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Morte do sujeito: representação e limite real na clínica das psicoses

Resumo:

Aborda-se a formulação lacaniana de que, em Schreber, houve um momento de 'morte do sujeito' que permitiu a construção do delírio estabilizador. Se o advento do sujeito é tributário da 'morte da coisa' perpetrada pelo significante, Lacan fala aqui da psicose, constituída pela não simbolização da castração. Discute-se a noção de 'segunda morte', forjada a propósito de Sócrates, de Antígona e do Cotard, e a Bejahung como afirmação primordial que inclui a negatividade. Conclui-se que a 'morte do sujeito' pode ser uma abertura para a representação ou um limite real para o psicótico, expondo às passagens ao ato e evoluções demenciais.

Palavras-chave:
Psicanálise; simbólico; psicose; sujeito; delírio.

Abstract:

The paper discusses Lacan's proposal that Schreber's stabilization was made possible by a moment of 'death of the subject.' The advent of the subject is related with the 'death' of the thing itself perpetrated by the signifier. Here, Lacan mentions its relation to psychosis, in which there's a non-symbolization of castration. We discuss the notion of 'second death', related to Socrates, Antigone and Cotard, and the Bejahung as an original affirmation which includes the negativeness. We conclude that the 'death of the subject' can be an opening to the representation or a 'real' limit to the psychotic, presenting the risk of passages to the act and 'dementia-like' evolutions.

Keywords:
Psychoanalysis; symbolic; psychosis; subject; delusion.

Em "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose", Lacan (1998LACAN, J. (1998) Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar./1958) formula a ideia de "morte do sujeito" para se referir a um momento preciso da psicose de Schreber, que teria aberto a possibilidade de transformação do delírio no sentido da solução final que estabiliza aquela psicose (p.574). Pouco antes, Lacan já ligara o advento do sujeito à morte da coisa pelo símbolo (1998/1953, p.320), mas surpreende que ele fale disso a propósito da psicose, que é constituída justamente pelo fato de que a castração é recusada na ordem simbólica (1992/1955-56, p.21). Lacan não volta a utilizar essa expressão em seu ensino a respeito da psicose, e mesmo na "Questão preliminar" ela não é desenvolvida. Talvez por isso ela seja pouco explorada na literatura analítica, especificamente quanto à psicose.

No presente artigo, vamos nos ater a Czermak (1996CZERMAK, M. (1996) "Signification psychanalytique du syndrome de Cotard", in: Passions de l'objet. Études psychanalytiques des psychoses. Paris: Association freudienne internationale.), Jean (2004JEAN, T. (2004) La mort du sujet ou les questions posées au sujet par la psychose. Journal Français de Psychiatrie n.22. Ramonville Saint-Agne: Érès , p.48-51.), Cacho (2006CACHO, J. (2006/1999) A síndrome de Cotard. Revista Tempo Freudiano n7 - A clínica da psicose: Lacan e a psiquiatria, v.3, O corpo: hipocondria, Cotard, transexualismo. Rio de Janeiro, p.103-117.) e Hergott (2009HERGOTT, S. (2009) Que pourrions-nous appeler "mort du sujet"? Journal Français de Psychiatrie n. 35. Ramonville Saint-Agne: Érès, p.15-18.), por serem aqueles que desenvolvem a formulação que nos interessa perseguir aqui: a da "morte do sujeito" como elemento de estrutura da psicose que tanto pode ser um momento da recomposição pelo delírio quanto um limite real. Assim, nosso objetivo será não o de criticar a formulação no sentido de refutá-la, nem o de cobrir exaustivamente as possibilidades de leitura do tema, mas o de explorar e tirar as consequências de uma hipótese que nos pareceu iluminar a radicalidade daquilo com que lidamos na psicose.

A formulação de que um sujeito (psicótico) tenha precisado 'morrer' para aceder à possibilidade de um recomposição pelo delírio é original o bastante para merecer um exame mais atento. Por outro lado, a clínica das psicoses nos mostra diversas ocorrências de quadros semelhantes àquele vivido por Schreber e que no entanto manifestam, ou evoluem, não para uma recomposição imaginária, mas para uma mortificação do sujeito. Nas duas vertentes - abertura para uma estabilização ou limite real na evolução de uma psicose -, a formulação de Lacan pode iluminar um aspecto de estrutura, não só da psicose, mas do sujeito como tal. No presente artigo, abordaremos essa noção invocando outras referências de Lacan, em especial a "segunda morte" da qual nos fala em diferentes ocasiões: aquela perpetrada pelo significante e que faz nascer o sujeito (cf., entre outros, LACAN, 1998LACAN, J. (1998) Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar./1960LACAN, J. (1999/1960) "Subversion du sujet et dialectique du désir", in: Écrits II. Paris: Seuil, p.273-308., p.825).

A formulação de Lacan

Considerada a ausência de outras referências à noção, detenhamo-nos no contexto de sua formulação, o momento preciso da evolução de Schreber em que ela aparece na análise de Lacan. A ideia de que o sujeito tenha morrido é uma afirmação lacaniana proposta como uma passagem necessária para que Schreber tenha podido aceitar a transformação em mulher e mesmo assumi-la como solução. Como sabemos, ser entregue como mulher a Flechsig para fins sexuais é a primeira forma do delírio de Schreber, um delírio persecutório vivido por ele com grande indignação (SCHREBER, 1995SCHREBER, D. P. (1995/1903) Memórias de um doente dos nervos. Rio de Janeiro: Paz e Terra./1903, p.67-68). Posteriormente, Schreber aceita a transformação em mulher como sendo exigida pela "Ordem do Mundo" e dando a ele próprio o importante papel de ser fecundado por raios divinos e procriar uma nova humanidade (idem, p.147 e segs.). A questão da "Ordem do Mundo" mereceria um desenvolvimento que fugiria ao escopo deste artigo. Indicamos apenas que ela parece representar a subsistência, mesmo num psicótico, de algo da ordem das leis da linguagem, um refúgio último da lei simbólica em face de um Outro não barrado e persecutório, uma forma de barrar o Outro. É o que indica a seguinte passagem:

