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O REGISTRO IMAGINÁRIO NOS ANTECEDENTES LACANIANOS

Resumos

Antes da introdução do registro simbólico em seu ensino, algo que marcou de forma indelével os primeiros seminários, Lacan deteve-se desde a publicação de sua tese, em 1932, até o memorável Discurso de Roma, em 1953, com as questões relativas à formação do eu em sua dependência da imagem do outro. Na esteira da proposta de uma psicologia concreta, presente na tese, Lacan aborda como fundamentais os conceitos de complexo, imago e identificação, em suas inflexões no complexo de desmame, complexo de Édipo, e principalmente o complexo de intrusão, que foi posteriormente elaborado como o estádio do espelho.

Estádio do espelho; imaginário; antecedentes lacanianos


The imaginary register in the Lacanian antecedents. Prior to the introduction of the symbolic register in his teaching, something that left an indelible mark in his first seminars, Lacan focused his research, since the publication of his thesis in 1932 until the memorable Speech of Rome in 1953, on the issues related to the formation of the Ego (moi) in the dependence of the image of the other. In the wake of the proposal for a concrete psychology in his thesis, Lacan discusses the fundamental concepts of complex, imago and identification in their inflections in the weaning complex, the Oedipus complex, and especially the intrusion complex, which later was developed as the mirror stage.

Mirror stage; imaginary; Lacanian antecedents


Essas diversas fórmulas só são compreensíveis, no final das contas, em referência à verdade do "Eu é um outro", menos fulgurante na intuição do poeta do que evidente aos olhos do psicanalista. (LACAN, 1948, p.120)

Antes da introdução do registro simbólico em seu ensino, Lacan se ateve principalmente à construção do eu a partir da noção de imago. Essa conceituação marca o eixo central dos trabalhos que denominou de "nossos antecedentes" - aqueles anteriores a 1953, ano em que o simbólico passa a figurar em suas teorizações.

O presente artigo pretende investigar detidamente esses antecedentes lacanianos, com vistas a elaborar as origens do que mais tarde Lacan veio a chamar de registro imaginário, bem como caracterizar tal registro durante o período anterior à virada de 1953. Este percurso tem como referência central o conceito de estádio do espelho, no que tange à construção da representação de si do sujeito, bem como de seu mundo, em torno da imagem do semelhante.

PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES

Para vislumbrarmos a origem do interesse de Lacan pela influência da imagem na constituição psíquica, é necessário voltarmos aos seus antecedentes. Mesmo com uma série de artigos médicos e psiquiátricos publicados anteriormente, sua primeira obra de peso, retomada como inaugural por ele próprio, é sua tese de doutorado, Da psicose paranoica nas suas relações com a personalidade, defendida em 1932. Nesse trabalho, Lacan explora um tipo de paranoia por ele denominada de psicose de autopunição (1932/2000) a partir de um estudo de caso. Sua abordagem se dá com a elaboração de um método desenvolvido a partir dos ensinamentos de Clérambault - "único mestre em psiquiatria" (LACAN, 1966LACAN, J (1966) "De nossos antecedentes", p.69-76.) - e mais especificamente do conceito de automatismo mental. Freud surge na tese como uma referência para abordar a questão do crime e da culpa, relacionados à instância do supereu. Assim, para a compreensão da paranoia, Lacan lança mão de uma série de referenciais psicológicos e psiquiátricos - e também da psicanálise.

Na procura por um meio objetivo de se estudar as afecções psicopatológicas, Lacan insiste na fundação de uma "ciência da personalidade", que seria, por excelência, a psicologia concreta - termo que toma de empréstimo de Politzer para se referir à exigência de rigor a ser tomada pela psicologia, fundando a compreensibilidade dos fenômenos psicológicos na objetividade acessível aos métodos existentes de observação e análise. Para a concretização deste projeto, carecia volver às determinações da personalidade a partir de três áreas: o desenvolvimento biográfico, a concepção de si e a tensão das relações sociais.

O desenvolvimento biográfico da personalidade é definido como os fatores objetivos a partir dos quais o sujeito organiza sua história de vida. A concepção de si marca a relação do sujeito consigo próprio, evidenciada no aparecimento de imagens mais ou menos ideais em que ele se reconhece. Por fim, a tensão das relações sociais se traduz em termos dos laços sociais que incluem o sujeito e os outros que o afetam (LACAN, 1932LACAN, J. (1932/2000) De la psicosis paranoica en sus relaciones con la personalidad, Lacan 2000. Buenos Aires: RD Ediciones Eletrónicas (CD-ROM)./2000).

Entretanto, esses critérios, objetivos e operacionalizáveis para uma ciência, constituíam uma aporia para o problema imposto pela psicopatologia: se a loucura era definida como uma discordância entre o social e a experiência subjetiva individual, como seria possível que as tensões das relações sociais pudessem compor o verdadeiro determinismo do adoecimento psíquico? Se fosse simplesmente assim, não haveria discordância na loucura, mas submissão pura e simples às regras sociais.

Entre as duas vertentes da psiquiatria de então a respeito da etiologia da loucura, ainda insistentes em nosso tempo - o inatismo, que funda a loucura em determinantes orgânicos herdados biologicamente, e o ambientalismo, que atribui ao meio a sua causa primeira - Lacan procura uma espécie de síntese dialética (OLGIVIE, 1991OLGIVIE, B. (1991) Lacan: a formação do conceito de sujeito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.). Entretanto, tal síntese não pode ser um simples meio-termo. Primeiro, o aspecto orgânico do inato não pode ser levado em consideração sem mais nem menos à luz dos conhecimentos tanto da psicanálise quanto da biologia humana. Ambas demonstram como a influência do meio é determinante para o organismo humano, dado que, por mais que possam ser postulados na constituição do homem, os elementos inatos não podem ser facilmente separados daquilo que é adquirido pelo meio. E mais: muito do que nos animais é determinado por elementos inatos é suplantado pela psicogênese no homem, que é cultural.

