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Psicanálise e arte: uma articulação a partir da não relação em Louise Bourgeois: o retorno do desejo proibido

resumo:

Indicando que a articulação entre psicanálise e arte pode ser propiciadora tanto de avanços quanto de desvios significativos na orientação originalmente impressa por Freud para a práxis psicanalítica e para o campo da crítica de arte, o presente texto tem como proposta empreender uma reflexão que ofereça alguns balizamentos que possam auxiliar aqueles que tomam para si a tarefa de produzir articulações entre estes dois modos de tratar o real pelo simbólico. Nosso objetivo é situar a importância de se trabalhar a partir da intersecção, do entrecorte entre estes dois campos.

Palavras-chave:
Psicanálise; arte; não relação; Louise Bourgeois.

abstract:

Psychoanalysis and art: an observation concerning the non-relation in Louise Bourgeois: The return of forbidden desire. We show that the links between psychoanalysis and art can offer both advances and significant deviations in the direction originally proposed by Freud for the psychoanalytic praxis and for the field of art criticism. This text proposed to undertake a reflection that offers a few observations that can help those who take on the task of producing articulations between these two ways of dealing with the real through the symbolic. Through this discussion, our goal is to situate the importance of working from the intersection between these two fields.

Keywords:
Psychoanalysis; art; non-relationship; Louise Bourgeois.

"a maioria dos problemas de criação e apreciação artísticas esperam novos estudos que lançarão a luz do conhecimento analítico sobre eles, designando-lhes um lugar na complexa estrutura apresentada pela compensação dos desejos humanos."(FREUD, 1913FREUD, S. (1913/1976) "O interesse científico da psicanálise" in: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.13, p.195-226., p.223)

Introdução

Freud foi o primeiro a se interessar em tecer articulações entre psicanálise e arte, se arriscando nesta ousada empreitada. Servindo-se da arte como aliada, dela se valeu de diferentes modos ao longo de suas construções teóricas. Este caminho, por vezes tortuoso, foi abraçado por outros analistas que, seguindo seus passos, produziram avanços e também desvios significativos na orientação originalmente impressa para a clínica psicanalítica. Os extravios advindos das pesquisas psicanalíticas em torno da arte e da criação provocaram distorções que desembocaram não apenas na redução da dimensão subversiva da psicanálise em favor da confecção de uma psicologia da obra e do artista - as ditas psicobiografias - mas, sobretudo, desvios importantes na direção própria à sua práxis.

Tendo em vista os riscos aos quais ficamos expostos em decorrência da força de captura e fascinação provocadas pelas imagens, nossa proposta é empreender uma reflexão que nos forneça alguns balizamentos que possam auxiliar aqueles que tomam para si a tarefa de produzir articulações entre psicanálise e arte. Com esta discussão, nosso objetivo é situar a importância de se trabalhar a partir da interseção, do entrecorte entre estes dois campos. Dessa forma, propomos primeiramente discutir as aproximações entre psicanálise e arte a partir das teorizações de Freud e de Lacan indicando seus caminhos e descaminhos para, em seguida, discutir a aproximação entre arte e psicanálise empreendida pela curadoria de Philip Larratt-Smith na exposição de Louise Bourgeois intitulada O desejo proibido.

Entendemos que, para sustentar a especificidade do campo psicanalítico, é imprescindível conceber a interseção não como um ponto que estabelece a junção ou continuidade entre dois conjuntos distintos, mas como eixo que constitui o intervalo entre eles a partir do qual, então, se podem construir articulações. Em contrapartida, quando se utiliza o conectivo e a serviço do suposto bom encontro entre estes campos diversos - tal como entendemos ocorrer na curadoria de Philip Larratt-Smith - o e será sempre uma ficção daquele que cria o véu que elide e disfarça a não relação. Este fenômeno é decorrente da força de captura das imagens, propiciadora dos engodos e armadilhas que o imaginário tão prontamente favorece, sendo, por esta razão, ainda mais necessário indicar e fazer valer a hiância entre eles.