"No meu caso, o atentatório do ponto de vista moral consistia no fato de que o próprio Deus se colocasse fora da Ordem do Mundo, válida também para Ele. {...} Por outro lado, a Ordem do Mundo conserva toda a sua grandeza e sublimidade à medida que, num caso, tão contrário às regras, nega até ao próprio Deus os meios de poder adequados para atingir um objetivo que a contradiga." (SCHREBER, 1995SCHREBER, D. P. (1995/1903) Memórias de um doente dos nervos. Rio de Janeiro: Paz e Terra./1903, p.70)

Schreber data de março ou abril de 1894 o início da conspiração que tinha como finalidade feminizar seu corpo para fins de abusos sexuais e depois abandoná-lo à putrefação. Em novembro de 1895, "os sinais de feminilidade apareciam tão intensamente" em seu corpo que ele "não podia mais deixar de reconhecer a finalidade imanente para a qual caminhava toda essa evolução" (idem, p.147). Nas noites anteriores, a transformação em mulher só não aconteceu porque ele ainda uma vez opôs a isso seu "sentimento de hombridade" e sua "vontade decidida" (idem, ibidem). Em todas as partes do corpo, sua impressão era a de um corpo feminino.

"Alguns dias de observação contínua desses fenômenos bastaram para determinar em mim uma total modificação na direção da minha vontade. {...} tive a absoluta convicção de que a Ordem do Mundo exigia imperiosamente de mim a emasculação, quer isso me agradasse pessoalmente ou não e, portanto, por motivos racionais, nada mais me restava senão me reconciliar com a ideia de ser transformado em mulher. Naturalmente, a emasculação só poderia ter como consequência uma fecundação por raios divinos com a finalidade de criar novos homens." (SCHREBER, 1995SCHREBER, D. P. (1995/1903) Memórias de um doente dos nervos. Rio de Janeiro: Paz e Terra./1903, p.147)

Freud atribui a mudança de atitude de Schreber em relação a ser emasculado à dimensão de grandeza que advém quando o parceiro interessado nessa transformação passa a ser Deus, com a finalidade de recriar a humanidade. A substituição de Flechsig por Deus é referida por Freud na dimensão de um "delírio de grandeza", que permite a Schreber se "reconciliar" com o delírio (FREUD, 1995FREUD, S. (1995) Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu./1911, p.46).

É neste ponto que Lacan diz que Freud "faltou com suas próprias normas" (LACAN, 1998LACAN, J. (1998) Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar./1958, p.573), pois antes recusara que o privilégio fosse dado à dimensão do delírio de grandeza em detrimento da dimensão sexual do delírio (cf. FREUD, 1995FREUD, S. (1995) Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu./1911, p.18-9). Lacan ironiza a explicação dada por Freud, dizendo que se trata de uma "negociata de parceiro" - a troca de Flechsig por Deus - que atenderia ao amor-próprio do sujeito, e propõe outra razão: "a verdadeira mola da inversão da posição de indignação que a ideia da Entmannung {emasculação} inicialmente suscitara na pessoa do sujeito é que, muito precisamente, nesse intervalo o sujeito havia morrido" (LACAN, 1998LACAN, J. (1998) Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar./1958, p.574). Lacan arrola os elementos do caso que demonstram essa morte do sujeito: o relato de Schreber de que leu no jornal a notícia de sua própria morte (SCHREBER, 1995SCHREBER, D. P. (1995/1903) Memórias de um doente dos nervos. Rio de Janeiro: Paz e Terra./1903, p.85); o laudo médico que, segundo Lacan, confirma, nessa época, um quadro de estupor catatônico (in SCHREBER, 1995/1903, p.285); e "o retrato fiel que as vozes, analistas, digamos, lhe dão dele mesmo, como um cadáver leproso conduzindo outro cadáver leproso" (LACAN, 1998LACAN, J. (1998) Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar./1958, p.574). Sublinhamos que, ao chamar as vozes de "analistas", Lacan está sugerindo que o que elas diziam era fiel ao que se passava na estrutura do sujeito.

Freud falara desse momento de estupor catatônico como uma vivência subjetiva de fim do mundo, etapa que precede a solução delirante, e durante a qual Schreber diz que tudo foi sepultado, destruído, e ele, Schreber, permaneceu como o único homem real que restava (FREUD, 1995FREUD, S. (1995) Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu./1911, p.63-5). É o momento postulado por Freud como de retirada da libido do mundo (idem, ibidem), depois do qual o delírio sexual pode ser considerado como uma tentativa de reconstrução (idem, p.1995/1911, p.65).

Lacan não desenvolve explicitamente por que essa "morte do sujeito" teria possibilitado a mudança de posição de Schreber e a construção da solução delirante. Coordenando-a com a sequência do texto, lemos que em torno desse fenômeno de morte de sujeito Lacan localiza uma "determinação simbólica" da feminização como solução para Schreber, pois na sequência ele menciona a "relação disso tudo com a homossexualidade, certamente manifesta no delírio", no sentido de criticar o entendimento equivocado do que seria essa suposta homossexualidade. A suposta homossexualidade, diz Lacan, precisa ser esclarecida por sua determinação simbólica (LACAN, 1998LACAN, J. (1998) Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar./1958, p.574).

