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O ideal em questão

The Ideal on focus

Resumos

Partindo da formulação lacaniana segundo a qual "em todo psicanalisante, há um discípulo de Aristóteles", o artigo pretende abordar o impasse atual no governo de si e dos outros articulando-o à servidão voluntária ao ideal platônico do filósofo-rei. Propondo pensar a questão de como sair dessa servidão, o autor versa sobre as críticas de Aristóteles, Arendt e Leo Strauss a uma política elaborada com base no modelo da família.

Lacan; Platão; Aristóteles; governo; servidão voluntária


Based on the Lacanian formulation that "in every psychoanalysand, there is a disciple of Aristotle", the article aims to address the current impasse in the government of self and others linking it to voluntary servitude to the platonic ideal of the philosopher-king. Proposing to consider the question of how to get out of this bondage, the author discusses the criticism of Aristotle, Arendt and Leo Strauss to a policy which is based on the family model.

Lacan; Plato; Aristotle; government; volunteer bondage


ARTIGOS

O ideal em questão

The Ideal on focus

Christian Hoffmann

Psicanalista, professor de psicopatologia clínica e pesquisador do CRPMS da Université Paris 7. christian.hofmann@mageos.com

RESUMO

Partindo da formulação lacaniana segundo a qual "em todo psicanalisante, há um discípulo de Aristóteles", o artigo pretende abordar o impasse atual no governo de si e dos outros articulando-o à servidão voluntária ao ideal platônico do filósofo-rei. Propondo pensar a questão de como sair dessa servidão, o autor versa sobre as críticas de Aristóteles, Arendt e Leo Strauss a uma política elaborada com base no modelo da família.

Palavras-chave: Lacan, Platão, Aristóteles, governo, servidão voluntária.

ABSTRACT

Based on the Lacanian formulation that "in every psychoanalysand, there is a disciple of Aristotle", the article aims to address the current impasse in the government of self and others linking it to voluntary servitude to the platonic ideal of the philosopher-king. Proposing to consider the question of how to get out of this bondage, the author discusses the criticism of Aristotle, Arendt and Leo Strauss to a policy which is based on the family model.

Keywords: Lacan, Plato, Aristotle, government, volunteer bondage.

O que terá levado Lacan a dizer que "Em todo psicanalisante, há um discípulo de Aristóteles?" (LACAN, 1978/1991, p.23).

Abordarei essa questão a partir de Platão, que Freud tanto venerava por seu Um do amor. Vou tentar mostrar que o ideal platônico, nesse caso, é um impasse no governo de si e dos outros, para retomar o título dos últimos seminários de M. Foucault. Isso não impede de aderir à ideia de M. Foucault, o qual, nesses seminários sobre a governança, desenvolve que a filosofia encontra "seu real" na política. Esse real que ela aí encontra é o da servidão voluntária do homem quanto a continuar a querer deixar-se guiar pelo ideal platônico do filósofo-rei. A explicação filosófica, de Kant até Foucault (FOUCAULT, 1982-83/2008), responsabilizando a "preguiça" e a "pusilanimidade" por esse estado de dependência ao Mestre-governante, para nós são apenas os sintomas desse Logos. É claro que é preciso continuar a propor a si mesmo a questão de como sair dessa servidão voluntária. Entretanto, hoje em dia parece bem difícil pensar que se possa "forçar alguém a ser livre" (BROWN, 2009, p.73), isto é, a pensar por si mesmo, como o fazia Rousseau. Ademais, eu não tenho a certeza, conforme está indicado na tese de M. Foucault, de que a parrêsia, o dizer verdadeiro, que o filósofo (platônico) pudesse soprar à alma do Príncipe, seja um remédio, uma vez que isso deixa na mesma a questão da governança por um Chefe ideal. Para Nietzsche, o erro residia igualmente na crença no ideal, o que, aliás, ele interpreta também como sendo uma "pusilanimidade".

O que diz J. Lacan? Ele invoca, em maio de 1968, a dissolução do saber que estava em voga, e anuncia que "desde hoje quem comanda é o vencedor desconhecido de amanhã" (LACAN, 1968/2009, p.187). A atualidade política lhe dá razão. O desejo de saber, que é o motor da psicanálise, não desapareceu por isso. Talvez seja o desejo de saber que nos dá a coragem de compreender que a democracia é o nome de uma mutação da humanidade em sua relação com seus fins, cuja verdade não está inscrita no céu das ideias (NANCY, 2009, p.94). Um humanismo da diversidade é desejado hoje em dia, e certamente pode ser pensado com o último Lacan. Em suma, Sapere aude! Tenha a coragem de se servir de seu próprio entendimento, como dizia a divisa do Iluminismo.

