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A voz na experiência psicanalítica

Resumos

O presente trabalho aborda a voz em sua dimensão de imperativo superegoico e de objeto pulsional na experiência psicanalítica. Parte da voz da consciência moral que S. Freud assimilou ao supereu examina o imperativo de gozo e define o objeto vocal. Com J. Lacan, segue um percurso que vai da voz da lei à lei insensata para desembocar no real. Para situar a presença do objeto voz, recorre à entrevista com um diretor de ópera, à tela de um artista plástico que atualiza a narrativa mitológica e à clínica psicanalítica em sua variedade de posições subjetivas.

Voz; supereu; psicanálise; objeto; gozo


The voice in the psychoanalytic experience. The present work deals with the voice in its dimension of superegoic imperative and of pulsional object in the psychoanalytic experience. It starts with the voice of moral conscience that S. Freud assimilated to the superego, it examines the jouisance imperative and it sets the vocal object. With J. Lacan, it follows a route that goes from the voice of the law to the unreasonable law in order to get at the real. To situate the presence of the voice object, it uses an interview with an opera director, a screen of a visual artist that updates the mythological narrative and the psychoanalytic clinics in its variety of subjective positions.

Voice; superego; psychoanalysis; object; jouisance


ARTIGOS

A voz na experiência psicanalítica

Angélica Bastos

Professora associada no Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq, membro da EBP/AMP. abastosg@terra.com.br

RESUMO

O presente trabalho aborda a voz em sua dimensão de imperativo superegoico e de objeto pulsional na experiência psicanalítica. Parte da voz da consciência moral que S. Freud assimilou ao supereu examina o imperativo de gozo e define o objeto vocal. Com J. Lacan, segue um percurso que vai da voz da lei à lei insensata para desembocar no real. Para situar a presença do objeto voz, recorre à entrevista com um diretor de ópera, à tela de um artista plástico que atualiza a narrativa mitológica e à clínica psicanalítica em sua variedade de posições subjetivas.

Palavras-chave: Voz, supereu, psicanálise, objeto, gozo.

ABSTRACT

The voice in the psychoanalytic experience. The present work deals with the voice in its dimension of superegoic imperative and of pulsional object in the psychoanalytic experience. It starts with the voice of moral conscience that S. Freud assimilated to the superego, it examines the jouisance imperative and it sets the vocal object. With J. Lacan, it follows a route that goes from the voice of the law to the unreasonable law in order to get at the real. To situate the presence of the voice object, it uses an interview with an opera director, a screen of a visual artist that updates the mythological narrative and the psychoanalytic clinics in its variety of subjective positions.

Keywords: Voice, superego, psychoanalysis, object, jouisance.

PARA INTRODUZIR A VOZ

O dispositivo analítico reserva à voz um lugar inusitado, enlaçando pela palavra aquele que fala àquele que escuta. Este laço exige a dupla presença do analisante e do analista: do analisante, que fala de viva voz, e do analista, cuja voz, muda boa parte do tempo, responde com o silêncio às palavras. Encarna-se, assim, a dimensão menos evidente da voz, sua face pulsional, sob a forma viva e silenciosa do objeto vocal. A voz não é apenas porta-voz ou veículo das palavras. Para além do caráter universal e mediador que ela possui entre os falantes, para além do papel que desempenha na comunicação, em sua dupla face de encanto e horror, ela é capaz de fascinar enquanto se reveste de palavras e sonoridade e angustiar em suas manifestações brutas ou mudas.

Herbert Graf, o pequeno Hans, tornou-se na idade adulta um renomado diretor de ópera. Relata, em uma entrevista, que durante muitos anos não se lembrou de sua fobia infantil, nem do Professor Freud. As interpretações de algumas árias de ópera o acompanharam, no entanto, ao longo da vida; dentre elas, cita a do cantor "Erik Schmedes como o jovem Siegfried, cantando ternamente seu anelo pela mãe" (GRAF, H. & RIZZO, F., 1972/1999, p.21) no terceiro ato da ópera homônima da tetralogia de Richard Wagner. Diz o libreto: "Ah, pudesse eu, filho, ver minha mãe!" ("Ah! möcht'ich, Sohn, meine Mutter sehen").