A solução final delirante - ser mulher de Deus - é uma recomposição imaginária, diz Lacan. Mas nela se localizam retroativamente as relações simbólicas que são aí determinantes. Ela tem dois aspectos: uma "prática transexualista" que consiste em olhar sua imagem no espelho ornamentada de adereços femininos e ter, ao mesmo tempo, a percepção corporal da volúpia nos "nervos da volúpia feminina"; e, segundo elemento, a "coordenada da copulação divina", que estabelece uma promessa de redenção, um objetivo a ser realizado, no entanto, num futuro adiado indefinidamente (idem, p.575). Aqui, diz Lacan, temos um "ponto decisivo de onde a linha escapa em suas duas ramificações, a do gozo narcísico e a da identificação ideal" (idem, p.577). Podemos ler: gozo narcísico, a volúpia experimentada diante de sua imagem no espelho (nossa hipótese: arremedo de eu-ideal); identificação ideal, o papel de mulher de Deus/redentor da humanidade (arremedo de ideal do eu). "E, também nesse caso, a linha gira em torno de um furo, precisamente aquele em que o assassinato d'almas instalou a morte" (idem, ibidem).

Sublinhamos: Lacan introduz a morte como o furo em torno do qual giram as linhas da recomposição do sujeito. E é desse ponto preciso, em que ele introduz a morte, que ele passa à demonstração da estrutura do sujeito ao término do processo psicótico, e à demonstração de que ela contém, ao menos como linhas de força, os mesmos 'pontos geométricos' do esquema R, da realidade do sujeito dito normal (é o desenvolvimento do esquema I, da psicose).1 1 O "esquema R" é a formalização gráfica feita por Lacan, em "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose", de como se circunscrevem a percepção do objeto e o campo da realidade para o sujeito neurótico (LACAN, 1998/1958, p.559). O "esquema I", formulado por Lacan na sequência do mesmo texto, é a formalização da distorção desse esquema que acontece na psicose, mostrando que essa distorção, no entanto, contém os mesmos "pontos geométricos" do esquema R, indicando assim o trabalho de recomposição presente na psicose de Schreber (idem, p.577-8). Vale dizer, a recomposição imaginária do sujeito pelo delírio reproduz, distorcidas, as determinantes da estrutura da linguagem para todo sujeito, "linhas de eficiência" de uma "solução elegante", como diz Lacan (idem, p.578). Mas, para que isso pudesse advir, foi preciso esse fenômeno que Lacan chamou de "morte do sujeito".

A morte que traz a vida

Conhecemos a pergunta de Lacan em "Subversão do sujeito e dialética do desejo": "Trata-se de saber qual morte, a que a vida traz, ou a que traz a vida?" (LACAN, 1998LACAN, J. (1998) Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar./1960a, p.825).2 2 O jogo de palavras em francês é contundente, pela mínima diferença que existe entre as frases que expressam as duas ideias: "Il s'agit de savoir quelle mort, celle que porte la vie, ou celle qui la porte?" (LACAN, 1999/1960, p.290). A morte que traz a vida é aquela perpetrada pelo significante, que 'mata' a coisa ao fazê-la existir no significante, para dotá-la de existência simbólica, que é a única do falante (é o que Lacan desenvolve também em "Função e campo da fala e da linguagem": LACAN, 1998LACAN, J. (1998) Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar./1953, p.320). Embora Lacan a chame de segunda morte (por referência à morte física, aquela na qual toda vida culminará), a morte perpetrada pelo significante é no entanto primeira lógica e cronologicamente, pois, ao preço de deixar para trás, perdida, a dimensão do ser, dá vida ao sujeito. Parafraseando o aforisma 'o símbolo é a morte da coisa', poderíamos dizer que 'o sujeito é a morte do ser'.

O caráter mortífero do significante, porém, incide também e sobretudo sobre o próprio sujeito que aí nasce, que nasce em alguma medida mortificado pelo significante, pois condenado a ser representado por uma significação que tem sempre uma dimensão aprisionante, congelante. É a afânise do sujeito no processo de alienação ao significante, que Lacan trabalha em Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise: "quando o sujeito aparece em algum lugar como sentido, em outro lugar ele se manifesta como fading, como desaparecimento. Há, então, {...} questão de vida e de morte {...}" (LACAN, 2008LACAN, J. (2008/1964) O seminário, livro 11, Os quatros conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ./1964, p.213). Em diferentes passagens de seu ensino, Lacan trabalha a dimensão mortífera do significante através da expressão invocante "Tu és" e sua homofonia no francês (Tu est) com o verbo Tuer, matar (cf., entre outras, o seminário As psicoses: LACAN, 1992LACAN, J. (1992/1969-70) O seminário, livro 17, O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ./1955-56, p.306-20 e 332-47).

Nessa perspectiva, pela qual o sujeito nasce como efeito da dimensão mortífera do significante, poderíamos propor que a "morte do sujeito" é uma espécie de equivalente psicótico disso? Dando assim a chance de que Schreber possa então vir a ser, por assim dizer, representado como sujeito pela designação Mulher de Deus?

Para sermos rigorosos, não deveríamos dizer 'representado', mas sim 'assinalado' ou 'localizado' como sujeito. No entanto, ousamos dizer 'representado' para encetar a observação de que houve aí um trabalho da estrutura que foi mais além do que, por exemplo, a simples designação do sujeito por alusão na voz alucinada e injuriosa "Porca" do famoso exemplo do seminário sobre As psicoses (LACAN, 1991LACAN, J. (1991/1959-60) O seminário, livro 7, A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ./1955-6, p.59-65). Assim, nossa leitura é de que esse fenômeno de morte do sujeito poderia ser, na evolução de uma dada psicose, uma espécie de abertura à representação do sujeito na cadeia significante, ou, pelo menos, à existência de um lugar tenente para o sujeito na cadeia significante.

