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METÁFORAS EM PSICOTERAPIA: EXPRESSÃO DO CONFLITO DA RELAÇÃO ENTRE MÃE E FILHO NA PSICOSE

Resumos

O presente artigo aborda as metáforas presentes na fala de uma paciente, mãe de um adolescente psicótico, atendida no contexto de uma psicoterapia de base psicanalítica. Um dos conflitos da paciente era sua dificuldade de diferenciação com o filho. Pôde-se identificar como as metáforas foram se transformando ao longo do processo psicoterápico e como a relação entre mãe e filho recebeu os impactos dessa transformação. Essa situação contribuiu para uma nova disposição da economia psíquica da paciente, e até mesmo para um rompimento na dinâmica familiar rigidamente estabelecida.

Metáfora; psicose; psicoterapia


Metaphors in psychotherapy: expression of the conflict in the relationship between a mother and son in psychosis. The present article explores the occurrence of metaphors in the context of psychotherapeutic care of psychoanalytic orientation of the mother of a psychotic adolescent. One of the patient's main conflicts was her inability to differentiate from her son. It was identified how the metaphors expressed by this patient in the beginning of the process shifted as the treatment progressed and how the relationship between mother and son was impacted by this transformation. This process contributed to a rearranged psyche for the patient and even allowed the disruption of the family's rigidly established dynamics.

Metaphor; psychosis; psychotherapy


Pretendemos aqui compreender como a relação mãe e filho, no contexto da psicose, pôde ser elaborada pela via das metáforas enunciadas no contexto de uma psicoterapia de base psicanalítica. Para tanto, vale a pena sublinhar que a paciente era mãe de um adolescente psicótico. Foram realizadas 36 sessões. Um dos importantes elementos conflitivos evocados por essa paciente relacionava-se aos conflitos que permeavam sua relação com o filho psicótico e as modulações desta, tais como: a regulação emocional, a paralisia do pensar e as mensagens enigmáticas na relação mãe e filho. Esse trabalho baseia-se no modelo teórico de Laplanche (2007LAPLANCHE, J. (2007a) "Trois acceptions du mot "inconscient" dans le cadre de la théorie de la séduction généralisée", in . (Org). Sexual: la sexualité élargie au sens freudien, 2000-2006, Paris: PUF.a), o qual enfatiza o papel das mensagens enigmáticas enviadas pelo adulto na relação com a criança e os traços dessas mensagens na vida psíquica desta última.

Para Laplanche (op. cit.), o inconsciente é constituído a partir da tradução (ou o fracasso parcial ou total) das mensagens enviadas pelo adulto à criança, mensagens estas impregnadas pelo inconsciente do adulto. A noção de tradução é coerente com a concepção de ser humano como sujeito de linguagem e de comunicação, mas a tradução que é efetuada no interior da dinâmica relacional entre o adulto e a criança é sempre imperfeita. O fracasso parcial da tradução se refere ao inconsciente clássico, neurótico. Por outro lado, o fracasso radical dessa tradução instala algo que é implantado e que fica como um intruso no psiquismo do sujeito, e constitui o que Laplanche chamou de "inconsciente enclavé-encravado" (2007b).

Na relação adulto-criança é a mãe quem, no primeiro momento, mobiliza a função de pensar para o bebê. Laplanche (2007LAPLANCHE, J. (2007a) "Trois acceptions du mot "inconscient" dans le cadre de la théorie de la séduction généralisée", in . (Org). Sexual: la sexualité élargie au sens freudien, 2000-2006, Paris: PUF.a) destaca que ao invés de um estado autista inicial relacional entre a mãe e a criança, como apontado por Mahler (1993LAPLANCHE, J. (2007b) "Sexualité et attachement dans la métapsychologie", in LAPLANCHE, J.. (Org). Sexual, la sexualité élargie au sens freudien (2000-2006). Paris: PUF.), haveria uma abertura primária do bebê aos estímulos que lhe vêm do ambiente e, principalmente, do outro (RIBEIRO, 2005PANKOW, G. (1977) Structure familiale et psychose. Paris: Aubier Montaigne.).

A criança "pede" ajuda ao adulto diante do transbordamento da sua excitação e o adulto responde a essa demanda a partir da dimensão do seu próprio inconsciente. Assim, a emergência do que há de infantil no adulto é solicitada a partir da sua relação com a criança. Relação esta impregnada pelos significantes verbais e não verbais plenos de significações sexuais inconscientes (GERNET, 2012GAUTHIER, J. Z. (2004) A questão da metáfora, da referência e do sentido em pesquisas qualitativas: o aporte da sociopoética. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n.25, p.116-126.).

Sales (2002RICOEUR, P.(2000) A metáfora viva. São Paulo: Loyola.) resumiu essa situação da seguinte forma: o adulto responde à demanda da criança a partir do desconhecimento de sua própria divisão, ou seja, da sua clivagem interna diante de uma criança que só pode se comportar de maneira frágil e imperfeita, mas que precisa do adulto para sobreviver e entrar na cultura.