Contudo, a ideia de uma determinação exclusiva do meio não consegue dar conta da contradição entre a loucura e a norma social. Portanto, ao mesmo tempo que Lacan se opõe a um determinismo biológico, geneticamente herdado, das afecções psíquicas, ele também não pode admitir um ambientalismo ingênuo - a personalidade não poderia ser reduzida, enfim, à mera encruzilhada de fatores biológicos e sociais. Para dar conta dessa contradição, lança mão da ideia de que a loucura tem sua causa primeira numa predisposição da personalidade, que, no entanto, é determinada pela concretude social; tal predisposição é o que permitiria ao sujeito constituir sua história como uma reação ao meio cultural onde se insere, mantendo sua especificidade e originando sua patologia (OLGIVIE, 1991OLGIVIE, B. (1991) Lacan: a formação do conceito de sujeito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.; SALES, 2007SALES, L. S. (2007) "Determinação versus subjetividade: apropriação e ultrapassagem do estruturalismo pela psicanálise lacaniana". Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal de São Carlos.).

Essa conceituação difícil, aparentemente paradoxal, fará com que Lacan se valha de conceitos antitéticos, como hereditariedade social, ou então inatismo causal. O que se passa, de fato? Ele procura manter duas ordens que lhe são essenciais para a compreensão da paranoia, especificamente, e do psiquismo como um todo: a atividade do sujeito, na medida em que o meio não pode simplesmente imprimir suas características num indivíduo, pois o sujeito reage ao seu ambiente e é nessa atividade que ele se constitui como singularidade; e a sobredeterminação do sujeito por uma ordem externa que lhe escapa, o social.

O sujeito estrutura-se desde fora, a partir de uma ordem alheia que o determina, e esta formação histórica e social inicial mantém para o sujeito o caráter de um inato que é adquirido. O termo hereditário aqui se aplica com todas as suas consequências semânticas, no sentido do que é transmitido entre gerações pelas relações de parentesco, não determinadas apenas pela consanguinidade, mas pela própria estrutura social. Esse aspecto inato-adquirido é o que funciona, então, como base de toda reatividade do sujeito na sua relação com seu meio: no caso do homem, cujo meio é social, tal estrutura lhe permite manter um pequeno grau de diferenciação e autonomia relativa.

As dificuldades impostas ao se pensar a determinação objetiva da personalidade a partir das tensões sociais, da concepção de si e do desenvolvimento biográfico impelem Lacan a procurar conceituar a maneira como se constitui o sujeito. Na esteira das dúvidas deixadas em suspenso em sua tese, ele articulará a continuidade de suas pesquisas: partindo das noções psicanalíticas acerca da psicose, o conceito de narcisismo aparece como central e marca a terra incógnita a ser explorada. Para elaborar essa questão, permanece com sua forte referência sociológica para pensar a condição humana, e tentará marcar como se efetua esse enredamento entre constituição do eu e sociedade (MARINI, 1991MARINI, M. (1991) Lacan: a trajetória do seu ensino. Porto Alegre: Artes Médicas.; SALES, 2007SALES, L. S. (2007) "Determinação versus subjetividade: apropriação e ultrapassagem do estruturalismo pela psicanálise lacaniana". Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal de São Carlos.).

A elaboração da questão do narcisismo torna-se um tema sempre recorrente na produção textual lacaniana anterior a 1953, mas ela ganha um caráter efetivamente original nas conceituações sobre o estádio do espelho, servindo de fulcro para ler a teoria analítica. Lacan retoma a temática da constituição do eu a partir da identificação com uma imagem - núcleo central de sua teorização neste momento - em quase todos os seus textos antecedentes; e, como ele próprio admitiria no preâmbulo De nossos antecedentes, de 1966 - preâmbulo esse escrito para a primeira edição de seus Escritos, servindo de prefácio justamente para seus artigos anteriores a 1953 -, sua primeira contribuição para o campo da psicanálise.

Quatro anos depois da publicação de sua tese de doutorado,1 1 Neste ínterim, Lacan publicou alguns artigos ainda íntimos da temática da tese: O problema do estilo e as concepções psiquiátricas das formas paranoicas da experiência, de 1933; Motivos do crime paranoico: o crime das irmãs Papin, também de 1933. Somente três anos depois, seus desenvolvimentos sobre a formação do eu começam a tomar uma inércia própria, marcando enfim todo este momento antecedente aos seminários. Ironia ou não, a primeira comunicação desta contribuição original, tendo extrapolado o tempo a ele concedido no Congresso, é interrompida por Ernest Jones. Assim como a fala não foi finalizada, o artigo também não foi publicado nas atas do congresso, pois sua versão escrita não foi entregue. essas teorizações são expressas pela primeira vez num artigo escrito para o Congresso Psicanalítico de Marienbad, realizado em 1936. Como ele jamais foi publicado, a temática só viria a lume com outro artigo, A família: o complexo, fator concreto da psicologia familiar, de 1938, que, segundo Lacan (1966LACAN, J (1966) "De nossos antecedentes", p.69-76.), contém o essencial de sua fala no Congresso. Portanto, entre a publicação da tese e o primeiro escrito abordando a temática da constituição do eu a qual temos acesso, há um hiato de seis anos. Este "período de latência", como chamado por Olgivie (1991OLGIVIE, B. (1991) Lacan: a formação do conceito de sujeito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.), coincide com o início de sua análise com Loewenstein e com a frequência ao curso de Kojève sobre Hegel.

Mas há ainda outro artigo, Para-além do "princípio de realidade", de 1936, publicado pouco depois daquele de Marienbad, que evidencia os questionamentos a conduzir as investigações de Lacan. "Através das imagens, objetos de interesse, como se constitui essa realidade em que se concilia universalmente o conhecimento do homem? Através das identificações típicas do sujeito, como se constitui o [eu], onde é que ele se reconhece?" (LACAN, 1936LACAN, J. (1936) "Para-além do princípio de realidade", p.77-95., p.95). Estão aí lançadas questões que só poderão ser esclarecidas no decorrer de uma obra, mas cuja resposta já tem sua orientação marcada neste mesmo texto. Conceitos como imagem, complexo e identificação já começam a balizar o terreno com o qual Lacan irá abordar a questão do narcisismo e da constituição do eu.

