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SABER, VERDADE E GOZO: O MURO DE LINGUAGEM E A FUNÇÃO POÉTICA

Resumo:

Este artigo propõe uma articulação entre saber, verdade, gozo como uma escrita no muro de linguagem, interrogando acerca da possibilidade de sua transposição a partir da função poética. Tal função, em sua articulação com a lógica da inexistência da relação sexual, a qual contraria a lógica da não-contradição, nos aponta uma via para ultrapassar a significação fálica. Assim, parece-nos possível, pela via da função poética, uma tensão entre sentido e som que possa produzir um significante novo pelo ab-senso, de modo que esse significante possa se posicionar como carta de amor que se sustenta pela ressonância da causa do desejo.

Palavras-chave:
saber; verdade; gozo; função poética; lógica; sentido.

ABSTRACT:

This article proposes a link between knowledge, truth and jouissance as a writing on the wall of language, inquiring about the possibility of transposing this wall through the poetic function. Such function, in its articulation with the logic of the inexistence of sexual relation, which contravenes the logic of non-contradiction, shows us a way to overcome the phallic signification. Thus, it seems possible, by means of the poetic function, that a tension between sense and sound is able to produce a new signifier through the ab-sense, so that this signifier can place itself as a love letter that maintains itself by the resonance of the cause of the desire.

Keywords:
knowledge; truth; enjoyment; poetic function; logic; sense.

Introdução

Este artigo deriva de indagações a partir do seminário O avesso da psicanálise (1969-1970/1992), onde Lacan aponta a relação entre a verdade, o saber e o gozo, tomando a verdade como uma estrutura de ficção, pelo fato de só podermos acessá-la por um semi-dizer, de modo que só alcançaríamos uma meia-verdade. Quanto ao saber, este também será colocado em cheque pela psicanálise, sublinhando seu caráter de não totalidade:

O saber, então, é posto no centro, na berlinda, pela experiência psicanalítica. Isto, por si só, nos impõe um dever de interrogação que não tem razão alguma para restringir seu campo. Para dizer de uma vez, a ideia de que o saber possa constituir de algum modo, ou em algum momento, mesmo que seja de esperança no futuro, uma totalidade fechada - eis o que não tinha esperado pela Psicanálise para parecer duvidoso. (LACAN, 1969LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992. (O seminário, 17).-1970/1992, p. 31)

Nesse momento, o autor acentua que a dubitação acerca do saber foi interrogada pelos céticos1 1 Ceticismo: derivado do grego skepsis, significa “examinar”. O cético é aquele que apresenta um espírito hesitante e se vale da crítica para compor seus argumentos. Além disso, afirmam que apenas pode-se ter uma certeza, a de que nada se sabe, levando a uma negação categórica. , que se baseavam na doutrina de que não se pode obter nenhuma certeza sobre a verdade, o que sugere um permanente questionamento acerca de fenômenos metafísicos, religiosos e dogmáticos. O analista se aproxima do cético ao manejar a análise contra a tentativa de encontrar um saber esférico e fechado no inconsciente, pois o saber não se sabe ao nível de S2, o qual é chamado de outro significante. Apesar do grande Outro estar repleto de significantes, um saber-totalidade nunca será alcançado, ou seja, “Tróia nunca será tomada”, como nos diz o autor. E completa:

Em minha primeira enunciação, há três semanas, partimos de que o saber, no primeiro estatuto do discurso do senhor, é a parte do escravo. Pensei ter indicado, sem poder desenvolver da última vez por um pequeno contratempo - que lamento -, que o que se opera entre o discurso do senhor antigo e o do senhor moderno, que se chama capitalista, é uma modificação no lugar do saber. (LACAN, 1969LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992. (O seminário, 17).-1970, p. 32)

Lacan (1969LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992. (O seminário, 17).-70/1992) prossegue em seu ensino interrogando o que nos ensina o S2 na posição da verdade no discurso do analista. Anuncia-nos que o analista ocupa o lugar de a, sustentado por um saber, S2, quer seja um saber adquirido através da fala do analisante quer seja um saber adquirido por sua experiência de análise ou por seu estudo, não sem relação com o seu savoir-faire, o que torna possível associar essa posição com a de uma ignorância douta.

Apoiado nesse saber, o analista põe o sujeito a trabalhar. Este, ao ocupar o lugar de agente no discurso da histérica, o qual pode ser aproximado ao discurso científico, produz um homem com desejo de saber, que sairá em busca de um saber que não se sabe.

A partir dessas formulações, o autor indaga: o que seria a verdade como saber? Sua resposta: a verdade como saber está em relação com um enigma. Retomemos um trecho de seu seminário (ibid., p. 37): “Creio que vocês veem o que aqui quer dizer a função do enigma - é um semi-dizer, como a Quimera faz aparecer um meio-corpo, pronto a desaparecer completamente quando se deu a solução”. E acrescenta: “Um saber como verdade - isto define o que deve ser a estrutura do que se chama uma interpretação”. Extrai-se, então, que o saber como verdade tem estrutura de interpretação, como podemos visualizar no discurso do analista apresentado abaixo, onde o saber, S2, como já dissemos, ocupa o lugar da verdade.

Para o autor, a interpretação é manejada pelo analista a fim de possibilitar a construção de um enigma pelo analisando; enigma que está em relação com a enunciação. Desse modo, cabe analisarmos o estatuto do sujeito da enunciação no ensino de Lacan.