Psicanálise e arte: a interseção como corte que engendra articulações

Para iniciar nossa discussão, faremos algumas marcações que delimitem de onde enunciamos nosso discurso. Em primeiro lugar gostaríamos de sublinhar que, quando tecemos articulações entre psicanálise e arte, entendemos que o uso do conectivo e, por si só, já indica que estamos lidando com campos disjuntos (VIDAL, 2003VIDAL, E. (7/9/2003) "Em torno do e da questão" in: Aletria texto apresentado no Colóquio Lipsi: Literatura e Psicanálise: o E da questão. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br. Acesso em: 18/01/2013.
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). Portanto, se nos propomos trabalhar a partir destes dois modos distintos de tratar o real pelo simbólico, é precisamente por haver descontinuidade entre eles.

Ao longo de nossa pesquisa em torno do tema sempre partimos desta hiância, da não relação entre campos diversos. O fato de haver questões que possam se referir tanto a um quanto a outro, a existência de pontos comuns não estabelece qualquer continuidade entre eles; isto porque, em cada um, elas serão abordadas a partir de ângulos diferentes. O e, neste caso, se situa do lado da separação e do corte e não da conjunção ou do encontro. Trata-se dos efeitos da tyquê, do encontro faltoso a partir do qual o real insiste.

Lembramos que trabalhar a articulação entre psicanálise e arte a partir da perspectiva do encontro faltoso é, antes de qualquer coisa, sustentar a orientação ética da psicanálise. Esta, ao invés de tomar como norte o campo dos ideais e da boa forma, tem como bússola o pulsional (nos termos de Freud), ou o real, o impossível (em Lacan). Deste modo, ao invés de ceder aos apelos e engodos favorecidos pela dimensão especular, tão pungentes no plano escópico, trata-se de fazer valer a tyquê precisamente no lugar onde o brilho das imagens mais nos ludibria.

A partir da direção apontada pela lacuna existente entre arte e psicanálise, é importante também destacar que não há na obra de Freud ou no ensino de Lacan algo que possa ser aproximado ou entendido como uma "teoria da arte". Ambos se interessam muito pelo tema e se servem da arte, numerosas vezes, como recurso para pensar questões que se situam no coração da práxis psicanalítica e que se referem: aos paradoxos das satisfações humanas; à repetição e criação do novo; ao objeto em jogo no fascínio e na angústia; à catarse e purgação dos afetos; à estrutura e função da fantasia; aos problemas postos pela estética, ou seja, pela economia do prazer e da dor; à edificação do imaginário e do corpo próprio, entre outros tantos assuntos a serem estudados.

Do esforço para trabalhar as intrigantes questões postas pela arte e para construir teorizações que forneçam orientação para sua práxis, contudo, é possível também recolher indicações preciosas para outros campos. Ou seja, muitos, além dos psicanalistas - sejam eles críticos, artistas, curadores, historiadores da arte, e outros -, que se dedicam a trabalhar, discutir e pensar os problemas que a arte coloca, poderão se servir de suas respectivas reflexões. Este é o caso, por exemplo, da extensa incursão na história da arte que acompanha a reflexão acerca do obscuro conceito de sublimação, apresentada por Lacan no seminário A ética da psicanálise (1959-60/1997). Lado a lado com aquilo que ele extrai do longo caminho que faz em torno dos problemas postos pela criação - esforço que visa a clínica psicanalítica -, Lacan afirma de modo explícito:

"Toda arte se caracteriza por um certo modo de organização em torno do vazio. Não creio que seja uma fórmula vã, malgrado sua generalidade, para orientar aqueles que se interessam pela elucidação dos problemas da arte, e penso dispor de meios para ilustrá-lo de maneira múltipla e muito sensível." (LACAN, 1959LACAN, J. (1959-60/1997). Seminário livro VII: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.-60/1997, p.162)