Posto não se tratar de um adulto em análise, diríamos, a título de mera conjectura, mas a partir de Freud, que a frase poderia ser uma lembrança encobridora do Complexo de Édipo ao qual Hans respondera com sua fobia. Com Lacan, diríamos também que ela seria encobridora da voz em sua vertente objetal, que se manifesta como ruído, grito, urro e de modo afonésico, sem som. A voz assombrara o pequeno Hans sob a forma do ruído do escoicear do cavalo, seu objeto fobígeno que já vestia o objeto pulsional, contendo a angústia através da ligação a significantes da fobia, como o próprio cavalo e a carruagem. Para a voz, que requer ao sujeito uma resposta, Herbert Graf teria dado um novo tratamento com a música, o canto e a arte cênica.

A VOZ E O SUPEREU FREUDIANO

Manifestações artísticas como o bel canto, a ópera e a música emprestam à voz as vestimentas dos sons, do sentido e da beleza, tornando-a fonte de prazer estético. Também a narrativa mitológica, a literatura e as artes plásticas registram a dupla vertente de deleite e angústia que ela é capaz de suscitar. Não é rara a conjugação da elaboração sofrida pela voz com algum tratamento destinado ao olhar. Após a primeira guerra mundial, os responsáveis pela montagem dos espetáculos de ópera não eram de modo algum estrelas no mundo das artes. Herbert Graf elege a carreira de diretor de ópera, praticamente inexistente quando inicia seus estudos e sua vida profissional. Julga que cabe ao diretor de cena a invisibilidade, deixa a luz dos refletores projetar-se sobre o palco e o produto do trabalho artístico, subtraindo-se ao olhar do público.

Entre 1946 e 1947, Pablo Picasso compõe o quadro Ulisses e as sereias. Retoma em uma tela a cena mitológica do herói amarrado ao mastro de seu barco, que o artista evoca como um peixe. Ulisses está com os ouvidos aparafusados enquanto as sereias, com um par de seios femininos, têm seu canto figurado pelo bico que quase toca os parafusos em suas orelhas, proximidade que sugere tanto a proteção contra a voz quanto a sedução por ela. O artista, assim, atualiza a narrativa homérica, de acordo com a qual o canto das sereias espreita Ulisses como ameaça sedutora e irresistível, capaz de enfeitiçar os homens e levá-los à própria perda. Ulisses veda os ouvidos de seus companheiros com pedaços de cera e reage à voz amarrando-se a sua embarcação. Prescreve a seus companheiros que não o libertem, ainda que ele lhes ordene o contrário. Anseia por deixar-se embalar pelo canto das sereias, mas teme o destino reservado àqueles que o fazem: a morte e a putrefação do cadáver. Uma vez vencido o perigo, Ulisses menciona não mais ouvir o canto e os gritos das sereias. Amarrar-se foi a maneira que encontrou de responder à voz, aparafusar-se os ouvidos, um componente do ato criativo de Picasso em relação à defesa do herói. Seu ato inclui o olhar na obra sob a forma de máscaras que pairam no céu sobre a embarcação. As máscaras velam e ao mesmo tempo indicam o vazio pelo contorno dos olhos, que dão a esses rostos furados ares indefinidos, nem masculinos nem femininos, e mesmo não humanos.1 1 A figura lendária da sereia e seu canto nessa tela irônica, segundo a análise sempre atual de Hervé Castanet (1996), remete-se ao feminino e ao saber, que transcendem a temática deste artigo.

As funções do olhar e da voz são detectadas por Freud, que circunscreve a instância crítica que vigia e comenta as atitudes do sujeito. Essas funções serão transformadas por Jacques Lacan em objetos parciais, não por corresponderem a um segmento de um objeto total, mas por manterem com a função de origem uma relação parcial e darem lugar a satisfações igualmente parciais. Na experiência da análise, a voz não se confunde com a sonoridade, pois é silêncio ou mancha no campo vocal, enquanto o olhar não equivale à visão, mas a um ponto cego no campo escópico.

Antes que Lacan isolasse o objeto vocal e a pulsão invocante que lhe é correlata, Freud teve um encontro inicial com a voz na hipnose, isto é, com a voz de comando e seus efeitos sugestivos sobre o sintoma. Trata-se dos poderes diretivos da voz, que funciona imperativamente. Contra a mestria da voz que ordena, o discurso e o dispositivo que inaugurou deram-lhe um lugar sui generis, que permite ao analista situá-la não como emissão sonora sobre um fundo de silêncio, mas como silêncio loquaz que a fala reveste. Fala-se para ouvir palavras que encubram a voz objetal, enquanto a clínica psicanalítica, na contracorrente, convida a uma experiência com a voz não encoberta pelo canto das palavras, cuja significação erige um véu à dimensão do objeto vocal. Essa experiência permite destacar e tratar a voz imperativa, com a condição de não se tecer sobre ela uma trama significante que produza sempre mais sentido.