A dinâmica relacional entre o adulto e a criança é chamada por Laplanche de sedução generalizada (2007LAPLANCHE, J. (2007a) "Trois acceptions du mot "inconscient" dans le cadre de la théorie de la séduction généralisée", in . (Org). Sexual: la sexualité élargie au sens freudien, 2000-2006, Paris: PUF.a). Nessa perspectiva, todos os adultos são perversos, pois suscitam o corpo erótico infantil. A sedução originária remete-nos à situação em que o adulto propõe à criança significantes verbais e não verbais, chamados por Laplanche de significantes enigmáticos (1992LAPLANCHE, J. (1992a) Novos fundamentos para a psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.a). A sedução originária está relacionada à ideia de sedução e de enigma, como, por exemplo, a sedução inerente aos cuidados maternos, quando a mãe manipula o corpo do bebê. É, portanto, nessa sedução originária que se encontra a essência de todas as outras seduções, uma vez que ela inaugura a polaridade atividade-passividade. A teoria da sedução generalizada resgata o conceito de sedução na psicanálise, o qual permite melhor compreender o confronto entre o mundo da criança, sem linguagem, e o mundo do adulto, permeado pela linguagem e por sua sexualidade.

O período da existência do bebê, quando ele ainda não pode traduzir as mensagens enviadas pelo adulto, conduz à hipótese de que existiria no inconsciente uma lacuna que se refere ao discurso sobre si mesmo, como se o sujeito estivesse diante de algo impensável, em virtude do atraso da linguagem sobre o vivido - vivido este que não poderia ser preenchido (LAPLANCHE, 2007aLAPLANCHE, J. (2007b) "Sexualité et attachement dans la métapsychologie", in LAPLANCHE, J.. (Org). Sexual, la sexualité élargie au sens freudien (2000-2006). Paris: PUF.). A experiência da relação adulto-criança e os enigmas introduzidos nessas mensagens impõem à criança um trabalho de tradução. Nessa perspectiva, o trabalho psíquico se apresenta a ela como um recurso para lidar com as excitações provindas da sua relação com o adulto, a saber: o contato corporal, as separações, os fantasmas, enfim, todos os impasses vividos na relação com o outro.

Se os enigmas dessas mensagens geram uma relação de sedução que impõe a necessidade de traduzi-las, Bénony (2012) e Augere e Bénony (2011AUGER, F., BÉNONY, H. (2011) La théorie de la séduction généralisée et son corollaire, la théorie de la traduction. L'évolution psychiatrique, v.76, p.403-418.) destacam a incompletude dessa tradução, tendo em vista a imaturidade psíquica da criança. Isto é, o trabalho de tradução pode, ao invés de levar à diferenciação adulto-criança, paralisar esta diferenciação e se constituir em restos não traduzíveis, atrelados a uma excitação que ultrapassaria as possibilidades de pensar.

Os impasses da tradução das mensagens enigmáticas que são colocadas no centro da relação adulto-criança assumem assim um sentido de violência, não pelas mensagens em si, mas pelo fato de que o próprio adulto, ao transmitir a mensagem, impede, muitas vezes, sua tradução pela criança. Augere e Bénony (op. cit) destacam que as mensagens direcionadas à criança pelo adulto correspondem à sua própria sexualidade infantil não ligada, um legítimo produto do fantasma. Assim, no après-coup, a criança poderá construir e reconstruir, na sua vida cotidiana e mesmo em sua análise, o que ela recebeu do outro, mas que continua intraduzível. Deste modo, a tradução da significação de um enunciado é o resultado de uma intepretação e, portanto, pode variar em cada sujeito. Essa situação aponta para a complexidade das traduções que cabe a cada um e que demandará um trabalho psíquico não negligenciável.

Freud (1915FREUD, S. (1915/1987) "Pulsions et destins des pulsions", in FREUD, S. Métapsychologie. Paris: Gallimard./1987) reconheceu nosso aparelho mental como sendo um dispositivo destinado a dominar as excitações que, de outra forma, seriam sentidas como aflitivas, ou teriam um efeito patogênico. A elaboração das excitações que carregam o aparelho psíquico auxilia em seu escoamento. Assim, a questão central que altera a relação adulto-criança é o movimento inconsciente do adulto na busca de impedir o pensar na criança, ou seja, seus fantasmas, sua curiosidade (DEJOURS, 2001DEJOURS, C. (2001) Le corps, d'abord. Paris: Petite Bibliothéque Payot.).

Mas o que seria o pensar? O pensar é consequência de um trabalho psíquico impulsionado pela pulsão. A pulsão sexual promove uma desorganização, uma desestabilização econômica e, portanto, evoca uma nova organização que passa por um trabalho de elaboração, ou, melhor dizendo, por uma perlaboração da experiência da relação com o outro. Assim, podemos admitir que o pensar é efetivamente pulsional, pois é mobilizado pela pulsão. Mas a pulsão não pensa, a pulsão é exigência de pensar, ou exigência de trabalho psíquico (DEJOURS, 2004DEJOURS, C. (2004) "Le corps entre séduction et clivage", in AÏN, J. (Org). Résonances, entre corps et psyché. Ramonville Sainte Agne: Érès.). A pulsão, como exigência de trabalho, impõe ao psiquismo uma força constante que rompe com os circuitos estabelecidos de significação do sujeito.

O estudo aqui proposto apresenta uma psicoterapia que ilustra a experiência da relação de uma mulher com seu filho, um adolescente psicótico. Entre ambos haveria uma excitação transbordante que inaugura a necessidade de pensar essa experiência desorganizadora. Nesse contexto, a transferência possibilitou a reinstauração da sedução originária a partir da relação entre a psicoterapeuta e a paciente e permitiu a emergência de novos significados para outras relações, como a da paciente com seu filho, com sua mãe e com seu marido. Assim, pela via das metáforas mortas transformadas em metáforas vivas, e pela construção das metáforas vivas, abriu-se uma passagem para o pensar dessa paciente no espaço psicoterápico (CALICH et al., 2009CALICH, J.C.; LEWKOWICZ, B.A.; KEIDANN, E.C.; TONETTO, C.H.; FISCHER, M. & KLARMANN, P.R. (2009) A pessoa do analista: o novo/velho incômodo. Reflexões a partir da "Teoria da sedução generalizada", de Jean Laplanche. Revista Brasileira de Psicanálise, 43(2), p.61-67.).