Em sua concepção, contrapondo-se às demais formas de sublimação em seus infinitos modos de ordenar os elementos do discurso, a arte se distinguiria por promover construções que guardariam, como traço comum, preservar e indicar o vazio que as sustenta. Em outras palavras, a criação artística se diferencia por estabelecer e fazer valer a ficção em sua articulação com o real. Como decorrência, no plano da coletividade, a arte seria o único modo de salvar a realidade da Coisa, uma vez que afirma o objeto que a apresenta como artifício. Partindo desta ideia, Lacan traça um eixo muito interessante para se pensar boa parte da produção dos artistas, nos permitindo localizar uma linha que pode ser traçada das cavernas de Lascaux até a arte moderna - recorte ao qual nos dedicamos em trabalhos anteriores (FALBO, 2003FALBO, G. (2003). "Para que serve? Quanto vale? Reflexões da psicanálise sobre a crise da arte". (Doutorado) Programa de Teoria Psicanalítica, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro.).

É importante marcar, no entanto, que a despeito do valor inquestionável das ideias que ele ali apresenta, seria ingênuo enunciá-las em uma fórmula universal: "toda a arte". Na produção artística contemporânea, por exemplo, é fácil situar trabalhos que fogem a esta regra. As performances cirúrgicas da artista francesa Orlan (FALBO & FREIRE, 2009FALBO, G.; & FREIRE, A. B. (2009) "O corpo como objeto: considerações sobre o conceito de sublimação através da Arte Carnal de Orlan", Alethéia, n. 29, janeiro-junho, p.109-203Universidade Luterana do Brasil.); os autorretratos (selfs), confeccionados com o próprio sangue do artista britânico Marc Quinn (FALBO, 2012FALBO, G. (2012) Sublimação, arte e corpo. Sublimação, o corpo que cai, Latusa, v.1, n.1.Rio de Janeiro: Escola Brasileira de Psicanálise Seção Rio, n. 17, outubro.); ou a orelha implantada no antebraço pelo artista australiano Stelarc são peças que indicam outros caminhos. Muitos destes trabalhos seguem mais pela via do suplemento - daquilo que se acrescenta (MILLER, 2004MILLER, J. (1999/2004). "Biologia lacaniana e acontecimentos de corpo", in: Opção Lacaniana São Paulo: Edições Eólia, p.7-77.); ou do enodamento - a arte com função de Sinthoma que sustenta o sujeito, tal como formulado por Lacan acerca de James Joyce (LACAN, 1975LACAN, J. (1975-77/2007O seminário livro XXIII: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor .-76/2007) -, do que pelo viés da confecção do vazio. A arte interessa e ensina o psicanalista justamente por não se conformar a nenhuma regra totalizadora, indicando sem cessar a falha no saber que em torno dela se constrói. Como veremos, o deslize cometido pelo psicanalista é retificado, mais tarde, quando Lacan retorna ao tema em Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964).

Ainda que de modo tangencial Lacan ofereça indicações valiosas para se pensar a arte e seus problemas, é preciso ter sempre presente que ele se dirige primeiramente aos psicanalistas e não aos artistas, à arte ou à suas instituições. Neste momento de seu ensino (1959-60), por exemplo, ele se serve da arte como instrumento para ajudá-lo a distinguir o objeto estruturado a partir da imagem do semelhante - objeto com o qual lidamos nas relações narcísicas - do objeto em jogo na sublimação: das Ding entendido como o vazio que se situa no âmago da economia libidinal. Seu esforço aqui é sustentar e reestabelecer o sentido da práxis psicanalítica - o real - em face aos desvios promovidos pelos analistas a partir da apresentação da tópica do imaginário por Freud, em 1912, com a teorização acerca do narcisismo.

Mas por que o psicanalista se detém, neste momento, sobre a criação artística? Porque, ainda que ao se elevar um objeto qualquer à dignidade da Coisa não seja possível prescindir de suas coberturas imaginárias, o caso especial da sublimação na arte possibilita entrever e situar o objeto não predicável. Destacar o espaço vazio no interior da estrutura - o não qualificável que emerge primeiramente como hostil e inaceitável - é fundamental, pois assim se localiza o ponto que permite a abertura para se acolher a diferença e a singularidade. E sem a extração da Coisa, desta porção do complexo do próximo alheia à predicação, a realidade não se estrutura de modo estável. Ao longo de seu ensino, as questões postas pela extração do objeto serão recorrentemente retomadas e outra vez discutidas.