Agora é preciso que eu responda à servidão como sintoma. Facilmente reconhecemos a servidão na busca do Eu pelo Ideal que se prolonga até na constituição de uma multidão em torno de seu líder. Freud compara a multidão à hipnose que produz confusão entre o Ideal do Eu e o objeto - a ser ouvido aqui como o outro. Na hipnose, como no amor, o objeto vem no lugar do Ideal do Eu, que é um ideal que não é alcançado pelo eu. E a consequência é que o objeto absorve o eu e a consciência do sujeito, provocando a submissão a esse ser que se tornou idealmente superpoderoso (o termo é de Freud). O mesmo se dá quanto à constituição libidinal da multidão, que é a soma dos sujeitos que colocaram um único e o mesmo objeto, um outro, no lugar de seu Ideal de eu. Essa identificação ao Um permite a identificação aos outros, e constitui a unidade da massa.

Será que podemos responder à questão, proposta desde Kant e as Luzes, dessa submissão voluntária a esse ser superior, como Freud o designa, a quem os homens delegam a governança de si e dos outros? Quando se torna um Mestre, um governante vem no lugar de um pai. Isso é introduzido pelo ideal platônico do Rei-filósofo, e é o que constitui o objeto da crítica de Aristóteles. Aristóteles quer a separação dos poderes. A degradação das governanças, para Aristóteles, está ligada à concentração dos poderes, e a uma política elaborada com base no modelo da família. H. Arendt e L. Strauss, seguindo Aristóteles, também preferem construir uma filosofia política a partir da Cidade. Para Arendt (1995), o desastre da política resulta de sua construção a partir da família. Consequentemente, a ação de pôr um pai no lugar do Ideal do Eu não é de surpreender nas nossas sociedades.

Esse Ideal do Outro é ocupado, na maioria das vezes, pela figura de um pai ideal. Esta figura é a de uma potência paterna que se supõe deter o falo, e que serve de escudo aos sujeitos contra a castração. Daí nossa interpretação da "preguiça" e da "pusilanimidade" -supostas por Kant como explicação para a servidão - como sintomas do ser humano, visto que o sujeito encontrará aí a oportunidade de gozar repetidamente da perda de sua autonomia (SAFOUAN, 2009, p.142).

Esse Outro idealizado faz Um à medida que os sujeitos encontram aí a causa de sua identificação, até fazer dele o nome de sua identidade, e lhe entregar sua autonomia. Isso quer dizer que esse Um do Ideal forma unidade à medida que os sujeitos encontram nesse Outro idealizado o traço unário de sua identidade. O Um unário é apanhado no Outro e, quando faz unidade, reveste um dos aspectos da definição do Um em Frege. Para Frege, o Um pode ser um objeto matemático ou um nome próprio, ou um conceito que sinaliza uma unidade.

Resta a questão de saber se esse Um aterrorizante da unidade constitui exceção ao universal da castração, por sua identificação suposta ao pai freudiano da horda primitiva. A resposta é negativa, a não ser pela prova institucional e histórica de que uma multidão pode mudar de cabeça. E podemos pensar que essa substituição de cabeças - é frequente que nos lembrem que a França é regicida - é tornada possível por uma instância lógica (idem, p.79) inerente à constituição do Ideal da massa freudiana e que autoriza, não obstante, o movimento democrático. H. Kelsen já apontou essa possibilidade em seu texto publicado em 1922 na Imago, acerca da noção de Estado e a psicologia social, a propósito da teoria freudiana das massas. Ele faz a distinção entre uma multidão primitiva com um Chefe e uma multidão sem Chefe, a qual colocou uma "ideia", uma "abstração" no lugar do Ideal do Eu.

Em suma, um Um que mantém a unidade abstendo-se de um ideal hipnótico - o que seria aristotélico. Podemos reconhecer aí a gênese de um Um a partir do x, esse x ao qual Freud prende o objeto, o outro, que vem no lugar do Ideal no esquema freudiano da psicologia das massas (FREUD, 1921/1981, p.181).

Essa gênese do Um do ideal a partir do objeto conotado de um x não deixa de lembrar a definição fregeana do 1 postulado como seguindo imediatamente o 0 - sem esquecer a definição do 1 como "significante da inexistência", segundo Frege. Essa separação do Um com o ser encontra sua fonte na tradição matemática da filosofia desde o Parmênides de Platão (PORGE, 2004, p.183). Lacan acompanha Frege, mas vai fazer surgir o 1 a partir do conjunto vazio. Pode-se operar uma aproximação com a difícil questão da identificação primária que Lacan resolveu pelo traço unário freudiano. Porge ilustra essa definição lacaniana do Um por meio do exemplo do maître d'hôtel que distribui as facas diante dos garfos. O um só aparece a partir do momento em que de um lado há um... que falta.