A presente reflexão se direciona para as metáforas produzidas no espaço psicoterápico, como uma tentativa da paciente em traduzir, no après-coup, as mensagens recebidas ao longo de sua vida, mas também como uma tentativa de traduzir as mensagens, nem sempre conscientes, enviadas por ela a seu filho psicótico.

Antes de seguir com os desdobramentos teóricos sobre a produção da metáfora no espaço psicoterápico, é importante destacar o modo como essa mãe era solicitada por seu filho. As metáforas produzidas ao longo do processo psicoterápico evidenciaram as suas dificuldades em liberar o filho de seu próprio corpo. Pankow (1977MCDOUGALL, J.(1987) Conferências brasileiras: corpo físico, corpo psíquico, corpo sexuado. Rio de Janeiro: Xenon.) chamou atenção para a dificuldade, na psicose, de estabelecer espaços de mediação entre o corpo da mãe e da criança, de modo que a criança, nesse caso, é vivida como parte do corpo materno, ou mesmo como forma dessa reassegurar sua própria pele.

METÁFORAS E LINGUAGEM NA CLÍNICA

A fala de um paciente está repleta de metáforas, analogias, comparações, perífrases e outras modalidades de elementos do discurso. "Metáfora", em um sentido clássico, "é a transferência do nome de uma coisa para outra, ou do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou de uma espécie para outra, ou por analogia" (ARISTÓTELES, século IV a.C./ 1999ARISTÓTELES. Poética (século IV a.c./1999) Os Pensadores. São Paulo: Abril. 1999, p.63). Este conceito vigorou por vários séculos na tradição do pensamento ocidental. O debate acerca de sua definição e fatores envolvidos na sua formação/compreensão foi retomado no século passado, principalmente depois da linguistic turn. Dois autores se destacam nesse debate: Searle, a partir da perspectiva da filosofia da linguagem ordinária; e Paul Ricoeur, em uma abordagem mais hermenêutica.

Tanto Searle quanto Ricoeur subdividem as metáforas em pelos menos três tipos: mortas, vivas e de substituição. Tal distinção baseia-se, ao fim e ao cabo, na noção de uso e desgaste, lexicalização e novidade, como podemos ver nas tabelas a seguir:

Tabela 1
Classificação das metáforas, segundo Searle (1995SALES, L. S. (2002) Fantasia e teorias da sedução em Freud e em Laplanche. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 18(3), p.323-328.)

Tabela 2
Classificação das metáforas, segundo Ricoeur (2000RIBEIRO, P.C. (2005) Gênero e identificação feminina primária. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, 11(18), p.238-256.)

As metáforas mortas, na concepção de ambos os autores, apontam para o uso repetido de certas palavras que, devido ao desgaste do uso, passam a denotar literalmente o que antes era um sentido metafórico. Como exemplo, pode-se citar o termo "enfezado" que originalmente denotava alguém cheio de fezes e metaforicamente alguém com raiva. O sentido metafórico subjugou o literal, isto é, tornou-se metáfora morta. As emissões metafóricas simples, ou, na concepção de Ricoeur, as metáforas de uso, são aquelas cujo sentido metafórico ainda não foi literalizado pelo uso, mas podem ser traduzidas por uma paráfrase simples. E, por fim, as emissões metafóricas abertas, ou metáforas vivas, são aquelas inovadoras, com uma série indefinida de sentidos.

Lakoff e Johnson (1987LAKOFF, G. & JOHNSON, M. (1986) Metáforas de la vida cotidiana. Madrid: Catedra.) discordam dessa classificação. Para os autores, a metáfora morta seria a mais viva de todas, precisamente por ela se tornar "invisível" pelo uso: ela estruturaria o modo de ser, compreender e ver o mundo. Ou seja, justo por sua invisibilidade no plano discursivo, ela se infiltraria na experiência, dando-lhe a própria forma do vivido.

Na clínica, o paciente utiliza não apenas metáforas mortas, mas também metáforas vivas. E não só isso: ele vivencia metáforas ao invés de proferi-las. Trata-se da repetição presente no fenômeno transferencial, pedra angular em toda clínica baseada na psicanálise (ZANELLO, 2007SEARLE, J. (1995) Expressão e significado - estudo da teoria dos atos de fala. São Paulo: Martins Fontes.).

Segundo Laplanche e Pontalis, transferência "designa em psicanálise o processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam sobre determinados objetos no quadro de certo tipo de relação estabelecida com eles e, eminentemente, no quadro da relação analítica" (1992b, p.514). Trata-se aqui de uma repetição de protótipos infantis vivida com um sentimento de atualidade acentuada: "A transferência é classicamente reconhecida como o terreno em que se dá a problemática de um tratamento psicanalítico, pois é sua instalação, as suas modalidades, a sua interpretação e a sua resolução que caracterizam esta" (idem).