Implicado na transmissão da psicanálise, por meio de suas reflexões apresentadas no Seminário VII (1959-60), o fundamental para Lacan não é propriamente desvendar os enigmas da arte; seu foco é discernir outra face da experiência ética, diversa dos mandamentos e imperativos que concernem à consciência moral. Neste contexto, portanto, a discussão em torno da finalidade da arte se coloca como recurso que o auxilia na transmissão do que vem a ser a ética do desejo, preocupação principal para a práxis psicanalítica.

Alguns anos depois, em Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964/1990), ao retomar as discussões clínicas através da arte, Lacan será mais cuidadoso na formulação de suas proposições do que fora, como vimos, no seminário sobre a ética (1959-60). Discutindo o problema posto pelo olhar por meio de referências à pintura, ele relativiza suas considerações, marcando que nenhuma fórmula jamais nos permitirá unificar as inúmeras visadas, os múltiplos ardis e truques infinitamente diversos que compõem o campo das artes (LACAN, 1964LACAN, J. (1964/1985). O seminário livro XI: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor ./1990, p.107). Tal afirmação nos permite inferir que neste modo de tratar o real pelo simbólico está em jogo um saber-fazer marcado - de modo análogo ao da psicanálise - pela lógica do não-todo, manifesto em sua pluralidade sempre pulsante.

Crítica de arte e psicanálise

Se a partir da disjunção indicada pelo conectivo e procede interrogar de que modo o psicanalista se serve da arte, em contrapartida é também legítimo discutir de que maneira o campo das artes se apropria das elaborações teóricas construídas a partir da práxis psicanalítica. Dado que o saber psicanalítico pode despertar algum interesse por parte dos que enveredam no árduo trabalho que a crítica da arte enfrenta nos dias de hoje - colocando questões, trazendo reflexões, ou até mesmo oferecendo alguns pontos de balizamento - se não considerarmos o corte entre estes dois campos, podemos ser capturados por outro engano: a ilusão de completude e todo-saber na figura do "psicanalista-crítico de arte".

Frente a esta suposição e à expectativa por ela alimentada, é provável que os profissionais do campo das artes possam ficar desapontados com os textos ou palestras proferidas por muitos psicanalistas, e que suas falas em torno da arte e de seus objetos possam soar equivocadas, imprecisas ou até mesmo com erros imperdoáveis. Em contrapartida, para a audiência de psicanalistas, as imprecisões ou equívocos em relação à arte, mesmo que produzam algum ruído, provavelmente não os ensurdecerá para o que da clínica ali se transmite e se decanta. Na visada da psicanálise de orientação lacaniana, o que está em questão não é o saber ou a erudição - se o analista entende ou não entende de arte, se está por dentro ou por fora do trabalho deste ou daquele artista - mas os avanços que se consegue fazer em relação às questões cruciais para a práxis da psicanálise.

Com relação à fantasia que sustenta a imagem do psicanalista "sabido" é importante ainda marcar que por mais versado que seja no tema, do lugar do analista, ele pouco ou nada terá a acrescentar ao trabalho da crítica. Se levarmos em consideração a teoria dos discursos - tal como apresentada por Lacan em O avesso da psicanálise (1969LACAN, J. (1969-70/1992) O seminário livro XVII: O avesso da psicanáliseRio de Janeiro: Jorge Zahar, Editor.-70/1992) - como decorrência de sua posição na estrutura discursiva, do lugar do psicanalista, do semblante de objeto, não há como se fazer crítica de arte. Isto porque, ao avaliar uma obra, aquele que tece considerações se desloca necessariamente para a posição de analisante; enquanto que a obra que o afeta estará situada no lugar do analista - objeto causa de desejo. De onde se conclui que, para além da unidade projetada pelo brilho agalmático que recobre o analista cognoscente ou expert em artes, jaz o sujeito dividido frente ao objeto que lhe causa, fascina ou angustia. O que decerto não implica, como já dissemos, que o campo das artes, seus atores e instituições possam se servir e fazer usos muito interessantes da psicanálise.