Cacho (2006CACHO, J. (2006/1999) A síndrome de Cotard. Revista Tempo Freudiano n7 - A clínica da psicose: Lacan e a psiquiatria, v.3, O corpo: hipocondria, Cotard, transexualismo. Rio de Janeiro, p.103-117., p.115) observa que Schreber tem notícia de sua morte por lê-la noticiada no jornal, o que deixaria a questão de se o sujeito não é uma escrita. Uma questão de tal complexidade (a escrita ou escritura do sujeito) foge ao escopo deste artigo, mas indicaremos a proximidade com a questão da representação. Cacho propõe que a escrita $ é, fora da psicose, "a morte do sujeito ordinário", isto é, "uma operação da própria estrutura" (CACHO, 2006CACHO, J. (2006/1999) A síndrome de Cotard. Revista Tempo Freudiano n7 - A clínica da psicose: Lacan e a psiquiatria, v.3, O corpo: hipocondria, Cotard, transexualismo. Rio de Janeiro, p.103-117., p.116), o que entendemos como uma indicação de que a morte do sujeito na psicose equivale à barra posta sobre o sujeito pelo significante.

Mas 'equivalente' não é 'igual'. O caráter mortífero do significante dá nascença ao sujeito, na neurose, porque a negatividade que ele introduz é admitida (afirmada, por assim dizer) no simbólico, passando a operar aí. A inscrição dessa negatividade equivale, com efeito, à própria instauração do simbólico, ou do sujeito no simbólico. É o que lemos sob o nome de Bejahung, no comentário de Lacan sobre A negativa de Freud (FREUD, 1993FREUD, S. (1993/1925) "La negación", v.XIX, p.249-257./1925). A Bejahung, "afirmação" ou "resposta afirmativa" em alemão (Langenscheidt, 2001, p.706), corresponde à "criação do símbolo", momento "mítico", que diz respeito à "relação do sujeito com o ser" (LACAN, 1998LACAN, J. (1998) Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar./1954aLACAN, J. (1954a) "Resposta ao comentário de Jean Hyppolite sobre a 'Verneinung' de Freud, p.383-401., p.384). Como "simbolização primordial", ela contém a impossibilidade de tudo representar, o que constitui o real (idem, p.390). Por isso, como observa França Neto (2006), a Bejahung é uma afirmação "que carreia consigo uma negação" (FRANÇA NETO, 2006FRANÇA NETO, O. (2006) A Bejahung na conexões da psicanálise. Psicologia Clínica, v.18, n.1. Rio de Janeiro, p.153-163., p.155).

Mas essa Bejahung, diz Lacan, pode ela própria faltar. No Seminário sobre As psicoses, o autor se apoia nesta noção para diferenciar o mecanismo estruturante de uma psicose e de uma neurose: enquanto o recalcamento é a negação de algo que no entanto foi, antes, admitido no sentido do simbólico, na psicose essa própria admissão primeira, essa afirmação primordial na ordem simbólica, não acontece (LACAN, 1992LACAN, J. (1992/1969-70) O seminário, livro 17, O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ./1955-56, p.22). No lugar da Bejahung, há Verwerfung (rejeição), termo usado de maneira não sistemática por Freud e que Lacan traduz conceitualmente como correspondendo à foraclusão, mecanismo de estrutura da psicose (idem, p.360). Na ausência da Bejahung, a negatividade não é operada com o recurso do simbólico; "o que é recusado na ordem simbólica, no sentido da Verwerfung, reaparece no real" (idem, p.21).

Na neurose, o caráter mortífero do significante é mediado pelo falo como significação do desejo e portanto do desejo do Outro: Lacan faz a imagem do falo como um bastão colocado na boca do crocodilo impedindo-a de se fechar, impedindo a boca do Outro de devorar o sujeito (LACAN, 1992LACAN, J. (1992/1969-70) O seminário, livro 17, O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ./1969-70, p.105). A negatividade introduzida pelo falo é uma negação engendrada pelo mesmo agente e no mesmo processo da operação primordial da representação, que implica a aceitação, pelo sujeito, dessa negatividade: "coloca-se para o sujeito a questão de aceitar, de registrar, de simbolizar ele mesmo, de dar valor de significação a essa privação da qual a mãe revela-se o objeto" (LACAN, 1999LACAN, J. (1999/1957-58) O seminário, livro 5, As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ./1957-58, p.191).

Se a psicose advém quando essa negatividade não se inscreve, a importância da morte do sujeito seria a de introduzir a negatividade onde ela, por estrutura, falta. Mas que tipo de negatividade é possível se forjar na estrutura psicótica?

A imortalidade e a vida no 'entre-duas-mortes'

O momento da evolução de Schreber que Lacan chamou de morte do sujeito corresponde a todo um capítulo das Memórias em que Schreber descreve o 'crepúsculo do mundo', tão valorizado por Freud, e toda uma sintomatologia de destruição dos órgãos do corpo (SCHREBER, 1995COTARD, J. (2006/1880) Sobre o delírio hipocondríaco em uma forma grave de melancolia ansiosa. Revista Tempo Freudiano n.7, A clínica da psicose: Lacan e a psiquiatria, v.3, O corpo: hipocondria, Cotard, transexualismo. Rio de Janeiro, p.205-211./1903, p.127-35). Czermak (1996CZERMAK, M. (1996) "Signification psychanalytique du syndrome de Cotard", in: Passions de l'objet. Études psychanalytiques des psychoses. Paris: Association freudienne internationale., p.214) observa que esse momento "comporta todas as linhas de força de um delírio das negações".