Trata-se, segundo Freud (1912/1974FREUD, S. (1912) "A dinâmica da transferência", v.XII, p.131-143.), de um método específico de conduzir-se na vida erótica, um clichê estereotípico constantemente repetido. Segundo Zanello (2007SEARLE, J. (1995) Expressão e significado - estudo da teoria dos atos de fala. São Paulo: Martins Fontes.), é a posição/atitude do analista, em sua neutralidade, isto é, sua insistência no negativo, por meio do seu silêncio, da sua recusa de resposta ao inatual no atual, em sua presença reservada, "que criará o espaço potencial para que a transferência, enquanto metáfora "morta", seja (re)metaforicizada, isto é, nomeada, trazida para o plano da nomeação, da palavra, da recordação" (FEDIDA, 1978FEDIDA, P. (1978) "Le vide de la métaphore et le temps de l'intervalle", in FEDIDA, P.. (Org.). L'absence. Paris: Éditions Gallimard., p.135).

A associação livre abre a possibilidade para o que ainda não adquiriu estatuto de sentido encontre seu espaço para existir (BIRMAN, 1991BIRMAN, J. (1991) Freud e a interpretação psicanalítica. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.). Como contrapartida da associação livre tem-se a escuta ou atenção igualmente flutuante do analista (FREUD, [1923(1922) ]/1974FREUD, S. (1974) Edição standard brasileira de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.). É este último quem faz e preserva, por meio de sua neutralidade e de sua reserva, o espaço potencial metafórico do processo psicoterapêutico. Este espaço se constitui como uma possibilidade de traduzir, no après-coup, as mensagens parcialmente traduzidas ou os restos não traduzidos.

Nessa perspectiva teórica, discutimos aqui de que modo as metáforas presentes na psicoterapia da mãe de um adolescente psicótico evidenciaram as mensagens nem sempre conscientes que ela o enviava. Pôde-se idetificar como as metáforas foram se transformando ao longo do processo psicoterápico e como a relação entre mãe e filho recebeu os impactos dessa transformação. Assim, foi pela via das metáforas enunciadas no espaço psicoterápico que essa mãe encontrou um caminho para se "pensar" separadamente de seu filho. Isto possibilitou que ela apreendesse os aspectos dessa relação que lhe escapavam. Porém, essa experiência foi vivida com muita ambivalência.

Ao se debruçar no sentido das metáforas enunciadas no contexto da clínica, o psicoterapeuta se lança na busca do sentido daquilo que lhe traz o paciente de modo metafórico e que se apoia na relação transferencial. Foi o aspecto metafórico da transferência, e seu lugar particular na relação psicoterapêutica, que promoveu um espaço de possibilidade de sentido e de perlaboração para essa paciente, capturada e paralisada pela relação com o filho psicótico.

O conceito de "perlaboração" foi introduzido por Freud (1915/1974FREUD, S. (1974) Edição standard brasileira de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.) para designar um trabalho psíquico no tratamento psicanalítico que permitiria ao sujeito perceber elementos anteriormente recalcados de sua vida psíquica. A perlaboração possibilita ao sujeito romper com suas defesas patológicas e construir um espaço para pensar. Laplanche e Pontalis (1992LAPLANCHE, J. (1992a) Novos fundamentos para a psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.b) destacam, assim, que a perlaboração é o processo pelo qual a análise integra uma interpretação e supera as resistências que ela suscita. Em outras palavras, ela é um trabalho psíquico que permite ao sujeito entrar em contato com elementos recalcados, além de se libertar do controle dos mecanismos repetitivos. A perlaboração é facilitada pelas interpretações do analista ao mostrar que, à medida que o tratamento evolui, as mesmas significações são encontradas em diferentes contextos, ou seja, metáforas mortas que precisam ser interpretadas, reavivadas e ressignificadas pelo paciente. A escuta cuidadosa da metáfora convida o psicoterapeuta a suspender sua relação instituída com o real, já constituída de muitas metáforas mortas, esquecidas, que caíram fora do campo da consciência (GAUTHIER, 2004)GAUTHIER, J. Z. (2004) A questão da metáfora, da referência e do sentido em pesquisas qualitativas: o aporte da sociopoética. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n.25, p.116-126..

A seguir apresentamos o caso clínico em questão.

ILUSTRAÇÃO CLÍNICA

Simone, uma mulher de 41 anos, procurou o atendimento psicoterápico do serviço de Psicologia da Universidade Católica de Brasília por indicação do Centro de Atenção Psicossocial para Crianças e Adolescentes (Caps) onde seu filho, diagnosticado como psicótico, era atendido. Simone se apresentou para o primeiro encontro com a psicoterapeuta descrevendo os cuidados zelosos que dispensava a Aquis, que era o mais velho de seus três filhos. Foram realizadas 36 sessões de psicoterapia de base analítica, com a frequência de uma vez por semana.

Simone relatou, já de início, a gravidez conturbada e sofrida de Aquis, tendo em vista a forte oposição de seu marido à sua gestação, pois ele já tinha dois outros filhos de um relacionamento anterior. Porém, Simone desejava imensamente esse filho e idealizou ser para ele uma mãe carinhosa e protetora. Assim, para um filho especialmente desejado, Simone buscou um nome típico da nobreza, o nome de um rei da bíblia: Aquis.

Além da relação com seu filho, outro tema mostrou-se bastante importante em sua fala e para o processo psicoterápico: a história da relação com sua mãe. Essa relação foi marcada por grandes dificuldades e por um intenso sentimento de abandono, pois sua mãe faleceu quando Simone tinha sete anos. Após esta perda prematura, Simone e seus irmãos ficaram sem o cuidado de uma pessoa da família, tendo em vista que seu pai passava a semana trabalhando e dormindo fora de casa, reunindo-se aos filhos apenas nos finais de semana. Logo, os sete irmãos cuidavam uns dos outros e, sobre essa experiência, Simone evocou uma metáfora: "nós éramos como cachorrinhos que foram abandonados pela mãe e estavam tentando se esquentar". Assim, as metáforas de corpos misturados apareceram inicialmente na psicoterapia numa referência à sua história infantil.