A ideia da constituição do eu a partir da relação com a imagem no espelho não é nova - Henri Wallon, médico e psicólogo francês, já havia publicado, em 1931, um artigo que relacionava a tomada de consciência do corpo próprio, na criança, por meio do reconhecimento do seu reflexo no espelho. Mesmo sendo inegável a influência das formulações de Wallon sobre a maneira como Lacan concebe o estádio do espelho, é necessário salientar que Wallon se concentra nos modos como a criança, superando suas deficiências iniciais, desenvolve uma apreensão da realidade tal como ela é; para Lacan, trata-se de verificar como a imagem do espelho presta-se à alienação do sujeito e, mais do que desenvolver sua autonomia, ocultar sua falta.

A IMAGEM E A IMATURAÇÃO ORGÂNICA

E que falta é esta que vem diferenciar a conceituação lacaniana sobre o espelho daquela dos psicólogos, e situá-la no seio da psicanálise como uma contribuição original? Lacan parte de referenciais biológicos e antropológicos para fundamentar como dado concreto do ser humano o seu desamparo primordial, que serve de fundo e móbile para seus desenvolvimentos posteriores - embasamento utilizado também por Freud (1900FREUD, S. (1900/2001) A interpretação dos sonhos. Imago: Rio de Janeiro./2001) para demonstrar o nascimento do desejo.

Da biologia, em especial dos trabalhos embriológicos de Lodewijk Bolk, Lacan retira a noção da prematuração do homem no momento de seu nascimento. O homem nasce num estado ainda fetalizado, com grande atraso no desenvolvimento de uma série de funções e órgãos, inclusive (um aspecto frequentemente citado por Lacan) a ausência de mielina no sistema piramidal, que fundamenta a falta de coordenação motora do bebê. Contudo, em meio à série de inacabamentos, uma determinada função se destaca: a maturação precoce do sentido da visão para constituir os primeiros reconhecimentos, arcaicos, em especial com relação à figura humana.

Da antropologia, a discussão entre as determinações da natureza e da cultura sobre o homem é trazida à baila. Pela suplantação de qualquer vestígio instintual pela psicogênese - eminentemente social - a antropologia postula que a natureza humana é, no fim das contas, social. Sem ter, como os outros animais, instintos que lhe sirvam de referência para o comportamento adequado frente a diferentes estímulos, resta ao homem buscar na cultura na qual se insere os moldes que orientam sua conduta (LACAN, 1938LACAN, J. (1938/1985) Os complexos familiares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar./1985).

Dessa derrelição característica do homem em seu nascimento, outro dado se torna evidente: para que um bebê possa ter qualquer chance de sobrevivência, é necessária a intervenção de um outro, a quem o pequeno infans fica completamente submetido, ao preço de não sobreviver. Nessa relação verifica-se, objetivamente, uma discórdia, um mal-estar pela sujeição completa ao outro. Este mal-estar é dominante na vida do recém-nascido, submetido a uma série de tribulações a partir do momento que sua plácida vida parasitária no ventre materno é interrompida com o nascimento. Acrescente-se ainda que a propriocepção do infans, por ter seu sistema nervoso inacabado e seu sistema motor ainda subdesenvolvido, é experimentada como um caos de sensações, desprovido de uma operação possível que possa diferenciá-las entre exteriores e interiores, ou mesmo sintetizá-las.

Esse conjunto caótico de experiências do bebê em seus primeiros meses conforma-se numa das imagos mais arcaicas que podem ser verificadas, a imago do corpo despedaçado. A experiência que constitui essa imago serve de fundamento para o que o homem experimenta como sua morte, e "por isso é que em todas as suas relações imaginárias o que se manifesta é uma experiência da morte" (LACAN, 1953LACAN, J. (1953/2008) "O mito individual do neurótico ou Poesia e verdade na neurose", in O mito individual do neurótico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p.9-44./2008, p.41). Essa imago surge também em inúmeros sonhos nos quais partes do corpo adquirem vida própria, ou em alucinações psicóticas nas quais o corpo se quebra em incontáveis pedaços.

Dessa situação originária de desamparo e submissão completa ao outro advém o primeiro dos complexos abordados por Lacan (1938LACAN, J. (1938/1985) Os complexos familiares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar./1985) em seu texto sobre a família: o complexo de desmame. Por ser jogado prematuramente nas vicissitudes da vida, o infans irá receber, a partir do complexo de desmame, uma primeira expressão psíquica de um "desmame" mais antigo, justo aquele efetuado, no nascimento, pela separação da criança de sua mãe, e que provoca um mal-estar cujos cuidados posteriores não conseguem tamponar de forma alguma. Mas do que fala Lacan quando aborda o desmame como um complexo?

O complexo é um número limitado de relações psíquicas fundamentais que se conformam a partir de determinada estrutura social. Os complexos, instituídos pela família e fundamentalmente inconscientes em suas determinações sobre o psiquismo, respondem à organização do desenvolvimento psíquico dos indivíduos, suplantando, no homem, a função que é exercida pelo instinto nos animais. Todavia, é importante notar que o conceito de complexo costuma ter sua origem atribuída à Escola de Zurique (Bleuler e Jung), e, apesar de ter sido adotado também por Freud, seu uso foi criticado por ele, uma vez que sua acepção sintetizante e de fácil apreensão não permitia uma análise mais rigorosa de fenômenos prenhes de nuances. À parte desta crítica, o termo complexo continuou sendo usado na teoria analítica no tocante a dois pontos fundamentais da constituição subjetiva: o complexo de Édipo e o complexo de castração (LAPLANCHE & PONTALIS, 1991LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. (1991) Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.).

No seio do complexo inconsciente reside uma representação prototípica chamada imago. A imago, de modo mais específico, diz respeito a uma função informativa e formadora. Isso é demonstrado especialmente pela maneira peculiar pela qual a imago constitui o psiquismo por meio da identificação. Diferente de uma mera imitação, sempre aproximativa, a identificação é globalizante, estruturando o desenvolvimento antes mesmo de o sujeito se saber caminhando numa dada direção. A identificação, assim colocada, transmite "os traços que, no indivíduo, dão a forma particular de suas relações humanas, ou dito de outra maneira, de sua personalidade" (LACAN, 1938LACAN, J. (1938/1985) Os complexos familiares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar./1985, p.92).

