade." É na busca da caracterização desse "fragmento de independência e originalidade" que se põe a caminho a reflexão de Eduardo Leal Cunha. Apoiada em uma notável capacidade literária, fato nem sempre muito presente em autores especialistas em psicanálise, o texto vai nos convocando a seguir os passos de um percurso, que não evita os meandros, mesmo os mais obscuros, com que o leitor se depara no seu desenvolver.

O título per se já é provocativo, pois o conceito de indivíduo - "categoria fundamental seja para a constituição da ideia de identidade, seja como valor e eixo central para a organização da sociedade" - não pode acolher em si, tranquilamente, a ideia da pluralidade. Estamos, portanto, avisados de que se trata de um embate de grandes proporções. Embate que não tem o sentido de mera porfia, discórdia, mas de oportunidade de os oponentes se revelarem em outras possibilidades além das até hoje representadas. Não se trata, portanto, de uma tentativa de se descartar das categorias de indivíduo e identidade, o que seria vão, mas de "indicar ao menos a possibilidade de outros caminhos para a experiência subjetiva". Vai-se enfocar com vigor o que o conceito de identidade quer dizer e como dessa forma vão se revelando, sobretudo nas "bordas", na imprecisão de seus limites, o que ainda não foi dito, no que se tem dito da identidade.

A primeira providência do autor é enfocar uma atitude característica de nossa modernidade, em que identidade é experimentada como uma resposta à complexa pergunta quem é você? Imediatamente, sacamos de nossos bolsos uma série de dados referentes a filiação, local de nascimento, idade, etc., reunidos numa carteira, e aparentemente ficamos satisfeitos. O texto nos propõe abandonar essa "posição de segurança e conforto" e ousar aquilo que de fato nos constitui como seres humanos - o questionar -, e mais uma vez perguntar pelo que entendemos como identidade.

A diagramação do livro já é sugestiva: sua primeira página está quase em branco, contendo apenas a pergunta quem sou eu? Evidentemente, de forma radical, logo de início, se introduz a questão, pois quando fazemos tal interrogação jamais nos contentaremos com a leitura dos dados de nossos documentos oficiais. A página seguinte se inicia com quem é você? Propiciadora do desencadear da reflexão, mas que vai envolver tanto o eu como o você em um nós que se deixa representar pelo quem. Tanto o eu quanto o você frequentam esse espaço de experiência que no momento de questionar é subsumido pelo quem. Tomam os contornos do relativo, do indefinido, tal como a gramática nomeia esse pronome. O percurso a seguir é realizado por meio de um salto, talvez como quer Heidegger, um salto "para trás", num abandonar-se ao indefinido, ao sem fundamento.

O ponto de partida está nas formulações de Anthony Giddens, que considera a identidade como "uma narrativa estruturada do eu capaz de fornecer-lhe o mínimo de segurança ontológica necessária para enfrentar o contexto de risco que caracteriza o mundo atual". Na problematização que vai fazer dessa colocação, que de fato é o verdadeiro fio condutor do trabalho, o texto vai preservar essa dimensão de narrativa, mas vai mostrar outras possibilidades de frequentá-la para desembocar numa forma de narrar que se assente na fantasia, no desejo, no inconsciente, de acordo com as formulações freudianas. É o reconhecimento de que na radicalidade de sua estruturação é na linguagem, no logos, que o homem vai obter os recursos para sua instituição.

Por outro lado, também surge a necessidade do questionamento, pois a própria modernidade se deu as bases para a cunhagem dessa forma de entender a identidade, tão bem desenvolvida pelo sociólogo inglês, e também para sua preservação, esse nosso tempo histórico, ele próprio assumindo esse caráter de "líquido", nos convoca a ampliarmos o âmbito da compreensão do mesmo. Na experiência contemporânea vemos o que se chamou de 'fragmentação das identidades', que de fato é um enorme desdobramento das possibilidades de identificação, promovidas principalmente pelo desenvolvimento dos meios de comunicação, que deram o suporte para o estabelecimento do fenômeno que Baudrillard chamou de banalização, ou seja, a dinâmica de extinção de uma ideia, não por fazê-la desaparecer, mas por uma repetição sem fim, conduzindo à ruptura com qualquer referência externa e reduzindo a experiência à sua dimensão de signo que se comuta indefinidamente. A extinção se faz pelo excesso. Portanto, a contemporaneidade nos interpela a buscar na experiência da identidade novas referências para se pensar esse enigma que desde a antiguidade nos provoca: a mesmidade do que se apresenta em constante transformação.

O texto vai nos conduzindo, de forma sempre instigante, pelas formulações de vários autores, pertencentes a diferentes áreas do saber, ao seu desenlace, quando nos aguardam as reflexões mais incisivas e mais pessoais do autor em torno da questão, cumprindo o que já acenara no início: abandonar as posições de segurança e conforto e mergulhar no que se apresenta como permanente movimentação, permanente dinâmica de constituição, em que o amor vai surgir, não como doação, mas como acolhimento da absoluta alteridade do outro, em sua diferença que é ao mesmo tempo sua identidade, a partir da entrega ao acontecimento.

Para tanto, somos guiados a encontrar apoio nas formulações de Fourier, "que instala o fantasiar costumeiramente circunscrito ao campo da experiência individual, nos campos da ação política e dos modos de organização da sociedade, inclusive sua economia". E o autor não se detém diante da crítica, frequente, de pensamento utópico e delirante, para afirmar que está em pauta nesse controvertido pensador, exatamente, a possibilidade de se repensar a utopia e o delírio. A via de aproximação com o pensamento freudiano é com isso construída e, se debruçando sobre a fantasia, o desejo e o sonho principalmente, vai apontar como o importante não está no efeito da cunhagem dessas categorias, mas no fantasiar, no desejar e no sonhar. Essa passagem do foco do substantivo para o verbo é decisivo nas conclusões de Eduardo Cunha. Trata-se do movimento, ou do movimentar-se, melhor dizendo, produzindo os efeitos de uma não-acomodação a um embate sem fim com os desígnios da racionalidade. Apela-se com isso para a experiência estética da existência.

Outro companheiro importante desse final de percurso é Giorgio Agamben, com sua compreensão de singularidade, um complexo conceito que subsume "o modo de relação consigo mesmo marcado pela experiência da liberdade e da hospitalidade, do abrir-se ao estrangeiro, e do que nós tomamos - enquanto correlato de um desejo que se situa no campo do adorável e de uma política que se deixa seduzir por Eros - como ato amoroso". É nessa experiência do singular que o indivíduo pode abraçar o plural.

Nesse caminhar tão provocador, o autor nos coloca diante da evidência da proximidade entre refletir e clinicar. Quando o analista se inclina para a escuta do analisando, está promovendo a realização desse mesmo percurso: da demanda de apoio e segurança até o resgate da possibilidade de compreender as vicissitudes de uma existência não submetida ao cálculo, à previsibilidade, mas entregue aos movimentos do brincar, do fantasiar, do desejar. É a partir desse "cuidado" que se torna possível perfazer não só a dimensão estética da existência como também a dimensão política.

Recebida em 20/4/2009.

Aprovada em 30/4/2010.

  • Identidade, indivíduo e política

    Fabio Lacombe
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Jul 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010
    Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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