Entre o enunciado e a enunciação

Se considerarmos que Lacan (1972LACAN, J. ou pior (1971-1972). Rio de Janeiro: J. Zahar, 2012. (O seminário, 19)./2011) se situava na posição de analisando quando pronunciava o seu ensino, destacando que a sua fala, nessa ocasião, era distinta de seu discurso, podemos aproximá-la da fala dos sofistas2 2 Com o advento da democracia na Grécia antiga, as questões filosóficas não confluem mais para explicar o ser das coisas, pois a importância passa a residir na retórica a fim de fazer prevalecer um determinado argumento nas assembleias. Assim, para atender tal demanda, surgem os sofistas, os quais visavam a persuasão pelo uso da fala, com o objetivo de derrotar o argumento de um adversário em um debate. Eles ofereciam o seu trabalho, argumentando serem portadores de um saber universal, porém o seu discurso não necessariamente demonstrava uma relação entre as palavras e as coisas, já que buscavam a refutação. Desse modo, os sofistas não pretendiam alcançar uma verdade absoluta, mas convencer o seu público acerca do que discursavam. , a partir de sua afirmação (LACAN, 1964LACAN, J. Problemas cruciais para a Psicanálise (1964-1965). Rio de Janeiro: J. Zahar, inédito. (O seminário, 12).-1965/2006) de que o psicanalista é a presença do sofista em nossa época, porém com outro estatuto, pois estes sofreram uma expulsão do campo discursivo.

Considerando que a fala de Lacan estivesse situada no discurso histérico, será que podemos dizer que, no lugar de semblante, estava a pretensão de gozar da produção de um saber pelo outro, que se configura como da ordem da impossibilidade? Será que podemos inferir que Lacan, ao mencionar o seu discurso como diferente de sua fala, aponta que este se refere à posição de objeto a no lugar de semblante a fim de causar o desejo do sujeito a quem o endereça? Estaria aí a questão da incompreensão do ensino lacaniano? Qual o estatuto da enunciação no seu estilo? Parece-nos que Lacan optou por um estilo sofista de transmissão, que se relaciona com a enunciação.

Já que partimos da concepção de que esta discussão remete, fundamentalmente, a uma articulação entre psicanálise e filosofia, e entre psicanálise e ciência, a investigação acerca da enunciação passa a ter um papel primordial, já que a filosofia e a ciência foram fundadas sob a primazia do enunciado.

Para tanto, precisamos compreender a afirmação de Lacan: “Que se diga fica esquecido por trás do que se diz em o que se ouve” (LACAN, 1972LACAN, J. ou pior (1971-1972). Rio de Janeiro: J. Zahar, 2012. (O seminário, 19)./2003, p. 448). A partir dessa formulação, podemos articular que a enunciação está na ordem de toda representação possível, a qual se contrapõe ao princípio de não contradição aristotélico, por poder operar com a contradição, sem a qual, não se pode dizer nada. Na lógica aristotélica, localizamos o ato de expulsão dos sofistas.

Neste último ensino de Lacan, verificamos a primazia da enunciação. O autor postula que todo enunciado dissociado da enunciação não pode estar fora da alienação, a qual corresponde à perda de si, pensada como a própria tragédia do sujeito se tomarmos a tragédia como a narrativa de um fracasso calculado necessário ao saber. Teríamos, no eixo diacrônico, não apenas a enunciação, mas também a fonética da fala.

Sobre a fonética e a articulação entre enunciado e enunciação, podemos nos remeter aos trabalhos dos gramáticos Pichon e Damourette (1911 apud MACHADO, 2012MACHADO, B. F. V. A gramática de Damourette e Pichon com Lacan: uma problemática da enunciação. Alfa. São Paulo: Unesp, 2012. Ano I, n. 56.), que não só se ocuparam de estudar a relação entre linguagem e psicanálise, mas também a relação entre linguagem e inconsciente. A principal obra desses autores nesse campo, que muito influenciou Lacan em seus estudos acerca da linguística, chama-se Des mots à la pensée: essai de grammaire de la langue française, considerada um grande compêndio que se ocupou de abordar exemplos colhidos do cotidiano dos franceses, da literatura, de inúmeros momentos diacrônicos dessa língua etc. Fato curioso é que, além de linguista, Pichon também era psicanalista, sendo o primeiro linguista a se dedicar a essa prática, demonstrando também um pioneirismo na articulação entre linguística e psicanálise com a publicação de textos a partir dessa interface. Seu pioneirismo também se observou na sua especial atenção à problemática da enunciação nos fatos de linguagem, que será utilizada por Lacan em seus desenvolvimentos sobre a questão da enunciação e sua articulação com o campo psicanalítico.

Lacan irá se utilizar da teoria da pessoa gramatical e da análise do uso da negação em francês, abordando os aspectos foraclusivos e discordanciais - os quais serviram de mote para investigar a noção de Verwerfung a partir de Freud, na tentativa de compreensão do campo das psicoses. Sua abordagem sobre o estatuto da negação e a questão da foraclusão está associada a uma problemática central: a do sujeito da enunciação.

No seminário O desejo e a sua interpretação (1957-1958/inédito), Lacan aborda a duplicidade do significante entre o processo do enunciado e o ato de enunciação. A distinção do sujeito nesses dois processos é mais bem elucidada pela negativa a partir de Freud e pela gramática de Pichon e Damourette.

No texto A negativa (1925/2007), Freud aponta que a Verneinung é um índice de recalque relativo a um não querer saber acerca da Bejahung, a afirmação primordial. Nesse caso, devemos descartar a negação da frase e nos atermos ao conteúdo, o que em muito se aproxima das formulações dos gramáticos citados acima com relação ao ne, em francês, que assume um tom discordancial nas frases subordinadas. Isso nos diz, como já é sabido, mas não custa relembrar, que o conteúdo recalcado, muitas vezes, retorna sob a forma de uma negação do desejo. Isso seria um bom exemplo de contradição, já que algo negado na fala é ao mesmo tempo desejado pelo sujeito, o que contraria o princípio de não contradição aristotélico, de acordo com a lógica clássica.