Por intermédio dos complexos, as imagos se instauram no psiquismo de um sujeito que, no movimento de identificação alternada com elas, vai assumindo sua posição e enfrentando o seu drama de viver. É na imago e na identificação que Lacan reconhece a causalidade psíquica em seu aspecto mais puro. Tal referência à identificação e à imago aparece em seu texto que aborda propriamente o tema, Formulações sobre a causalidade psíquica: "A história do sujeito se desenvolve numa série mais ou menos típica de identificações ideais que representam os mais puros dentre os fenômenos psíquicos por eles revelarem essencialmente a função da imago" (LACAN, 1946LACAN, J. (1946) "Formulações sobre a causalidade psíquica", p.152-194., p.179). Essas identificações a partir dos complexos fornecem ao sujeito uma imago, sendo o eu apenas um sistema central, consciente, das mesmas - como diz Freud (1923/1976FREUD, S. (1923) "O ego e o id", v.XIX, p.13-83., p.43-44), um "precipitado" dessas identificações, que Lacan passa a denominar de imaginárias. E o motor maior deste drama encenado pelo sujeito na identificação com essa série de imagens é, demarca Lacan, a insuficiência vital que constitui a vida humana, especialmente em seus primórdios de desamparo.

O primeiro desses complexos que determinam a vida do sujeito é, então, o complexo de desmame, que "fixa no psiquismo a relação da alimentação" (LACAN, 1938LACAN, J. (1938/1985) Os complexos familiares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar./1985, p.22), e representa a forma primordial da imago materna. É o complexo mais antigo, e que mais intimamente conjuga o sujeito à sua família. Por ser arcaico, corre-se o risco de confundi-lo com o instinto, por dois motivos: pelo fato de ser um complexo que marca o desenvolvimento psíquico nos primórdios da vida de qualquer ser humano, sua ocorrência é universal, confundindo-se, nessa universalidade, com uma definição possível do que é o instinto; em segundo lugar, por estar ligado intimamente a uma função biológica característica dos mamíferos, a lactação. Cabe lembrar, porém, que o complexo lida com esse caráter ambíguo do que é transmitido pelas vias da cultura na mais tenra idade.

O complexo de desmame deixa a marca indelével no psiquismo de um rompimento com as funções biológicas, da necessidade e da lactação. E essa cisma provoca um efeito sobre o psiquismo do infans, pois ele recusa ou aceita o desmame; e como tal intenção não pode ser de fato atribuída a um eu, ainda em vias de constituição, permanece ambígua em sua escolha, ainda que uma delas prevaleça. Na insistência da recusa forma-se o aspecto positivo do complexo, isto é, a imago nutridora que o pequeno indivíduo tenta restabelecer. Essa imago molda-se a partir de uma organização primeira das sensações primevas, formando, no complexo sensorial desorganizado da criança, pequenas ilhas de percepção, normalmente referentes ao rosto de seus cuidadores. Nesse aspecto, o complexo exerce sua função de conhecimento, à medida que a imagem formada pela criança permite uma organização sensorial preliminar da realidade, possibilitando que cada novo encontro seja, enfim, uma tentativa de reencontro com o objeto demandado.

Entretanto, não são apenas as sensações exteriores que tomam uma primeira organização em uma imago, pois existem ainda as sensações do próprio corpo, associadas à sucção e à preensão. Neste momento, o complexo de desmame é caracterizado sobretudo pelo fato de que o "ser que absorve é inteiramente absorvido" (LACAN, 1938/1985, p.26); ou seja, a marca deste complexo é a fusão do vivente com a fonte nutridora, formando a imago do seio materno, que não é uma síntese objetiva de um órgão, o seio concreto, mas uma bricolagem tanto das sensações advindas do exterior, dos cuidados propriamente ditos e da alimentação, quanto das sensações originadas no próprio corpo.

No entanto, torna-se necessária a sublimação desta imago, para que novos complexos possam se introduzir, e novos laços sociais possam ser estabelecidos. Na sublimação do complexo de desmame, o sujeito desloca o investimento na imago materna para um substituto adequado, a segurança e calidez do espaço familiar. Sem esse mínimo desgarramento da força do complexo, este se torna um fator mortal, verdadeira pulsão de morte. Nesse sentido, Lacan utiliza-se de sua teoria dos complexos para ler a segunda teoria pulsional de Freud evitando qualquer recurso à biologia. A pulsão de vida é entendida pela erotização primordial do pequeno infans, estimulada por esses cuidados primevos. A pulsão de morte, por outro lado, é decorrente de uma denegação insistente do desmame, na tentativa de restituir a imago materna procurada e numa busca pela condição primordial indiferenciada e experimentada neste momento inicial da vida, levando o sujeito à morte.

A FORMAÇÃO DO EU E A RELAÇÃO COM O OUTRO

O complexo de desmame tem sua abordagem pormenorizada somente no texto sobre a família (LACAN, 1938/1985), não tendo exposições ou desenvolvimentos posteriores nos antecedentes lacanianos. Contudo, o estado primeiro do ser humano, o desamparo, continua sendo para Lacan o ponto de articulação que torna possível pensar o desenvolvimento de outros complexos. De início, ainda preso a uma referência cronológica, Lacan postula, na sequência do desmame, o complexo de intrusão, a partir do qual irá elaborar sua primeira contribuição verdadeiramente original para o campo da psicanálise, ou seja, a teoria do estádio do espelho, que se foca na importância da imagem na constituição subjetiva.

Tal importância é demonstrada pela psicologia comparada, numa observação típica: em uma determinada idade, por volta dos seis aos 18 meses, o bebê humano ainda não tem a inteligência instrumental de um chimpanzé, mas já consegue, contudo, reconhecer a sua imagem refletida no espelho, reconhecimento que vem acompanhado de uma vivência de júbilo e surpresa. Enquanto o chimpanzé, ao reconhecer que a imagem do espelho não é verdadeiramente outro, senão apenas um embuste, perde o interesse por ela, a criança, por outro lado, mostra um interesse vívido. O reconhecimento da imagem no espelho permite à criança certo controle corporal, pois experimenta os efeitos que sua ação elicia naquela imagem, dando ensejo a brincadeiras de se movimentar ao perceber que sua imagem no espelho corresponde a seus movimentos.