O delírio das negações, ou síndrome de Cotard, é uma condição psiquiátrica que Lacan afirma ser "da ordem do núcleo psicótico" (LACAN, 1992LACAN, J. (1992/1969-70) O seminário, livro 17, O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ./1960-1, p.106-7). Trata-se de um delírio hipocondríaco que, em sua forma pura, ocorre na melancolia, mas cujos elementos podem aparecer em outras psicoses também. Consiste na convicção delirante de não ter mais cérebro, nervos, peito, coração, estômago, sangue, às vezes não ter nem mesmo mais corpo. Alguns imaginam que estão apodrecidos e que seu cérebro amoleceu. A negação pode estender-se à "personalidade moral" do sujeito (não tem mais intelecto ou virtude, não raciocina mais etc.); à "personalidade física" (não tem mais sangue, cérebro, genitais etc.); aos objetos do mundo exterior (não há nada ao redor dele, ele está no nada); e às abstrações (não há mais virtude, alma, Deus) (SÉGLAS, 2006SÈGLAS, J. (2006/1894) O delírio das negações na melancolia. Revista Tempo Freudiano n.7- A clínica da psicose: Lacan e a psiquiatria, v.3, O corpo: hipocondria, Cotard, transexualismo, 2006, p.205-247./1894). Das ideias hipocondríacas decorre lógica e paradoxalmente a ideia de imortalidade: não morrerão porque seu corpo não tem as condições ordinárias de organização, "estão num estado que não é nem a vida, nem a morte; são mortos-vivos" (COTARD, 2006COTARD, J. (2006/1880) Sobre o delírio hipocondríaco em uma forma grave de melancolia ansiosa. Revista Tempo Freudiano n.7, A clínica da psicose: Lacan e a psiquiatria, v.3, O corpo: hipocondria, Cotard, transexualismo. Rio de Janeiro, p.205-211./1880, p.209). Assim, a ideia de imortalidade é, não um delírio de grandeza, mas uma ideia hipocondríaca. Finalmente, observam-se ainda distúrbios da espacialidade, o sujeito tendo a experiência de estar espalhado pelo espaço como os objetos, ou enorme, e depois bem pequeno; e da temporalidade, que fica congelada, parada, infinita. Leuret (1834LEURET, F. (200/1834) "Une observation de Leuret" (Extrato de Fragments psychologiques sur la folie), in: BAUMSTIMLER, Y.; CACHO, J.; & CZERMAK, M. (Orgs.) Délire des négations - Actes du Colloque des 12 et 13 décembre 1992. 2 ed. Paris: Association freudienne internationale .) cunhou a expressão "hipocondria moral" para designar o estado mental de pacientes como esta, cuja entrevista ele relata: "Eu não sei o seu nome, queira dizê-lo. A pessoa de mim mesma não tem nome; ela deseja que o senhor não escreva. {...} Qual é a sua idade? A pessoa de mim mesma não tem idade. Seus pais ainda vivem? {...} A pessoa de mim mesma não é filha de ninguém; a origem da pessoa de mim mesma é desconhecida; ela não tem nenhuma lembrança do passado" (LEURET, 200/1834LEURET, F. (200/1834) "Une observation de Leuret" (Extrato de Fragments psychologiques sur la folie), in: BAUMSTIMLER, Y.; CACHO, J.; & CZERMAK, M. (Orgs.) Délire des négations - Actes du Colloque des 12 et 13 décembre 1992. 2 ed. Paris: Association freudienne internationale ., p.224-5).

Em um momento ainda inicial de seus Seminários, Lacan evoca as pacientes que atendeu ainda como jovem psiquiatra, e que lhe diziam não ter boca nem estômago e que não morreriam nunca:

"Aquilo a que elas se identificaram é uma imagem à qual falta toda e qualquer hiância, toda e qualquer aspiração, todo vazio do desejo, isto é, o que constitui propriamente a propriedade do orifício bucal. Na medida em que se opera a identificação do ser à sua pura e simples imagem, não há tampouco lugar para a mudança, ou seja, para a morte. É justamente disso que se trata na temática delas - elas, ao mesmo tempo, estão mortas e não podem mais morrer, elas são imortais - como o desejo." (LACAN, 1995/1954-55, p.299-300)

Mais tarde, já no seminário sobre A transferência, Lacan falará desse delírio como uma "ausência de metáfora" que coloca uma "formidável metonímia" que leva à afirmação de imortalidade. É nesse momento que Lacan afirma que o Cotard "é da ordem do núcleo psicótico" (LACAN, 1954LACAN, J. (1954-55/1995) O seminário, livro 8, A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar .-55/1995, p.106-7). Mas a referência à síndrome psiquiátrica é lateral. Lacan a evoca para falar da falta de temor de Sócrates diante de sua sentença de morte: o que está em jogo na posição de Sócrates é o que Lacan chama de "segunda morte" (idem, p.106). Forjada a propósito de Sade, a noção de segunda morte tem diferentes desdobramentos no ensino de Lacan. Aqui, ela é invocada para falar da ideia de imortalidade com a qual Sócrates aceita sua sentença de morte. "Ele nos afirma que é nessa segunda morte - encarnada pelo fato de ele elevar a coerência do significante à potência absoluta, à potência de único fundamento da certeza - que ele encontrará sua vida eterna" (LACAN, 1954-55/1995, p.106). No entanto, para Lacan, essa imortalidade, resultante do fato de Sócrates ter desenvolvido em seus questionamentos, por toda sua vida, uma "formidável metonímia" (sem metáfora?, indagamos), é uma imortalidade "fixa, triste imortalidade negra e dourada {...}" (idem, p.107).

A ideia terrível de que 'a vida possa continuar indefinidamente, nessa zona qualificada de entre-duas-mortes' é também a situação de Antígona, trabalhada por Lacan no seminário sobre A ética da psicanálise (1991LACAN, J. (1991/1959-60) O seminário, livro 7, A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ./1959-60). Antígona descumpre a sentença de Creonte para enterrar o irmão e se situa, a partir daí, no limiar do mundo dos vivos e dos mortos, pois sabe, doravante, que está condenada a ser enterrada viva numa tumba (cf. LACAN, 1991LACAN, J. (1991/1959-60) O seminário, livro 7, A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ./1959-60, lições XIX a XXI, p.295-346). É dessa zona, aliás, que ela quer livrar o irmão - ele, por sua vez, condenado a permanecer insepulto, vale dizer, rebaixado da dignidade simbólica que é própria ao sujeito humano por este existir representado no significante. É a inscrição significante que é negada a Polinices. Inscrição que no entanto ele teve. A obstinação de Antígona é a afirmação de uma lei da linguagem, "que afirma que o que é não pode entrar de novo no nada de onde saiu" (cf. idem, p.316). O significante cria o sujeito ex-nihilo, mas, uma vez que o cria, uma vez que existimos no significante, não podemos deixar de existir no significante; podemos morrer a morte física, mas não podemos 'não ter existido' no significante, voltar a entrar no nada de onde saímos. A inscrição na lápide é uma expressão - não a única - dessa existência simbólica. Negá-la equivale ao que Lacan, em Sade, localiza como ultrapassar o limite da "segunda morte" (cf. idem, p.301). É isso que Antígona recusa que seja feito com Polinices, ainda que ao preço de ela mesma entrar nessa zona da segunda morte, ou do "entre-duas-mortes" (idem, p.327).