Partindo da tradição filosófica kantiana, Freud (1923/1993) reconheceu na voz da consciência o domínio da moralidade sob a forma do imperativo categórico que ele assimilou ao supereu. Na experiência do inconsciente, descobriu o exercício de uma instância crítica, identificando-a a um mandamento cruel, que denominou sadismo do supereu e ao qual atribuiu uma dimensão pulsional por sua estreita relação ao isso.

Na segunda tópica freudiana, a instância superegoica emerge irredutível a uma gradação no eu ou à consciência moral; articula-se à lei devido à identificação ao pai, resultando em uma dupla prescrição: deves ser como teu pai e não deves ser como teu pai. O supereu surge como herdeiro do Complexo de Édipo, de início equivalente ao ideal de eu, mas imediatamente ultrapassa o âmbito deste último por sua imbricação no polo pulsional, uma vez que ele também é representante do isso.

Freud (1933/1994) concebe o supereu como uma instância que reúne as funções do ideal de eu, da consciência moral e da auto-observação, além de inseri-lo nos destinos da pulsão de morte, em especial na geração do sentimento de culpa. Com todas essas funções, o supereu encarrega-se do olhar onisciente que vigia, da observação que perscruta e da voz que acusa, condena e pune. Para o psicanalista, portanto, o supereu não se confunde com uma lei moral expurgada de exigência pulsional; seu funcionamento culmina em uma cultura da pulsão de morte.

A civilização deflete a destrutividade e a agressividade do próximo (FREUD, 1929 [1930]/1994), do outro, mas também contra o outro, redundando naquela que se volta contra o próprio sujeito sob a forma da culpa e do sintoma que a remunera. Daí a proporção paradoxal entre virtude e culpabilidade: quanto maior a renúncia pulsional, mais o gozo segue o regime insaciável da culpa e configura a gulodice do supereu (LACAN, 1974/2003).

Tanto a realização da agressividade quanto a renúncia a ela alimentam o mal-estar na civilização, pois este não é um mero efeito desta última, é estrutural. Há um mal-estar constitutivo, intrínseco à civilização, não resultando da repressão, entendida como uma coerção vinda de fora, ou como cerceamento ao gozo exercido pelo Outro. Por conseguinte, a exigência de renúncia pulsional ditada pelo supereu sustenta uma lei insana que interdita o gozo e o fomenta por meio da culpa.

O inconsciente implica que o homem seja mais imoral do que se acredita, conforme a psicanálise cedo estabeleceu, com os impulsos incestuosos e parricidas; mas ele é, também, mais moral do que se crê, devido ao sentimento de culpa inconsciente. Freud (1916/1993 e 1923/1993) não deixou de asseverar que a culpa poderia incitar ao crime, ao invés de sucedê-lo, esclarecendo que havia delinquentes e criminosos devido ao sentimento de culpa, especialmente entre os principiantes, que assim correlacionavam a culpa a um ato concreto. Ao invés de a culpa decorrer do delito, este adquire a capacidade de aliviar o severo sentimento de culpa preexistente ao ato.

A VOZ DO SUPEREU E OS TRÊS REGISTROS DA EXPERIÊNCIA PSICANALÍTICA

O caso Aimée é um encontro com a psicose que gira em torno do conceito de supereu. Na psicose de Aimée, pode-se considerar (LACAN, 1932/2011) que a passagem ao ato criminoso atingiu poder de estabilização, não pelo crime em si, quer dizer, pelo ataque à atriz, mas por suas consequências, pelo castigo resultante. O atentado à vida da perseguidora foi seguido de prisão provisória e internação por decisão da perícia médico-legal. Ao longo das entrevistas, que duraram cerca de um ano e meio, desvela-se, por trás das circunstâncias externas que cercam a cura aparentemente espontânea, uma condição interna determinante, a autopunição, que refina o tipo clínico descrito antes como psicose paranoica. O próprio delírio já possuía um sentido: o de punir Aimée, maldizê-la, castigá-la como mãe, prejudicar sua carreira de escritora. Com o crime cometido, a prisão e o internamento efetivados, o delírio perderia sua função e desapareceria. Daí a expressão 'paranoia de autopunição', que faz intervir o supereu e delimita "um tipo de crime, os crimes dos delírios dos querelantes e dos delírios de autopunição, que são os crimes do Superego" (LACAN, 1932/2011, p.301-302).