Lacan localiza no momento de assunção da criança de sua imagem no espelho - ao notar que não há um outro por trás daquela imagem senão ela própria refletida - como um modo de manifestação da captação identificatória do sujeito pela imago. Nessa imagem de si refletida no espelho, o sujeito encontra a imago do corpo próprio, que é responsável por uma série de fenômenos subjetivos, em especial "sua autonomia como lugar imaginário de referência das sensações proprioceptivas" (LACAN, 1949LACAN, J. (1949) "O estádio do espelho como formador da função do eu, tal como nos foi revelado na experiência analítica", p.96-103., p.187). A imagem na qual o sujeito vislumbra seu corpo próprio não é um avanço no sentido do reconhecimento da realidade, pois nada mais é senão a sua imagem. "Há aí uma primeira captação pela imagem, onde se esboça o primeiro momento da dialética das identificações" (LACAN, 1948LACAN, J. (1948) "A agressividade em psicanálise, p.104-126., p.115), na qual o sujeito avança para uma alienação crônica.

O conceito de estádio do espelho responde justamente a essa vivência da criança de se identificar com a forma visual de seu próprio corpo. A imagem antecipa na criança uma miragem de unidade ideal quando seu organismo ainda não está plenamente desenvolvido e coordenado em suas funções motoras. Em outras palavras, a imagem de unidade e totalidade fornecida pelo espelho vem elidir a experiência do corpo despedaçado, do desamparo original em que a criança se viu jogada. Ela permite ao sujeito sair ilusoriamente da posição de desamparo para a de antecipação de sua potência. A imagem do corpo tal como oferecida pelo espelho - unitária - tem seu valor demonstrado pela relação de figura-fundo que faz com o contexto de mal-estar vivenciado pela criança naquele momento de sua vida.2 2 "É a fenda que separa o homem da natureza que determina sua falta de relação com esta, e suscita seu escudo narcísico, com sua cobertura nacarada na qual é pintado o mundo do qual ele é separado para sempre, mas esta mesma estrutura é também o espetáculo no qual seu próprio meio é implantado nele, quer dizer, a sociedade de seu pequeno outro" (LACAN, 1951, p.6).

Mas o que permite à criança identificar-se com sua imagem refletida no espelho? O reconhecimento primordial, não de si, mas do outro. A experiência de si próprio, em referência ao seu par, advém de uma situação indiferenciada, tal como foi demonstrado acerca da imago do seio materno: esta imago não diferencia qualquer pertencimento ao outro ou ao eu, porque este ainda está em vias de formação. É nesse momento, caracterizado como estádio do espelho, que a unidade do eu, diferenciado do outro, começa a se esboçar (LACAN, 1950LACAN, J. (1950) "Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia", p.127-151., p.142). O sujeito, buscando algo que vele o caos de sua experiência proprioceptiva, encontrará na imagem do outro, seu espelho, o lugar em que poderá identificar esse unitário do corpo. Eis aí a experiência jubilatória do bebê frente ao espelho: ele reconhece na imagem refletida sua unidade anelada, além de reencontrar aí a imagem já conhecida de seu duplo. "É a estabilidade da postura em pé, o prestígio da estatura, o aspecto impressionante das estátuas, que fornecem o modelo de identificação no qual o eu encontra seu ponto de partida, e deixam sua marca nele para sempre" (LACAN, 1951LACAN, J. (1951) "Some reflections on the ego", in Pas-tout Lacan. Paris: École Lacanienne de Psychanalyse. Disponível em: http://www.ecole-lacanienne.net/documents/1951-05-02.doc. Acesso em 9/12/ 2009.
http://www.ecole-lacanienne.net/document...
, p.6).

Enfim, a imagem detém dois aspectos em seu surgimento: o eu dotado de permanência e idêntico a si mesmo, no qual o infans vislumbra precocemente sua potência e organiza seu mundo; e o eu alienante que distancia permanentemente o sujeito de um conhecimento de si, ocultando seu desamparo primordial.

A questão da imagem no espelho pode e deve ser tomada como uma metáfora. O que importa, no fim das contas, é a função totalizante da imagem, que não precisa ser visual, necessariamente. Destarte, o que é de relevância para o pequeno infans neste momento não é de todo a imagem do seu corpo per se, mas sim qualquer imagem que lhe apareça relacionada a si e que lhe possibilite essa fascinação sintetizante e totalizante, engendrando uma unidade sobre o fundo caótico de suas sensações.

Para melhor esclarecer esta precisão, Lacan nos diz que esta imagem assumida pelo sujeito não é a do eu, propriamente, senão a do eu-ideal, que detém em si a virtualidade de unidade e potência almejadas. E é este eu-ideal que servirá de suporte para as identificações posteriores, aquelas nas quais o outro aparece efetivamente como tal. Contudo, algo aqui se faz mostrar: se o eu - ou melhor, o eu-ideal - advém da identificação primeira do infans com sua imagem no espelho, no momento inicial de sua dialética com o outro, então a instância do eu está desde sempre numa linha de ficção, criação própria do sujeito consigo mesmo, que "só se unirá assintoticamente ao devir do sujeito, qualquer que seja o sucesso das sínteses dialéticas pelas quais ele tenha que resolver, na condição de [eu], suas discordâncias de sua própria realidade" (LACAN, 1949LACAN, J. (1949) "O estádio do espelho como formador da função do eu, tal como nos foi revelado na experiência analítica", p.96-103., p.98).3 3 A utilização de chaves em torno do pronome eu é um artifício utilizado pelos tradutores de Lacan ao português para diferenciar o uso que ele faz dos pronomes pessoais Je e moi no original francês. Em seu segundo seminário, Lacan faz uso do pronome moi para fazer referência ao eu tal qual constituído a partir da imagem do outro; e reserva o Je - que no francês só pode ocupar o lugar de sujeito numa oração - para designar o sujeito do inconsciente. Cf. p.936 dos Escritos, ou a p.408 no Seminário 2. Ou seja, a instância do eu não irá coincidir nunca, mesmo por numerosas sínteses, com o sujeito.