Na adolescência, com o novo casamento do pai, iniciaram-se os conflitos com a madrasta, que se acirraram ao longo do tempo, até que Simone foi expulsa de

casa, aos 19 anos. Sem o convívio familiar e sem amigos, conheceu Omar, um colega de trabalho, que se tornou seu maior confidente, e casou-se com ele. Porém, os primeiros anos de casamento foram permeados por problemas financeiros, humilhações e brigas entre os dois. Omar, após ser demitido da empresa onde ambos trabalhavam, forçou-a a pedir demissão. A situação de desemprego trouxe muita dificuldade para a vida conjugal. Simone descreveu esse quadro por meio de uma metáfora que aponta para sua sensação de humilhação: "passei a engolir o que ele queria", assumindo, assim, uma posição de submissão na relação conjugal. Disse ainda sobre si mesma: "... esqueci de mim como gente". E este sentimento foi metaforizado por um corpo sem lugar: "comecei a sobrar no mapa".

Após quatro anos de união, Simone engravidou de Aquis, seu primeiro filho, e tornou-se para ele uma mãe zelosa. A qualquer sinal de desconforto do bebê, ela imediatamente o pegava em seus braços e o amamentava. Aquis dormiu no quarto dos pais até os seis anos, quando Omar insistiu para que Simone o colocasse em seu próprio quarto. Nesse período Aquis foi matriculado na escola, mas o afastamento entre mãe e filho causou muito sofrimento para ambos. Simone teve ainda mais dois filhos: Caio e Carla. Com a nova configuração familiar, o comportamento violento de Aquis, que já se manifestara, agravou-se; aos nove anos, apresentou o primeiro episódio de surto psicótico.

Diante desta situação Simone buscou tratamento para o filho, que foi medicado e acompanhado por três anos no Caps. Durante este período, houve a remissão dos sintomas e Aquis pôde ficar dois anos sem fazer uso de medicação. Porém, aos 14 anos, em plena adolescência, novamente piorou, apresentando um quadro de esquizofrenia grave. Em um de seus surtos, tentou o suicídio. Os sintomas da esquizofrenia colocavam-no na posição de um bebê na relação com Simone. O pai raramente se envolvia nas consultas médicas ou no grupo de atendimento familiar no Caps. Parecia impossível adentrar na díade estabelecida entre mãe e filho, tanto para o pai quanto para a psicoterapeuta, que teve de penetrar "no buraco fundo do corpo" materno, onde Aquis era protegido.

Foi nesse contexto que ocorreu o processo psicoterápico de Simone. As sessões de psicoterapia tornaram-se os únicos momentos em que ela deixava o filho aos cuidados de outros e, apesar da angústia dessa separação, a continência do setting psicoterápico teve um papel fundamental para que movimentos de separação pudessem se concretizar.

O LUGAR DA METÁFORA NO PROCESSO PSICOTERÁPICO

O setting psicoterápico possibilitou o acolhimento das metáforas que revelaram a problemática fundamental de Simone, a saber, o movimento inconsciente de simbiose e as dificuldades de separação em relação a seu filho, que apontaram para a ameaça sentida pela morte e abandono de sua mãe, avó do adolescente. A sensação de uma unidade corporal e psíquica entre Simone e Aquis era sustentada pelos cuidados físicos que ela lhe dispensava: dava-lhe banho, preparava-o para dormir, alimentava-o e supervisionava sua medicação. Nessa relação de cuidados, o sentimento de continuidade entre mãe e filho parecia associado à experiência de contato corporal.

Pela linguagem, a clínica revela o modo de relação do sujeito com seu psiquismo, com seu corpo e com os outros. As enunciações das metáforas no espaço psicoterápico revelaram o desejo de Simone de estar junto a Aquis, mas, ao mesmo tempo, também o peso dessa proximidade, como pode ser identificado na fala a seguir: "Aquis é como uma tonelada que me puxa para trás!". Nas sessões iniciais evidenciou-se a dificuldade de separar-se de seu filho, e sobre isso Simone relatou: "Eu dou banho nele, limpo ele quando ele vai no banheiro, passo pomada na assadura dele, assim entre as pernas... então só esse processo de eu conseguir me arrancar de lá pra chegar aqui (referindo-se à psicoterapia) já é muito difícil e é importante pra mim".

Pela via das interpretações das produções metafóricas, Simone permitiu-se entrar em contato com o peso de carregar dois corpos "grudados", que para se separar precisariam ser arrancados, descolados. As dificuldades de separar-se do filho revelavam-se ainda em outras falas: "foi quando ele tinha nove anos que a gente adoeceu". Simone não deixou que Aquis adoecesse sozinho.

As vidas de Simone e Aquis estavam próximas e misturadas. Durante os surtos, Aquis dizia que queria voltar para a barriga de Simone: "Ele é um bebê, que fica procurando minha barriga. Ele é louco com minha barriga, ele passa a mão e fala que já morou lá dentro. Ele é um bebê de 15 anos e sempre vai ser." Ainda que Simone, no processo psicoterápico, tivesse entrado em contato com o desejo de se distanciar desse filho, esse desejo era marcadamente ambivalente.