A análise de Lacan, nesse momento, é focada na negação e ele vai se servir dos estudos acerca desta, onde se distingue o seu uso corrente do uso discordancial e foraclusivo na fala. Isso se apresenta no dizer de Lacan em seu seminário (1957-58, p. 58): “O ne, por si só, entregue a si mesmo, exprime o que ele chama uma discordância, e esta discordância é muito precisamente alguma coisa que se situa entre o processo da enunciação e o processo do enunciado”. Com isso, aproxima Pichon e Damourette de uma linguística da enunciação, pois estes postulam que o ne éxpletif discordancial demarca a discordância presente entre o enunciado e a enunciação (MACHADO, 2012MACHADO, B. F. V. A gramática de Damourette e Pichon com Lacan: uma problemática da enunciação. Alfa. São Paulo: Unesp, 2012. Ano I, n. 56.).

Apesar deste ne éxpletif demarcar o desacordo entre enunciado e enunciação para Lacan (1959-60/2008), ele também irá, por estar vinculado ao sujeito da enunciação, se remeter ao sujeito do inconsciente. No momento em que este ne aparece, significa que é o sujeito que está falando e não o Outro, ou seja, que ele não é falado pelo Outro, como nos diz Lacan (1959LACAN, J. As formações do inconsciente (1957-58). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1999. (O seminário, 5).-1960/2008, p. 81): “A partícula negativa ne só aparece a partir do momento em que falo verdadeiramente, e não no momento em que sou falado, se estou no nível do inconsciente”.

O sujeito da enunciação está presente em vários momentos da obra de Lacan, como nos seminários As psicoses (1955-1956/2008), O desejo e a sua interpretação (1957-1958/inédito), A ética da psicanálise (1959-1960/2008) e A identificação (1961-1962/2011). No seminário O desejo e a sua interpretação, Lacan destaca que a negação afirmará algo no enunciado para colocá-lo, imediatamente, como não existente e situado entre o enunciado e a enunciação.

Um bom exemplo de uso do ne éxpletif é a frase: je crais qu´il ne vienne, presente em formulações no seminário A ética da psicanálise (1959-1960/2008). O autor explica que o je crais indicaria que se teme alguma coisa, fazendo-a surgir na sua existência de voto. No seminário A identificação (1961-1962/2011), esse exemplo irá surgir novamente, de modo que o autor assinalará que essa frase marca em uma ausência a distinção do sujeito do enunciado em relação ao sujeito da enunciação, associando essa delimitação à dialética no campo do Outro.

No entanto, é necessário haver o cuidado de demarcar a diferença entre a distinção enunciado/enunciação empreendida pela linguística e a realizada pela psicanálise lacaniana. Geralmente, verificamos os linguistas apontarem o sujeito da enunciação como agente e não como suporte, diferentemente do campo psicanalítico. Além disso, enunciado e enunciação estão, na maioria das vezes, conjugados no discurso da linguística, enquanto que, para Lacan, ambos estão bem dissociados.

Na linguística, a enunciação é comumente confundida com o ato de produzir um enunciado, e o objeto de estudo, que deveria ser este ato, passa a ser o conteúdo do enunciado, conforme pontua Benveniste (2006 apud MACHADO, 2012MACHADO, B. F. V. A gramática de Damourette e Pichon com Lacan: uma problemática da enunciação. Alfa. São Paulo: Unesp, 2012. Ano I, n. 56.), ressaltando, também, que a enunciação pode ser um ato de apropriação e de utilização da língua pelo sujeito, pois o falante a molda a sua maneira, tomando-a como um instrumento, no processo de enunciação.

No entanto, enquanto que, para este autor, a dimensão do outro como alocutário encontra-se no destaque que é dado na relação onde o outro é parceiro nesse ato de enunciação, Lacan (1957LACAN, J. O desejo e a sua interpretação (1957-1958). Rio de Janeiro: J. Zahar, inédito. (O seminário, 6).-1958/inédito) assinala que o parceiro no processo de enunciação é o Outro do inconsciente.

Destarte, a formulação lacaniana do sujeito da enunciação é, prioritariamente, coincidente com os estudos de Pichon e Damourette sobre a função do ne discordancial, que impõe uma disjunção entre o que o sujeito deseja e aquilo que é provável ou que é mais possível. Logo, se o que está em jogo não é uma oposição intelectual, mas sim uma manifestação de um estado psicológico daquele que enuncia, conforme postulam os dois gramáticos, considera-se que o sentido tem uma primazia na influência sobre esse ato, demonstrando o esforço da linguística em articular questões acerca do sujeito e da linguagem (MACHADO, 2012MACHADO, B. F. V. A gramática de Damourette e Pichon com Lacan: uma problemática da enunciação. Alfa. São Paulo: Unesp, 2012. Ano I, n. 56.). Como tais articulações nos endereçam ao sujeito do inconsciente e à primazia da enunciação, já que a função do ne discordancial está relacionada com a contradição posta entre enunciado e enunciação, é preciso reportar-se à discussão apresentada em O aturdito (1972/2003), onde Lacan opõe o princípio da inexistência da relação sexual, que derroga a contradição, ao princípio de não-contradição de Aristóteles, tema tão caro à psicanálise. No entanto, faz-se necessário, antes de entrarmos nesse tema, retornarmos à discussão acerca da relação entre saber, verdade e gozo, pois a tensão entre enunciado e enunciação está atrelada a estes três termos. Para Lacan (1969LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992. (O seminário, 17).-1970/1992), o que motiva a função do saber é a dialética com o gozo, o que nos leva à articulação lacaniana do saber como meio de gozo na sua relação com a verdade, o que será mais bem elucidado a seguir.