O estádio do espelho se conclui justamente neste momento em que o sujeito passa da identificação com sua imago especular, e através dela para a identificação com a imago de seu semelhante, o que marca o início do transitivismo infantil, e finalmente liga o eu a "situações socialmente elaboradas" (LACAN, 1949LACAN, J. (1949) "O estádio do espelho como formador da função do eu, tal como nos foi revelado na experiência analítica", p.96-103., p.97). Essa transição do eu especular para o eu social faz o saber humano bascular na direção da mediatização pelo desejo do outro, já que o eu só se dá a conhecer mediante sua identificação com o outro, mesmo no que tange ao seu desejo. Dessa relação com outro que funda sua imagem própria nasce então o desejo do sujeito: o objeto do desejo advém por intermédio do desejo do outro,4 4 Convém justificar a utilização da expressão "desejo do outro", ao invés da consagrada fórmula "desejo do Outro". O presente artigo tem como objeto de estudo os já definidos antecedentes de Lacan; em tais antecedentes, a diferenciação entre o pequeno outro e o grande Outro, ainda que sentida como necessária em algumas passagens, não foi de fato efetuada, e quando Lacan formula a constituição do desejo a partir do desejo do outro ele significa justamente isso que a fórmula implica: que o reconhecimento do desejo do próprio sujeito só é possível pelo conhecimento que adquire de seu corpo próprio a partir da imagem alheia. Toda questão a respeito do papel do simbólico na constituição subjetiva - e portanto, do desejo - está ainda por ser elaborada. o que inaugura no narcisismo certa concorrência agressiva, conforme o outro surge - depois de permitir ao sujeito assumir um desejo (o do outro) - como adversário na conquista do objeto desejado. Essa agressividade ocasiona uma cisão na pretensa harmonia da relação especular, caracterizando-a fundamentalmente.

O tom que a partir de então costumeiramente marca a relação entre pares, com a efetiva intrusão do outro, ainda com suas bordas pouco diferenciadas do eu, não representa uma rivalidade essencial, mas sim um modo de identificação. A interação entre pares a partir dos seis meses até cerca de dois anos e meio - época em que o eu se consolida com maior diferenciação - é marcada por comportamentos nos quais se fazem necessários minimamente dois. A posição que um ocupa na relação com o outro se revela muito mais do que um jogo de dois personagens: é, antes, um jogo conflitual de duas posições contrárias para cada sujeito. Na interação entre os pequenos sujeitos, cada um serve de encarnação concreta da posição que, mesmo não expressando naquele momento, encontra-se em ambos; e, destarte, há uma identificação entre os pares para além da aparente rivalidade superficial. Nessa captura, a criança compartilha com seus pares as aventuras que com eles se passam - chorar junto ao colega pelo tombo deste, ou acusar um outro de tê-la batido quando foi ela mesma quem efetuou o ato - da mesma maneira que esse pequeno sujeito traduz sua percepção de si em terceira pessoa antes da primeira. Pode-se, a propósito, antecipar o famoso aforismo lacaniano, retirado de um verso de Rimbaud e aqui transcrito como epígrafe.

Verdadeiramente, o outro se constitui de modo próprio para o sujeito na mesma proporção que se forma seu eu, havendo entre ambos uma relação íntima de semelhança. Perdido na confusão especular, no labirinto inexequível promovido pelo encontro e identificação com a imagem do outro, torna-se necessária a introdução de um terceiro elemento, uma verdadeira alteridade. Neste momento, a alteridade é apenas teórica, pois o sujeito se vê confundido com o outro. Pois, como busca demonstrar a teoria do estádio do espelho, o eu nada mais é que o investimento erótico que fixa o sujeito numa imagem que o aliena, promovendo um desconhecimento crônico.

Este desconhecimento se funda na identificação do sujeito que lhe dá seu lugar. E se, sempre conforme Lacan, o primeiro efeito da imago no ser humano é a alienação do sujeito - ou seja, se a origem da experiência do ser encontra-se antes de tudo no outro -, essa alienação não esconde algo que poderia ser definido como verdadeira natureza, ou essência, do sujeito. Em uma palavra, somente alienando-se na imagem do outro, por meio da identificação, é que o eu pode vir a ser; e o ser do sujeito só pode ser pensado em referência à fenda instituída por sua alienação numa imagem.

O homem não se reduz, portanto, à imagem refletida que tem de si, na qual se aliena, e "somente a mentalidade antidialética de uma cultura que, por ser dominada por fins objetivantes, tende a reduzir ao ser do eu toda a atividade subjetiva" (LACAN, 1948LACAN, J. (1948) "A agressividade em psicanálise, p.104-126., p.120). Contudo, mesmo assim, enquanto eu, o sujeito nada sabe sobre seu ser, graças à paixão da alma por excelência: o narcisismo. A imago primordial do corpo próprio, apesar de sua função alienante - e determinante do mal-estar promovido pela concorrência agressiva com o outro -, é também, por outro lado, origem de uma satisfação particular, eminentemente narcísica, na medida em que é essa imago que dá ao sujeito uma miragem de integração de sua desordem orgânica original. "As primeiras escolhas identificatórias da criança, escolhas 'inocentes', não determinam outra coisa com efeito - à parte as patéticas 'fixações' da neurose - senão essa loucura pela qual o homem se crê homem" (LACAN, 1950LACAN, J. (1950) "Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia", p.127-151., p.189).

A RELAÇÃO COM O OUTRO E A AGRESSIVIDADE

De mãos dadas com a alienação que caracteriza o estádio do espelho e a constituição do eu, conforme prenunciado acima, está a agressividade. Lacan insiste, contudo, que não se reduza a dimensão da agressividade, prenhe de sentidos e possibilidades de expressão, à agressão pura e simples. Porém, de que forma a agressividade se insere na dialética do eu com o outro?

No caso do ser humano, a seu ver, a agressividade não é anterior à identificação. No decorrer da dialética eu-outro - e isso fica especialmente demonstrado no transitivismo infantil - o ciúme e a agressividade só podem surgir no sujeito, tanto em seu aspecto passivo quanto ativo, contando que haja, antes, um elo identificatório com o outro em questão. Porém, o que faz que seja a agressividade central para a relação especular? Lacan (1946LACAN, J. (1946) "Formulações sobre a causalidade psíquica", p.152-194.) assume que é a origem do desejo de morte no desmamar humano que o sujeito consegue dialetizar no complexo de intrusão, ou seja, consegue passar de sua experiência original, quando nada poderia fazer, para um papel ativo, daquele que exerce num outro o mesmo mal-estar do qual esteve sujeito no complexo de desmame.