Conteúdos do seu inconsciente não traduzidos, ou traduzidos parcialmente, infiltraram-se na psicoterapia pela via das metáforas. As metáforas utilizadas por Simone no início do processo psicoterápico apresentavam um modo de relação fusional com Aquis, além de demonstrarem sua angústia mortífera de se separar do filho. Desse modo, a diferenciação progressiva parecia barrada por esta simbiose (MCDOUGALL, 1987MAHLER, M. S. (1993) O nascimento psicológico da criança: simbiose e individuação. Porto Alegre: Artes Médicas.). Já na quinta sessão, referindo-se a Aquis, Simone disse: "Eu não tenho mais o que fazer pra suprir a solidão dele, ele quer me controlar pra fazer o que ele quer". Quando questionada sobre como seria a solidão do seu filho, visto que ele tinha irmãos e pai, ela respondeu: "Talvez eu seja muito sozinha, fui abandonada desde criança, minha solidão é um buraco negro sem fundo". A fala de Simone ilustra a ausência de limite entre sua solidão e a solidão de Aquis. Essa simbiose retrata uma vida psíquica para dois, tendo em vista a parcialidade da diferenciação entre mãe e filho (MCDOUGALL, 1987MAHLER, M. S. (1993) O nascimento psicológico da criança: simbiose e individuação. Porto Alegre: Artes Médicas.; AMPARO et al,, 2010AMPARO, D. M.; BRASIL, K. C. T. R.; WOLFF, L. (2010) Adolescência e psicose: traumatismo e violência do pubertário. Interamerican Journal of Psychology, v.44, p.411-418.).

Nesta mesma sessão, Simone disse: "Sinto-me como a roda do parquinho que travou ou como um baú trancado dentro de outro e dentro de outro e dentro de outro, que vai diminuindo trancado (...) parece com uma roda que tinha no parquinho perto da minha casa, onde as crianças brincavam muito, mas aí a roda travou e não gira mais, fica lá, parada, enferrujando... mas eu quero voltar a rodar, preciso, pra minha saúde e dos meninos também."

A roda serve de apoio para as crianças brincarem. Nessa metáfora, Simone resgatou o desejo de voltar a "rodar", de sair da posição de estar parada e enferrujada, impossibilitada de pensar e esse desejo foi se legitimando na relação transferencial, a qual sustentou na psicoterapia um espaço para que Simone pudesse pensar sua relação com os outros - particularmente, a relação com Aquis.

Para Simone, a discrepância em manter Aquis como um bebê de 15 anos parecia ser também o único modo de protegê-lo de todos os males do mundo: "Se eu pudesse, eu cavava um buraco no chão e colocava o Aquis dentro pra proteger ele". A metáfora de um buraco evoca a dimensão do meio intrauterino, que, no fantasma materno, proporciona um espaço onde Aquis seria protegido das ameaças externas por uma unidade corporal e psíquica, mas, nessa união simbiótica, também seria impedido de pensar e traduzir as mensagens maternas.

Na oitava sessão, ao repetir várias vezes a palavra "a gente" para se referir a ela e a Aquis, a psicoterapeuta apontou que o termo parecia denotar uma unidade. Simone então respondeu: "É, a gente não se divide, se eu não viesse pra cá, tava com ele em cima de mim... ando com ele na rua e não tenho vergonha, é meu, amo, defendo com unhas e dentes". A psicoterapeuta, então, questionou se Simone estava dispensando os cuidados básicos necessários a um adolescente que adoeceu ou se o colocava no seu próprio buraco negro, tapando a sua desproteção. Nesta intervenção, a metáfora do buraco negro, utilizada por ela, foi retomada e reinterpretada pela psicoterapeuta, adquirindo, assim, um caráter inovador, tornando-se metáfora viva. Logo após a interferência da psicoterapeuta, Simone reagiu chorando e disse: "tenho um vazio imenso, muito grande, com muita falta... só consigo ver a minha mãe morta, no caixão... meus irmãos lembram umas coisas dela e eu vou tentando montar um quebra-cabeça, mas pra mim mesma é esse oco, esse vazio, não vejo ela viva, não vejo o rosto dela, não vejo ela como pessoa... é como se fosse uma pessoa de costas pra você, aí não dá pra você ver, sabe? Parece uma cartolina branca bem grande na minha cabeça e eu não consigo achar em que canto ela tá."

A sequência de metáforas ilustrada acima criou no espaço psicoterápico um lugar de produção de significados, de modo que houve uma reinstauração do enigma, o qual, pela via da transferência, encontrou um caminho para nova significação.

Simone pôde, por meio das metáforas, explicitar sua hostilidade na relação com Aquis: "Eu sou uma banana com meus filhos...". Ser uma banana pode ser entendido como uma metáfora morta, mas, ao ser questionada pela terapeuta sobre que tipo de banana seria ela, Simone permitiu-se entrar em contato com a hostilidade em relação ao modo como se colocava na relação com os filhos: "amassada e massacrada". Portanto, a interpretação da produção metafórica permitiu que essa mulher se reencontrasse com seus traços de hostilidade, produto de uma angústia de separação desejada e temida ao mesmo tempo.

Considera-se que, ao entrar em contato com a hostilidade presente na relação com seu filho, apesar de não estar sempre consciente, Simone começou a produzir metáforas que enunciavam esse cenário conflituoso: "Aquis é uma bola de fogo que me queima". Essa metáfora viva, nomeadora do sofrimento psíquico, é carregada de imagens e conteúdos que revelavam as ambivalências de Simone em relação aos seus objetos de angústia.

Uma grande mudança na relação de Simone com Aquis pôde então começar a ser dita: "ele vai ter que desgarrar". Assim, o espaço psicoterápico, pela relação transferencial, possibilitou a criação de um espaço psíquico tradutivo: como um meio de domínio da excitação pulsional pela atividade mental de tradução da ambivalência relacional dessa mãe com seu filho.