Poder-se-ia argumentar, ainda na tentativa de salvar a figura imaginária e totalizadora do "psicanalista-crítico de arte", que Lacan caminha por esta via quando discorre sobre a arte. Quanto aos equívocos que possam porventura surgir a partir de suas incursões através da arte, é o próprio Lacan quem esclarece sua posição: "indicar referências como essas, não é de modo algum entrar no jogo histórico, movente, da crítica" (LACAN, 1964LACAN, J. (1964/1985). O seminário livro XI: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor ./1990, p.107). De onde podemos concluir que quando o autor se vale da análise de certas obras ou dos processos em jogo na criação artística, ele não o faz na função do crítico.

De modo sucinto podemos dizer que o crítico é aquele que, dentre outras atribuições, está investido no papel de tentar estabelecer uma ponte entre o público e a obra de arte como portadora da marca do objeto inqualificável. E se - de modo independente do gosto ou do desgosto, como marca Leo Steinberg (1986STEINBERG, L. (1986) "A arte contemporânea e a situação de seu público", in: BATTACOCK, G. (Org.) A nova arteSão Paulo:Perspectiva, p.241-262) - o público de uma obra é todo aquele que por ela é afetado, tendo em vista uma porção considerável da produção artística contemporânea, a tarefa do crítico hoje não é nada simples.

Destacando e ao mesmo tempo dando algum tratamento ao impacto que as obras produzem, edificando discursos que localizem e façam borda para aquilo que se apresenta sem predicação, o crítico trabalha em favor da inserção e sustentação do inédito na cultura. Embora algumas vezes proceda perguntar o que com isto se vela ou se desvela - da obra ou daquele que a apresenta.

Nos dias de hoje, diante do inusitado trazido por certas obras e na ausência de critérios para avaliá-las - sobretudo no caso das produções de artistas que esgarçam as fronteiras entre a arte e a vida - verifica-se uma forte tendência a se tentar discutir certas peças a partir da subjetividade do artista. No enlace entre a biografia do artista e sua obra, visando inserir o inominável que ali se mostra, alguns críticos e curadores se apropriam de conceitos e termos com ressonâncias psicanalíticas. Este é o caso, por exemplo, da coletiva que vimos no Malba em março de 2012, Bye Bye American Pie, organizada por Philip Larratt-Smith. A exibição trazia trabalhos de sete artistas americanos consagrados e considerados como expoentes da arte americana dos últimos 40 anos: Larry Clark, Nan Goldin, Basquiat, Jenny Holzer, Barbara Kruger, Cady Noland e Paul MacCarthy.

Para além da contundência dos trabalhos selecionados para a mostra, chama a atenção nos textos que apresentavam algumas obras, em especial os que acompanhavam as fotografias de Larry Clark e os diários íntimos projetados nos diapositivos de Nan Goldin, a presença de termo como acting out, recalcado, entre outros. Embora a psicanálise seja hoje um discurso que pode efetivamente abrir caminho para se pensar as questões postas pelo sujeito no mundo contemporâneo e suas relações com o objeto, se não levarmos em conta o corte entre arte e psicanálise, a utilização dos conceitos psicanalíticos no trabalho da crítica de arte pode inquietar. Entendemos que, em um eventual descaminho, teríamos um duplo prejuízo: o amortecimento da dimensão subversiva inerente à psicanálise e o empobrecimento do papel analítico da crítica de arte em favor da produção de uma psicologia do artista ou da obra de arte.

Efeitos de um enquadramento

Há situações em que o enlace entre vida, obra e psicanálise encontra seus fundamentos e razões. Este nos parece ser o caso da mostra Louise Bourgeois: O retorno do desejo proibido, que esteve em cartaz no MAM-RJ de setembro a novembro de 2011. Nesta montagem da obra da artista franco-americana, a curadoria do canadense Philip Larratt-Smith apresentou 112 peças - entre desenhos, objetos, pinturas, instalações e esculturas - cuidadosamente escolhidas de maneira a ressaltar certos aspectos da produção da artista. Tomando como base os cadernos de notas e registros escritos por ela - sobretudo os que datam do período de sua análise com Henry Lowenfeld - a mostra liga estreitamente a obra de Louise à psicanálise.