O supereu lacaniano comporta os três registros (imaginário, simbólico e real) (MILLER, 1981/2012), e está constantemente ligado à pulsão de morte.

Lacan (1953-1954/1986) promove o supereu a um enunciado discordante, ignorado na lei, originando algo que não é integrável ou admissível à lei moral. Assim, o supereu é uma instância que conduz cegamente à repetição. Esse desconhecido não é a lei que simboliza a perda de gozo pela interdição, mas a pulsão de morte em sua insistência repetitiva. Nesse enunciado, trata-se do simbólico a serviço da repetição e do real do gozo, para além do princípio do prazer. Daí resulta um imperativo insensato, que impele o sujeito a obedecer a comandos descabidos, chegando ao extremo das passagens ao ato violentas e mesmo homicidas ou suicidas.

Entre os falantes, o automatismo de repetição supõe o registro do simbólico, que precede e ultrapassa cada um. O inconsciente foi definido como discurso do Outro, alteridade irredutível tanto ao semelhante, a nosso correspondente na díade imaginária, quanto a uma abstração não encarnada. O inconsciente é discurso do qual o falante constitui um elo em uma cadeia geracional na qual terá de situar seu lugar. E como o circuito discursivo se repete, o sujeito se condena a repetir os erros do pai, de quem herda o discurso, reproduzindo seus impasses, entraves neuróticos e legando a outros suas falhas (LACAN, 1954-55, 1985). Aí também o supereu foi reconhecido. Nessa face do supereu não sobressai a consciência moral ou a lei proibitiva veiculada pela instância paterna, mas a repetição de faltas com o preço que se paga por elas em sofrimento e punição.

A "figura obscena e feroz" (LACAN, 1955/1998, p.362) que o supereu designa foi entendida em um dado momento por uma hiância no imaginário que se produzia quando os mandamentos da palavra eram rejeitados. Esta situação estaria condicionada pela identificação narcísica — portanto, pela vertente imaginária que daria lugar a um estado de beatitude exacerbada. Lacan (1955/1998) usa o termo alemão Verwerfung, o mesmo traduzido por foraclusão. A potência destrutiva e violenta do supereu recrudesceria quando os poderes simbólicos da palavra, concebidos naquele contexto como mediadores e pacificadores, fossem excluídos, abrindo uma brecha para que esta instância agisse como imperativo desregulado, que não visa o bem do sujeito nem a manutenção do laço social. Então, prevaleceria, por um lado, a rivalidade imaginária, o narcisismo das pequenas diferenças, ou pior, o 'ou eu ou ele' que não admite a coexistência dos membros do par de oponentes; por outro lado, assiste-se às manifestações do supereu no real: gozo mortífero e pura destruição. O rechaço dos mandamentos da palavra como condição de irrupção do gozo constitui uma concepção datada no ensino de Lacan, que não é sustentada posteriormente (MILLER, 1981/2012). Tal concepção apoia a ordem simbólica no reconhecimento, que pode dar lugar à luta pelo prestígio, luta de morte por se fazer reconhecer pelo Outro, com base na filosofia hegeliana.

Fora da representação, a coisa — das Ding — vem ao lugar de uma realidade muda. Os mandamentos religiosos visam estabelecer distância entre o sujeito e das Ding, que corresponde a um interior excluído, isto é, um vazio central em torno do qual gravitam as representações ou significantes. Esse vazio mudo pode ser aproximado de algo que ordena e comanda, mas também pode ser identificado à mãe e a seu corpo (LACAN, 1959-1960/1988), no sentido da perda de algo nunca possuído — donde o vazio. Das Ding não é conhecida em si mesma, apenas por meio da lei, embora sejam distintas: ela não é lei, mas o correlato da lei da fala. Diferente do bem-estar (wohl), o Bem Supremo (das Gute), tema da investigação filosófica, não pode existir, pois este seria o objeto perdido e interdito, objeto do incesto: das Ding.