Saber, verdade e gozo: do muro (mur) à carta de amor (lettre d’amour)

Pacheco (2008PACHECO, A. L. P. O dote que o saber paga ao gozo (la jouissance) no casamento fictício com a verdade. Textura. Rio de Janeiro: Publicação das Reuniões Psicanalíticas, 2008. N. 7. ) nos dirá que, entre saber e verdade, há um casamento fictício e que a verdade paga um dote ao gozo (la jouissance) para se casar com o saber. Aqui, a peculiaridade dessa união não acontece por amor, mas sim por interesse, pois há uma inacessibilidade pelo lado da noiva e uma impotência pelo lado do noivo. E, para entender essa relação, a autora revela que o verdadeiro amante da verdade é Sade, o qual nos leva a conceber a verdade como irmã de gozo, ou melhor, de la jouissance, que é uma mulher. E é justamente essa “cunhada” que promove uma disjunção entre o saber e a verdade.

O gozo é um interdito a todo ser falante, só podendo ser acessado pela via do gozo fálico, o qual pode ser partilhado e calculado. No entanto, há também o Outro gozo que está fora da linguagem, no real, não podendo ser acessado através do saber e do significante. Nesse casamento, o saber, que é o do inconsciente, tenta alcançar o Outro gozo, A Mulher, que seria a própria verdade como inacessível. No entanto, paradoxalmente, o saber como meio de gozo, ao operar pela via da repetição, promove uma perda de gozo e constrói um sentido obscuro: a verdade. A autora nos diz que não há outro modo do sujeito acessar o real a não ser pelo casamento fictício entre saber e verdade, ou seja, pela via da fantasia, e caberá somente à análise promover sua construção e travessia.

Nos anos de 1971 e 1972, Lacan ministrou uma série de palestras na Capela do Hospital de Sainte-Anne, às quais nomeou O saber do psicanalista. Essas palestras foram inspiradas por toda a discussão levantada pelas formulações de Bataille acerca do não-saber. Nesse seminário, o autor está novamente articulando saber, verdade e gozo. Sua formulação nos traz a verdade como o não-saber. Isso nos revela a questão relativa à posição que o analista deve ocupar para sustentar o saber do psicanalista, situando o discurso do analista na fronteira sensível entre verdade e saber.

Nessa ocasião, indaga sobre a incompreensão de seu ensino e se está mesmo falando a alguém. Conclui que fala aos muros, mas que o muro faz repercutir alguma coisa, pois a sua fala, certamente, interessaria a alguém, além de lhe devolver a sua própria voz, a qual deve estar afinada ao ser dirigida aos muros. E, a partir dessa elaboração, Lacan nos diz que no muro encontra-se a linguagem.

Com tal formulação, acrescenta que no muro temos a presença dos discursos, fazendo referência aos quatro termos, S1, S2, sujeito barrado ($) e objeto a, e situando o sujeito como suposto a partir do significante. Para além desse muro, há a possibilidade de construir um sentido referente à verdade, ao semblante, ao gozo e ao mais-de-gozar. Ressalta, ainda, que o muro (mur) sempre pode servir de muroir, a partir de um neologismo que constrói com miroir (espelho) e mur (muro).

Nesse momento, recorre a um poema de Antoine Tudal:

Entre o homem e a mulher Há o amor. Entre o homem e o amor Há um mundo. Entre o homem e o mundo Há um muro.

A partir desse trecho, assegura que o amor que há entre o homem e a mulher os une. Já o mundo existente entre o homem e o amor faz algo “flutuar”. A referência ao muro que está entre o homem e o mundo traz um entre, uma interposição. Retomando o que está entre o homem e a mulher - o amor - ele o situa em um tubo que se revira sobre ele mesmo, fazendo referência às figuras topológicas da garrafa de Klein e da banda de Moebius, de modo que situa o homem do lado direito desse tubo e a mulher do lado esquerdo. E continua sua formulação apontando que o mundo que há entre o homem e o amor seria o próprio mundo no sentido bíblico, ou seja , um mundo com um conhecimento que abarcaria tanto o lado demarcado como o do homem, quanto o da mulher. Além disso, recupera o muro existente entre o homem e o mundo como o reviramento na junção entre a verdade e o saber, e também como o lugar da castração, levando o saber a manter o campo da verdade como inalterado.

O amor, por sua vez, tem relação com o muro proposto. Lacan acrescenta que não se pode falar de amor, mas que se pode escrever sobre ele. Nessa escrita, teríamos a carta de (a)muro, o que significa que, entre o homem e o muro, há a carta de amor. Desse modo, o que aparece na relação entre o homem e a mulher é a própria castração, o que poderia ser demonstrado pela lógica e pela topologia.

E como podemos pensar na possibilidade de uma escrita que remeta à carta de amor ou a um novo amor? Essa via seria possível pela tentativa de transpor o muro da linguagem, muro este que pode ter a função de reverberação? Para tanto, devemos nos deter a analisar o estatuto da enunciação na passagem do princípio da não contradição aristotélico ao princípio da não existência da relação sexual, nos valendo da lógica para tal discussão.

Do princípio “não há contradição” ao princípio “não há relação sexual”

De acordo com Lacan, a operação sobre a fala pode ser manejada a partir de um enigma construído. Além disso, o autor nos diz que o enigma está em relação com o sentido. Essa formulação nos aproxima do texto O aturdito (1972/2003), onde Lacan dá um passo a mais e nos aponta uma direção a partir do equívoco ab-senso e da homonímia, propondo a psicanálise como aturdimento e o princípio da não relação sexual em contraposição ao princípio de não contradição de Aristóteles, como comenta Cassin (2013)BADIOU, A. & CASSIN, B. Não há relação sexual: duas lições sobre “O aturdito” de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013. 96p.. Desse modo, coloca o sujeito da enunciação como submetido ao princípio da não relação sexual, a partir das formulações da lógica não-toda que será construída nesse período de seu ensino.