À guisa de introdução à sua psicologia das massas, Freud lembra que na identificação o objeto é perdido, houve renúncia a ele, contrariamente à hipnose e ao amor, em que há conservação do objeto. Em suma, o x freudiano do objeto adquire o sentido do objeto perdido em cada reencontro com ele. Resumindo, isso é a repetição à medida que gera a perda. Esse x é a causa da identificação do traço unário, e nada impede de reconhecer nesse traço unário a fórmula lacaniana da exceção ao universal, portanto, ao absoluto - estou pensando nesse ao-menos-um dos gozos (LACAN, 1972-73/1975), um ao-menos-um que não seria castrado. Safouan o identifica a uma "necessidade simplesmente lógica" (2009, p.79) que o descola da identificação ao pai da horda primitiva. Nada impede que pensemos que esse um é o da pura diferença significante, cujo efeito de não-identidade é a perda do gozo. Lembremos que, para Aristóteles, não importa qual cidadão estaria em condições de ocupar uma responsabilidade política.

Não há dúvida quanto a que Freud tinha uma concepção do Ideal que, desde Platão, busca articular eidos com Eros, a ideia com a pulsão. Essa encruzilhada da metafísica com uma erótica que põe a descoberto a falha do desejo como "amor por" instala a falta, no Ideal, no início da antropologia (JULIAN, 2009, p.166).

É o que Baudelaire diz de maneira magnífica em seu poema "O Ideal!:

"Pois não consigo encontrar entre essas pálidas rosas

Uma flor que se pareça com meu vermelho ideal

Que é necessário a este coração profundo como um abismo..."1 1 No original: "Car je ne puis trouver parmi ces pâles roses / Une fleur qui ressemble à mon rouge idéal/ Ce qu'il faut à ce coeur profond comme um abîme..."

Para concluir: Quando um substituto paterno vem no lugar do Ideal do Outro, é suposto que ele detenha o falo que falta aos outros. Instala-se, então, confusão entre o governante e o mestre do desejo. Isso nos explica seu fascínio nesse lugar idealizado do Outro, em que o falo pode reduzir-se a um objeto pulsional como o olhar ou a voz, que apagam a falta. O efeito da busca orientada dessa maneira pode se tornar monstruoso e submeter os sujeitos a uma paralisia do eu, ao ponto da perda de toda razão. Lacan reconheceu aí o drama nazista (1964/1973, p.246).

Recebido em 2/6/2010.

Aprovado em 19/7/2010.

Tradução: Pedro Henrique Bernardes Rondon

  • ARENDT, H. (1995) Qu'est-ce que La politique? Paris: Seuil.
  • BROWN, W. (2009) "Nous sommes tous démocrates à present", in Démocratie, dans quell état? Paris: La fabrique.
  • FOUCAULT, M. (1982-83/2008) Le gouvernement de soi et des autres Paris: Gallimard/Seuil.
  • FREUD, S. (1921/1981) "État amoureux et hypnose", in Essais de psychanalyse Paris: Payot.
  • JULIEN, F. (2009) L'invention de l'idéal et le destin de l'Europe Paris: Seuil.
  • KELSEN, H. (1922) "La notion d'État et la psychologie sociale. À propos de la théorie freudienne des foules", in Imago, v. III.2.
  • LACAN, J. (1968/2009) "D'une réforme dans son trou", in Figures de la psychanalyse n.17. Paris: Érès.
  • ______. (1972-73/1975) Le Séminaire, v. XX. "Encore". Paris: Seuil.
  • ______. (1978/1991) Aristote aujourd'hui Paris: Erès-Unesco.
  • ______. (1964/1973) Le Séminaire, v. 11. "Les quatre concepts fondamentaux de La psychanalyse". Paris: Seuil.
  • NANCY, J.-L. (2009) "Démocratie dans quel état?", in Démocratie, dans quel état? Paris: La fabrique.
  • PORGE, E. (2004) "La bifidé de l'un", in Le réel em mathématiques. Paris: Agalma/Le Seuil.
  • SAFOUAN, M. (2009) "Préambule à La question de la jouissance supplémentaire. À propos de l'au-moins-un", in Le langage ordinaire et la différence sexuelle Paris: Odile Jacob.
  • ______. (2009) Le langage ordinaire et la difference sexuelle Paris: Odile Jacob.
  • 1
    No original:
    "Car je ne puis trouver parmi ces pâles roses / Une fleur qui ressemble à mon rouge idéal/ Ce qu'il faut à ce coeur profond comme um abîme..."
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Nov 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Aceito
      19 Jul 2010
    • Recebido
      02 Jun 2010
    Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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