O imperativo categórico kantiano se quer lei moral e universal, suscetível de fundamentar as condutas morais, sem a interferência da vontade particular ou de sentimentos. Ele encontra na dor tanto a única experiência sentimental admitida por Kant quanto o gozo preconizado por Sade (LACAN, 1963/1998) enquanto exercício da liberdade de usufruir do corpo de si próprio e do próximo, o que, de fato, corresponde a um mandato. O primeiro propõe o lado abstrato e formal da lei; o segundo, o lado perverso e atroz, que evidencia o gozo e, sobretudo, mostra que gozo e lei não são antinômicos. A dor denunciaria excesso de proximidade a das Ding, franqueamento da distância necessária que cabe ao desejo sustentar.

Dos três registros, o real do gozo ganha relevo, como se vê, e a vertente pulsional vai se acentuar, dirigindo-se pouco a pouco rumo ao objeto, que não coincide com o registro do real, mas não ingressa no encadeamento significante. O imperativo categórico desvela um imperativo de gozo.

A lei demarca um gozo inacessível, um limite que não pode ser ultrapassado. O supereu avança contra esse impossível, ignora-o, pressionando o limite da lei e ordenando o gozo. Não se pode deixar de obedecer ao mandato superegoico nem aceder ao gozo impossível. A própria lei superegoica se desloca de uma lei proibitiva, que veicula a interdição, para uma lei desmedida, cuja máxima dita gozar. A vertente moral do supereu é suplantada em benefício de uma lei insensata ou ao sem lei do real.

"É possível que o supereu sirva de apoio à nossa consciência moral, mas todos sabem muito bem que ele nada tem a ver com ela no que se refere às suas exigências mais obrigatórias. O que ele exige nada tem a ver com o que teríamos o direito de constituir como a regra universal de nossa ação, é o bê-á-bá da verdade analítica." (LACAN, 1959-1960/1988, p.371-372)

Em contrapartida, a função paterna em Lacan não consiste em legiferar contra o desejo, mas em unir o desejo à lei. Por isso, a abordagem do Édipo e da proibição do incesto sublinha o desejo caprichoso da mãe, não o desejo pela mãe. Os tempos do Édipo correspondem à colocação em marcha da operação paterna, que incide sobre o desejo materno, de modo a regular o gozo de que a criança é objeto e abrir-lhe a via desejante. Dessa travessia depende a formação do ideal de eu que se distingue da lei paradoxal do supereu. A via do desejo se impõe como defesa contra o gozo, e não como gozo a ser barrado pelo pai. A lei não proíbe o gozo, até porque não é seu inverso, mas está fundada sobre o gozo interdito ao falante. Assim, não é ela que torna o gozo impossível.

"Não é a Lei em si que barra o acesso do sujeito ao gozo; ela apenas faz de uma barreira quase natural um sujeito barrado. Pois é o prazer que introduz no gozo seus limites, o prazer como ligação da vida, incoerente, até que outra proibição, esta incontestável, se eleve da regulação descoberta por Freud como processo primário e pertinente lei do prazer." (LACAN, 1960/1998, p.836)

Quanto à outra proibição, o passo mais ousado de Freud não repousa no modo como equaciona o ponto de vista econômico por um princípio homeostático em consonância com a ciência de seu tempo. A respeito das relações entre lei e gozo, não basta enfatizar a perspectiva do mito, do gozo perdido como condição da lei ou das consequências de sua transgressão. A castração, que não é mito nem fantasia, introduz-se com a marca da proibição que tem por símbolo o falo: há um gozo interdito àquele que fala, gozo perdido pela entrada na linguagem, e há um gozo ao qual o falo dá corpo. Isso significa que nem todo gozo é negativizado. Seria viável prolongar a lista dos modos de gozo, como em parte o objeto vocal o demonstra, pois não há vida sem gozo, na palavra e no corpo, o próprio significante o produz, seguindo o ensino de Lacan.

Em suma, a castração acaba por definir-se pelo efeito do significante, qualquer que seja ele, sobre a relação ao sexo. Assim, o Édipo vem a ser um sonho de Freud (LACAN, 1969-1970/1992), e o amor ao pai e o respeito a sua autoridade dependem de que este faça da mãe o objeto que causa seu desejo. O pai desejante é algo bem diferente do pai que detém a mestria de seu desejo. O pai causado por um objeto está submetido à lei do desejo e pode colocá-lo em ato, apesar dos impasses da neurose. O neurótico anseia por um pai que exerça domínio sobre o desejo, o que não é diferente do pai morto. O desejo, causado por um objeto não objetivo ou objetivável, sustentado na fantasia que o localiza no parceiro, não é passível de controle, mas de consentimento. Esse ponto levanta a questão do desejo do analista e do manejo da transferência, pois cabe àquele preservar a dimensão de imperfeição para o analisante, ao invés de propor-se como um ideal. Contra um ideal de perfeição, uma imagem exemplar ou um pai que possuiria o domínio do desejo, a interpretação, que é pertinente aos efeitos das palavras e à voz, pode valer menos que uma vacilação calculada do analista sob algumas condições.

