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A potência da dor

RESENHAS

A potência da dor

Andréa Barbosa de Albuquerque

Psicóloga da Uerj e psicanalista no Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos, andreabalbuquerque@yahoo.com

A dor psíquica, de Isabel Fortes. Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2012. 223 p.

Uma das marcas da cultura de nossos dias é a aposta na possibilidade de uma vida plena de prazer contínuo. Tristeza, dor, sofrimento tendem a ser vistos como sombras inaceitáveis a serem suprimidas rapidamente sem deixar vestígios. Sintomas psicossomáticos, compulsões, adições, depressão e síndrome do pânico são descrições contemporâneas de um mal-estar que indica a falácia dessa aposta no prazer incondicional. O uso de medicações e terapias cognitivo-comportamentais são as prescrições mais frequentes para a supressão de sintomas incômodos e a recuperação de um estado, amortecido, de bem-estar.

É neste cenário que Isabel Fortes empreende seu estudo sobre a dor, afirmando sua positividade. Prazer e dor não ocupam necessariamente campos opostos. Podem - é este o argumento da autora - se conjugar em um processo em que a dor, acolhida, favorece a produção de experiências subjetivas de intenso prazer.

Trata-se de diferentes modalidades de prazer. O silenciamento da dor - ou sua recusa - tende a restringir a experiência do sujeito a um prazer regulado, atenuado, que pode ser descrito como uma "forma anestesiante de prazer" (p.85); por outro lado, quando se permite o 'ser atravessado pela dor', abre-se a possibilidade de uma experiência prazerosa cuja marca é a intensidade. Os caminhos que levam a essas distintas experiências são determinados pelos processos singulares de constituição da subjetividade, sempre marcados, de uma forma ou de outra, pelos valores prevalentes no horizonte cultural de cada época.

Tendo como fio condutor o posicionamento subjetivo diante da dor, Fortes discute, em A dor psíquica, os fatores em jogo na configuração de diferentes modos de se lidar com a dor e as implicações deles decorrentes. Na construção dessa problemática, coloca em pauta os caminhos que se afiguram possíveis para se lidar com os impasses inerentes à experiência do homem no mundo contemporâneo - o desamparo, o encontro do eu com o outro, os destinos da angústia.

Com uma escrita fluente e clara, Isabel Fortes organiza sua discussão estabelecendo, em cada capítulo, um jogo de contraposição entre concepções teóricas que apontam na direção de uma posição subjetiva de recusa da dor e outra que aponta na direção de um acolhimento da dor: hedonismo e erotismo, representação e força pulsional, masoquismo feminino e moral e masoquismo erógeno, mortificação e vitalidade.

A autora apresenta-nos, no primeiro capítulo de seu livro, as principais características da cultura contemporânea. Discute como a fragilização dos alicerces simbólicos que sustentavam a dinâmica social na modernidade abriu caminho para a instauração, na contemporaneidade, de formas de sociabilidade marcadas pela precariedade do laço social, em que o cultivo narcísico do eu é correlato ao apagamento do outro em sua alteridade. Coloca em questão a ideia, corrente nesses tempos, de que cabe a cada um o gerenciamento de sua própria vida, assumindo seus riscos e respondendo por seus sucessos e seus fracassos, sublinhando que, na ausência de referências seguras e estáveis, a figura do desamparo ocupa o primeiro plano.

À luz do utilitarismo e do hedonismo, analisa o modo como se sedimentou o ideal da felicidade como bem supremo e o consumo como sua via preferencial de acesso: numa lógica acumulativa, é principalmente pelo consumo de objetos, pessoas e experiências que a felicidade se configura.

Neste contexto, marcado por um imperativo de gozo, em que vigora o dever dessa felicidade, a perda e a dor não encontram seu lugar, tendendo a serem vislumbradas como eventos contingentes e inaceitáveis que atestariam o fracasso pessoal. Mas, destaca a autora, "acreditar em um mundo onde não há sofrimento faz da realidade uma fonte perpétua de frustração e insatisfação" (p.49). O sentimento de vazio e a falta de sentido, tão presentes nos dias de hoje, indicam o mal-estar.

Ao hedonismo, Fortes contrapõe, com Bataille, a via do erotismo para se lidar com os impasses inerentes à experiência do homem no mundo, ao encontro do eu com o outro, em uma perspectiva pautada na lógica do desperdício, em que a perda e a dor podem se alinhar a experiências singulares de prazer.

Os diferentes modos de se conceber a relação entre prazer e dor no âmbito da obra freudiana norteiam a discussão, no capítulo seguinte, sobre os caminhos da pulsão, os modos de processamento das intensidades que assolam o psiquismo, exigindo trabalho. Fortes estabelece um contraponto entre os processos psíquicos regulados pelo princípio do prazer e aqueles que se desenrolam à margem desta regulação - em um mais além. Em leitura cuidadosa dos textos freudianos, destaca as concepções que, entrelaçadas, compõem um modo de subjetivação norteado pela contenção das intensidades, o apaziguamento imediato da angústia, a evitação do desprazer. Paralelamente, reúne as elaborações teóricas de Freud que delineiam outra dinâmica de subjetivação marcada pela experiência de entrega às intensidades pulsionais como parte do processo de constituição de uma forma singular de estar no mundo. Assim, ocupam a cena principal a figura do eu real originário, a primazia à dimensão quantitativa da pulsão, a positividade da pulsão de morte que, com sua força disruptiva, viabiliza a instauração de movimentos de criação do novo.

O masoquismo como destino possível para a angústia do desamparo é o tema do terceiro capítulo. Apropriando-se da leitura de Birman sobre as configurações masoquistas, Fortes estabelece uma aproximação entre o masoquismo moral e o masoquismo feminino, relevando, em ambos, a submissão servil ao outro como via de apaziguamento da angústia do desamparo. Por outro lado, ressalta a positividade presente no masoquismo erógeno, em que o permitir-se a experiência angustiante de desamparo favorece a criação de novos modos de satisfação, em uma via marcada pelo erotismo e a singularidade.

Ampliando seu horizonte teórico, Fortes trabalha, no último capítulo, os sentidos do sofrimento como propostos por Nietzsche, sublinhando sua ressonância com a perspectiva freudiana. Em um primeiro sentido, a dor é vislumbrada como um mal a ser evitado, alinhando-se à mortificação e ao ressentimento; trata-se de um modo reativo de se conceber a experiência no mundo, pautado no amortecimento - do sofrimento, mas também da alegria. Em outra perspectiva, o sofrimento é concebido como constitutivo do movimento de vida, como aliado à alegria; a aposta, então, é na intensidade do viver, em que o atravessamento da dor se conjuga à alegria em um movimento recorrente de renovação da vida.

Face a essas questões, Isabel Fortes deixa claro seu posicionamento ético: aposta na via da positivação das intensidades pulsionais como condição para a configuração de modos de ser da subjetividade que, ao não se furtarem da experiência angustiante do desamparo, se abrem ao encontro do outro em sua alteridade, e se permitem a construção de novas figurações de eu e de mundo. Nessa perspectiva, a experiência analítica é concebida como um processo em que a experiência de perda e desamparo, ao desestabilizar sistemas cristalizados de crenças e verdades, favorece a instauração de novas formas de estar no mundo.

A leitura de A dor psíquica nos incita, à moda nietzschiana, a empreender um processo de transvaloração dos valores dados de modo a positivar o acolhimento da dor como parte fundamental da afirmação da alegria.

Recebido em 18/3/2013.

Aprovado em 30/3/2013.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Abr 2013
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