Outra referência literária, esta contemporânea, ajuda a situar o que seria infligir a um sujeito a segunda morte. É isto um homem?, de Primo Levi (1997PRIMO, LEVI (1997/1947) É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco./1947), pode ser lido como a descrição de como foi feita, no campo de concentração, essa operação de retirar do sujeito a dignidade mínima que o faz sujeito, retirar a humanidade, matar o sujeito para só depois matar o homem. Uma destruição em segundo grau. Ultrapassar o limite da segunda morte seria, portanto, apagar a dimensão significante que ainda representa aquele sujeito e com isso não deixar vestígio de seu ser. É o que tragicamente escutamos na frase de Elie Wiesel, prêmio Nobel da Paz, ele próprio um sobrevivente de Auschwitz e Buchenwald. Quando da morte de Primo Levi, em 1987, morte que não se sabe se ocorreu por acidente ou suicídio, Wiesel afirmou: "Primo Levi morreu em Auschwitz quarenta anos depois".

Lacan observa que os heróis trágicos estão sempre nessa zona de transposição do limite ordinário da vida, zona limite entre a vida e a morte (LACAN, 1991LACAN, J. (1991/1959-60) O seminário, livro 7, A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ./1959-60, p.330). "Seu suplício vai consistir em ser trancada, suspensa, na zona entre a vida e a morte. Sem estar ainda morta, ela já está riscada do mundo dos vivos", diz Lacan sobre a Antígona (idem, p.330). "Eles se creem fora do mundo, numa existência indefinível, que não é mais a vida real, mas sem o repouso da morte física, numa espécie de sobrevida dolorosa, que para eles não é senão um tipo de morte", diz Séglas sobre os cotardizados (SÉGLAS, 2006SÈGLAS, J. (2006/1894) O delírio das negações na melancolia. Revista Tempo Freudiano n.7- A clínica da psicose: Lacan e a psiquiatria, v.3, O corpo: hipocondria, Cotard, transexualismo, 2006, p.205-247./1894, p.224).

Guardemos, porém, a diferença entre o herói trágico, que nos faz ver a própria visada do desejo (LACAN, 1991LACAN, J. (1991/1959-60) O seminário, livro 7, A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ./1959-60, p.300), e o cotardizado, que Lacan diz ser imortal como o desejo (idem, 1995/1954-55, p.300), mas está, justamente, excluído do desejo. Antígona foi a esse lugar por seu ato, ligado a sua submissão radical às leis da linguagem e ao desejo que é delas tributário. O direito que ela invoca e defende com seu gesto é o direito "que surge na linguagem do caráter indelével do que é - indelével a partir do momento em que o significante que surge a detém como uma coisa fixa através de todo o fluxo de transformações possíveis" (LACAN, 1991/1959-60, p.337). O "registro do ser daquele que pôde ser situado por um nome" deve ser preservado pelo ato dos funerais.

"Antígona representa, por sua posição, esse limite radical que, para além de todos os conteúdos, de tudo o que Polinices pôde fazer de bem e de mal, {...} mantém o valor de seu ser. Esse valor é essencialmente de linguagem. {...} Essa pureza, essa separação do ser de todas as características do drama histórico que ele atravessou, é justamente esse o limite, o ex-nihilo em torno do qual Antígona se mantém. Nada mais é do que o corte que a própria presença da linguagem instaura na vida do homem." (LACAN, 1991LACAN, J. (1991/1959-60) O seminário, livro 7, A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ./1959-60, p.338)

É portanto por se impor a castração, por se submeter às leis da linguagem, que o herói trágico está aí. Já o cotardizado manifesta as consequências de não ter acedido a esse 'registro do ser que pôde ser situado por um nome', vale dizer, ao registro do nome, do significante. A rigor, a expressão de que é o registro do ser que deve ser preservado simbolicamente deve ser entendida, a nosso ver, na referência ao que Lacan disse logo antes, do "caráter indelével do que é", uma vez que "é" (está) na linguagem (cf. LACAN, 1991LACAN, J. (1991/1959-60) O seminário, livro 7, A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ./1959-60, p.338).

Que tipo de negação é possível sem Bejahung ?

No comentário ao texto de Freud sobre A negativa (FREUD, 1993FREUD, S. (1993/1925) "La negación", v.XIX, p.249-257./1925), Lacan afirma que a negatividade do discurso coloca a questão de saber "o que o não-ser, que se manifesta na ordem simbólica {lemos: o sujeito}, deve à realidade da morte" (LACAN, 1998LACAN, J. (1998) Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar./1954bLACAN, J. (1954b) "Introdução ao comentário de Jean Hyppolite sobre a 'Verneinung' de Freud, p.370-382., p.381).