Lacan joga com a homofonia entre Jouit! (Goza!) e J'ouis, (Eu ouço), para dizer que ao imperativo Jouit! (Goza!) o sujeito responderia com um J'ouis! (Ouço!), indicando o caráter vocal do imperativo superegoico. A voz do supereu franqueia a barreira que o prazer erige contra o gozo, e remete-se ao objeto.

O OBJETO VOCAL

A dimensão pulsional do supereu é tratada como objeto a, não especularizável, destacável e residual, que não se assimila à unificação da imagem do corpo: "não pode haver concepção analítica válida do supereu que se esqueça de que, por sua fase mais profunda, essa é uma das formas do objeto a" (LACAN, 1963/2005, p.321).

O supereu define-se como objeto voz, correspondendo a uma das apresentações assumidas pelo objeto a que, tal como o objeto olhar, ingressa na série de objetos parciais separáveis do corpo. Por isso, pode-se afirmar que as palavras, a música, o canto e a beleza da voz se prestam a velar a dimensão de amputação do objeto vocal, ponto opaco na invocação. No comando superegoico, a voz envolve um a mais, além do que as palavras podem dizer. Na vertente objetal do imperativo, há algo além do enunciado, a voz pulsional, objeto vocal, que é um resto de gozo, não o gozo absoluto, pleno, que permanece impossível, mas um resto compatível com e localizável no discurso, para aqueles que nele se encontram inseridos. Por sua estrutura, o discurso pode subsistir sem palavras e nele o supereu pode ser situado (LACAN, 1969-1970/1992).

Entre o corpo e a voz instala-se uma fratura experimentada no exercício da fala, que revela a exterioridade da voz, dividindo o falante entre emissor e receptor, entre enunciação e enunciado. Ao ouvir a gravação de sua voz no mais requintado equipamento tecnológico, o falante confronta-se com algo desconhecido: identifica seu enunciado, reconhece que disse aquilo, mas no que disse, em sua prosódia ou em seu tom de voz, há algo que se furta à apreensão daquela emissão como sua, surge um quê de estranheza irredutível. De modo comparável, ocorre que uma poesia, a exposição de uma teoria, uma música — seja uma cantiga, seja uma sonata — que poderiam ser objeto de recognição, se afigurem renovados ao serem ouvidos. O caráter inaudito desvela algo a ser situado não no enunciado, não nas palavras ou nas notas musicais, mas na dimensão objetal.

A clínica das psicoses recolhe o testemunho de vozes que nenhuma experiência sensível pode compartilhar ou registrar, que ninguém além do sujeito é capaz de ouvir e cuja realidade se impõe sob o signo da certeza. Os surdos escutam essa voz íntima, o que indica seu caráter afonésico (MILLER, 1989). Este objeto que vocifera mostra sua dependência à materialidade do significante que afeta o corpo. Por essa materialidade, o significante não é apenas ouvido, mas é falado, lido, escrito, ressoa no corpo e nele se insemina, ainda que não seja dado pela audição.

Nas psicoses, as vozes se revelam não apenas em sua exterioridade, mas também como presença auditivada e íntima. Quando a voz não se incorpora, transforma-se no que Lacan chamou de vozes perdidas das psicoses, perdidas da cadeia significante, desencadeadas, perdidas no real, retornando de fora, em estado de presença audível.

No autismo (MALEVAL, 2009) o gozo vocal não é cedido. Portanto, não se efetua o corte que produz o objeto vocal à medida que este cai do órgão da fala. A voz não é lançada, não ressoa no vazio do Outro. Por sua natureza, o verbo carreia o objeto vocal, cadente a cada emissão, o que é próprio da pulsão invocante. A retenção da voz produz impasses na fala: o autista é verboso, não está no pré-verbal, pois é do verbo que se protege. Aí o verbo persiste sobrecarregado de gozo. Então, ou ele não fala, ou fala de modo ecolálico, reproduzindo a palavra do outro, sufocando a enunciação, que envolve a pulsão invocante. Quando sua fala é sintagmática, repete pedaços de frases emitidas por outros. Pode chegar a falar muito, de modo verborrágico, mas a voz guarda um quê de estranheza, um tom monocórdio, um timbre metálico, algo que faz calar a voz que toda fala envolve.