Para Cassin (2013)BADIOU, A. & CASSIN, B. Não há relação sexual: duas lições sobre “O aturdito” de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013. 96p., nós podemos falar somente pelo prazer de falar. Essa afirmação contraria o princípio de não contradição de Aristóteles e acentua que o sujeito pode ou não estar implicado no discurso que pronuncia.

A ciência moderna, orientada pela lógica aristotélica, baseia-se em uma perspectiva unívoca representada por uma tentativa de construção de uma verdade absoluta. No entanto, a psicanálise vai de encontro com tal princípio, mesmo fazendo uso deste para subvertê-lo - o giro nos discursos é um bom exemplo dessa subversão -, pois, a partir da perspectiva lacaniana, temos o aforisma “não há metalinguagem”, o que quer dizer que os discursos são equivalentes e, por conta disso, não existe um discurso que sustente uma verdade única.

Em O aturdito (1972/2003), Lacan toma a verdade como interpretação que produz sentidos em seus efeitos. Aqui, abandona a noção de hermenêutica e se vale da proposição de uma proliferação de sentidos, o que comporta uma relação de incerteza, promovendo a castração do grande Outro da filosofia.

Como comenta Cassin (2013)BADIOU, A. & CASSIN, B. Não há relação sexual: duas lições sobre “O aturdito” de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013. 96p., Lacan empreende uma desconstrução da metalinguagem ou de uma ideologia da metalinguagem e da hierarquia discursiva, esta como produtora de efeitos sociais. Isso anuncia que se torna impossível a reconstrução da palavra através da metalinguagem, o que evitaria formas de alienação do sujeito com a linguagem ou uma fixação em uma única significação e, por conseguinte, em uma verdade. Desse modo, temos que a relação do sujeito com a palavra é de passividade e de incerteza.

Lacan (1972LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992. (O seminário, 17)./2003) nos leva a um caminho que vai além do enunciado, a partir da presunção da primazia da enunciação: “Que se diga fica esquecido atrás do que se diz e no que se ouve” (p. 448). A partir disso, teríamos as línguas como integrais de uma série de equívocos. Sendo assim, reconhecemos que os equívocos intratáveis, o que remete ao indecidível, não podem ser pensados a partir da lógica aristotélica. Esses equívocos só podem ser pensados a partir de lalíngua, termo cunhado por Lacan em um ato falho com a palavra lalande, onde queria fazer referência a algo que estava para além da linguagem, mas sem prescindir da mesma, pois ela engendra uma proliferação de sentidos, ou seja, ela expele o sentido. Isso salienta que não há relação sexual para a língua, pois ela é dependente do significante, de sua primazia. Nesse caso, nos remetendo à clínica, em uma situação de análise, o analisando pode ser situado no polo poiético (poiésis3 3 Poiésis: a ação de produzir algo de forma criativa. ) e o analista em um polo estético (aisthésis4 4 Aisthésis: é o campo da filosofia que estuda a natureza do belo e dos fundamentos da arte. ).

Com este novo regime discursivo de lalíngua, a partir do princípio de que não há relação sexual, temos uma nova relação com o gozo: uma operação do gozo fora do regime fálico e com um outro sujeito colocado em causa. No entanto, uma questão é imposta: que relação há entre lalíngua e a fala?

Lalíngua parece funcionar a partir de um regime de separação vocálica, o que se mostra diferente do regime discursivo patriarcal, um regime referencial onde as consoantes têm primazia, colocando em questão a letra, a partir da prevalência da função sonora. Como nos diz Cassin (2013BADIOU, A. & CASSIN, B. Não há relação sexual: duas lições sobre “O aturdito” de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013. 96p., p 17): “Por meio dessa dupla operação de equívoco e de escrita é que ‘O aturdito’ se situa no ab-senso que ele produz”.

Qual a relação entre a letra e a voz em lalíngua? Sobre isso, Cassin (2013BADIOU, A. & CASSIN, B. Não há relação sexual: duas lições sobre “O aturdito” de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013. 96p., p. 19) comenta que: “Os símbolos da linguagem animal nunca são equívocos; os da linguagem humana, que há nos sons da voz e, ainda mais perturbador, nas letras (na letra), o são”.

Retomemos O aturdito:

Começo pela homofonia - da qual depende a ortografia. Que, na língua que me é própria, como brinquei mais acima, equivoque-se o dois {deux} por deles {d’eux}, conserva um vestígio da brincadeira da alma segundo a qual fazer deles dois-juntos encontra seu limite em “fazer dois” deles. {...} Encontramos outras neste texto, desde o pareser {parêtre} até o s’emblemante {s’emblant}. {...} Afirmo que todos os lances são permitidos aí, em razão de que, estando qualquer um ao alcance deles, sem poder reconhecer-se nisso, são eles que jogam conosco. Exceto quando os poetas os calculam e o psicanalista se serve deles onde convém. (LACAN, 1972LACAN, J. O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992. (O seminário, 17)./2003, p. 493)

Considerando o novo regime discursivo de lalíngua, onde a função sonora tem prevalência sobre a função referencial, nos indagamos: é possível, a partir desse novo regime linguístico, transpor o muro de linguagem? Parece-nos que essa operação está relacionada à função poética da linguagem tal como formulada por Jakobson (1960JAKOBSON, R. Linguística e poética (1960). In: . Linguística e comunicação. São Paulo: Editora Cultrix, 1969./1969), na qual a função sonora tem prevalência, possibilitando a produção de um novo sentido, considerando que Lacan nos anuncia que a psicanálise pode se utilizar da homofonia em direção ao equívoco quando lhe convém. A topologia pode nos ajudar a pensar sobre tal questão, na tentativa de articular lógica e poética na experiência analítica.