Vemos que a existência do sujeito é tributária de uma negatividade. A negatividade introduzida pelo significante, que faz do sujeito um sujeito apenas representado por um significante, que é correlata da negatividade introduzida pelo falo como símbolo da perda do objeto e significação diretriz do desejo. Sabemos, com Lacan, que o sujeito é tributário das hiâncias instituídas pela linguagem, a primeira delas sendo a extração do objeto, que descompleta o sujeito, solidária do fato de que o sujeito, agora apenas representado no significante, descompleta, ele próprio, a cadeia significante. Se ela é primeira cronologicamente, ela depende retroativamente da significação fálica para se inscrever e estruturar, de um lado, um sujeito, marcado pela falta e pela morte, e, de outro, o objeto como perdido. O aforisma conhecido de Lacan, de que, para o psicótico, o corpo tem toda a importância (enquanto para o neurótico é o Outro) é formulado por ele na referência à ideia de que, na fantasia (neurose), o sujeito e o objeto estão "ligados" pela função do corte (LACAN, 1961LACAN, J. (1961-62/s/d) L'identification - Séminaire 1961-1962. Paris: Association lacanienne internationale. Publication hors commerce.-62/s/d, lição de 13/6/62, p.378). O corte é aquilo que separa o sujeito do objeto e é também aquilo que liga, a forma de ligação do sujeito com o objeto. A função do objeto estruturando o desejo depende de ele estar oculto, velado: "vemos como, em um momento, tudo recua, tudo se apaga na função significante, diante da ascensão, da irrupção desse objeto" (idem, ibidem.).

Podemos conceber a morte do sujeito na psicose como esse apagamento da função significante, visível na petrificação de tudo o que é fluxo, movimento, como o tempo e a fisiologia do corpo - "identificação a um real ao qual não falta nada, a um real sem furo: o que há de mais autenticamente terrível?" (CZERMAK, 1996CZERMAK, M. (1996) "Signification psychanalytique du syndrome de Cotard", in: Passions de l'objet. Études psychanalytiques des psychoses. Paris: Association freudienne internationale., p.216). Observando, como os clássicos já haviam assinalado, que o delírio das negações acontece também no contexto de outras evoluções psicóticas, Czermak afirma que "aí se indica a unicidade da psicose, o caráter central, em toda psicose, do fenômeno da morte do sujeito, da identificação ao cadáver, ao nada, ao a" (idem, p.215).

Portanto, de que negatividade se trata na morte do sujeito? Czermak propõe uma inversão: o 'negador' que é o cotardizado, na verdade afirma a sua repleção. "Trata-se de uma afirmação que utiliza o modo da negação, afirmação de não ter mais orifícios, de que todos os tubos de seu corpo estão fechados" (idem, p.203).

No mesmo sentido, Melman (2001MELMAN, C. (2001) "La présomption de Monsieur Cotard", in: BAUMSTIMLER, Y.; CACHO, J.; & CZERMAK, M. (Orgs.) Délire des négations - Actes du Colloque des 12 et 13 décembre 1992. 2 ed. Paris: Association freudienne internationale .) observa que a negação do Cotard é um tipo específico de negação que vem do real, na ausência do papel do falo e na ausência de Bejahung: "oposição vinda do real a tudo o que pretenderia existir se falta a instância fundadora e legitimante" (MELMAN, 2001MELMAN, C. (2001) "La présomption de Monsieur Cotard", in: BAUMSTIMLER, Y.; CACHO, J.; & CZERMAK, M. (Orgs.) Délire des négations - Actes du Colloque des 12 et 13 décembre 1992. 2 ed. Paris: Association freudienne internationale ., p.250). Ao nosso ver, o alcance dessa observação é o de mostrar que o real faz oposição a tudo o que pretenda abordá-lo de fora da castração, vale dizer, sem a aceitação de um limite à representação. O falo, ao mesmo tempo que franqueia ao sujeito o acesso à representação, o faz acatando com a impossibilidade de tudo representar, ou seja, constituindo o a como negatividade. "A negação própria à síndrome de Cotard vem então do real na medida em que ele tem a singularidade de recusar, de abolir tudo o que se proponha a representá-lo ou a contê-lo" (idem, p.251-2).

A síndrome de Cotard mostra as consequências para um sujeito de uma subsistência que não se apoia senão no real. O sujeito é um efeito do significante, neste sentido ele é também uma invocação, um encargo, uma exigência posta pelo significante. Cada sujeito, neurótico ou psicótico, é - ou terá sido - a resposta articulada no real em face dessa injunção que vem da incidência do significante. O neurótico tem o recurso da instância fálica, que dá a ele o anteparo da fantasia, suporte do desejo. Mas, mesmo assim, se encontra com o limite disso, pois o falo é apenas um operador do discurso que dá ao sujeito a possibilidade de sustentar o desejo por seu próprio ato e às suas próprias custas, na condição de se submeter à estrutura disposta pelo significante. Em "Subversão do sujeito...", Lacan afirma que o sujeito se constitui ao se subtrair da cadeia significante, ao descompletá-la, constitui-se por, ao mesmo tempo, "se contar ali e desempenhar uma função apenas de falta" (LACAN, 1998LACAN, J. (1998) Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar./1960, p.821). O limite do sujeito neurótico, portanto, está situado entre o risco de seu desvanecimento sob o significante - em prol de uma prevalência egoica que se fixa como imagem - e o seu apagamento como eu para se submeter ao significante e garantir o desejo, se responsabilizando pela perda de gozo implicada aí.

Em nenhum momento de seu ensino Lacan exclui o psicótico da assertiva de que o sujeito é suposto pelo significante. Nem mesmo quando aborda o que faz obstáculo a isso no nível do próprio significante. Ao falar da holófrase, Lacan afirma que a abolição do intervalo entre os significantes dá o modelo de toda uma série de casos: o fenômeno psicossomático, a debilidade mental da criança e a psicose, "ainda que, em cada um, o sujeito não ocupe o mesmo lugar" (LACAN, 2008LACAN, J. (2008/1964) O seminário, livro 11, Os quatros conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ./1964, p.231). Que lugar ele ocupa na psicose? Em seu "Pequeno discurso aos psiquiatras", Lacan afirma que a linguagem faz um sujeito porque engendra o fato de que o objeto causa de seu desejo, o sujeito tem que buscá-lo no Outro. Já o psicótico, sua causa, o a, ele não se separou dele, carrega-o consigo, ele tem o objeto a no bolso (LACAN, 1967, p.13). Assim, o neurótico se beneficia da colocação entre parênteses do objeto - referência ao i(a) e à separação do objeto na fantasia pela função do corte -, podendo supor que padece do desencontro com o objeto, enquanto, na verdade, padece do corte do significante. Ao passo que o psicótico padece do objeto, da presença real e opressiva do objeto em seu campo, colonizando o campo que seria o do sujeito. Assim, o sujeito psicótico está numa condição a tal ponto colapsada com o objeto que se confunde com ele - situação que o coloca sempre na iminência de sucumbir ao que Lacan chamou de morte do sujeito.