De acordo com Larratt-Smith, a exposição foi organizada a partir da seguinte tese curatorial:

"a história que estou contando na mostra é a relação de Bourgeois com a psicanálise e, em particular, como seu afastamento do mundo da arte e imersão na análise, nos anos 1950, resultaram em um completo novo corpo de trabalho, que ela apresentou no início dos anos 1960. O retorno invencível do desejo reprimido e de traumas passados em obras ficcionais e formas inesperadas fornecem a chave para a compreensão de sua produção tão heterogênea. Sua escultura é o conteúdo manifesto ou sintoma neurótico do incurável trauma subjacente." (LARRATT-SMITH, 2011LARRATT-SMITH, P. (04/07/2011) Entrevista para a Folha Ilustrada, Folha de São Paulo.)

Com o objetivo de produzir esta leitura, todas as obras foram selecionadas com a finalidade de destacar a persistente presença da psicanálise como força inspiradora e espaço de exploração na vida e na obra da artista. O enquadramento que o curador propôs nesta mostra é, portanto, uma versão possível que encontra apoio na biografia da artista, em seus escritos, diários íntimos, declarações e testemunhos. A ressonância da psicanálise também ecoa nos títulos de algumas das peças por ele cuidadosamente escolhidas: Destruição do pai (1974), Arco da histeria (1993), Rejeição (2001), Paisagem inconsciente (1967-68), Consciente e inconsciente (2008) etc. O fato de haver trabalhado como seu arquivista e de ter convivido com a artista nos últimos anos de sua vida parece contribuir para corroborar e dar crédito a seu ponto de vista.

Ainda assim, é preciso não desconhecer que este é o olhar impresso pelo curador da mostra, uma construção sua, seu modo singular de olhar e apresentar a obra de Bourgeois. Esta versão parece encontrar inspiração na via aberta pela artista ao apresentar sua biografia como chave para sua obra, na publicação do encarte "Abuso infantil" - inicialmente publicado, em 1982, na revista Artforum por ocasião de sua retrospectiva no MoMa de Nova York.

O enquadre que Larratt-Smith estabelece cria uma abordagem da obra que certamente influenciará outras reflexões em torno do trabalho da artista; estabelecendo uma verdade, a dele, sobre a artista e sua obra. Esta leitura, conforme veremos adiante, já produziu curiosas ressonâncias. Mas ainda que a psicanálise tenha atravessado a vida da artista e tenha reverberado em seu processo de criação, é importante frisar que a obra de Louise Bourgeois prescinde da psicanálise. Sua magnitude e complexidade certamente não se restringem à instigante proposta do curador, que já teve a oportunidade de declarar, em muitas ocasiões, seu apreço pela psicanálise.

A rara chance de ingressar na intimidade da artista funcionou como um dos apelos que capturou e levou o público a apreciar a exibição Louise Bourgeois: O retorno do desejo proibido. Nota-se que o convite para partilhar o seu universo mais pessoal não é gratuito ou imotivado, mas uma proposta ou impulso da própria artista que em sua obra adota uma ótica confessional e autobiográfica: "eu gostaria de tornar meu particular mais público e, nesse ato, perdê-lo" (BOURGEOIS, 1982BOURGEOIS, L. (1982) "Abuso Infantil", p.133-137./2000, p.151). Já sua relação com a psicanálise parece ter muito mais nuances e ser bem mais controvertida, conforme veremos adiante.

A artista e a psicanálise

Na divulgação da mostra, a imprensa deu destaque a frases da artista dentre as quais recolhemos uma, muito contundente, que foi de início apresentada no contexto criado por "Abuso infantil" (1982): "Todo dia você tem de abandonar seu passado ou aceitá-lo. E então, se não puder aceitá-lo, você se torna escultor" (BOURGEOIS, 1982BOURGEOIS, L. (1982) "Abuso Infantil", p.133-137./2000, p.133). Dela se depreende a afirmação de seu modo próprio de dar lugar e tratamento à porção inaceitável e inassimilável da existência: a arte. No caso singular desta artista, como indicam sua biografia e suas notas íntimas, conjuga-se ainda outro modo de dar contorno ao traumático: o tratamento psicanalítico.