A lógica da inexistência da relação sexual e a função poética

Tentando abordar essa relação a partir do que propõe Lacan, recorremos a Bousseyroux (2013BOUSSEYROUX, M. Os três estados da palavra: topologia da poesia. Conferência ministrada na Universidade de São Paulo, USP em 25 de abril de 2013. Inédito.), quando esse nos apresenta aquilo que chama de “os três estados da palavra”. Assim como a matéria possui três estados, a palavra também os possui. Porém, estes não são nem físicos nem psíquicos, mas sim, topológicos, quais sejam: a palavra vazia, a qual remete à significação fálica, a palavra plena, que se refere à duplicidade de sentidos e ao indecidível, e a palavra poética, que suspende o sentido. E é o estado da palavra poética que nos interessa analisar nesse momento, na medida em que passa a ter uma importante função para a clínica psicanalítica a partir de Lacan.

Em diversos momentos de sua obra, o psicanalista faz referência à poesia, demonstrando o estilo que já estava sendo delineado antes mesmo do início de seu ensino nos anos 50. No entanto, para entender o que o autor articulou acerca da poesia, devemos, em primeiro lugar, compreender o que ele diz sobre a palavra, para, posteriormente, compreender o que ele aborda sobre um dos seus estados, a palavra poética.

No seminário Os escritos técnicos deFreud (1953LACAN, J. Os escritos técnicos de Freud (1953-1954). Rio de Janeiro: J. Zahar, 2009. (O seminário, 1).-1954/2009), Lacan nos diz que a palavra ou o conceito é a palavra em sua materialidade e articula que se trata da própria coisa, ou seja, a palavra é a coisa. Além disso, articula a palavra como algo que se desloca na dimensão da verdade: “a palavra, desde que se instaura, se desloca na dimensão da verdade. Só que a palavra não sabe que é ela que faz a verdade. {...} é em relação à verdade que se situa a significação de tudo que é emitido.” (LACAN, 1953LACAN, J. Os escritos técnicos de Freud (1953-1954). Rio de Janeiro: J. Zahar, 2009. (O seminário, 1).-1954/2009, p. 295).

A palavra, ao remeter à verdade, ultrapassa aquele que a enuncia; e isso diz respeito ao enunciado e à enunciação. Ao se indagar sobre a estrutura desta palavra, que está para além do discurso, ressalta seus três movimentos dialéticos: Verdichtung, a condensação, a Verneinung, a negação, e a Verdrangung, o recalque, como o único movimento que interrompe a fala, posto que nele faltam palavras ao falante.

Ao fazer referência à Verdichtung, Lacan nos diz que esta

se mostra não ser mais que a polivalência dos sentidos na linguagem, seus acavalamentos, seus recortes, pelos quais o mundo das coisas não é recoberto pelo mundo dos símbolos, mas é retomado assim - a cada símbolo correspondem mil coisas, a cada coisa, mil símbolos. (LACAN, 1953-1954/2009, p. 305)

Segundo Garcia (2010GARCIA, M. G. Da metáfora ao literal - Jacques Lacan com Arnaldo Antunes. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. 2010.), Lacan elaborará o conceito de metáfora, como a função primordial do significante, a partir da Verdichtung. Dichtung, sem o prefixo Ver, corresponde ao ato de versejar, poetizar, mas também pode significar apertar, assim como Drang, que remete a Verdrangung. Deste modo, podemos articular que o recalque não é sem a condensação.

A etimologia da palavra Dichten diz respeito a compor uma obra de arte oral ou falada. Dichter significa poeta, enquanto Ver corresponde ao ato de comprimir algo em uma língua, sendo um prefixo que pode ser utilizado na formação de substantivos e adjetivos ou na formação com verbos (OXFORD; DUDEN, 1985 apud GARCIA, 2010GARCIA, M. G. Da metáfora ao literal - Jacques Lacan com Arnaldo Antunes. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. 2010.). Jakobson (1960JAKOBSON, R. Linguística e poética (1960). In: . Linguística e comunicação. São Paulo: Editora Cultrix, 1969./1969) irá afiançar que a poética está articulada com o problema: o que é que faz de uma linguagem verbal uma obra de arte? O objeto principal da poética seria as differentia specifica entre a arte verbal e as outras artes e espécies de condutas verbais. Deste modo, é possível pensar que o analisante faz arte com a fala ao articular os significantes, produzindo metáforas ao fazer uso da função poética.

Ainda no seminário Os escritos técnicos de Freud (LACAN, 1953LACAN, J. Os escritos técnicos de Freud (1953-1954). Rio de Janeiro: J. Zahar, 2009. (O seminário, 1).-1954/2009), Lacan anuncia que a palavra só comparece no discurso a partir da regra fundamental da associação livre, posto que suspende o princípio de não contradição aristotélico e o que foi exposto acerca do estatuto da enunciação, a partir do ne explétif. Nesse caso, Lacan postula que, na medida em que essa palavra é revelada, ocorre a realização do ser, que só existe virtualmente, o que, posteriormente, se coaduna com a formulação de que o sujeito é produzido somente em análise.

Em seu estilo ao longo de seu ensino, Lacan fez uso da palavra poética. Talvez por isso, a queixa de muitos de que não se fazia compreender. Em 1929, ele escreveu um poema chamado Hiatus Irrationalis onde há um verso que diz: “Mas, se todos os verbos na goela definham / Coisas, vindo do sangue ou da forja tenham, / Natureza - no fluxo elemental vagueio” ou “No cego e surdo mal, no deus de senso findo”. No momento desse escrito, ele parece já estar falando da insuficiência da palavra para dar conta do sentido ou, como nos diz Bousseyroux (2013BOUSSEYROUX, M. Os três estados da palavra: topologia da poesia. Conferência ministrada na Universidade de São Paulo, USP em 25 de abril de 2013. Inédito., p. 4), “que prelúdio, que presságio assim se profere! Hiatus irrationalis, hiato de um sem razão, hiância de um extrassenso, o esp de um laps - é bem isso o inconsciente do qual, bem mais tarde, Lacan reinventará o real”.