Portanto, a agressividade se mostra como uma dada intenção de agressão liga­da à imagem de desmembramento corporal. Toda intenção agressiva acha-se ligada intimamente a fantasias de despedaçamento - como a castração; desmembramento e desagregação; devoração do próprio corpo. Em suma, elas se concentram sobre a imago do corpo despedaçado, que domina a condição de derrelição do bebê no desmame. As intenções de agressão têm em seu horizonte a desagregação, antes de tudo, pois é a maneira como a morte se torna inteligível neste momento: mais do que a erradicação do outro, o seu despedaçamento imaginário.

Essa relação entre a identificação com o outro e a assunção de um desejo que é, no fim das contas, o desejo do outro, leva Lacan a precisar com mais detalhes o que caracteriza a agressividade marcante da relação imaginária, em especial a partir da dialética hegeliana entre o senhor e o escravo, modelo primeiro da luta da consciência para advir em seu lugar. Antes de tudo, para que seja possível ao homem se reconhecer enquanto tal, ele precisa identificar-se justamente com outro cujos atributos de humanidade sejam por ele reconhecidos. Contudo, esta identificação não pode se dar de forma pacífica: ocupar, pela identificação, o lugar do outro com o qual o sujeito se reconhece significa tomar o seu lugar para garantir sua existência.

Da mesma forma, o desejo que o sujeito toma como seu neste momento, que é o desejo do outro, faz com que esse outro se torne um adversário para a concretização deste desejo, devendo ser, pois, eliminado, ou então submetido. "A satisfação do desejo humano só é possível se mediatizada pelo desejo e pelo trabalho do outro" (LACAN, 1948LACAN, J. (1948) "A agressividade em psicanálise, p.104-126., p.123). O que está em jogo neste conflito e nesta dialética de identificações é o reconhecimento do homem pelo homem, seja em que posição for - e que, apesar de tudo, nunca se completa de forma definitiva.

Isso significa, no fim das contas, que a identificação com a imagem, ainda que totalizante e reconfortante para o sujeito - pois permite a ilusão de unidade - não contém em si a garantia de que o estado de desamparo marcado pela imago do corpo despedaçado foi efetivamente superado. E, de fato, não o foi - tanto que ele continua a ser o pano de fundo sobre o qual se sustenta, por um fio, a imago formadora do eu e organizadora de sua realidade, pronta para cair, novamente, no abismo da angústia. "Dever-se-ia contemplar a assunção, pelo homem, de seu despedaçamento original, mediante o que podemos dizer que a cada instante ele constitui seu mundo através de seu suicídio" (LACAN, 1947LACAN, J. (1948) "A agressividade em psicanálise, p.104-126., p.126). Portanto, a garantia insegura que cerca a miragem sintética do sujeito o leva a uma série de identificações em que ele pretende melhor assegurar o fortalecimento de seu eu, pagando o preço de cada vez mais ficar alienado de seu ser. "A tensão libidinal, que movimenta o sujeito na busca constante de uma unidade ilusória que está sempre levando-o para longe de si mesmo, está certamente relacionada com aquela agonia de derrelição que é o destino particular e trágico do homem" (LACAN, 1951LACAN, J. (1951) "Some reflections on the ego", in Pas-tout Lacan. Paris: École Lacanienne de Psychanalyse. Disponível em: http://www.ecole-lacanienne.net/documents/1951-05-02.doc. Acesso em 9/12/ 2009.
http://www.ecole-lacanienne.net/document...
, p.7).

Que saída haveria para a relação narcísica e para a agressividade? Num prenúncio de suas elaborações sobre o Nome-do-Pai, Lacan afirma que, se o grupo familiar for "assim tornado incompleto" (LACAN, 1938LACAN, J. (1938/1985) Os complexos familiares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar./1985, p.51), ou seja, composto apenas pela mãe (imago central construída no complexo de desmame) e pela fratria (imago do outro, do duplo intrusório), o sujeito permanece num nível da realidade excessivamente imaginário, "ou, no máximo, abstrato" - e, na esteira dessa fragilidade da realidade, a relação agressiva torna-se marcante. Daí a necessidade de se introduzir um terceiro elemento, uma alteridade verdadeira, que permita ao sujeito dialetizar sua posição, saindo da especularidade na qual se encontra jogado, e possa de fato ingressar na sociedade de trocas simbólicas. Para tanto, a passagem pelo complexo de Édipo é imperativa. "Desde então a própria normalização dessa maturação depende, no homem, de uma intermediação cultural, tal como se vê, no que tange ao objeto sexual, no complexo de Édipo" (LACAN, 1949LACAN, J. (1949) "O estádio do espelho como formador da função do eu, tal como nos foi revelado na experiência analítica", p.96-103., p.102).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos últimos escritos lacanianos antecedentes a 1953, dois movimentos começam a tomar forma, irrompendo no pensamento de Lacan de uma forma cada vez mais pungente, desabrochando, no fim das contas, com o já mencionado Discurso de Roma, de 1953. Trata-se, nada mais, nada menos, da palavra de ordem do início do ensino propriamente lacaniano, o retorno a Freud, e o núcleo duro que marca esse retorno, o registro do simbólico. Ou, nas palavras de Zafiropoulos (2008ZAFIROPOULOS, M. (2008) Lacan et Lévi-Strauss: ou le retour a Freud (1951-1957). Paris: PUF.), mesmo que o caminho para fundamentar a psicanálise tenha em Freud seu alvo principal, o caminho passa, para Lacan, por Lévi-Strauss.

Tal percurso em direção ao simbólico mostra-se pela senda que Lacan traça a respeito do próprio sujeito: se em algum momento é necessário que intervenha uma lei que quebre a hegemonia imaginária que marca a constituição do eu e os primeiros anos de vida, colocando o sujeito dentro de uma estrutura de trocas simbólicas, torna-se também necessário voltar-se para esse registro e sua marcada alteridade, completamente diversa desse outro registro dominado pela imagem. Para tanto, contudo, faz-se mister uma torção epistemológica, para que o simbólico possa sobrevir enquanto registro fundamental ao se pensar a constituição do sujeito - motivo do valor do diálogo efetuado por Lacan entre a clínica psicanalítica e o estruturalismo, no início dos anos 1950 (SALES, 2003SALES, L. S. (2003) O valor epistemológico do diálogo de Jacques Lacan com o estruturalismo. Psyché, VII(11). São Paulo: Unimarco, p.39-58.).

