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À escuta do mal radical

RESENHA

À escuta do mal radical

Simone Perelson

Psicanalista, professora adjunta do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica e da Escola de Comunicação, UFRJ, E-mail: simoneperelson@oi.com.br

Cadernos sobre o mal. Agressividade, violência e crueldade de Joel Birman. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, 334 p.

Em um dos artigos dos Cadernos sobre o mal, Birman se junta a Foucault para observar que ao colocar a razão no fundamento de nosso ser, a civilidade ocidental perdeu a possibilidade de escutar o mal radical, isto é, aquilo que, passando pela loucura, pelo crime, pela dor, pela morte, pelo poder e pelo erotismo, se impõe sempre em nossa tradição como algo que não pode ser regulado efetivamente pela razão. Podemos dizer que o desafio a que se propõe e que o autor cumpre de forma magistral é justamente o de se fazer ouvinte do mal radical. Se com certeza a temática do mal se transformou, já há alguns anos, no objeto de análise privilegiado do autor, aqui, sua abordagem ganha novos contornos.

Em primeiro lugar, ilustrada desde as formações psíquicas singulares, passando pelas cenas reais ou de ficção narradas respectivamente pelos jornais e pelas obras artísticas (literárias e cinematográficas), até as formas recentes de guerras e a glo balização da economia neoliberal, trata-se de indicar que os tentáculos do mal se encontram hoje por toda a parte, e ganharam novas forças e formas inéditas.

Entretanto, na mesma medida em que se amplia sua difusão, o efeito produzido pelas várias formas de expressão atual do mal é cada vez mais a sua banalização. Daí a urgência de uma análise rigorosa e interdisciplinar, tanto dos discursos sobre o mal quanto de suas formas de expressão. Eis com o que nos presenteiam as três partes que compõem os Cadernos sobre o mal.

Na primeira parte, as problemáticas da agressividade e da violência são abordadas, sobretudo a partir da ótica da psicanálise. Como indica o autor, se a problemática da agressividade se enunciou desde os primórdios do discurso freudiano, a partir de 1920, com o forjamento do conceito de pulsão de morte, a questão do mal se torna central para Freud. E se em 1930, Freud revela uma nova face do mal-estar subjetivo – a desintrincação da pulsão de morte com a pulsão de vida –, hoje, em decorrência da impossibilidade do poder político promover o ato de articulação entre Eros e Thanatos, radicaliza-se essa face do mal-estar e as subjetividades são cada vez mais marcadas pelo excesso mortífero e pelo empobrecimento da linguagem e do pensamento. As doenças psicossomáticas, as adicções e as passagens ao ato, amplamente presentes no cenário contemporâneo, são as típicas expressões das novas modalidades de mal-estar sub jetivo, centradas de modo cada vez mais exclusivo nos registros do corpo, da ação e da intensidade.

Mas, além de indicar que o pressuposto mortalista abraçado por Freud em 1920 o levará a formular novas teorizações para o mal-estar subjetivo, Birman irá também sublinhar que a adoção por Freud desse pressuposto o conduzirá a sustentar o caráter infinito da análise ou, em outros termos, o fato de que algo da ordem do inapreensível pelo sentido permanece em suas expressões, apontando para um limite insuperável no processo de interpretação. Assim, impõe-se ao analista resistir ao imperativo interpretativo, mesmo que ele se veja – ou, sobretudo, quando ele se vê – diante do horror de uma modalidade de expressão do mal para a qual nenhuma razão se apresenta. E isto porque é aqui que o ato, em sua dimensão absoluta e soberana, aparece, podendo dar lugar à produção de um sentido aonde ele não existia efetivamente.

Na segunda parte do livro, é o campo da política o privilegiado, sendo que são analisadas principalmente as práticas da crueldade presentes nas modalidades atuais de exercício de poder. Duas críticas fundamentais marcam os textos que compõem essa parte. Em primeiro lugar, critica-se a retomada atual, por autores como Fukuyama e Habermas, do projeto iluminista kantiano da paz eterna entre os homens e as nações. Como mostra Birman, se esses dois autores, por meio, respectivamente, das teorias da "ação comunicativa" e do "fim da história", acreditam que, com o fim da Guerra Fria, encontramo-nos hoje em condições de regular pela razão e não pela guerra os conflitos entre os homens e as nações, a história recente não apenas nos mostra que nunca estivemos tão distantes da paz como hoje, como também confirma a intrínseca relação entre razão iluminista e barbárie apontada por autores como Freud, Benjamin, Adorno e Horkheimer. Hoje, sublinha ainda Birman, essa relação ganha novos contornos, pois não apenas a guerra está por toda parte como também se apresenta com novas configurações. A guerra pós-moderna, transformada em espetáculo televisivo, é assistida ao vivo como se fosse um jogo de videogame, isto é, uma guerra virtual. Recorrendo ao sociólogo Boltanski, Birman sublinha o paradoxo da exibição midiática das imagens da guerra, que nos dá a ilusão de participarmos dela em tempo real, mas ao mesmo tempo nos ensina a nos colocarmos sempre à distância e a nos desafetarmos pela dor pasteurizada em sua mostração.