No mesmo ano em que publica Hiatus irrationalis, há a publicação do seu artigo intitulado O problema do estilo, na revista surrealista e batailleana Minotaure, onde fala de uma possível solução teórica para o problema do estilo, incluindo o do artista. Com este exemplo de articulação, Bousseyroux (2013BOUSSEYROUX, M. Os três estados da palavra: topologia da poesia. Conferência ministrada na Universidade de São Paulo, USP em 25 de abril de 2013. Inédito.) assinala que podemos conceber o estilo lacaniano como poético. E este, para Lacan, seria indispensável para a interpretação em análise, o que é demonstrado pelas várias referências que faz sobre a poesia em sua obra. Além disso, Bousseyroux (2013)BOUSSEYROUX, M. Os três estados da palavra: topologia da poesia. Conferência ministrada na Universidade de São Paulo, USP em 25 de abril de 2013. Inédito. nos traz a questão sobre a possibilidade de uma solução teórica através da topologia para este estilo poético.

O próprio Lacan, pós-joyceano, (1976LACAN, J. Seminário L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre (1976-1977). Inédito./2003, p. 568) afirma: “Eu nasci poema, mas não-poeta”. Isso é diferente de dizer “eu sou próprio à identificação ao sintoma”, como aquilo, de acordo com Bousseyroux, “que tangencia a relação nativa do falasser com ‘lalíngua’” (ibid., p. 6). Lacan, ao dizer que não é poeta o suficiente, mas sim poema, faz referência a uma questão topológica e não ontológica, afirmando que seu poema assinado como Lá-quand, brincando com a homofonia em relação ao seu nome próprio, indica o significante como indício que responde ao real.

Isso pode dar indicações do que em lalíngua é poema, por ser a intercessora do saber inconsciente, visto que não ascende ao S1, mas possibilita operar sobre o Um encarnado em lalíngua, indicando que aí se goza. “Lalíngua nos faz nascer poema”, nos fala Bousseyroux (2013BOUSSEYROUX, M. Os três estados da palavra: topologia da poesia. Conferência ministrada na Universidade de São Paulo, USP em 25 de abril de 2013. Inédito.). Ao nascermos, somos poema como falasser. No entanto, não há ainda poeta, pois o que se apresenta é o saber sem sujeito do insconsciente-lalíngua. Trata-se de um poema sem sujeito.

O autor nos diz que Léon-Paul Fargue, poeta e escritor francês, nos traz o desejo de que sejamos não não-poeta {pas papouète}. Este apresenta, em seu poema, significantes assonantes de lalíngua, com grupos de fonemas homófonos, poésie, pouasie, papou, papouasie, condensando-se e produzindo um novo sentido: pas papouète. Essa dupla negação tem uma decorrência que introduz o efeito de não sentido e um sentido novo: “não não-poeta” {pas papouète}, operando com a sonoridade de lalíngua, trazendo-nos que o que sobra é somente o “piu” do significante (Bousseyroux, 2013BOUSSEYROUX, M. Os três estados da palavra: topologia da poesia. Conferência ministrada na Universidade de São Paulo, USP em 25 de abril de 2013. Inédito., p. 7) como uma suspensão do sentido, um sentido branco {sens-blanc}, o que tem íntima articulação com a função poética.

Sobre esta função, podemos compreendê-la a partir de Jakobson (apud Bousseyroux, 2013BOUSSEYROUX, M. Os três estados da palavra: topologia da poesia. Conferência ministrada na Universidade de São Paulo, USP em 25 de abril de 2013. Inédito.), ao formular que esta está ancorada na função senso-determinativa do som e que as sonoridades têm papel preponderante na estruturação do poema. Os sons, que são traços distintivos da língua, teriam a função de discriminar o sentido. No entanto, haveria também uma outra função do som, a de determinar o sentido, transpondo os dualismos da língua, quais sejam: o dualismo do signo linguístico entre significante e significado, e entre signo e referente; e o dualismo entre o eixo paradigmático da metáfora por substituição e o eixo sintagmático da metonímia por contiguidade, dualismos que são mantidos com a primeira função discriminativa do sentido. O segundo dualismo possibilita que sejam assinaladas a similitude e a não similitude de duas unidades verbais dotadas de sentido, impedindo a ambiguidade da língua a partir do uso da homofonia.

Segundo Bousseyroux, essa determinação poética do sentido ocorre a partir das possibilidades fônicas da língua, valendo-se das figuras de equiparação fônica, como a paronomásia, o anagrama, a onomatopeia e a sinestesia, considerando que aparece um efeito de sentido que parte da tensão entre sentido e som, como “a atualidade dos fatos do real de lalíngua, e não o efeito da retração temporal do significante no simbólico” (2013, p. 9). Quer dizer, Lacan recorreu à função poética, tal como formulada por Jakobson, mas introduziu lalíngua como o que traz a dimensão do real da linguagem, o que pode ser exemplificado quando diz que nascemos poema como falasser e não poetas, pois o que se tem é um saber sem sujeito do inconsciente-lalíngua, possibilitando que se opere sobre o Um com a suspensão do sentido pela palavra poética.