Em uma palavra, se o projeto de uma psicologia concreta é abandonado, seus princípios orientadores de rigor e formalidade permanecem fundamentais no retorno a Freud. Se os conceitos de imagem e narcisismo passam aos bastidores da cena teórica, cedendo espaço para o simbólico e o sujeito como fundantes do campo operativo da psicanálise, eles permanecem fundamentais para compreender a construção do eu.

  • FREUD, S. (1976) Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.
  • FREUD, S. (1923) "O ego e o id", v.XIX, p.13-83.
  • FREUD, S. (1900/2001) A interpretação dos sonhos. Imago: Rio de Janeiro.
  • LACAN, J. (1951) "Some reflections on the ego", in Pas-tout Lacan. Paris: École Lacanienne de Psychanalyse. Disponível em: http://www.ecole-lacanienne.net/documents/1951-05-02.doc. Acesso em 9/12/ 2009.
    » http://www.ecole-lacanienne.net/documents/1951-05-02.doc.
  • LACAN, J. (1998) Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
  • LACAN, J. (1936) "Para-além do princípio de realidade", p.77-95.
  • LACAN, J. (1946) "Formulações sobre a causalidade psíquica", p.152-194.
  • LACAN, J. (1948) "A agressividade em psicanálise, p.104-126.
  • LACAN, J. (1949) "O estádio do espelho como formador da função do eu, tal como nos foi revelado na experiência analítica", p.96-103.
  • LACAN, J. (1950) "Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia", p.127-151.
  • LACAN, J. (1938/1985) Os complexos familiares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
  • LACAN, J (1966) "De nossos antecedentes", p.69-76.
  • LACAN, J. (1932/2000) De la psicosis paranoica en sus relaciones con la personalidad, Lacan 2000. Buenos Aires: RD Ediciones Eletrónicas (CD-ROM).
  • LACAN, J. (1953/2008) "O mito individual do neurótico ou Poesia e verdade na neurose", in O mito individual do neurótico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p.9-44.
  • LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. (1991) Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.
  • MARINI, M. (1991) Lacan: a trajetória do seu ensino. Porto Alegre: Artes Médicas.
  • OLGIVIE, B. (1991) Lacan: a formação do conceito de sujeito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
  • SALES, L. S. (2003) O valor epistemológico do diálogo de Jacques Lacan com o estruturalismo. Psyché, VII(11). São Paulo: Unimarco, p.39-58.
  • SALES, L. S. (2005) Posição do estágio do espelho na teoria lacaniana do imaginário. Revista do Departamento de Psicologia - UFF, XVII(1). Rio de Janeiro: UFF, p.113-127.
  • SALES, L. S. (2007) "Determinação versus subjetividade: apropriação e ultrapassagem do estruturalismo pela psicanálise lacaniana". Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal de São Carlos.
  • ZAFIROPOULOS, M. (2008) Lacan et Lévi-Strauss: ou le retour a Freud (1951-1957). Paris: PUF.
  • 1
    Neste ínterim, Lacan publicou alguns artigos ainda íntimos da temática da tese: O problema do estilo e as concepções psiquiátricas das formas paranoicas da experiência, de 1933; Motivos do crime paranoico: o crime das irmãs Papin, também de 1933. Somente três anos depois, seus desenvolvimentos sobre a formação do eu começam a tomar uma inércia própria, marcando enfim todo este momento antecedente aos seminários. Ironia ou não, a primeira comunicação desta contribuição original, tendo extrapolado o tempo a ele concedido no Congresso, é interrompida por Ernest Jones. Assim como a fala não foi finalizada, o artigo também não foi publicado nas atas do congresso, pois sua versão escrita não foi entregue.
  • 2
    "É a fenda que separa o homem da natureza que determina sua falta de relação com esta, e suscita seu escudo narcísico, com sua cobertura nacarada na qual é pintado o mundo do qual ele é separado para sempre, mas esta mesma estrutura é também o espetáculo no qual seu próprio meio é implantado nele, quer dizer, a sociedade de seu pequeno outro" (LACAN, 1951, p.6).
  • 3
    A utilização de chaves em torno do pronome eu é um artifício utilizado pelos tradutores de Lacan ao português para diferenciar o uso que ele faz dos pronomes pessoais Je e moi no original francês. Em seu segundo seminário, Lacan faz uso do pronome moi para fazer referência ao eu tal qual constituído a partir da imagem do outro; e reserva o Je - que no francês só pode ocupar o lugar de sujeito numa oração - para designar o sujeito do inconsciente. Cf. p.936 dos Escritos, ou a p.408 no Seminário 2.
  • 4
    Convém justificar a utilização da expressão "desejo do outro", ao invés da consagrada fórmula "desejo do Outro". O presente artigo tem como objeto de estudo os já definidos antecedentes de Lacan; em tais antecedentes, a diferenciação entre o pequeno outro e o grande Outro, ainda que sentida como necessária em algumas passagens, não foi de fato efetuada, e quando Lacan formula a constituição do desejo a partir do desejo do outro ele significa justamente isso que a fórmula implica: que o reconhecimento do desejo do próprio sujeito só é possível pelo conhecimento que adquire de seu corpo próprio a partir da imagem alheia. Toda questão a respeito do papel do simbólico na constituição subjetiva - e portanto, do desejo - está ainda por ser elaborada.
  • Errata

    Revista Ágora, v.XVIII, n.1, Jan/Jun 2015, em conteúdo publicado na plataforma SciELO.
    No artigo, O REGISTRO IMAGINÁRIO NOS ANTECEDENTES LACANIANOS, de Kaszubowski, Erikson e Aguiar, Fernando (http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982015000100085&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt), DOI - http://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982015000100007
    Onde se lê:
    Erikson Kaszubowski1, Fernando Aguiar1
    1 Universidade Federal da Fronteira Sul, Chapecó, SC, Brasil.
    Deve-se ler:
    Erikson Kaszubowski1, Fernando Aguiar2
    1 Universidade Federal da Fronteira Sul, Chapecó, SC, Brasil.
    2 Programa de Pós-graduação em Psicologia na Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    16 Set 2010
  • Aceito
    16 Nov 2010
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