Com relação à complexa relação da artista com a psicanálise, nos reportamos à resenha escrita por Bourgeois - Os brinquedos de Freud (BOURGEOIS, 1990BOURGEOIS, L. (1990) "Os brinquedos de Freud", p.186-190./2000) - publicada inicialmente na Artforum por ocasião da mostra The Sigmund Freud Antiquities: Fragments from a Buried Past (1990). Neste pequeno e curioso ensaio, ela examina a coleção de antiguidades do psicanalista procurando localizar quem seria o sujeito a partir de seus objetos mais estimados. Suas reflexões nos dão notícias não apenas de quem era o "Freud" de Bourgeois, mas também de suas inquietações e descontentamentos com a versão da psicanálise com a qual ela se deparou - a artista se analisou por cerca de 30 anos com Henry Lowenfeld, discípulo de Freud que imigrou para Nova York em 1938. A análise à qual se submeteu é, como diria Lacan, fruto da "peste" processada em solo americano.

Para a artista, Freud era "um médico, um neurologista, um discípulo de Darwin, aluno de Charcot, um materialista e determinista" (BOURGEOIS, 1990BOURGEOIS, L. (1990) "Os brinquedos de Freud", p.186-190./2000, p.187) preocupado com as leis da causalidade e que "queria convencer seus pacientes a escutar a razão". Em sua perspectiva, ele "era um homem racional e científico" que se interessava "unicamente por evidências, provas e documentos". E cujas "informações que usava vinham com frequência de sua própria biblioteca" (idem, ibidem). Um Freud com certeza muito distante daquele que orienta a clínica dos psicanalistas que o seguiram através do ensino de Lacan.

Assumindo a coleção como documento, a artista divaga sobre as possíveis razões que o teriam levado a reter obras tão chulas:

"{Ele as} colecionava porque lhe dava prazer, uma espécie de autoestima? Não sei. Como um homem como Freud precisaria recuperar a autoconfiança? (...) Talvez lhe oferecesse um modo de decorar seu escritório. Talvez servisse de distração enquanto ele trabalhava, já que deveria ficar terrivelmente esgotado com as histórias de seus pacientes. Por outro lado, também deveria ficar terrivelmente esgotado com os silêncios deles (...). Deus sabe quais os motivos do silêncio, mas Freud se entediava. Duvido muito que gostasse da maioria de seus pacientes. O que significa simplesmente que ele era humano." (BOURGEOIS, 1990BOURGEOIS, L. (1990) "Os brinquedos de Freud", p.186-190./2000, p.186)

Situando a pouca coerência da coleção e o reduzido valor da maior parte das peças que a compõem, bem como o desinteresse de Freud pela arte de seu tempo, Bourgeois conclui: "mas afinal me importa menos o interesse de Freud pela arte do que seu interesse pelos artistas (...). Simplesmente quero saber o que Freud e seu tratamento podem fazer, poderiam fazer, poderiam deixar de fazer ou foram incapazes de fazer pelo artista aqui e agora" (idem, p.190).

Para Louise,

"A verdade é que Freud não fez nada pelos artistas, ou pelo problema do artista, o tormento do artista - ser artista envolve certo sofrimento. E é por isso que os artistas se repetem - porque não têm acesso à cura. (...) a necessidade dos artistas continua insatisfeita, assim como seu tormento." (idem, p.190)

Com este depoimento, portanto, é preciso ao menos relativizar seu laço com a psicanálise, aparentemente tão bem atado na versão construída por Larratt-Smith. Por ironia e força do destino criado pelas ficções assentadas nos descaminhos que a crença na relação entre arte e psicanálise é capaz de engendrar, ironicamente, as obras da artista foram parar no Museu Freud, em Londres - de março a maio de 2012 - lado a lado às pequenas estatuetas, por ela consideradas chulas, às quais a artista se refere em Os brinquedos de Freud (1990).