Além de ser caracterizada por sua forma de exposição, a guerra pós-moderna funda-se em grande medida em uma nova teoria bélica, a teoria norte-americana segundo a qual os Estados que ela aponta como Estados-de-exceção ou Estados fora-da-lei devem ser combatidos a qualquer preço em nome da manutenção da democracia. A contradição apontada por Birman nessa teoria bélica, que se encontra na raiz de uma série de guerras que o império americano apresenta ao mundo em termos de uma luta do Bem contra o Mal, é que os Estados Unidos talvez sejam hoje a melhor ilustração do Estado de exceção que pretendem combater.

Criticando simultaneamente a oposição entre guerra e paz sustentada pelo projeto iluminista e a oposição entre Bem e Mal que busca sustentar a teoria bélica norte-americana, Birman argumenta a favor tanto da tese de Clausewitz – para quem a guerra é a continuação, sob outros termos, da política – quanto da positivação da crueldade por autores como Sade, Nietzsche e Freud, para quem a crueldade deve ser tomada como um signo primá rio e originário da condição humana. Nessas duas teses, apresentadas pelo autor como duas faces da mesma moeda, há o reconhecimento cabal da presença eloquente de relações de força entre os homens e as nações, que podem se desdobrar a qualquer momento nas experiências funestas da crueldade e da guerra. E da mesma forma que o discurso político não pode ignorar a reversibilidade da política e da guerra, o discurso psicanalítico não pode desprezar o caráter originário da crueldade humana.

Na terceira e última parte do livro é, sobretudo, o cenário brasileiro atual que é colocado em pauta. O autor revelará em que medida os amálgamas entre a sociedade civil e a sociedade política no Brasil, assim como entre a antiga tradição escravocrata e a recente implantação da economia neoliberal, constituem, como que uma mistura explosiva, a outra face da violência extrema na qual estamos mergulhados atualmente. Combinam-se perigosamente em nosso país, tomado por Birman como signo extremo do processo mais amplo de globalização neoliberal, três elementos: uma flagrante disparidade na distribuição de riquezas e privilégios – constituindo, por um lado, uma elite individualista que defende a impunidade para os seus e alimenta os monstros corruptos da sociedade política, e por outro, uma grande massa de desvalidos deixados por conta própria e fadados à vida nua; a perda da soberania do Estado diante da prevalência das forças econômicas, resultando na fragilização patente dos operadores sociais e políticos; e por fim, a instituição de um novo ethos fundado nos valores da cultura do narcisismo, da performance e do espetáculo.

Uma atenção especial do autor se voltará, ainda nessa última parte, para a análise da criminalidade e da violência no Rio de Janeiro, cidade que já foi transformada em um dos símbolos maiores da violência internacional. Destaca-se então, em primeiro lugar, a cartografia feita pelo autor do crime organizado, transformado hoje num verdadeiro poder paralelo devido às profundas e complexas relações que vêm sendo tecidas nas últimas décadas entre o 'crime organizado' e os poderes executivo, legislativo e judiciário. Em segundo lugar, destaca-se a corajosa análise por meio da qual Birman revela em que medida as macabras cenas criminais, cada vez mais marcadas pelo ódio dos assaltantes e humilhação dos assaltados, são pura imagem especular da perversa cena social de dominação. Em ambas as cenas, uma mesma crueldade grotesca se apresenta: a ausência de perspectiva de mobilidade entre as posições rigidamente estabelecidas e marcadas por uma tensão perversa e mortífera entre dominante e dominado. Além disso, mesmo que na passagem de uma cena à outra haja inversão das posições – o dominante passando a dominado e vice-versa –, a cena do crime não apresenta (em função da ausência nela da figura da mediação do trabalho) qualquer possibilidade de inversão dialética da cena social.

Sublinhando a imprescindibilidade dessa figura mediadora para não sermos de todo submergidos pelo mal – como sujeitos ou objetos, no nível psíquico ou social – Birman conclui seu livro narrando o feliz encontro que teve com uma dessas figuras quando a violência se apresentou concretamente a ele. Ao narrar, na conclusão dos Cadernos sobre o mal, seu encontro com um líder comunitário "que faz um trabalho, perigoso e brilhante, de mediação entre o morro e o asfalto", Birman indica que se assistimos hoje, a um esvaziamento dos campos da política e da ética, assistimos também à sua reinvenção em novos moldes, marcados não mais pela verticalidade, mas pela horizontalidade, da mesma forma que não mais pela globalização, mas pela singularidade.

Recebida em 18/12/2010.

Aprovada em 13/2/2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Maio 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 2011
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