Que o sujeito tenha morrido, foi, como vimos, uma formulação original de Lacan para situar o que permitiu a Schreber aceder a alguma espécie de inscrição no delírio. Desdobramos essa noção em dois sentidos: como um momento da evolução de uma psicose que abre para um quadro mais favorável; e como um limite real ao qual o psicótico está confrontado, limite radical que circunscreve os elementos de estrutura da psicose. No primeiro desdobramento, a morte do sujeito e a recomposição imaginária são dois momentos de um mesmo processo. A morte do sujeito pode ser, numa dada evolução, uma espécie de equivalente psicótico daquilo que, no neurótico, permite a representação do sujeito. Neste caso, será que ela viria fazer as vezes da Bejahung que, por estrutura, não houve? Corresponderia e uma espécie de 'franqueamento à afirmação' na psicose, na medida em que permitiria operar em algum nível com a negatividade (no sentido em que abordamos a Bejahung, acima)? Não iremos tão longe a ponto de afirmá-lo assertivamente, o que exigiria uma abordagem mais ampla do conceito de Bejahung que não seria possível no escopo deste trabalho. Porém, o sentido em que trabalhamos a questão aqui - uma abertura à recomposição imaginária pelo delírio, vale dizer, a algum nível de representação - certamente enceta essa hipótese. Para além da clínica da psicose, portanto, ela ilumina essa dimensão em que a existência do sujeito é tributária da morte, e permite dizermos, com Lacan, que "a intermediação da morte se reconhece em qualquer relação em que o homem entra na vida de sua história" (LACAN, 1998LACAN, J. (1998) Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar./1953, p.320) - mesmo na psicose.

No segundo caso, é enquanto um limite real que a morte do sujeito está perfilada no horizonte da psicose. Ela corresponde à permanência do sujeito no quadro clínico que em Schreber foi transitório (estupor, representações delirantes relativas a estar morto, cotardização, evolução por assim dizer 'demencial'), ou à transposição do limite que Czermak chamou de "ponto de ato" (passagens ao ato suicidas, automutilações, condutas chamadas 'médico-legais') (CZERMAK, 2012CZERMAK, M. (2012) "A transferência nas psicoses. Os psicóticos resistem mal à transferência", in: Patronimias. Questões da clínica lacaniana das psicoses. Rio de Janeiro: Tempo Freudiano., p.192). Psicanaliticamente - à condição de não reificarmos a noção, que é essencialmente significante e operatória -, ela indica o empuxo da psicose em direção ao ser, a sempre iminente "reversão {do sujeito} com o objeto a" (idem, ibidem).3 3 A hipótese que buscamos explorar neste trabalho foi a de que a morte do sujeito é um elemento de estrutura da psicose que pode se desdobrar nas duas direções citadas acima. Se a prática nos mostra essas duas possibilidades de evolução clínica, o fato de elas derivarem de um mesmo elemento de estrutura obriga a não tomá-las como inteiramente separadas e abriria a possibilidade de abordar a questão por outras vias que não a que circunscrevemos aqui - por exemplo, a do delírio, que está presente nos dois casos.

Vemos, então, que não se trata, aqui, de colocar a questão, de resto sempre infinita e a ser modalizada em cada caso, sobre se há ou não sujeito na psicose, uma vez que a questão do sujeito é uma exigência ética, ao mesmo tempo que seu advento é um efeito - mas de interrogar como lidar, na clínica, nas instituições de tratamento, enfim, na transferência, com essa condição de ejeção iminente do sujeito.

Referências

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  • *
    O presente trabalho foi produzido no âmbito da pesquisa da tese de doutorado "Automatismo mental, desespecificação pulsional e morte do sujeito: a condição objetalizada do sujeito na psicose", apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro e orientada pela Prof. Fernanda Costa-Moura.
  • 1
    O "esquema R" é a formalização gráfica feita por Lacan, em "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose", de como se circunscrevem a percepção do objeto e o campo da realidade para o sujeito neurótico (LACAN, 1998/1958, p.559). O "esquema I", formulado por Lacan na sequência do mesmo texto, é a formalização da distorção desse esquema que acontece na psicose, mostrando que essa distorção, no entanto, contém os mesmos "pontos geométricos" do esquema R, indicando assim o trabalho de recomposição presente na psicose de Schreber (idem, p.577-8).
  • 2
    O jogo de palavras em francês é contundente, pela mínima diferença que existe entre as frases que expressam as duas ideias: "Il s'agit de savoir quelle mort, celle que porte la vie, ou celle qui la porte?" (LACAN, 1999/1960, p.290).
  • 3
    A hipótese que buscamos explorar neste trabalho foi a de que a morte do sujeito é um elemento de estrutura da psicose que pode se desdobrar nas duas direções citadas acima. Se a prática nos mostra essas duas possibilidades de evolução clínica, o fato de elas derivarem de um mesmo elemento de estrutura obriga a não tomá-las como inteiramente separadas e abriria a possibilidade de abordar a questão por outras vias que não a que circunscrevemos aqui - por exemplo, a do delírio, que está presente nos dois casos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    03 Out 2013
  • Aceito
    13 Maio 2014
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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