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A psicanálise, seus contornos e suas bordas

RESENHAS

A psicanálise, seus contornos e suas bordas

Maria Teresa de Melo Carvalho

Psicanalista. Professora do curso de Especialização em Teoria Psicanalítica da UFMG. E-mail: mtmelocarvalho@terra.com.br

Limites da clínica. Clínica dos limites. Organizado por Cláudia Amorim Garcia e Marta Rezende Cardoso, Rio de Janeiro: Cia de Freud/Faperj, 2011. 212p.

O livro reúne os trabalhos apresentados no Simpósio Interinstitucional de mesmo nome, realizado no Rio de Janeiro, em junho de 2010, por iniciativa dos programas de pós-graduação de Psicologia Clínica da PUC-Rio e de Teoria Psicanalítica da UFRJ. O título indica claramente que os artigos que compõem a coletânea abordam questões já bastante exploradas nas publicações psicanalíticas dos últimos anos.

De fato, muito já se falou sobre os limites na teoria e clínica psicanalítica, quer em referência aos ditos "casos limite" ou às chamadas "novas subjetividades". No entanto, somos surpreendidos por elaborações que nos situam no mais elevado patamar da reflexão psicanalítica, comprometida com a pesquisa universitária e, ao mesmo tempo, com a prática clínica.

É necessário assinalar logo de início a importância do evento que lhe deu origem e que reuniu pesquisadores de diferentes instituições do país, atestando a possibilidade do diálogo entre eles, apesar da diversidade de suas formações. E mostrando, ainda, o compromisso de cada um com a tarefa de precisar os contornos do campo psicanalítico no que diz respeito a seu método, sua teoria e sua clínica, tarefa que requer constante renovação.

O ensaio de Joel Birman, intitulado "Borda e dobra em psicanálise: sobre o limite na experiência psicanalítica" foi escolhido a dedo para abrir a coletânea; ele nos convida a refletir sobre o próprio sintagma "os limites na clínica psicanalítica". Como afirma o autor, esse sintagma não tem apenas uma versão, pois tanto pode nos induzir a confinar a psicanálise num território delimitado por uma fronteira sem fissuras relativamente aos outros saberes sobre o psíquico, quanto nos levar a considerar a possibilidade de um espaço com fronteiras porosas, permitindo a retração ou a expansão do território da psicanálise e, ao mesmo tempo, a subversão das oposições entre externo / interno e dentro / fora. Situando-se nessa segunda perspectiva, Birman vale-se, com engenhosidade, das metáforas espaciais e políticas que o termo "limites" propicia para desenvolver seu argumento e para destacar momentos cruciais do movimento psicanalítico que mostram o potencial da psicanálise para ultrapassar, sistematicamente, modelos teóricos instituídos e a versão clássica do dispositivo analítico.

Os três artigos seguintes abordam, em perspectivas distintas, a questão do corpo na psicanálise. O primeiro, intitulado "As origens do psiquismo em Winnicott e Gaddini", de Paulo de Carvalho Ribeiro, aborda o papel e lugar das sensações corporais na constituição do psiquismo e, em particular, no surgimento de uma primeira autorrepresentação, como requisito necessário à configuração primitiva do Eu. Com vistas a encontrar subsídios para o aprofundamento dessa difícil questão, o autor explora os trabalhos de Winnicott sobre a criatividade primária e as contribuições de Eugênio Gaddini sobre a importância dos processos corporais na constituição dos processos psíquicos, revelando ao leitor uma importante complementaridade entre eles.

O segundo artigo, "As relações entre o psíquico e o somático: o corpo na clínica psicanalítica", de Maria Helena Fernandes, parte da constatação da presença maciça, na clínica atual, de respostas corporais dadas aos conflitos internos, a ponto de podermos falar de uma verdadeira psicopatologia do corpo na vida cotidiana. Diante dessa realidade e do incremento concomitante das publicações psicanalíticas que recolocam em pauta o tema do corpo, a autora busca circunscrever a especificidade metodológica da psicanálise na abordagem desse tema. Ela formula, então, a hipótese de uma dupla incidência do corpo na teoria freudiana, conceituado, no primeiro caso, como corpo da representação e, no segundo, como corpo do transbordamento e analisa os desdobramentos clínicos dessas duas categorias teóricas.

Na sequência, o artigo de Monah Winograd, intitulado "Limites entre a psique e o soma?", analisa a própria ideia de limite entre psique e soma, a partir de sua clássica abordagem pela filosofia. Esta análise é precedida por um breve exame dos significados do termo "limite", que irá nos apontar seu caráter ambíguo. De fato, se o limite designa um ponto de interrupção, designa também a possibilidade de ultrapassá-lo. Ressaltar, de saída, a riqueza dessa ambiguidade tem importância decisiva no curso da argumentação da autora, cujo ponto central diz respeito aos pressupostos da metapsicologia freudiana acerca das relações entre corpo e psiquismo, e busca demonstrar que Freud soube trabalhar a distinção entre esses dois elementos, ao mesmo tempo em que defendeu sua inseparabilidade, sua ação recíproca.