No conto de Andersen, a pequena sereia concretiza a cessão do objeto vocal e a bruxa encarna sua incorporação. A sereia consente em perder a voz em troca de um corpo de mulher a fim de conquistar o homem amado: verifica-se a extração do objeto que passa a funcionar, rigorosamente falando, como objeto a, e sua autonomização como objeto parcial, à diferença dos estados severos de autismo. A encantadora voz da sereia é incorporada pela bruxa, que a cobiçava, e à qual retribui com o corpo almejado por esta. A voz não fica perdida, ecoando no vazio do Outro, como pode ocorrer nas psicoses: ela é incorporada. Por sua vez, a perda do gozo vocal constitui uma condição de acesso ao corpo. Separada de uma parte de si, a sereia se humaniza, mas o corpo que obtém está dividido em relação à voz.

Para o neurótico, a voz angustia não como voz perdida ou como voz não extraída. Ela angustia quando o ponto de falta na invocação é obturado por algo que não deveria emergir, mas surge como silêncio enigmático, fonte sonora incógnita, choro ininterpretável, síncope de soluços, ruído de natureza desconhecida. Quando a voz se emancipa das balizas fornecidas pela imagem corporal e pelo murmúrio dos sons e dos sentidos, é experimentada como horror próprio ao grito, ao urro, e então se entrevê sua face de resto, de objeto mais-gozar.

Nem todo o gozo se aglutina no objeto a. O significante produz gozo que não se condensa no objeto, mas subsiste como gozo do corpo, da fala e do sentido. Por conseguinte, nem o objeto vocal nem o gozo superegoico poderiam esgotar a questão psicanalítica da satisfação. O gozo da fala, gozo do sentido, mostra que o blá-blá-blá vela a dimensão angustiante da voz, não sem gozo.

PARA CONCLUIR

A voz da consciência descreve um trajeto que a conduz à voz objetal, inassimilável à imagem do corpo. A psicanálise, clínica do real, por meio da fala e da resposta silenciosa, promove um tratamento para o supereu, em sua dimensão imperativa de gozo e objeto vocal; nessa direção, seu dispositivo reserva, pela presença do analista, um lugar para a dimensão inaudita da voz: causa do desejo e objeto mais-gozar.

O objeto a não coincide com o real, é o que de mais próximo se vislumbra deste. Este objeto é um semblante, como os significantes o são. E nem todo gozo está condensado nele, conforme foi colocado; o objeto não esgota, portanto, a abordagem do real, e esse limite, ou fracasso, relança a interrogação sobre as relações entre voz e supereu. Independentemente do incontestável caráter objetal da voz, a investigação acerca do supereu e do gozo, tanto em sua face significante quanto real, mereceria prosseguir em outro tempo e lugar.

As considerações sobre a voz são solidárias à interpretação analítica, com o efeito não antecipável que as palavras podem suscitar ao tocarem o inconsciente. Ao incidir sobre a causa do desejo, a interpretação efetua um corte entre gozo e significância, com efeitos separadores sobre o objeto que, no entanto, não concentra todo o gozo a ser tratado. Como foi mencionado, o analista pode lançar mão de atos cujo alcance se diferencia do que atinge a interpretação, em suas vertentes de sentido e de nonsense.

Conforme sustentamos, o silêncio não é ausência de ruído — donde o interesse em distinguir o efeito de sentido das palavras do efeito jaculatório das manifestações súbitas, comparáveis a um arremesso ou ao dardejamento (uma das traduções para o português de jaculation). Este seria um contraponto ao efeito de sentido real das palavras, pois o ato se prestaria a incidir sobre o gozo que todo significante porta.

Recebido em 4/2/2014.

Aprovado em 28/2/2014.

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  • 1
    A figura lendária da sereia e seu canto nessa tela irônica, segundo a análise sempre atual de Hervé Castanet (1996), remete-se ao feminino e ao saber, que transcendem a temática deste artigo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Jul 2014
    • Data do Fascículo
      Jun 2014

    Histórico

    • Recebido
      04 Fev 2014
    • Aceito
      28 Fev 2014
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