Aquis reagiu ao movimento de distanciamento de sua mãe e passou a criar muitas dificuldades para impedi-la de comparecer aos atendimentos psicoterápicos. Além disso, manifestou importante hostilidade dirigida à psicoterapeuta. Sobre essa hostilidade Simone relatou: "Aquis disse que se você ligasse lá em casa ele iria te xingar de todas as formas". A psicoterapeuta estava sendo o instrumento de separação entre Aquis e a mãe; portanto, ele manifestou sua oposição diante da ameaça da quebra desse vínculo.

A dificuldade de Aquis manifestou-se na recusa de ficar em casa sem a mãe e, assim, Simone compareceu acompanhada por ele na vigésima quinta sessão. Simone justificou a presença de Aquis na sessão dizendo não poder deixá-lo com a vizinha, pois ele estava "num surto psicótico". A psicoterapeuta, dirigindo-se a Aquis, perguntou-lhe se estava bem, e ele respondeu que não. Assim, Simone e Aquis entraram juntos na sala de atendimento e se acomodaram. A psicoterapeuta deu-lhe alguns papéis, revistas e canetas. Ele fez uns rabiscos rápidos e entregou à psicoterapeuta. A mãe solicitou-lhe que desenhasse mais lentamente. Ele então escreveu: "Morte. Sangue." e entregou à terapeuta. Ao ser questionado sobre o porquê de estar escrevendo essas palavras, relatou que estava se sentindo ameaçado: uma voz lhe dizia que iria morrer, bem como sua mãe, pai e irmãos. Escreveu em outro papel: "Sangue, muito sangue. Está vendo ele escorrer na minha perna?". Que sentido simbólico teriam aquelas palavras? Seriam seus desejos hostis em relação à psicoterapeuta? Significariam também seu descontentamento com aquele "corte" efetuado pela psicoterapeuta entre ele e Simone?

Aquis estava ocupando todo o espaço psicoterapêutico de sua mãe, assim como se grudava em seu corpo e na sua vida psíquica. A psicoterapeuta, por sua vez, interveio e pediu para que Aquis desenhasse alguma coisa e ficasse à vontade, pois ela precisava conversar com sua mãe, fazendo, assim, um corte naquele movimento invasivo. A intervenção funcionou como um limite organizador das relações que se apresentavam naquela sala e foi possível o desenrolar da sessão psicoterápica sem as interrupções de Aquis. Nessa sessão, a díade se dava entre Simone e sua psicoterapeuta, sendo Aquis o terceiro excluído.

Ao final da sessão, a psicoterapeuta perguntou a Aquis se seria possível que sua mãe viesse sozinha da próxima vez. Ele disse que não, pois era muito tenso ficar sozinho e que não poderia ficar sem sua mãe. Aquis também se queixou de que não gostava que falassem dele, afirmando que era isso que sua mãe fazia naquele espaço. A psicoterapeuta ressaltou que ela não falava sobre ele, mas sobre ela. Nesse momento, Simone advertiu de modo sereno, mas firme: "Filho, eu sou sua mãe e cuido de você e B. (psicoterapeuta) cuida de mim!".

O trabalho psíquico mobilizado por essa sessão permitiu a perlaboração do conflito de separação entre Simone e Aquis, uma separação vivida como mortífera e sangrenta. Do ponto de vista teórico-clínico, diversas opções interpretativas poderiam ser desenvolvidas, mas certamente vale a pena destacar que algo da transferência pôde ser explicitado, pois Simone significou o lugar da psicoterapeuta no seu cenário psíquico, de modo que a separação entre ela e seu filho, vivida como violenta e destrutiva, foi enfrentada e amenizada a partir da sustentação produzida pela relação transferencial.

Simone compareceu à sessão seguinte sem Aquis. Mas a sessão ainda estava muito impregnada da dificuldade de separação entre mãe e filho, que se revelou na seguinte metáfora: "eu sou o remédio de Aquis", pois, segundo Simone, ele se acalmava muito com sua presença.

A partir da vigésima oitava sessão, Simone começou a falar mais de si mesma e de sua relação amorosa com o marido. Ela estava criando um espaço para o filho fora do seu corpo e da sua vida psíquica. Começou então a permitir a reinserção de Aquis no espaço escolar. O distanciamento do pai de Aquis em relação ao seu adoecimento e ao seu tratamento também estava se modificando: o pai começou a cuidar mais do filho e a frequentar as reuniões das famílias dos usuários, no Caps.

A evidência do maior comprometimento do pai com o tratamento de Aquis parecia deixar Simone mais aliviada e, assim, ela ganhava mais espaço para si mesma. Essa conquista apareceu na sessão em que expôs haver conseguido criar uma oportunidade de viajar com sua cunhada. Ao comunicar ao marido sua decisão, Simone disse: "ele deu um pulo para trás". Esta metáfora morta, que denota surpresa em seu sentido comum, aponta, no sentido novo/inovador, para uma redistribuição de espaços: aqui, a paciente, ao invés de ficar "sobrando no mapa", "reduzida a zero", como metaforizada no início da psicoterapia, começou a ocupar sua vida e, para isso, era necessário que o próprio espaço na relação com o marido fosse reorganizado, que ele "pulasse para trás", que houvesse espaço para ela também.

A trigésima sexta sessão, a última realizada com a paciente, que terminou sua fala dizendo: "Não vou me amolecer de novo. Preciso ficar firme assim... Eu não vou me amolecer".