Lacan, em 1977, como nos diz Bousseyroux (2013BOUSSEYROUX, M. Os três estados da palavra: topologia da poesia. Conferência ministrada na Universidade de São Paulo, USP em 25 de abril de 2013. Inédito.), teve contato com a escrita poética chinesa através da obra de François Cheng, constatando a relevância do tom e do tonema na poesia chinesa, pois é a unidade tonal que decide a significação conforme a modulação do som. Isso significa que, para a altura ou oitava e a curva melódica da voz, ou na pronúncia de um som, considera-se quatro tons, um tom plano e três tons oblíquos, os quais são: o tom subindo, o tom partindo e o tom adentrando. No entanto, o tom não é o som. Ele não é o significante e o que dele ressoa.

François Cheng disse que a poesia chinesa é uma escrita cantada {tz’u} onde o poeta insufla um vazio entre as palavras, ou o sopro do vazio mediano do Tao. Essa poesia cantada e a oitava chinesa, onde está em jogo o contraponto tonal, tem efeitos musicais, de modo que da tonalidade à modulação se coloca um deslizamento, o qual produz um canto. E é esse efeito que direciona Lacan à afirmação de que a interpretação analítica deve ser poética.

No seminário L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre (1976-1977), o autor nos diz que a poesia é a ressonância do corpo ou a “condansação”, como cita em Joyce, o sintoma (1976), de modo que a condensação da própria condensação promove uma dança dos significantes, a dança entre o som e o sentido. Dessa forma, temos a poesia como efeito de sentido e efeito de furo {trou}, furo que promove a ressonância do corpo pelo instrumento da voz fazendo uso, não mais somente da linguagem traumática, mas também da lalíngua trou-mática.

Trata-se de um indício de que, a partir do equívoco ab-senso, promovido pelo princípio da inexistência da relação sexual para a língua, com um conflito entre sentido e som, algo se oferece à criação poética (Bousseyroux, 2013BOUSSEYROUX, M. Os três estados da palavra: topologia da poesia. Conferência ministrada na Universidade de São Paulo, USP em 25 de abril de 2013. Inédito.). No seminário As formações do inconsciente (1957-1958/1999), Lacan indica o chiste como um deslocamento entre a verdade e o sentido, produzindo um efeito de não sentido, o que foi retomado no seminário L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre (1976-1977), quando aponta o chiste como uma possibilidade para irmos além do inconsciente, em direção ao ab-senso. Desta maneira, entende-se que o analista pode se valer da função poética para que, a partir do equívoco ab-senso permitido pela lógica “não há relação sexual”, o analisando possa produzir um significante novo, fazendo ressoar outra coisa. Talvez, esse seja o caminho indicado para trabalharmos com o real de lalíngua, na tensão entre sentido e som, na direção de fazer mais do que falar: com furos, operados pela fala do sujeito, e cortes, a partir do dizer do analista, numa travessia que vai do muro de linguagem em direção à carta de (a)muro como um “novo amor”, fazendo ressoar a lira do desejo.

Considerações finais

A partir da articulação entre saber, verdade e gozo compondo uma escrita dos discursos no muro de linguagem, consideramos que a possibilidade de transposição deste muro que se oferece à reverberação, visando uma escrita de uma carta/letra de amor ou de (a)muro, como nos aponta Lacan, deve, essencialmente, considerar a lógica do princípio da inexistência da relação sexual, a qual derroga a não contradição. Justamente a partir do aforisma “não há relação sexual”, Lacan nos ensina que não há metalinguagem, e, assim, entramos em um novo regime linguístico: o de lalíngua, onde há a primazia da função sonora em detrimento da função referencial da linguagem, de modo a romper a significação fálica que comporta um valor de verdade na fantasia fundamental remetente ao sintoma. Assim, por essa operação temos uma abertura à função poética, provocando uma tensão entre som e sentido e produzindo um significante novo pela via do ab-senso, ou do senso ab-sexo como nos diz Cassin (2013)BADIOU, A. & CASSIN, B. Não há relação sexual: duas lições sobre “O aturdito” de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013. 96p., que possa representar uma carta de amor ou de (a)muro como uma escrita poética, pela ressonância do corpo, pondo em jogo a tonalidade e a modulação em direção a um canto e a uma condansação de significantes, que remeta à causa do desejo.

Referências

  • BADIOU, A. & CASSIN, B. Não há relação sexual: duas lições sobre “O aturdito” de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013. 96p.
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  • BOUSSEYROUX, M. Os três estados da palavra: topologia da poesia. Conferência ministrada na Universidade de São Paulo, USP em 25 de abril de 2013. Inédito.
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  • LACAN, J. Prefácio à edição inglesa do Seminário 11 (1976). In:. Outros escritos Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003.
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  • 1
    Ceticismo: derivado do grego skepsis, significa “examinar”. O cético é aquele que apresenta um espírito hesitante e se vale da crítica para compor seus argumentos. Além disso, afirmam que apenas pode-se ter uma certeza, a de que nada se sabe, levando a uma negação categórica.
  • 2
    Com o advento da democracia na Grécia antiga, as questões filosóficas não confluem mais para explicar o ser das coisas, pois a importância passa a residir na retórica a fim de fazer prevalecer um determinado argumento nas assembleias. Assim, para atender tal demanda, surgem os sofistas, os quais visavam a persuasão pelo uso da fala, com o objetivo de derrotar o argumento de um adversário em um debate. Eles ofereciam o seu trabalho, argumentando serem portadores de um saber universal, porém o seu discurso não necessariamente demonstrava uma relação entre as palavras e as coisas, já que buscavam a refutação. Desse modo, os sofistas não pretendiam alcançar uma verdade absoluta, mas convencer o seu público acerca do que discursavam.
  • 3
    Poiésis: a ação de produzir algo de forma criativa.
  • 4
    Aisthésis: é o campo da filosofia que estuda a natureza do belo e dos fundamentos da arte.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2017

Histórico

  • Recebido
    27 Jan 2014
  • Aceito
    20 Jul 2014
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