Para concluir

Finalizando nossa reflexão, gostaríamos de apontar ainda outro equívoco que pode surgir a partir da exposição dos traumas e obsessões dos artistas. De um lado, da associação propositalmente estabelecida - pela montagem de Larratt-Smith e corroborada pelas reflexões da artista - entre o sofrimento de Bourgeois e a realização de sua obra, alguns podem reter a falsa ideia de que suas aflições, seus tormentos, suas misérias mais íntimas são, em si mesmos, o que engendra a criação. Entendemos que algumas de suas palavras, como as que voltamos a destacar do texto do encarte de Abuso infantil (1982/2000), podem favorecer tal engano. Lembramos que o contexto em que a artista tece tais considerações concerne a situações de desgosto e sofrimentos vividos em sua infância pelo desapontamento com a conduta dos pais e da professora de inglês com a qual seu pai mantivera uma relação extraconjugal por anos:

"Alguns de nós somos tão obcecados pelo passado que morremos disso. É a atitude do poeta que nunca encontra o paraíso perdido e é de fato a situação dos artistas que trabalham por um motivo que ninguém pode apreender. Talvez queiram reconstruir algo do passado para exorcizá-lo. (...) Todo dia você tem que abandonar seu passado ou aceitá-lo, e se não conseguir aceitá-lo torna-se uma escultora." (BOURGEOIS, 1982BOURGEOIS, L. (1982) "Abuso Infantil", p.133-137./2000, p.133-134, grifo nosso)

Neste ponto - se não conseguir aceitá-lo torna-se uma escultora - mais uma vez procede acrescentar um comentário de natureza clínica que desfaça outra vez a quimera da complementaridade, agora, entre o traumático e a criação. O inassimilável ou o incurável certamente estão presentes nas obras de arte, como nos atestam muitos artistas e a própria Louise:

"Se me perguntarem o que quero expressar, então faz sentido. Nesse ponto há um mistério sobre o qual pelo menos podemos conversar. Já que durante a vida toda quis falar a mesma coisa. A consistência interna é a prova do artista: repetidas decepções na expressão dessa coisa é o que o mantém em movimento." (BOURGEOIS, 2000BOURGEOIS, L. (2000) Louise Bourgeois: destruição do pai, reconstrução do pai (entrevistas e escritos). São Paulo: Cosac Naify., p.91)

A presença do inassimilável na obra de arte, contudo, em nada esclarece o enigmático dom do artista. Este resta como mistério, tanto para os artistas quanto para os psicanalistas. Como a práxis psicanalítica recorrentemente desvela, não basta haver traumas, obsessões, angústias ou recalques para se construir obras de arte. Na grande maioria dos casos, inclusive, eles se colocam para o sujeito muito mais no lugar de entrave e empecilho do que como ensejo para a edificação do novo. Isto é o que se verifica nas neuroses comuns - por sua monotonia, inibições e entraves - nas quais o sujeito com frequência sucumbe às exigências insanas do supereu acirradas pela projeção de imagens ideais inatingíveis.

Portanto, com relação à tentação de fazer dos neuróticos artistas, vale relembrar a advertência que Freud recorrentemente faz aos analistas em relação a importância de se desfazer de suas aspirações para com seus pacientes. Isto porque, no afã de que seu analisando se torne mais criativo, inventivo ou fecundo, este pode reeditar na transferência o mesmo impasse que se coloca entre o sujeito e o supereu, agora encarnado nas exigências do psicanalista.

Para que do choque advenha o original, para que o inédito ganhe alguma tradução, é preciso dar tratamento simbólico ao inassimilável e é precisamente neste ponto que a criação artística talvez tenha muito a ensinar à psicanálise. Parafraseando a epígrafe recolhida do texto de Freud com a qual abrimos nossa fala: os enigmas da criação continuam pulsando e nos instigando a seguir produzindo novas perguntas e questionamentos.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    18 Fev 2013
  • Aceito
    29 Jul 2013
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