O tema dos limites da representação será o foco dos três artigos que se seguem. O primeiro, "Os limites da representação psíquica", de Regina Herzog, aprofunda a discussão de uma questão crucial quando tratamos do problema dos limites: o que queremos dizer ao afirmar que o limite aponta para algo além da representação? O argumento principal da autora, apoiado com criatividade na concepção de linguagem de Walter Benjamin, desenvolve-se de forma minuciosa no sentido de colocar em questão a instituição do par representável/ irrepresentável dentro de uma lógica binária, na qual a representação teria o status de referente privilegiado.

O artigo de Carlos Augusto Peixoto Junior, "Os limites da representação na experiência esquizoide", analisa as contribuições dos teóricos das relações de objeto, partindo de um estudo crítico das valiosas formulações de Fairbairn e avançando na direção de autores mais recentes que se apoiaram na obra deste autor, dentre os quais se destacam Bion, Ogden, Winnicott e ainda Guntrip. As hipóteses de C. Bollas sobre o objeto transformacional são também abordadas com o objetivo de salientar as principais implicações clínicas de sua concepção da experiência esquizoide.

No artigo de Gabriela Maldonado e Marta Rezende Cardoso, "A repetição onírica do "terror": limites da representação", os pesadelos repetitivos da neurose traumática são tomados como fenômeno privilegiado para se pensar os limites da representação. As autoras buscam elucidar o modelo de funcionamento psíquico subjacente a esses fenômenos e salientam o aspecto positivo da revivificação alucinatória das imagens perceptuais, recorrente nesses pesadelos, como ação preparatória para o trabalho de ligação psíquica e, portanto, para a elaboração representativa.

Na sequência da coletânea, dois artigos tratam dos limites da interpretação. Em "Limites da interpretação", Luiz Augusto M. Celes e Cláudia Amorim Garcia propõem que se compreenda a clínica psicanalítica segundo três perspectivas diferentes: como clínica do trauma, como clínica da representação e como clínica da pulsão, para em seguida indagar o que seria o limite da interpretação em cada uma dessas perspectivas. Ainda que possa caracterizar o enfoque de um determinado autor pós-freudiano, cada uma dessas perspectivas encontra-se presente em Freud e depreende-se do caráter multifacetado de sua obra e do movimento de seu pensamento na busca de apreensão de seu objeto. Objeto inapreensível em seu âmago, porém tangenciável pela via da representação verbal. "Interpretação - poder e limites", de Ana Maria Rudge, começa por precisar o sentido da interpretação psicanalítica a fim de desvencilhá-la do sentido geral de uma "intervenção do analista falada" e de afirmar sua articulação com a transferência e sua onipresença no processo analítico. A autora passa então à consideração dos limites da interpretação relativamente aos laços com o simbólico, que se encontram enfraquecidos nas subjetividades realçadas pela chamada segunda clínica lacaniana.

Seguem-se três artigos que têm como objeto de reflexão os desafios colocados à clínica psicanalítica fora dos limites de seu enquadre clássico no consultório e também fora dos próprios limites do consultório. O primeiro, de autoria de Suzana Faleiro Barroso e Ana Beatriz Freire, aborda o trabalho clínico com a criança autista e seu título "Limites do trabalho psicanalítico com o autismo: da extração do excedente de gozo à constituição da imagem do corpo" já nos indica seu objetivo central. A discussão de um caso clínico é precedida por fundamentações teóricas, apoiadas na teoria lacaniana, acerca da constituição da imagem corporal e suas patologias na psicose infantil. Os dois artigos seguintes apresentam o desenvolvimento de projetos que levam a psicanálise às favelas cariocas. "Limites na psicanálise extramuros" de Andréa Reis e Marcus André Vieira e "Os limites da casa da árvore" de Lulli Milman são, ao mesmo tempo, uma apresentação dos respectivos projetos, uma reflexão sobre os limites da psicanálise extramuros, sobre seu papel social e um depoimento vigoroso sobre a experiência de quem vive o dia a dia desses projetos.

Por fim, o artigo de Luís Cláudio Figueiredo, "A questão dos limites e a situação analisante na clínica contemporânea", nos oferece, em amplitude e em profundidade, um exame da situação analítica. Em amplitude, por abarcar ampla gama de autores desde Freud e, em profundidade, pela análise de momentos cruciais e noções fundamentais que marcaram a invenção da clínica psicanalítica e sua reinvenção continuada por aqueles que a praticam e experimentam seus impasses.

Em que pese a singularidade das reflexões desenvolvidas em cada artigo, constatamos, ao final, uma rica complementaridade entre eles, tanto por cobrirem uma ampla gama de subtemas dentro do tema geral dos limites, quanto por desenvolverem-se em perspectivas diferentes quando se trata do mesmo subtema. Isso vem, sem dúvida, enriquecer ainda mais a coletânea.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jul 2012
  • Data do Fascículo
    Jun 2012
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