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O conflito de união e da separação abordada na psicoterapia permitiu a Simone entrar em contato com sua própria história de união e de separação com seus irmãos e da separação da mãe, após sua morte. Foi preciso, como na sua história infantil, que ela e o filho se "misturassem" para se protegerem das ameaças de separação vividas como mortíferas. Tanto assim que, na relação com Aquis, ela tentou ocupar o lugar da mãe onipresente e cuidadosa que sempre lhe faltou. O trabalho de perlaboração permitiu que Simone ultrapassasse a compulsão à repetição que parecia sustentar, de modo inconsciente, o modo de relação com o filho. Inicialmente, grande parte das sessões de Simone eram preenchidas com falas sobre Aquis, mas algo foi se configurando no espaço físico e temporal e possibilitou o surgimento de um espaço psíquico para que Simone pudesse se pensar separada do filho. Nas sessões que se seguiram, começou a falar mais de si mesma. Contudo, essa situação não era confortável para Aquis, que identificou na psicoterapia um espaço de ameaça à díade mãe e filho. Na presença da psicoterapeuta esse cenário foi evidenciado quando Aquis compareceu à sessão de psicoterapia da mãe. Apesar disso, outra díade se constituía, a saber, entre Simone e sua psicoterapeuta. Assim, com a ajuda da psicoterapeuta, foi possível que Simone afastasse Aquis do seu espaço psicoterápico e algumas mudanças ocorreram após a sessão em que ele esteve presente. Nessa sessão, o corte entre Aquis e Simone, determinado pela psicoterapeuta, formulou uma separação vivida de modo menos ameaçador e mortífero. Para que isso pudesse acontecer, a psicoterapeuta teve que receber o corpo sangrando de Aquis, retratado no desenho que ele a ofereceu.

O trabalho psíquico provocado pelas interpretações da psicoterapeuta, a partir das metáforas, autorizou a paciente a romper com o circuito de repetição no qual se sentia presa, como uma roda enferrujada. Calich; Lewkowicz; Keidann; Tonetto, Fischer & Klarmann (2009)BIRMAN, J. (1991) Freud e a interpretação psicanalítica. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. denominam de transferência em "oco" quando o analista revitaliza as mensagens não traduzidas em seu próprio psiquismo, de modo que ele precisará tolerar a angústia de seus próprios enigmas e criar, pela via da transferência, um espaço compartilhado de tradução, indo além dos conteúdos já conhecidos, dando origem a um novo movimento de tradução.

No caso clínico apresentado, foi o aspecto metafórico da transferência e seu lugar particular na relação psicoterapêutica que promoveram um espaço de possibilidade de sentido e de perlaboração. Com efeito, o uso de metáforas no processo psicoterápico contribuiu para as transformações psíquicas de Simone, transformações essas que a lançaram no jogo psíquico inconsciente, no qual a posição de devoção e simbiose com seu filho psicótico puderam conviver com a expressão da sua hostilidade em relação a uma separação ambivalentemente desejada. Assim, as modificações das produções metafóricas evidenciaram uma relação simbiótica que foi dando lugar à separação que, mesmo vivida como trágica, pôde ser sustentada pela transferência.

Vale a pena destacar que, durante o processo psicoterápico, foi possível identificar as modificações das metáforas produzidas por Simone, mas também as mudanças que puderam ser operadas na vida de sua família. Assim, Aquis, em plena adolescência, começou a reivindicar o fato de poder ir comprar pão sozinho em uma padaria perto de sua casa, tal qual seu irmão menor fazia. Essa posição de autonomia expressou um desejo de individuação que a mãe começava a permitir que se manifestasse. Omar, pai de Aquis, mostrou interesse em participar das reuniões do Caps para as famílias dos adolescentes atendidos e sua presença ali teve uma importância singular: a psicose do filho desencadeava em Omar momentos de revolta, alternados com uma posição de aparente indiferença e apatia. Além disso, Simone passou a expressar um prazer sem culpa em se distanciar do filho, o qual passou a frequentar a escola sem ela: "Ele ficar lá, pelo menos uma manhã inteira, me faz muito bem. É bom porque eu encaminho alguma coisa lá em casa e dou carinho pros outros. Ficar só vivendo pra ele não foi bom pra mim, nem pros pequenos, nem pra ele. Ele vai ter que desgarrar."

Portanto, foi a partir do processo psicoterápico e pela via das metáforas que a paciente começou a produzir um pensar que significasse a relação com seu filho, o lugar do seu marido e dos outros filhos na sua vida psíquica, bem como a experiência relacional com sua própria mãe.

A psicoterapia de um dos pais, cujo filho sofreu uma crise psicótica ainda na infância, revela conteúdos sobre a dinâmica psíquica inconsciente da relação entre este filho e a problemática de cada um destes pais. É preciso considerar que o acompanhamento psicoterápico nesses casos é de longa duração e que os cuidados devem ir além da psicoterapia, abrangendo um enquadre escolar ou educativo que possa ter efeitos positivos sobre o adolescente e sua família. Além disso, é importante ressaltar as limitações do trabalho psicoterápico com pacientes psicóticos e suas famílias e o modo como, de maneira contratransferencial, lidaremos com as ambivalências e os insucessos desses sujeitos na busca por sua saúde mental. O que se destaca é que a psicoterapia pode, de fato, contribuir para uma nova disposição da economia psíquica, e mesmo para um rompimento na dinâmica pessoal e familiar rigidamente estabelecida.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    16 Abr 2012
  • Aceito
    16 Jul 2012
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